Ted Sorensen foi um assessor destacado e escritor de discursos do Presidente John F. Kennedy. Em seu livro de memórias, descreve o estilo do presidente norte-americano. No lugar dos puxa-sacos e aduladores, Kennedy se cercava de pessoas de distintos perfis, trajetórias e opiniões. A sua concepção de tomada de decisão era baseada na obsessão pelo desafio às preferências e inclinações pré-estabelecidas.
Segundo Sorensen, esse estilo constituía a garantia de que Kennedy só tomaria uma decisão depois de um escrutínio livre, sistemático e, até mesmo, incisivo de suas próprias opiniões por parte de seus assessores.
Esse depoimento é convergente com o relato que o irmão do Presidente, Robert Kennedy, faz do período mais crítico da crise dos mísseis de Cuba, em 1962. O livro, intitulado “Treze Dias”, serviu de inspiração para o filme de mesmo título, tendo Kevin Costner no papel de um dos assessores de Kennedy.
Para quem estuda relações internacionais, o processo decisório de Kennedy na crise que quase levou à Terceira Guerra Mundial gerou o estudo de caso clássico “A Essência da Decisão” do professor Graham Allison, meu colega em Harvard.
Sem entrar nos meandros do sofisticado estudo de Allison, que teria um interesse mais acadêmico, o fato é que todos os registros indicam que Kennedy foi capaz de fazer cálculos complexos e evitou o pior, apesar de alguns impulsos de certos assessores, por conta de seu estilo de liderança.
É claro que fica fácil tirar conclusões a posteriori, mas tudo indica que o estilo foi tão importante para o desfecho do episódio – a negociação diplomática acabou prevalecendo sobre um ataque militar – quanto a qualidade das informações de inteligência, as análises e informes ou a postura do outro lado, que também se alterou e abriu espaço para a acomodação.
Diante de grandes momentos de tensão ou de alteração repentina das condições de governabilidade, as instituições e a cultura política de um país fazem toda a diferença. No entanto, há momentos críticos na história em que a liderança – seja o Presidente Kennedy nesse episódio ou Franklin Roosevelt antes dele – adquire peso decisivo nos resultados alcançados.
Se o Estado moderno se caracteriza pela legitimação racional-legal, como queria Weber, há momentos em que, diante de dilemas inesperados, um espaço se abre para o carisma da liderança, que, se estiver à altura de seu tempo, poderá ser fator central no enfrentamento de desafios e encaminhamento de soluções.
O líder que é capaz de ouvir e tomar decisões com base em argumentos sólidos, ancoradas em opiniões abalizadas e em avaliação serena, inclusive dos dados científicos, terá certamente mais chance de acertar, como Kennedy acertou.
No Brasil, nossa cultura de tomada de decisões tende a ser muito mais verticalizada, com um sistema centralizado na figura do Presidente, porém sem a tradição de pluralismo que um dia prevaleceu nos EUA. Em terras tupiniquins, a máxima do período do Estado Novo ainda ecoa nas práticas políticas hodiernas: aos amigos, tudo; aos inimigos, a fria letra da lei.
Nos dias que correm, o país enfrenta, como de resto o mundo inteiro, a crise da pandemia da Covid-19. É nesses momentos de grande comoção que mais faz falta uma cultura de tomada de decisões verdadeiramente plural.
No lugar dos aduladores, o chefe de governo precisa de verdadeiros assessores, com a prerrogativa de dizer a verdade e, se for o caso, contrariar os pressupostos tidos como intocáveis do líder de plantão, para que sua decisão não se baseie na visão pré-estabelecida, unidimensional e limitada de sua claque, mas responda às reais necessidades do país.
Se no Brasil já seria difícil, sob quaisquer circunstâncias, ter um processo decisório mais aberto, transparente e plural, hoje, infelizmente, respira-se um ar ainda mais rarefeito nos círculos de poder, em sintonia com a polarização exacerbada que tem sido nossa sina recente.
Nesses casos, na ausência de liderança no Executivo capaz de inspirar confiança e gerar união, cega que está pelos preconceitos e pelo fervor ideológico e convencida de que é dona do monopólio da verdade, as decisões capazes de apontar o fim do túnel devem ser construídas pelos demais Poderes, em particular o Legislativo, e pelos entes subnacionais.
Se o Presidente exige fidelidade canina a sua visão de mundo, a ponto de ministros modularem suas opiniões técnicas sobre o enfrentamento da pandemia para enquadrar-se na orientação política imposta de cima, não resta outra alternativa senão o sistema de pesos e contrapesos das instituições democráticas e republicanas.
O Congresso já começou a fazer a sua parte, ao propor e aprovar ajuda para trabalhadores mais vulneráveis e socorro para pequenas e médias empresas. Por sua vez, o poder judiciário também tem atuado para minimizar os efeitos da crise.
Em duas decisões fundamentais, o STF flexibilizou a lei de responsabilidade fiscal e decidiu impedir a veiculação de campanhas oficiais que atentam contra a saúde pública. Se o Executivo federal ignora as melhores recomendações baseadas na experiência internacional, cabe aos governadores exigir respeito às medidas capazes de salvar vidas e evitar o caos na saúde e na economia.
Seria demais pedir um Kennedy, um Roosevelt ou um Churchill no Brasil – hoje ou em qualquer momento de nossa história, mas o que não podemos nos dar o luxo é de deixar a marcha da insensatez promovida por alguns entes do Executivo seguir impávida, sem contraponto ou limites. E já passou da hora de dar um basta. Trata-se, literalmente, de uma questão de vida ou morte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário