Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Pesquisador. Doutor em ciência da computação, especializado em visualização e interação. Cientista político e internacionalista. Site: https://andrespritzer.com/
Sistema político
A França é uma república democrática com um regime semipresidencialista, com o poder executivo compartilhado entre um presidente eleito por voto direito e um primeiro-ministro oriundo do parlamento (a Assembleia Nacional). O presidente serve por um mandato de cinco anos e pode ser reeleito consecutivamente uma vez. A eleição se dá em um sistema de dois turnos similar ao brasileiro: se algum candidato obtiver mais de 50% no primeiro turno, vence; caso contrário, os dois candidatos com mais votos se enfrentam em um segundo turno.
O parlamento é eleito depois da eleição presidencial para aumentar as chances de coerência ideológica-programática na composição do governo e na sua coalizão na Assembleia, evitando o risco de coabitação (quando o presidente é de um partido e o primeiro-ministro de outro) e consequente paralisia ou, no mínimo, dificuldades políticas. A Assembleia tem 577 assentos, cada um representando um distrito eleitoral. Uma maioria absoluta, portanto, requer 289 assentos. Assim como na eleição presidencial, a eleição se dá por dois turnos.
O presidente e o primeiro-ministro compartilham o poder executivo, mas desempenham funções distintas. O presidente é o chefe de Estado, responsável por indicar o primeiro-ministro (que deve ser aprovado pela Assembleia Nacional) e os membros do Conselho Constitucional (a principal autoridade constitucional). Além disso, o presidente tem o poder de convocar referendos e, crucialmente, pode dissolver a Assembleia Nacional, convocando novas eleições legislativas, como fez o presidente Emmanuel Macron após a eleição europeia. Por outro lado, o primeiro-ministro é o chefe de governo, encarregado da administração cotidiana e da implementação das políticas públicas. Ambos, presidente e primeiro-ministro, compartilham algumas atribuições, como a escolha de ministros, assinatura de ordens e decretos, negociação e ratificação de tratados, entre outras.
História política recente
Os partidos políticos atuais incluem os tradicionais PS (Parti Socialiste, ou Partido Socialista), de centro-esquerda, e o LR (Les Républicains, ou Republicanos), de centro-direita gaullista. Na extrema-esquerda, há o LFI (La France Insoumise, ou França Insubmissa), liderado por Jean-Luc Mélenchon. Já a extrema-direita se divide entre o nacionalista RN (Rassemblement National, ou Reunião Nacional), de Marine Le Pen, e o arquiconservador R! (Reconquête, ou Reconquista), do jornalista Éric Zemmour. No centro, há ainda o partido RE (Renaissance, ou Renascença), de Emmanuel Macron, atual presidente da República.
Os últimos governos dos partidos tradicionais foram bastante impopulares. Tanto Nicolas Sarkozy (presidente entre 2007 e 2012) pelo LR (na época UMP—Union pour un mouvement populaire, ou União por um Movimento Popular), quanto François Hollande (no cargo entre 2012 e 2017) pelo PS, serviram apenas um mandato. Enquanto os tradicionais perdiam popularidade, o RN (na época, Front National, ou Frente Nacional) ganhava força. Marine Le Pen investiu em uma suavização de sua imagem e adotou uma estratégia de “desdemonização” do partido, que mudou de nome e se afastou—ao menos na superfície—de suas raízes antissemitas e filonazistas (vários fundadores do partido tinham ligações com regime de Vichy, que colaborou com a Alemanha nazista). Essa mudança no RN passou até pela expulsão do pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, um dos principais fundadores e tradicional líder e candidato do partido.
Em 2016, Emmanuel Macron, então ministro da economia do governo Hollande, largou o cargo e fundou o movimento/partido centrista En Marche! (Em Marcha!), que depois mudou de nome duas vezes, primeiro para La République em Marche! (A Reública em Marcha!) e, finalmente, Renaissance (Renascimento). Macron venceu a eleição presidencial no que foi essencialmente uma “zebra”. Na esquerda, o tradicional PS virtualmente desapareceu enquanto o extremista LFI cresceu espetacularmente (6.4% dos votos para Benoît Hamon, do PS, contra 19.6% para Mélenchon). Na direita, François Fillon, candidato do tradicional LR e ex-primeiro-ministro de Sarkozy, tinha tudo para ir ao segundo turno contra Marine Le Pen, mas perdeu força em meio a um escândalo de nepotismo envolvendo sua mulher há poucas semanas da eleição e terminou em terceiro lugar, com 20% dos votos. O espaço aberto pelos problemas de Fillon fez com que o então novato Macron ficasse em primeiro lugar no primeiro turno, com 24% dos votos. Ele foi seguido por Le Pen, com 21.3%. Macron venceu o segundo turno com facilidade, conquistando 66.1% dos votos contra 33.9% para Le Pen. Os votos de Macron, no entanto, foram mais contra Le Pen do que exatamente nele—ou seja, ele venceu não tanto por seu programa, mas porque na época votar na extrema-direita ainda era tabu.
A despeito do mérito, a baixa legitimidade do programa de Macron e seu estilo “imperial” fez com que ele tivesse uma presidência difícil, com baixa popularidade e problemas de governabilidade, enfrentando crises como a dos Coletes Amarelos. Ainda assim, com o PS praticamente morto nacionalmente e o LR fraco, em 2022 Macron conquistou a reeleição em nova disputa contra uma Le Pen mais forte, mas ainda considerada tabu. Essa eleição também foi marcada por uma grande demonstração de força da extrema-esquerda de Mélenchon e na participação do segundo partido de extrema-direita, o Rêconquete, de Zemmour, que atraiu para seus quadros ninguém menos que Marion Maréchal-Le Pen, sobrinha de Marine (Marion posteriormente retornaria ao RN durante a eleição europeia de 2024, quando foi expulsa do partido por defender aliança do Rêconquete com o partido de sua família).
Assim como em sua primeira eleição, Macron foi reconduzido ao cargo mais por não ser Le Pen do que por seus próprios méritos. Sua impopularidade e seus problemas de governabilidade, portanto, só aumentaram à medida que implementava pontos-chave de seu programa. Uma das suas medidas mais controversas foi uma reforma da previdência que levou milhões de franceses a protestarem nas ruas, às vezes com violência. Outra reforma controversa foi uma proposta para endurecer a política de imigração. Essa reforma só aprovada com o apoio do RN de Le Pen e resultou em uma implosão de sua coalizão, forçando a primeira-ministra, Élisabeth Borne, a se demitir e levando à formação de um novo governo com Gabriel Attal, até então ministro da Educação, como primeiro-ministro.
Com os partidos tradicionais praticamente fora do jogo e Macron a cada vez mais detestado, Marine Le Pen continuou a crescer em popularidade com sua estratégia de “desdemonização”. Um dos pilares dessa estratégia é o jovem Jordan Bardella, que teve uma ascensão meteórica no RN, se tornando presidente do partido (o primeiro a não ter Le Pen como sobrenome) aos 27 anos. Carismático e bem apessoado, Bardella se destacou por seus vídeos em redes sociais (em especial TikTok), que atraíram muitos eleitores jovens. A estratégia deu frutos: na eleição europeia de 2024, o RN obteve mais que o dobro de votos da coalizão capitaneada pelo Renaissance de Macron (31,37% contra 14,6%). A esquerda e direita tradicionais, por sua vez, não chegaram nem a 10% cada (respectivamente 13,83% e 7,25% para coalizão liderada pelo PS e para o LR) e a extrema-esquerda de Mélenchon conseguiu 9,89% dos votos. Esse desastre eleitoral levou Macron à arriscada decisão de dissolver a Assembleia Nacional e convocar a eleição legislativa precoce que está agora em curso.
Eleição legislativa de 2024
A convocação de uma eleição legislativa surpresa caiu como um meteoro na já instável política francesa. Muitos questionaram a decisão de Macron (inclusive apoiadores) pelo risco de produzir uma Assembleia ingovernável e até uma coabitação com Jordan Bardella como primeiro-ministro. Não só isso, como a eleição serviu de catalisador para diversos conflitos.
Temendo a ascensão da extrema-direita, o PS aceitou formar uma coalizão de esquerda com os demais partidos do espectro e o LFI de Mélenchon como protagonista. Essa aliança, no entanto, é bastante desconfortável para a ala mais centrista do PS, devido tanto ao programa do LFI quanto a tentativa deste partido de se aproximar do considerável eleitorado muçulmano através de uma retórica/agenda antissemita/antissionista.
À direita, a eleição provocou uma crise no LR, com o presidente do partido, Éric Ciotti, forjando uma aliança com o RN, algo ultrajante para boa parte da elite do partido, que acha absurda a ideia do partido gaullista se unir a um partido ligado a Vichy. A aliança com o RN não se materializou, mas gerou um caos no partido e levou à expulsão de Ciotti, que foi posteriormente revertida por decisão judicial.
Finalmente, para Macron, a aposta na eleição legislativa parece ter dado errado. No primeiro-turno, ocorrido dia 30 de junho, sua coalizão amargou o terceiro lugar, com somente 20% dos votos. O primeiro lugar ficou com o RN, com 33% dos votos e o segundo com o bloco de esquerda, com 28%. O LR, por sua vez, conseguiu 10,23%. Apesar da vitória, é improvável que o RN de Le Pen conquiste a maioria absoluta da Assembleia após a votação segundo turno, que se dará dia 7 de julho.
Novo artigo de André Spritzer no @oestadodaarte, dessa vez explorando a ideia de democracia: sua definição, sua complexidade e o que a sustenta. Falamos muito dela e tratamos como algo óbvio, mas na verdade é muito menos trivial do que parece à primeira vista.
Praticamente todos dizemos prezar pela democracia e a defesa dela é algo constante no debate público em todos os cantos do espectro político-ideológico. No entanto, apesar de ser sempre tratado como algo positivo, o termo “democracia” é raramente definido e costuma significar coisas diferentes para pessoas diferentes.
Enquanto uns tratam democracia como sinônimo de eleições e de um princípio de “maioria-ganha”, outros consideram o termo como indicativo de algum tipo de igualdade—seja esta material, de direitos ou de oportunidades. Há, ainda, aqueles que associam democracia a mobilizações populares, como protestos e ativismo, ou à defesa de direitos individuais e da liberdade.
Como podemos ver, democracia não é exatamente um conceito óbvio e trivial. Mas o que então seria democracia? E por que ela é tão desejável, a ponto de até governos autocráticos tentarem se apresentar como democráticos?
Como aprendemos na escola, a palavra “democracia” vem do grego e significa “governo do povo”, sendo a união dos termos demos (povo) e kratia (governo). A democracia original teve seu apogeu em Atenas do século VI a.C. e envolvia a participação direta dos cidadãos do sexo masculino em uma assembleia (excluindo, portanto, mulheres, estrangeiros e escravos—ou seja, a maior parte dos habitantes), com votações baseadas na regra da maioria. Ao contrário do que poderíamos imaginar, não era um sistema automaticamente associado a algo bom e virtuoso—era, de fato, bastante questionado por ser suscetível a demagogos e potencialmente resultar em governos ruins (Platão chegou a compará-la a entregar o comando de um navio a um ignorante despreparado ao invés de a um navegador treinado). Essa imagem negativa perdurou até o surgimento da democracia moderna no século XVIII, combinando participação indireta pela eleição de representantes com as ideias liberais de limitação do poder do estado e defesa da liberdade e dos direitos do indivíduo. Essa variante, chamada hoje de democracia liberal, seria irreconhecível para um ateniense do século VI a.C., mas sua essência de ser um sistema de governo que envolve algum componente de participação popular se mantém.
A ideia de democracia enquanto participação sustenta uma das principais formas de pensar a democracia, originada no século XVIII através do pensamento de autores como o filósofo Jean-Jacques Rousseau e trazida para o mundo contemporâneo pela obra de cientistas políticos como Robert Dahl, talvez o mais influente teórico da democracia. Dahl baseia sua definição de democracia na ideia de igualdade política entre os cidadãos: se todos vamos viver sob regras impostas pelo mesmo governo, nada mais justo de que tenhamos um igual direito de participação na formulação dessas regras1,2. Como participação direta é inviável em países maiores do que pequenas cidades e com cidadãos que não têm tempo para se ocupar somente de política devido às suas vidas profissionais e pessoais, isso se dá principalmente através da eleição de representantes baseada no princípio de “uma pessoa, um voto”, com cada voto tendo peso igual. Para que isso seja possível, Dahl estabelece algumas exigências mínimas, em particular: eleições livres e justas, sufrágio universal, decisões de governo feitas por quem é de fato eleito, direito à candidatura a cargos eletivos para todos os cidadãos e liberdades de expressão, informação e associação.
A noção de democracia como participação nos é particularmente atraente por remeter a ideia de legitimidade por consentimento. Algo legítimo é algo percebido como correto. Assim, autoridades, governos e regras são considerados legítimos quando são percebidos pela população como corretos para a sua sociedade3,4. De onde, no entanto, vem essa percepção?
No início do século XX, o sociólogo alemão Max Weber apontou para três fontes de legitimidade do poder político: tradições, carisma de líderes e uma base legal-racional (ou seja, legislação). Estas três fontes estariam sempre presentes em maior ou menor grau, mas sistemas democráticos, em particular, teriam uma predominância da terceira, realizada especialmente na ideia de império da lei (rule of law). Mais recentemente—mas ainda no contexto da legitimação do poder—o cientista político Robert Beetham julgou como insuficiente essa visão tradicional, de que algo é legítimo somente porque é considerado como tal5. Ele, então, se debruçou sobre o que exatamente fundamenta a crença na legitimidade de uma relação de poder, chegando à conclusão de que ela se dá quando três condições estão postas: 1) ela está de acordo com as regras formais e informais estabelecidas pela sociedade; 2) essas regras podem ser justificadas em termos das crenças compartilhadas pelas autoridades e por aqueles à elas subordinados; e 3) os subordinados demonstram de forma explícita (através do voto, juramentos, participação em cerimonias etc.) o seu consentimento com o arranjo de poder em questão.
Como bem colocado por Beetham, legitimidade política é fundamental em qualquer sociedade, seja ela democrática ou autoritária, pois diminui o custo da manutenção da ordem (ou seja, menos coerção é necessária) e facilita a cooperação entre as pessoas ao criar expectativas confiáveis sobre o comportamento mútuo5. Afinal, ao aceitar instituições como legítimas, a população se mostra mais disposta a agir de acordo com as regras e a obedecer às autoridades. A legitimidade também limita o que as próprias autoridades podem fazer: quando agem de forma a extrapolar aquilo que é visto como legítimo pela sociedade, elas tendem a corroer sua própria legitimidade, aumentando, portanto, o custo da manutenção de seu poder por ter que recorrer mais à coerção para assegurar a obediência dos subordinados, o que, além de demandar mais recursos, é mais instável, já que o sistema todo pode quebrar se força for usada em quantidade insuficiente ou se a população simplesmente passar a não acreditar mais que as autoridades estão dispostas a fazer uso da violência (um exemplo disso é a queda dos regimes comunistas da Europa oriental depois que ficou claro que a União Soviética de Gorbachev não iria interferir).
Uma das grandes vantagens dos sistemas democráticos legítimos é que eles permitem a coexistência de indivíduos com diferentes visões de mundo ao fazerem a transposição de disputas do embate físico violento para o jogo eleitoral baseado em regras consensuais, com os derrotados tendo a garantia que depois de um certo período terão nova chance de disputar o poder. Essa ideia, inclusive, motivou importantes formas de definir democracia. Para o filósofo austríaco Karl Popper, a democracia seria o sistema que permite que cidadãos troquem de governo sem que sangue seja derramado6,7. O cientista político Adam Przeworski, por sua vez, definiu democracia como o sistema em que partidos perdem eleições (e deixam o poder pacificamente)8. Com base nessa definição, Przeworski e colegas estabeleceram ainda seus próprios critérios mínimos para chamar um país de democrático, especificamente: a escolha do chefe do poder executivo e da legislatura por eleições, a participação nestas de mais de um partido político e, notavelmente, a exigência de que ao menos uma alternância de poder tenha ocorrido sob as mesmas regras eleitorais9.
Como se pode ver, a base de uma democracia (ou qualquer outro sistema) legítima é um comprometimento de todos os atores com um mínimo denominador comum institucional e com a coexistência pacífica—ou seja, todos devem abdicar totalmente de métodos violentos e fora das regras consensuais, gerando, assim, o que o cientista político Robert Dahl chamaria de um sistema de segurança mútua, no qual um padrão mínimo de confiança entre os atores faz com que um não veja o outro como uma ameaça existencial e aceite pacificamente sua existência e participação no jogo político1. Essa necessidade de legitimidade dos componentes da democracia é corroborada empiricamente por estudos conduzidos por cientistas políticos como Pippa Norris e Christopher Claassen10,11. Quando essa legitimidade é atingida e o regime democrático é tido por todos como a única alternativa possível para resolução de conflitos, a democracia pode ser considerada consolidada12, de forma que eventuais crises e problemas de governança tendam a ser atribuídos ao governo de turno e não ao regime democrático em si, que permanece em pé e legítimo aos olhos da população—ou seja, a democracia continua sendo the only game in town, como colocariam os cientistas políticos Juan Linz e Alfred Stepan.
Esse caráter de mediação de conflitos da democracia confere a ela uma justificativa para além daquela de igualdade política entre os cidadãos que é expressa no pensamento da democracia enquanto participação. De fato, a democracia pressupõe que as sociedades são plurais e que isso naturalmente implica certa dose de conflito. Não só isso, como esse conflito é necessáriopara seu bom funcionamento, já que estimula que diferentes ideias, programas e visões de mundo sejam apresentados à população e compitam pelo seu voto. Essa forma de pensar democracia como competição tem no economista austríaco Joseph Schumpeter um grande expoente. Ele define democracia como o método no qual “indivíduos adquirem o direito de decidir através de uma disputa competitiva pelo voto das pessoas” (tradução livre) 13. Seu foco, portanto, é na liderança—nas elites que almejam o poder—e não na participação popular. É democracia como governo pelos políticos, não pelo povo.
Para Schumpeter, ainda que participação permaneça um elemento essencial da democracia, colocar ênfase nesse aspecto é cometer o erro de aderir a uma visão romântica, idealizada e, portanto, irreal do regime democrático. Ele considera ficções tanto a ideia rousseaniana de que existe um bem comum que possa ser descoberto através da deliberação racional quanto a noção de que as pessoas sabem o que é melhor para si. Ele argumenta, ainda, que eleições tendem a resultar na vitória do político que é o melhor candidato, mas não necessariamente o melhor governante, pois estas são coisas que exigem habilidades distintas que nem sempre se encontram no mesmo indivíduo. Para que uma democracia seja funcional, assim, ela deve limitar a participação popular somente ao voto nas eleições e restringir o poder de decisão dos políticos somente a determinadas áreas, com aquilo que eles não dominam ficando a cargo de funcionários públicos especializados, apartidários e fora do jogo político.
Tendo testemunhado em sua vida a transformação das democracias europeias nos totalitarismos fascista e nazista, Schumpeter possui uma visão de democracia pessimista e pragmática, sendo menos sobre alguma ideia abstrata de justiça e igualdade e mais uma forma de disciplinar elites através da disputa periódica pelo voto popular, evitando que algum grupo tome conta do poder para servir somente aos seus próprios interesses em detrimento dos da maioria. Igualmente, seu menosprezo à participação da população também parece pouco realista—afinal, é difícil imaginar que indivíduos e grupos mais engajados aceitarão esperar pacientemente entre eleições ao invés de tentar influenciar tomadores de decisões no decorrer de um governo, conforme as situações surgem, através de atuação partidária e dos diversos grupos de interesse e associações da sociedade civil.
O ceticismo de Schumpeter quanto às intenções e habilidades dos políticos e à sabedoria e racionalidade popular, no entanto, não só corroboram a intuição de predecessores importantes, como Platão e James Madison, como se mostraram justificados. Escrevendo poucos anos após ele, o economista Kenneth Arrow, por exemplo, demonstrou em seu teorema da impossibilidade que, em algumas circunstâncias, um grupo de eleitores pode acabar votando contrário ao desejo da maioria ainda que cada eleitor individualmente vote de forma racional—ou seja, a racionalidade individual não implica a racionalidade coletiva14. Mais recentemente, pesquisadores contemporâneos também mostraram empiricamente como o voto é influenciado pelo contexto social do eleitor, pelas informações às quais ele tem acesso e pela forma como essas informações são filtradas pela sua percepção e cognição, a ponto de identidades tribais, afinidade a líderes carismáticos, ressentimento e até fatores aleatórios totalmente fora do controle do governo poderem ter mais peso na decisão de voto do que ponderações racionais sobre programas de governo e ideologia15–17.
A desconfiança sobre o comportamento de autoridades e do eleitorado nos leva àquela que talvez seja a forma mais completa e complexa de pensar a democracia: a de democracia como equilíbrio, que sustenta muito do que entendemos hoje por democracia liberal. A principal justificativa para essa abordagem é a combinação da legitimidade por consentimento conferida pela participação popular com as ideias liberais de proteger direitos e liberdades individuais e limitar o poder do estado. Ela surgiu no final século XVIII, inspirada pelas ideias de filósofos iluministas como John Locke, o já mencionado Rousseau e o barão de Montesquieu e por uma noção muito prática de justiça de que quem paga impostos deve ter direito à representação política. Na época, essa linha de pensamento teve sua expressão maior nos Artigos Federalistas, uma coleção de ensaios escritos pelos pais fundadores dos Estados Unidos para promover a ratificação por voto popular da constituição americana, que foi revolucionária tanto pelo seu caráter democrático, quanto liberal18. A ideia de democracia como equilíbrio foi posta por James Madison no artigo 51 como fazer com que “ambição se contraponha à ambição” (tradução livre) e consiste no estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos que impede abusos ao distribuir o poder entre diversas instituições que se fiscalizem mutuamente. Em termos práticos, isso se traduz na divisão de poderes, na noção do império da lei e na adoção de uma constituição que define direitos fundamentais dos cidadãos e o desenho institucional de um país, estabelecendo princípios e regras sobre como ele deve ser governado.
Ainda que princípios liberais apareçam implícitos nas ideias de democracia como participação e democracia como competição, a ideia de democracia como equilíbrio é que torna mais explícita a tensão entre a democracia em sua forma mais pura, baseada na regra da maioria, e os princípios liberais de proteção dos direitos e liberdades individuais e minorias, expressos no império da lei. Em uma democracia liberal, nada é absoluto—nem mesmo o desejo da maioria. Apesar da ideia de participação por consentimento ser o que dá legitimidade ao sistema como um todo e da eleição de representantes ser um elemento fundamental disso, a legitimidade é igualmente oriunda da lei. Isso significa que mesmo que autoridades eleitas (ou seja, presidentes, deputados, senadores etc.) possuam mandatos obtidos e legitimados por voto popular, elas não podem fazer tudo o que querem, ainda que estejam obedecendo a vontade da maioria da população. Essas autoridades têm atribuições constitucionalmente definidas e atuação limitada ao que a lei permite, além de serem controladas por outras instituições que incluem até atores não-eleitos, como polícia, órgãos de fiscalização, cortes de justiça e bancos centrais independentes. A ideia de democracia como equilíbrio, portanto, coloca em primeiro plano a importância de montar um arranjo institucional adequado, que justamente equilibre a legitimidade conferida pelo voto popular, a liberdade de atuação de quem é eleito, os diversos freios e limitações a essa atuação e o que é atribuído a atores não-eleitos de forma a melhor garantir a existência do sistema, sua governabilidade e sua legitimidade perante a população.
Entender e assimilar a contradição inerente à democracia liberal não é trivial e não é algo que ocorre naturalmente, somente pela vivência democrática. Pelo contrário: a ideia de alguém que possa fazer o que quiser amparado em um mandato popular obtido por eleições é muito mais intuitiva, especialmente considerando o voto como base da legitimidade. Essa dissonância de entendimento pode ser um motivo de frustração para o eleitor, ao ver uma distância entre aquilo pelo qual ele vota e as políticas que obtém em retorno, com promessas de campanha que não se materializam por ação do sistema de freios e contrapesos. Isso pode levar a apatia e, em combinação com outros fatores, até a uma revolta contra o sistema como um todo que motive o voto em demagogos e autocratas em potencial que visam minar a democracia por dentro19–22. De fato, a degradação democrática que está a ocorrer em muitos países costuma se dar gradualmente, dentro das regras do jogo (ao invés da ruptura súbita dos tradicionais golpes militares), tendo muitas vezes como protagonistas políticos eleitos pela população—ou seja, ela é fruto de uma escolha democrática e tem, portanto, apoio de parcela expressiva do povo, mesmo que nem sempre de uma maioria, sendo, então, uma crise de legitimidade da democracia liberal, que deixa de ser percebida como o regime correto para a sociedade.
Democracias que passam por esse processo de degradação muito seguido mantêm elementos democráticos formais ao mesmo tempo que perdem seu caráter liberal. Ou seja, ainda que o poder esteja concentrado nas mãos de um ator, que a alternância de poder não seja mais viável na prática e que direitos e liberdades individuais e de minorias estejam cerceados ou sob ameaça, uma fachada democrática é mantida através da realização de eleições periódicas (mas não necessariamente livres e justas), uma certa tolerância a partidos de oposição (desde que não tenham perspectivas de poder), algum nível de império da lei (que muda ou é interpretada conforme conveniência política), liberdade de imprensa (mas todos os principais veículos pertencem ao governo ou a pessoas ligadas a ele) e outros procedimentos do tipo que possam conferir uma aura de legitimidade legal e popular ao regime.
Países que possuem um formalismo democrático, mas não mantém mais a essência liberal tornam-se o que o cientista político e jornalista Fareed Zakaria chamou de democracias iliberais23,24, sendo a Hungria talvez o caso contemporâneo mais emblemático. Um conceito similar é o que o cientista político Larry Diamond denominou regimes híbridos por possuírem diferentes combinações de elementos autocráticos e democráticos25, sendo as variantes mais comuns o autoritarismo “competitivo” ou “eleitoral”, no qual instituições formais democráticas existem e são consideradas a forma de se chegar ao poder, mas isso é impossibilitado por violação das regras pelo governo incumbente26,27 (Rússia é um claro exemplo atual). Uma variante de democracia iliberal que é particularmente relevante para o Brasil e para a América Latina como um todo e tem em sua base uma má compreensão do que é a democracia é a ideia de democracia delegativa introduzida pelo cientista político argentino Guillermo O’Donnell. Ela se baseia na premissa de que, uma vez eleito, o governante seria a personificação da nação, que delegaria a ele seu poder de decisão, e, com isso, poderia agir basicamente como um ditador, fazendo o que quiser a despeito de limitações impostas pela lei ou demais instituições, que seriam vistas como menos legítimas e empecilhos a ele (e, portanto, a vontade popular)28.
Uma defesa natural que democracias liberais têm contra o processo de erosão democrática está diretamente embutida na noção de democracia como equilíbrio. O sistema de freios e contrapesos tem como atribuição não só proteger cidadãos contra abusos de poder, como proteger também o sistema em si contra aqueles que tentam degradá-lo por dentro. Em outras palavras, como o poder é distribuído, uma instituição controla e limita a outra e evita a subversão do sistema por algum pretendente a autocrata. Para que isso funcione, naturalmente, é necessário um bom desenho institucional, que evite, por exemplo, situações em que quem fiscaliza dependa de alguma forma do fiscalizado ou tenha incentivos para não cumprir seu papel. Um bom desenho, contudo, não é o suficiente.
Para o bom funcionamento e garantia de continuidade de uma democracia, além de um bom desenho institucional, é preciso um comprometimento firme de quem ocupa as instituições com o cumprimento de seu papel. Incentivos advindos de um bom desenho institucional ajudam, mas não são suficientes. É necessário que os ocupantes das instituições realmente as compreendam, as valorizem pelo que são e tenham internalizado o papel delas no sistema e o seu próprio papel ao ocupá-las, de forma a usá-las para seus devidos fins e não como ferramentas para pura conquista de poder e realização de projetos pessoais ou partidários ou para obtenção de vantagens de qualquer tipo por via de corrupção, jogo-duro constitucional ou outras práticas deletérias29,30. Não só isso, como é necessário que a sociedade em si compreenda e valorize o papel das instituições para que ela produza e eleja quem tem comprometimento com elas e saiba cobrar isso de quem as ocupa, evitando seu mau uso por atores políticos mal-intencionados. A democracia liberal, portanto, exige uma cultura política democrática, que deve estar presente não só na elite política, mas na sociedade como um todo. O que, no entanto, seria isso?
Por si, uma cultura política pode ser definida como aquele conjunto de atitudes, valores, crenças, sentimentos e comportamentos que os integrantes de uma sociedade têm a respeito de seu sistema político (o que remete tanto a Weber e sua descrição das tradições como uma possível fonte de legitimidade, quanto a Beetham e sua identificação do que faz com que uma sociedade aceite determinada relação de poder como legítima3,5). Uma cultura política democrática, deste modo, pode ser entendida como aquela que fomenta os atributos que permitam com que uma democracia liberal aflore e se mantenha—em particular: pluralismo, tolerância, confiança interpessoal e nas instituições e uma população que possua equilíbrio entre participação política, passividade e deferência a autoridades, de forma a permitir governabilidade e produzir cidadãos que sejam politizados o bastante para fiscalizar o governo, mas não a ponto de ter suas vidas dominadas por ideologias e partidos que os prendam por algum fator emocional/identitário e os impeçam de mudar seu voto em resposta ao desempenho de seus representantes4,10,31–35. Uma cultura política democrática, assim, gera um ambiente em que nenhum ator vê o outro como ameaça existencial (o sistema de segurança mútua de Dahl1) e se comprometa integralmente com as regras do jogo democrático. Mas como se produz essa cultura?
Um aspecto que favorece uma cultura política democrática é a prevalência de uma noção inclusiva de identidade nacional, que proporcione um senso de pertencimento comum a todos os cidadãos apesar de suas diferenças e dos demais grupos identitários a que pertençam. Essa identidade comum, cívica, ajuda a criar um colchão de consenso mínimo sobre o qual o embate de ideias que caracteriza uma democracia se dá, sendo essa base expressa através de rituais, feriados, símbolos, mitos, personagens políticos e outros marcadores culturais (o que o sociólogo Robert Bellah chamou de “religião civil”, no contexto da democracia norte-americana36). Isso ainda é apoiado por uma convivência comunitária que estimule a miscigenação de pessoas com diferentes afiliações identitárias de modo a formar pontes e evitar a polarização excessiva e a formação de grupos homogêneos impermeáveis, fatores que tendem a produzir intolerância e extremismo4,15,37.
Outro fator importante é a presença de um governo minimamente capaz de entregar condições socioeconômicas e de segurança que assegurem uma legitimidade mínima do sistema como um todo e garantam comida na mesa da população. Isso permite com que aflorem valores mais baseados em autoexpressão do que em sobrevivência, tais como o desejo de participação política e reivindicação de liberdades e direitos 38–41. É ainda fundamental um empenho ativo da sociedade civil através de instituições como família, templos, escolas, universidades, associações e demais ambientes de convivência comunitária para domar o instinto tribal do ser humano por via de educação cívica e transmissão de valores democráticos e liberais15,42–45. A própria vivência democrática, por sua vez, também desempenha um papel, pois conforme a pessoa participa da vida em uma democracia, ela vê os efeitos concretos das escolhas dos cidadãos na forma como o governo é conduzido, ganhando uma compreensão não só do seu próprio papel, mas da diferença entre o governo da vez e o regime democrático em si46.
Como pode-se perceber, tanto a democracia liberal quanto a cultura política que a sustenta são bastante complexas. Há várias formas de pensar a democracia, levando em conta diferentes critérios. Para decidir se um país pode ser considerado democrático, alguns autores preferem considerar somente a existência de determinados atributos e procedimentos, enquanto outros também levam em conta a substância da democracia, ou seja, aquilo que eles consideram que ela deve produzir (algo que por ser inerentemente subjetivo também varia de autor para autor). Democracias existem ainda em diversas formas e tamanhos, com países adotando os mais diversos arranjos institucionais. Há presidencialismos, semipresidencialismos, parlamentarismos e monarquias constitucionais; federações e estados unitários; legislaturas uni e bicamerais; bipartidarismos e multipartidarismos; sistemas eleitorais dos mais diversos tipos—enfim, uma grande variedade de peças institucionais que podem ser combinadas das mais diferentes formas, adaptadas à realidade e cultura de cada país. Uma cultura política democrática, por sua vez, não só envolve inúmeros fatores, como não é algo que pode ser criado do dia para a noite e instalado como um software sobre uma população. Ela ainda tem uma relação complexa e bidirecional com o arranjo institucional: ao mesmo tempo que lhe embasa e lhe dá suporte, ela é moldada por ele através do comportamento dos diversos atores.
É importante ressaltar, assim, que democracia não é exatamente algo binário. Não há um ponto objetivo e universalmente reconhecido em que se pode dizer que um país deixou de ser uma autocracia e passou a ser uma democracia. Cientistas políticos possuem diferentes opiniões e há vários índices de democracia, como Freedom House, V-Dem, Economist, entre outros, que produzem avaliações quantitativas (e, portanto, mais objetivas), mas levam em conta diferentes critérios e definições que podem ser úteis para algumas aplicações, mas não para outras. É indiscutível, no entanto, que não existem democracias perfeitas—o que há são países que se aproximam, em maior ou menor grau, de um ideal. Dahl, inclusive, explicitamente diferencia a democracia ideal daquela que de fato existe, que é chamada por ele de poliarquia1. Situações e culturas mudam e as poliarquias vão se adaptando e se aprimorando, com sorte se aproximando mais do ideal. Ainda assim, nenhuma atinge a perfeição. Democracia liberal, afinal, não é uma panaceia.
Por mais que seja verdade que exista uma correlação positiva entre democracia e desenvolvimento, países com regimes democráticos não estão livres de problemas como desigualdade, pobreza, injustiça social, corrupção, crises de representatividade, insegurança, conflito étnico e religioso, entre tantos outros. Não só isso, como não há garantia de que governos eleitos democraticamente serão de fato bons. Podem, inclusive, parecer de fato ruins e lentos na tomada de decisões em comparação com autocracias bem geridas devido à sua inerente necessidade da negociação e deliberação política. Regimes democrático-liberais como estamos acostumados, baseados em regra da maioria e na ideia de um voto por pessoa, tampouco funcionam para todas as situações. Como vimos, democracias precisam de um comprometimento de todos os atores com as regras do jogo, o que decorre de todos saberem que mesmo que percam agora, possuam uma chance de ganhar no futuro. Mas e se essa chance na prática não existe, apesar de todo arcabouço formal? Isso ocorre, por exemplo, em países com clivagens étnicas onde um grupo é consideravelmente maior que o outro a ponto de ter sempre uma maioria, de forma que o minoritário nunca tenha perspectiva de poder, tenha suas preferências consistentemente rejeitadas e se sinta—ou até seja de fato—oprimido ou ameaçado. Como se trata de identidade (algo por definição indivisível e inegociável, ao contrário de, por exemplo, política econômica), não há acordos ou compromissos possíveis, o que pode resultar na quebra do comprometimento com o sistema pelo grupo minoritário e consequente conflito violento. Para evitar esse cenário, pode-se adotar arranjos institucionais alternativos baseados na partilha de poder entre os grupos, como a democracia consociativista descrita pelo cientista político Arend Lijphart47. Ainda assim, essas abordagens nem sempre funcionam: para cada Holanda e Suíça, há também casos de instabilidade como Líbano e Iraque.
Democracia pode ser entendida de diferentes maneiras, implementada de muitas formas e ainda apresentar inúmeros problemas. Apesar disso, serve para mediar conflitos pacificamente e disciplinar elites pela necessidade de competição pelo voto popular. Além disso, sua raiz participativa é uma importante fonte de legitimidade, o que a torna atraente até mesmo de forma esvaziada, como fachada para autocracias e regimes híbridos. No entanto, o que faz dela, como teria dito Churchill, a pior forma de governo com exceção de todas as outras, é algo que incorpora essas ideias e vai além.
Como colocado pelo cientista político Francis Fukuyama, a democracia liberal capitalista é o sistema que melhor satisfaz o desejo inato que as pessoas têm de ter sua dignidade reconhecida pelos seus pares, seja enquanto indivíduos ou membros de grupos43,48,49. Através dos direitos comuns de cidadania, a democracia liberal contempla pessoas que têm necessidade de serem reconhecidas enquanto iguais, com cada indivíduo sendo reconhecido como um fim em si mesmo enquanto ser autônomo e racional (para parafrasear Kant). Ao mesmo tempo, ela contempla a necessidade que algumas pessoas têm de serem reconhecidas enquanto superiores e o faz forma produtiva para a sociedade como um todo, ao conferir diferenciação social via poder, status e dinheiro para aqueles que geram valor, seja através do desenvolvimento de habilidades especiais, inovação tecnológica, produção cultural ou intelectual, capacidade de negociação e gestão e até por atuação política. Em seu famoso argumento, Fukuyama afirma que essas características fariam da democracia liberal o “fim da História” no sentido Hegeliano dela ser o mais próximo de um sistema político ideal que uma sociedade humana conseguiria produzir. Apesar de muito criticada e pouco compreendida (provavelmente pouco lido também), a tese de Fukuyama nunca foi refutada. Ele é o primeiro a reconhecer, contudo, que sem os devidos cuidados um país pode facilmente retroceder e “voltar à História”. Democracia é algo que precisa ser ativamente afirmado e deve-se igualmente procurar manter uma cultura compatível com ela, o que só ocorre com comprometimento e engajamento da sociedade como um todo, tanto da elite quanto do povo em geral.
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André Spritzer
André Spritzer é Doutor em Computação pela UFRGS, com estágio de pós-doutorado no INRIA (Aviz/Paris) e na UFRGS. Pesquisou Ciência Política e Relações Internacionais na UoL/LSE.