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segunda-feira, 1 de julho de 2024

Para entender rapidamente a eleição francesa - André Spritzer

Para entender rapidamente a eleição francesa

André Spritzer

(1/07/2024)

Pesquisador. Doutor em ciência da computação, especializado em visualização e interação. Cientista político e internacionalista. Site: https://andrespritzer.com/

 

Sistema político

A França é uma república democrática com um regime semipresidencialista, com o poder executivo compartilhado entre um presidente eleito por voto direito e um primeiro-ministro oriundo do parlamento (a Assembleia Nacional). O presidente serve por um mandato de cinco anos e pode ser reeleito consecutivamente uma vez. A eleição se dá em um sistema de dois turnos similar ao brasileiro: se algum candidato obtiver mais de 50% no primeiro turno, vence; caso contrário, os dois candidatos com mais votos se enfrentam em um segundo turno.

O parlamento é eleito depois da eleição presidencial para aumentar as chances de coerência ideológica-programática na composição do governo e na sua coalizão na Assembleia, evitando o risco de coabitação (quando o presidente é de um partido e o primeiro-ministro de outro) e consequente paralisia ou, no mínimo, dificuldades políticas. A Assembleia tem 577 assentos, cada um representando um distrito eleitoral. Uma maioria absoluta, portanto, requer 289 assentos. Assim como na eleição presidencial, a eleição se dá por dois turnos.

O presidente e o primeiro-ministro compartilham o poder executivo, mas desempenham funções distintas. O presidente é o chefe de Estado, responsável por indicar o primeiro-ministro (que deve ser aprovado pela Assembleia Nacional) e os membros do Conselho Constitucional (a principal autoridade constitucional). Além disso, o presidente tem o poder de convocar referendos e, crucialmente, pode dissolver a Assembleia Nacional, convocando novas eleições legislativas, como fez o presidente Emmanuel Macron após a eleição europeia. Por outro lado, o primeiro-ministro é o chefe de governo, encarregado da administração cotidiana e da implementação das políticas públicas. Ambos, presidente e primeiro-ministro, compartilham algumas atribuições, como a escolha de ministros, assinatura de ordens e decretos, negociação e ratificação de tratados, entre outras.

 

História política recente

Os partidos políticos atuais incluem os tradicionais PS (Parti Socialiste, ou Partido Socialista), de centro-esquerda, e o LR (Les Républicains, ou Republicanos), de centro-direita gaullista. Na extrema-esquerda, há o LFI (La France Insoumise, ou França Insubmissa), liderado por Jean-Luc Mélenchon. Já a extrema-direita se divide entre o nacionalista RN (Rassemblement National, ou Reunião Nacional), de Marine Le Pen, e o arquiconservador R! (Reconquête, ou Reconquista), do jornalista Éric Zemmour. No centro, há ainda o partido RE (Renaissance, ou Renascença), de Emmanuel Macron, atual presidente da República.

Os últimos governos dos partidos tradicionais foram bastante impopulares. Tanto Nicolas Sarkozy (presidente entre 2007 e 2012) pelo LR (na época UMP—Union pour un mouvement populaire, ou União por um Movimento Popular), quanto François Hollande (no cargo entre 2012 e 2017) pelo PS, serviram apenas um mandato. Enquanto os tradicionais perdiam popularidade, o RN (na época, Front National, ou Frente Nacional) ganhava força. Marine Le Pen investiu em uma suavização de sua imagem e adotou uma estratégia de “desdemonização” do partido, que mudou de nome e se afastou—ao menos na superfície—de suas raízes antissemitas e filonazistas (vários fundadores do partido tinham ligações com regime de Vichy, que colaborou com a Alemanha nazista). Essa mudança no RN passou até pela expulsão do pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, um dos principais fundadores e tradicional líder e candidato do partido.

Em 2016, Emmanuel Macron, então ministro da economia do governo Hollande, largou o cargo e fundou o movimento/partido centrista En Marche! (Em Marcha!), que depois mudou de nome duas vezes, primeiro para La République em Marche! (A Reública em Marcha!) e, finalmente, Renaissance (Renascimento). Macron venceu a eleição presidencial no que foi essencialmente uma “zebra”. Na esquerda, o tradicional PS virtualmente desapareceu enquanto o extremista LFI cresceu espetacularmente (6.4% dos votos para Benoît Hamon, do PS, contra 19.6% para Mélenchon). Na direita, François Fillon, candidato do tradicional LR e ex-primeiro-ministro de Sarkozy, tinha tudo para ir ao segundo turno contra Marine Le Pen, mas perdeu força em meio a um escândalo de nepotismo envolvendo sua mulher há poucas semanas da eleição e terminou em terceiro lugar, com 20% dos votos. O espaço aberto pelos problemas de Fillon fez com que o então novato Macron ficasse em primeiro lugar no primeiro turno, com 24% dos votos. Ele foi seguido por Le Pen, com 21.3%. Macron venceu o segundo turno com facilidade, conquistando 66.1% dos votos contra 33.9% para Le Pen. Os votos de Macron, no entanto, foram mais contra Le Pen do que exatamente nele—ou seja, ele venceu não tanto por seu programa, mas porque na época votar na extrema-direita ainda era tabu.

A despeito do mérito, a baixa legitimidade do programa de Macron e seu estilo “imperial” fez com que ele tivesse uma presidência difícil, com baixa popularidade e problemas de governabilidade, enfrentando crises como a dos Coletes Amarelos. Ainda assim, com o PS praticamente morto nacionalmente e o LR fraco, em 2022 Macron conquistou a reeleição em nova disputa contra uma Le Pen mais forte, mas ainda considerada tabu. Essa eleição também foi marcada por uma grande demonstração de força da extrema-esquerda de Mélenchon e na participação do segundo partido de extrema-direita, o Rêconquete, de Zemmour, que atraiu para seus quadros ninguém menos que Marion Maréchal-Le Pen, sobrinha de Marine (Marion posteriormente retornaria ao RN durante a eleição europeia de 2024, quando foi expulsa do partido por defender aliança do Rêconquete com o partido de sua família).

Assim como em sua primeira eleição, Macron foi reconduzido ao cargo mais por não ser Le Pen do que por seus próprios méritos. Sua impopularidade e seus problemas de governabilidade, portanto, só aumentaram à medida que implementava pontos-chave de seu programa. Uma das suas medidas mais controversas foi uma reforma da previdência que levou milhões de franceses a protestarem nas ruas, às vezes com violência. Outra reforma controversa foi uma proposta para endurecer a política de imigração. Essa reforma só aprovada com o apoio do RN de Le Pen e resultou em uma implosão de sua coalizão, forçando a primeira-ministra, Élisabeth Borne, a se demitir e levando à formação de um novo governo com Gabriel Attal, até então ministro da Educação, como primeiro-ministro.

Com os partidos tradicionais praticamente fora do jogo e Macron a cada vez mais detestado, Marine Le Pen continuou a crescer em popularidade com sua estratégia de “desdemonização”. Um dos pilares dessa estratégia é o jovem Jordan Bardella, que teve uma ascensão meteórica no RN, se tornando presidente do partido (o primeiro a não ter Le Pen como sobrenome) aos 27 anos. Carismático e bem apessoado, Bardella se destacou por seus vídeos em redes sociais (em especial TikTok), que atraíram muitos eleitores jovens. A estratégia deu frutos: na eleição europeia de 2024, o RN obteve mais que o dobro de votos da coalizão capitaneada pelo Renaissance de Macron (31,37% contra 14,6%). A esquerda e direita tradicionais, por sua vez, não chegaram nem a 10% cada (respectivamente 13,83% e 7,25% para coalizão liderada pelo PS e para o LR) e a extrema-esquerda de Mélenchon conseguiu 9,89% dos votos. Esse desastre eleitoral levou Macron à arriscada decisão de dissolver a Assembleia Nacional e convocar a eleição legislativa precoce que está agora em curso.

 

Eleição legislativa de 2024

A convocação de uma eleição legislativa surpresa caiu como um meteoro na já instável política francesa. Muitos questionaram a decisão de Macron (inclusive apoiadores) pelo risco de produzir uma Assembleia ingovernável e até uma coabitação com Jordan Bardella como primeiro-ministro. Não só isso, como a eleição serviu de catalisador para diversos conflitos.

Temendo a ascensão da extrema-direita, o PS aceitou formar uma coalizão de esquerda com os demais partidos do espectro e o LFI de Mélenchon como protagonista. Essa aliança, no entanto, é bastante desconfortável para a ala mais centrista do PS, devido tanto ao programa do LFI quanto a tentativa deste partido de se aproximar do considerável eleitorado muçulmano através de uma retórica/agenda antissemita/antissionista.

À direita, a eleição provocou uma crise no LR, com o presidente do partido, Éric Ciotti, forjando uma aliança com o RN, algo ultrajante para boa parte da elite do partido, que acha absurda a ideia do partido gaullista se unir a um partido ligado a Vichy. A aliança com o RN não se materializou, mas gerou um caos no partido e levou à expulsão de Ciotti, que foi posteriormente revertida por decisão judicial.

Finalmente, para Macron, a aposta na eleição legislativa parece ter dado errado. No primeiro-turno, ocorrido dia 30 de junho, sua coalizão amargou o terceiro lugar, com somente 20% dos votos. O primeiro lugar ficou com o RN, com 33% dos votos e o segundo com o bloco de esquerda, com 28%. O LR, por sua vez, conseguiu 10,23%. Apesar da vitória, é improvável que o RN de Le Pen conquiste a maioria absoluta da Assembleia após a votação segundo turno, que se dará dia 7 de julho.

 

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