O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Mercosul inicia discussão sobre adesão da Venezuela - Como assim?

Como assim? Inicia discussão???!!
Pensei que ela já tinha acabado...
O Protocolo de Adesão, de 2006, previa 180 dias para o término do relatório do Grupo de Trabalho então criado, já com o cronograma completo para a liberalização comercial e todas as demais tarefas.
Agora é que se vai começar novamente uma nova discussão de grupo de trabalho? Mas ele já terminou faz tempo, e definiu que o livre comércio completo entre a Venezuela e os demaos membros deveria vigorar em janeiro de 2012. 
Estamos atrasados seis meses, pelo menos, senão mais.
Paulo Roberto de Almeida 




América Latina - SÃO PAULO - Agencias
A dois dias da cerimônia que marca a adesão da Venezuela ao Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, suspenso temporariamente do bloco), os negociadores se preparam para examinar os aspectos técnicos da incorporação dos venezuelanos. O objetivo é definir o cronograma de implementação das medidas, das normas e da nomenclatura. Também estará em discussão o detalhamento sobre a adoção da tarifa comum do Mercosul. Um grupo de trabalho deverá tratar da adesão, e definir os prazos máximos para o livre-comércio.

domingo, 29 de julho de 2012

Entrada da Venezuela no Mercosul - Globo News PainelVenezuela


Entrada da Venezuela no Mercosul será definida esta semana

Globo News Painel, 28/07/2012

Com a coordenação do jornalista William Waack e a presença dos embaixadores Luiz Felipe Lampreia, ex-ministro das Relações Exteriores na gestão FHC, Rubens Antonio Barbosa, ex-coordenador nacional do Mercosul e ex-embaixador em Londres e Washington, e Antonio Ferreira Simões, Sub-Secretário Geral da América do Sul do MRE.
Nestes links: 
e


sábado, 28 de julho de 2012

A Espada e a Pluma - um poema alegórico na era das trevas


A Espada e a Pluma: um poema alegórico na era das trevas

A espada é muito mais poderosa do que a pluma,
infinitas vezes mais poderosa, e de forma mais contundente.
A espada pode cortar quantas plumas quiser, à vontade;
a pluma não consegue vencer uma só espada, ainda que multiplicada em mil.

A espada corta, fere, penetra, rasga, decepa e esquarteja
a pluma não tem qualquer poder contundente nas coisas da matéria.
A espada impõe respeito, intimida, aterroriza e submete;
uma pluma mal consegue provocar cócegas nas pessoas.

A espada tem o poder de comandar vontades, mesmo contra a vontade;
a pluma, no máximo, só consegue influenciar as mentes, nunca os músculos.
A espada desperta a adrenalina, faz o coração bater forte, o sangue subir à cabeça;
a pluma, se tanto, conquista alguma consciência mais aberta aos conhecimentos.

A espada sempre vence, pelo argumento da força,
a pluma nem consegue se impor pela força do argumento.
A espada sempre tem razão, mesmo quando nenhuma razão tem,
a pluma pode até tê-la de sobra, mas a razão do mais forte é sempre a melhor.

A espada dobra os seres, pela sua presença cortante, definitiva;
a pluma busca converter consciências, mesmo ausente ou distante.
A espada não pede licença a ninguém: ela se instala, sem pedir permissão;
a pluma sempre tem de negociar alguma licença para se exercer.

A espada compra mercenários, torna os homens seus escravos;
a pluma é libertária, e quer sempre livrar as pessoas da opressão.
A espada manipula súditos, envia espiões, aprisiona os cortesãos;
a pluma pretende, apenas e tão somente, formar livres cidadãos.

Todos os impérios foram construídos na base da espada, do ferro e do fogo;
nenhum império ruiu apenas pela força da pluma, mesmo coalizada a outras plumas.
A soberania começa onde existe o monopólio da força por algum dono de espadas;
a pluma é anarquista, não quer deuses ou senhores; só promete autonomia.

A espada é o último argumento de defesa, e a última instância da liberdade;
mas ela também serve para dominar, mesmo o cidadão sem qualquer pluma.
A pluma pode gritar, mas o tilintar da espada fala mais alto, bem mais alto;
aliás, a espada não precisa dizer nada: o simples desembainhar já é um discurso.

A espada invade casas, destrói culturas, mata animais e outros homens;
a pluma não consegue mover um grão de centeio, não traz água, nem abrigo.
A espada impõe a ordem, lá onde reinava a mais perfeita desordem;
a pluma  contribui para a desordem, ao pretender desobedecer à espada.

A espada serve para resguardar viúvas e órfãos, os fracos e os indefesos,
mas também desperta ambições e cobiças desmedidas, sempre crescentes.
A pluma pode falar em prol dos de menor poder, dos desvalidos e dos ingênuos,
mas ela não impede a corrupção dos costumes e o roubo da riqueza alheia.

A espada alicia servidores, áulicos e até mesmo conselheiros emplumados,
mas ela não consegue dominar o que lhes vai nas mentes e sentimentos.
A pluma agita os corações, desperta vontades, cria novas aspirações,
mas ela não dá aos que a seguem qualquer alavanca ou motor de arranque.

A espada sempre predomina, mesmo quando o fio se desgasta e a visão fica míope;
a pluma sozinha não faz nada: precisa de um tinteiro e de um papel, ou pergaminho.
A espada é o prolongamento natural de mãos fortes, másculas, decididas;
a pluma hesita ao simples tracejar das letras, e só funciona com mentes atiladas.

E no entanto, e no entanto...
a espada enferruja, fica cega, e pode quebrar, num simples embate mais feroz.
A pluma é móvel, flutua com o vento, mesmo nas mais fortes tempestades,
Ela é mais durável que a espada, pois as palavras voam, e as ideias se transmitem...

Uma espada fere gravemente, mas uma ideia mergulha mais fundo.
A espada geralmente está nas mãos de mercenários e de esbirros a soldo,
as ideias só podem sobreviver e se disseminar na mais completa liberdade.
Espadas agridem a esmo; ideias possuem lógica, sentido, direção e propósitos.

Por mais fortes que sejam os braços, as pernas, por mais couraças e capacetes,
por mais afiadas que sejam as espadas, elas só podem alcançar um de cada vez.
Ideias, ao contrário, atingem todos e cada um, num raio de 360 graus,
elas perfuram os elmos mais duros, atravessam cotas do aço mais temperado.

Espadas enferrujam, guerreiros morrem ou ficam estropiados, desaparecem...
Ideias, se são boas, permanecem, por séculos e até milhares de anos, sempre jovens.
As ideias, finalmente, são mais fortes que as espadas, elas vencem as espadas.
Espadas deixam apenas destruição e morte; as plumas semeiam conhecimento.

Espadas, no fundo, têm inveja das plumas, queriam ser livres como as plumas,
não viver em coldres cheirando a sangue e a mofo, asfixiadas em couro velho.
As plumas são ágeis, leves, flexíveis; mudam de acordo com as circunstâncias;
plumas expressam o que de melhor a humanidade produziu, em todos os tempos.

Espadas têm ódio das plumas, pois nunca poderão ser o que estas são:
instrumentos de beleza, de saber e de conhecimento, de paixão e de ciência.
Espadas são instrumentos profundamente complexados, e com razão:
Elas estão do lado da morte e do sofrimento; as plumas são o eterno renascer...

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A frase da semana - Eric Voegelin

Meu amigo Gustavo Carneiro de Mendonça me envia, de suas leituras, a frase da semana: 


A personalidade moral do indivíduo não é determinada pelas estruturas sociais em que se insere, mas a mediocridade do caráter pessoal facilita a corrupção das estruturas sociais.

Prefácio de Mendo Castro Henriques ao livro Hitler e os Alemães, de Eric Voegelin.

Coca-coleiros: riscai a Bolivia do seu mapa: o fim do capitalismo, pelo menos naquele pais...

Olhei o calendário, para ver se não era um Primeiro de Abril.
Aparentemente, não; se trata de coisa séria.
Bem, os cocaleros têm vida longa assegurada, mas os coca-coleiros terão de levar suas provisões abastecidas, quando viajarem à Bolívia.
O problema vai ser pedir gelo, a cada vez, e esperar que a bichinha esfrie...
Mas, se viajar de avião, terá de ser embalagem especial: vira remédio, o que aliás nos remete ao começo da Coca-Cola: um "snake oil" para tomar quente, e curar todos esses males que hoje estão na raiz da proibição do preclaro presidente e seu bizarro chanceler.
Acreditem: vocês ainda não viram tudo...
Paulo Roberto de Almeida 



Coca-Cola será expulsa da Bolívia por Evo Morales no solstício de verão

26/7/2012 13:44,  Agências internacionais - de La Paz
Coca-Cola
Coca-Cola está com seus dias contados na Bolívia
Em uma decisão de causar espanto na mídia capitalista, o governo socialista do presidente Evo Morales acaba de expulsar a Coca-Cola da Bolívia. A decisão precisará ser cumprida até o dia 21 de Dezembro deste ano. Segundo o ministro do Exterior boliviano, David Choquehuanca, esta determinação está “em sintonia com o fim do calendário Maia” e será parte dos festejos para celebrar o fim do capitalismo e o início de “uma cultura da vida”. A festa ocorrerá no fim do dia, no solstício de verão (no Hemisfério Sul), na Ilha do Sol, situada no Lago Titicaca.
– O dia 21 de Dezembro de 2012 marca o fim do egoísmo, da divisão. O 21 de Dezembro tem que ser o fim da Coca-Cola e o começo do mocochinche (refresco de durazno, um refrigerante muito popular no país). Os planetas se alinham após 26 mil anos. É o fim do capitalismo e o início do comunitarismo – disse Choquehuanca, em um ato ao qual compareceu o presidente do país.
A medida, que atrai os holofotes da mídia para o governo boliviano, reforça a determinação de Evo Morales no reforço a um Estado socialista. Ele tem recebido várias críticas de seus eleitores por agir “devagar demais”, segundo as críticas, em determinar o fim do capitalismo naquela nação andina. A medida também visa melhorar a saúde da população. A Coca-Cola, assim com a maioria dos refrigerantes industrializados, contem substâncias comprovadamente nocivas ao corpo e cujo consumo constante se associa a infartos cardíacos e derrames cerebrais
Renovando um post colocado anteriormente:


DIPLOMACIA
Usos e abusos do barão
O ufanismo vai cedendo nos cem anos de Rio BrancoRESUMO
Figura maior da diplomacia brasileira, José Maria Paranhos Jr., o barão do Rio Branco (1845-1912), morreu ungido por tal unanimidade que só começou a ser visto sem ufanismo nas últimas décadas. Ensaio esquadrinha criticamente a trajetória do chanceler e os mitos que há um século se forjam em torno dele.
MATIAS SPEKTOR
Folha de S.Paulo, Ilustríssima, 22/07/2012

Toda nação vive, em parte, de seus mitos. Poucos têm tanta força entre nós quanto o do Barão do Rio Branco, morto há cem anos.
Ele merece seu lugar no panteão porque expandiu o território nacional sem recurso às armas e sem grandes alianças. O país que representava estava enfraquecido, desarmado e isolado, e sua performance fez toda a diferença.
Mais, Rio Branco fez de si o elo entre o Império derrotado e a República vitoriosa. Com pai ministro, senador, diplomata e chanceler de d. Pedro 2o, ele assistiu à queda da monarquia, mas evitou o exílio típico de muitos de sua classe e serviu a quatro presidentes como ministro das Relações Exteriores sem compunção (1902-12).
Sua adesão à República foi total: pôs a política externa a serviço dos novos-ricos da burguesia agroexportadora e não hesitou em entrar para a vitrine da nova ordem, a Academia Brasileira. Mas, com estilo todo próprio, manteve o título de barão e fomentou a mitologia segundo a qual a diplomacia republicana bebia da fonte de um suposto passado imperial de glórias.
Habilidoso jogador para uns, inescrupuloso camaleão para outros, enfrentou desafetos e inimigos. Para os monarquistas, era um traidor. Para os republicanos, potencial líder da restauração monarquista. Sua política externa foi fustigada na Câmara, no Senado e na imprensa. Mais de uma vez a boataria previu sua queda. Só virou unanimidade depois de morto.
Sobreviveu a quatro trocas de governo em grande parte por seu talento de jornalista e sua rara capacidade de manipular a imprensa. Escreveu prolificamente sob pseudônimos. Leitor compulsivo de jornais, não hesitou em pautar editores, nem a eles queixar-se de coberturas desfavoráveis.
Alimentou calculadamente a imagem de excêntrico. Eram proverbiais a desordem de seu gabinete, a humilde cama instalada em seu despacho no Itamaraty, a caça aos mosquitos com uma vela, a mania de jogar água fria nos gatos que perambulavam pelo ministério e a fobia de elevadores.
O barão também teve sorte. Nos dez anos anteriores a sua posse, o Brasil afundou em hiperinflação e crise política. Revoltas pipocaram no sul, em Mato Grosso e no Nordeste. Na Revolta da Armada, o porto do Rio foi bloqueado e bombardeado. Em 1897, houve um atentado contra o presidente. Em três anos, Floriano Peixoto teve oito ministros do Exterior. Assumindo o Itamaraty em 1902, Rio Branco encontrou debeladas a inflação e as crises, num respiro para a política externa.
Ao morrer de complicações de saúde, ainda ministro, aos 67, em 1912, detinha mais capital político que os presidentes aos quais servira. Estima-se que tenham ido ao enterro 300 mil pessoas, um quarto da população carioca.
BIOGRAFIAS
Em muitos países, uma figura desse naipe seria objeto de ricas e divergentes biografias. Não aqui. A literatura sobre o barão é escassa, ignora a farta documentação disponível sobre ele em arquivos estrangeiros e mantém-se irritantemente laudatória.
Álvaro Lins, Jarbas Maranhão, Afonso de Carvalho e Renato Sêneca Fleury lançaram hagiografias no centenário de nascimento (1945). Quinze anos depois, Luis Viana Filho publicou trabalho um pouco mais rigoroso. O conjunto faz do barão um herói irretocável. Nos anos 2000 começou a aparecer algum questionamento, ainda que tímido. Rubens Ricupero, em seu "Rio Branco, o Brasil no Mundo" (2000), abre avenidas de investigação em brevíssimas 70 págs. Cristina Patriota faz o mesmo no também breve "Rio Branco, a Monarquia e a República" (2003).
Ler a respeito de Rio Branco ainda é frustrante. Do conjunto das obras existentes, aprende-se que ele era "coerente", "seguro", "inovador", "singelo", "lúcido", "despretensioso" e, curiosamente, conseguia ser "tímido" e "extrovertido" ao mesmo tempo. Como se tivesse poderes do além, "não falhou em nada que empreendeu".
Por isso é um sopro de lucidez o novo livro do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, "O Evangelho do Barão" [Editora Unesp, 174 págs., R$ 36]. Corretivo necessário, põe em perspectiva o que houve de incoerente, inseguro e pretensioso na trajetória do barão, sem reduzir a genialidade do homem e de seu projeto político. Com "O Dia em que Adiaram o Carnaval" (2010), do mesmo autor, trata-se da melhor leitura, ainda que analítica, não propriamente biográfica.
Fica para o futuro a tarefa de desmontar dois mitos persistentes a respeito do barão: a suposta busca da liderança regional no entorno sul-americano e a suposta "aliança não escrita" com os EUA.
EQUILÍBRIO
Rio Branco era devoto da teoria do equilíbrio de poder. Entendia que todo protagonismo brasileiro levaria os vizinhos do Prata e do Amazonas a formar uma coalizão antibrasileira. Chegou a confidenciar a um interlocutor que "nenhum país de língua espanhola é bom e nenhuma pessoa de sangue espanhol é confiável".
Não era à toa. A Argentina, antiga rival, encontrava-se em franca ascensão. O Brasil de Rio Branco era relativamente fraco. Em 1906, por exemplo, nossa dívida pública era o dobro da argentina, o comércio exterior, metade, assim como a rede de linhas telegráficas. A Argentina tinha 21.600 km de trilhos; o Brasil, para um território muito maior, apenas 16.800 km. A força naval argentina era bem superior.
Em 1908, o barão estava seriamente preocupado com um ataque militar argentino. O governo de lá era, disse ele, "tresloucado". Ainda jovem, escrevera: "Não temos esquadra, não temos torpedos, não temos Exército, e os argentinos têm tudo isso". Pediu recursos para armar o Brasil, sem sucesso.
Assim, em posição de fraqueza relativa, Rio Branco fez três movimentos. Primeiro, acelerou a negociação das fronteiras, para evitar que possíveis conflitos militares ganhassem vulto -o Brasil não tinha condições de vencer.
Segundo, construiu um edifício conceitual calcado nos princípios de não intervenção, satisfação territorial e negociação de diferenças sem recurso à força. Fez isso porque o país não tinha alternativa.
Terceiro, Rio Branco propôs um acordo de "cordial inteligência" entre Argentina, Brasil e Chile, o ABC. Tratava-se de um modelo para mitigar a competição e criar canais de comunicação entre seu rival (Argentina) e o rival de seu rival (Chile). Esse "condomínio" para manter a região estável -o Brasil não podia se dar ao luxo da guerra- permitiria limitar efeitos negativos da ascensão argentina.
Buenos Aires descartou o ABC. Os dois países logo entrariam em uma corrida por poder, prestígio e influência que só se resolveria, em favor do Brasil, 60 anos mais tarde.
EUA
Todo manual de história diplomática -e todo livro sobre Rio Branco- repete a mesma tese: o chanceler teria feito dos Estados Unidos o principal aliado do Brasil republicano. Foi o historiador americano E. Bradford Burns que desenvolveu o conceito em seu "A Aliança Não Escrita: Rio Branco e as Relações do Brasil com os EUA", de 1966 (EMC, 2003).
A tese está equivocada: nem Rio Branco aliou-se aos EUA, nem os americanos fizeram do Brasil um aliado. A aproximação foi intensa, mas não menos parcial, conflituosa e frustrante para os dois países.
O barão não tinha ilusões. "Prefiro que o Brasil estreite as suas relações com a Europa a vê-lo lançar-se nos braços dos EUA", escreveu antes de assumir. Quem pedia uma "aliança tácita, subentendida", era Joaquim Nabuco, seu embaixador em Washington.
Rio Branco não evitou rotas de colisão. Em 1906, frustrado com a falta de cooperação dos EUA na 3a Conferência Pan-Americana, no Rio, provocou seu chanceler Elihu Root: "[A Europa] nos criou, ela nos ensinou". Tensão maior ocorreria em 1907, em Haia.
Uma consulta aos arquivos diplomáticos de Washington revela desconfiança em relação ao Brasil, preocupação em não hostilizar ou isolar a Argentina e sobretudo boa dose de indiferença. Do ponto de vista americano, não havia aliança, nem nada parecido.
Rio Branco usou o vínculo instrumentalmente e com vistas a tirar vantagens para o Brasil e para si mesmo. Mostrar-se como um aliado de Washington rendia frutos políticos internos, pois a República brasileira se identificava com o federalismo americano ("Somos da América e queremos ser americanos", diz o manifesto de 1870). De quebra, na Revolta da Armada os EUA apoiaram Floriano Peixoto contra os monarquistas.
O chanceler também usou os EUA como escudo. Ele temia que a expansão neocolonial europeia se espraiasse em áreas de fronteira malcuidadas como Amapá, Roraima e o rio Amazonas.
Quem poderia nos ajudar? "As definições da política externa norte-americana são feitas", explicava ele em 1905, "sem ambiguidades, com arrogante franqueza, sobretudo quando visam os mais poderosos governos da Europa, e o que acontece é que estes não protestam nem reagem, antes acolhem bem as intervenções americanas."
USOS E ABUSOS
Há cem anos, o nome do Barão é usado e abusado. Nas palavras de Villafañe, trata-se de uma verdadeira "santificação de Rio Branco na religião laica do nacionalismo".
Seus sucessores, por exemplo, justificaram políticas controversas apelando para o patrono. Nos anos 1940, Oswaldo Aranha o usou para convencer o público a aceitar lutar junto aos EUA na Segunda Guerra Mundial. Na década de 1960, Mario Gibson Barboza invocou-o para explicar a expansão do mar territorial brasileiro em 200 milhas.
Nos anos 1990, Celso Lafer ancorou nele a decisão de fazer concessões à Argentina. Nos 2000, Celso Amorim viu nele as sementes da Unasul. Agora, Antonio Patriota afirma que a aproximação do Barão aos EUA -naquele momento uma potência periférica- inspira a proximidade atual aos Brics (China, Índia, Rússia e África do Sul).
Nada disso surpreende. O barão, quando chanceler, também forjou mitos para justificar-se. Seus sucessores, ainda que sem o seu estilo, não fizeram mais do que segui-lo


quinta-feira, 26 de julho de 2012

O grau de (an)alfabetizacao do Brasil: retrato sem retoques - Antonio Matias

O desafio da alfabetização plena
Antonio Matias

O Estado de S.Paulo, 26 de julho de 2012
A publicação do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) 2011, pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro/Ibope e pela Ação Educativa, evidencia um triste diagnóstico cujo conhecimento é de fundamental importância para mobilizar a sociedade a desenvolver estratégias que superem esse grave problema: o aumento de escolarização, embora tenha sido essencial nas últimas décadas, não foi suficiente para assegurar a alfabetização plena.
A análise da série histórica do estudo, que vem sendo realizado periodicamente nos últimos dez anos, mostra que apenas um em quatro brasileiros atinge nível pleno nas habilidades de leitura, escrita e Matemática. Ou seja, é capaz de ler e interpretar textos mais longos, analisar e relacionar suas partes, realizar inferências e sínteses, além de resolver problemas que exigem maior planejamento e controle.
Além disso, apesar de ter ocorrido uma redução do analfabetismo absoluto e da alfabetização rudimentar, só 62% dos que têm curso superior e 35% dos que têm ensino médio completo estão no patamar dos plenamente alfabetizados. Em ambos os casos, essa proporção é inferior à observada no início da década.
O Inaf também revela que um em cada quatro brasileiros que cursam ou cursaram até o Ensino Fundamental II ainda está classificado no nível rudimentar, sem avanços em todo o período, ou seja, consegue ler apenas textos curtos e fazer operações simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias.
Olhar a estagnação dos dados de plena alfabetização entre 2001 e 2011 nos permite vislumbrar a situação de uma geração: são poucas as chances de um jovem que concluiu o ensino médio ter alterado na última década sua proficiência linguística, adquirindo, assim, condições para se desenvolver no mundo profissional e social e desfrutar todas as possibilidades de uma sociedade que exige cada vez mais capacidade de expressão e de absorção de conhecimento.
Importante valorizar a mobilização crescente que envolve os setores público, privado e as organizações sociais para que a educação pública se torne prioridade nacional, o que já está dando frutos. A ampliação do acesso ao ensino fundamental, a crescente inserção de programas de educação integral nas escolas públicas e a utilização de sistemas de avaliação que ajudam a estabelecer metas e a mensurar resultados de aprendizado foram pontos essenciais para o desenvolvimento de políticas públicas mais eficazes na educação.
Divulgado na semana passada, o National Assessment of Educational Progress , estudo do Programa de Política de Educação e Governança da Universidade Harvard que analisa 49 países, mostrou que o Brasil ocupa a terceira posição no ranking daqueles em que a qualidade do ensino mais avançou entre 1995 e 2009 (de 2000 a 2009 no caso brasileiro). Contudo os brasileiros continuam com desempenho inferior ao de países que tiveram até retrocesso na qualidade do ensino.
Os dados resultantes dessa pesquisa convergem com os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) em 2010, em que o Brasil ocupou o terceiro lugar em crescimento entre todos os participantes. Mas não se pode esquecer que saímos do penúltimo lugar, portanto, todos os esforços ainda não podem ser considerados suficientes para oferecer a crianças e jovens brasileiros educação pública de qualidade.
Não há dúvida de que a reversão desse quadro demanda dos investidores sociais privados sensibilidade para essa questão, tão essencial ao desenvolvimento humano. Exige ainda um olhar atento para aprofundar o entendimento dessas informações como ponto de partida para escolhas estratégicas de atuação, buscando sinergia e potencializando as intervenções, para evitar sobreposições e fortalecer áreas de ação conjunta.
A constatação de que o grande avanço na cobertura da educação nesta década não tem representado maior aprendizado nas competências de alfabetização plena aponta a necessidade de repensar formas de ensino para os que frequentam hoje as escolas públicas. Nesse ponto, institutos e fundações empresariais podem ser parceiros importantes do poder público, contribuindo com o desenvolvimento de metodologias inovadoras, aproveitando sua possibilidade de trabalhar com pequenos grupos, sem o compromisso inicial de ganho de escala.
É necessário ainda estruturar estratégias de mobilização social em favor do tema e fortalecer ações de advocacy junto ao poder público, com o intuito de contribuir para dar suporte a boas iniciativas políticas, que passam a ser respaldadas pela demanda qualificada da sociedade. Torna-se cada vez mais necessário, tendo em vista a busca por bons resultados educacionais, que os projetos sejam realizados em estreita parceria com os desenvolvedores e implantadores das políticas dessa área. Para isso é preciso repensar a forma de atuação, fortalecendo o trabalho junto às equipes técnicas das secretarias e deixando o protagonismo para as equipes responsáveis pelas escolas públicas. Vínculo e aproximação são palavras-chave para que a iniciativa privada realmente possa contribuir para os avanços necessários.
O conhecimento dos dados do Inaf aponta para uma reorientação importante na forma de atuação do investimento social na educação. Sendo essa a área de maior investimento privado no Brasil, a expectativa de resultados também deve ser grande. Para isso há que investir com foco em resultados, com a expectativa de gerar retorno. E o retorno social esperado do investimento na área educacional é, em primeiro lugar, a boa formação humana das novas gerações, garantido suas condições de desenvolvimento pleno. E nosso país só será plenamente desenvolvido se enfrentar seu mais importante desafio, fazendo da educação a grande prioridade nacional.
* VICE-PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL, É MEMBRO DO CONSELHO DE GOVERNANÇA DO MOVIMENTO TODOS PELA EDUCAÇÃO

Livro sobre o regime militar - Paulo Moreira Leite

O ESTADO DE S.PAULO, 26/07/2012

Por meio de histórias pessoais, de perseguidos políticos, jornalista traça vigoroso painel do período do regime militar
O jornalista Paulo Moreira Leite reuniu em livro um conjunto de nove reportagens que publicou, entre 1995 e 2009, em diferentes veículos de comunicação. São perfis, atualizados e revisados, de pessoas que se destacaram de alguma maneira na luta pelo fim do regime militar. Em meio ao tremendo esforço coletivo que livrou o País daquele período de violência e injustiças, elas encarnaram, em algum momento, a consciência democrática do País.
O resultado é positivo. Além de conter boas histórias individuais, A Mulher que Era o General da Casa funciona como um bom painel do período. Também é oportuno. Estimula reflexões no momento em que a Comissão Nacional da Verdade desenvolve esforços para mostrar a história real do regime, enfrentando a oposição de grupos que qualificam seu trabalho de revanchista.
Moreira Leite, reporter especial da revista Época, da qual já foi diretor, possui um texto vigoroso e envolvente e domina os fatos históricos. Para um jornalista, chama a atenção a desenvoltura com que manifesta seus pontos de vista sobre pessoas e acontecimentos, especialmente na apresentação do livro e nas partes revisadas – como se o  distanciamento dos fatos lhe desse maior segurança nas análises.
Therezinha Zerbini, a personagem que dá título à obra, foi uma das figuras mais destacadas nos movimentos pela anistia política. Os outros retratados são Jaime Wright, o pastor presbiteriano que garantiu ao cardeal Paulo Evaristo Arns a estrutura financeira e técnica na preparação do memorável Brasil: Nunca Mais; o sociólogo Florestan Fernandes, cassado e afastado de seu cargo de professor da USP, em 1968; José Mindlin, que se recusou a dar dinheiro para a Operação Bandeirantes, organização paramilitar que financiava a tortura; Armênio Guedes, dirigente comunista; Plínio e Arruda Sampaio, cujo nome figurava na lista dos primeiros cem brasileiros cassados em 1964; o rabino Henry Sobel, que não aceitou a versão de suicídio de Vladimir Herzog; o jornalista Washington Novaes, um dos primeiros a questionar a ação dos militares na Amazônia; e Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil durante o golpe militar.

Alguns retratados se encaixam melhor no painel do que outros. Sob essa perspectiva, recomendo ao leitor que comece a leitura pelos perfis de de Therezinha Zerbini, Jayme Wright, Plínio de Arruda Sampaio, Henry Sobel e Lincoln Gordon. A primeira parte do texto sobre José Mindlin, escrita em 1998, é a que parece menos burilada e mais deslocada do conjunto. Vale a pena, no entanto, seguir até o fim, até o acréscimo feito em 2011, quando o autor reúne informações sobre a participação de empresários no financiamento da tortura (um dos temas centrais do excelente Cidadão Boilensen, documentário de Chaim Litewski, lançado em 2009).
À primeira vista, não se compreende a presença de Lincoln Gordon, o embaixador que, sob ordens de John Kennedy, estimulou e deu apoio ao golpe contra o governo democraticamente eleito de João Goulart. Afinal, é o o avesso dessa história, como define o próprio autor. Aos poucos, porém, percebe-se o acerto de sua inclusão: ele amplia o alcance do painel, permite compreender melhor as raízes do golpe, além da chamada ameaça comunista. “A oposição a Goulart tinha bases materiais”, diz o autor.
Cada retratado cumpre um papel no conjunto da história. O perfil de Guedes permite expor os dilemas das diferentes facções de esquerda frente ao regime que trucidava a democracia; o exílio de Sampaio recorda a diáspora que se abateu sobre a América Latina com os militares no poder; o trabalho quase clandestino de Wright ao lado do cardeal Arns ilumina nomes de advogados que atuavam na defesa dos direitos humanos, como Luiz Eduardo Greenhalg, José Carlos Dias, Sigmaringa Seixas, Eni Raimundo Pereira; as opções de Fernandes deixam perguntas sobre o papel dos intelectuais.

Os textos também permitem comparações com os nossos dias. Desde as primeiras linhas do perfil de Wright, que viveu e morreu de forma modestíssima, é inevitável lembrar dos pastores neopentecostais de hoje, com sua teologia de resultados, já se encaminhando para a teologia da opulência. A tragédia pessoal de Sobel, o rabino que caiu no ostracismo após o episódio das gravatas em Miami, sobressai por outro motivo: a disposição e a sensibilidade do autor diante de temas tão delicados.
Moreira Leite faz parte da geração de brasileiros que cresceu e amadureceu sem exercitar o direito de votar para presidente da República e presenciou, em mais de uma ocasião, a brutalidade do regime militar. Entre os episódios que o marcaram de maneira mais acentuada, recorda o dia em que, em 1973, numa das salas de aula da Universidade de São Paulo (USP), onde cursava ciências sociais, foi avisado da morte de Alexandre Vannucchi Leme. O rapaz, estudante de geologia, filho de uma família de professores católicos de Sorocaba, interior de São Paulo, havia sido preso por agentes militares, preso e executado.
Agora, quase quarenta anos depois, o jornalista defende o esclarecimento dos crimes cometidos pelos agentes de Estado contra cidadãos que teoricamente deveriam proteger. Seu livro é boa contribuição no esforço para se reconstruir a narrativa histórica do período.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

A frase da semana: o obvio e o obscuro


We need education in the obvious more than investigation of the obscure.

Oliver Wendell Holmes, citado por John Lewis Gaddis, in Kennan (2011)

Antidiplomacia: uma nova forma de diplomacia?

A antidiplomacia de Dilma

Editorial O Estado de S.Paulo, 24 de julho de 2012

A diplomacia brasileira deve ser conduzida pelo presidente da República, conforme manda a Constituição. No entanto, isso não significa que essa liderança possa ser exercida de modo arbitrário, como deu a entender o comportamento de Dilma Rousseff no recente caso do Paraguai e em outros episódios de seu ano e meio de mandato.
É fato que, desde que chegou ao poder, o PT fez da partidarização sistemática da política externa sua marca. Os oito anos do governo de Lula foram ricos em exemplos da transformação da diplomacia em exercício ideológico. Houve casos dignos de figurar em manuais de relações internacionais, mas pelo seu aspecto negativo. Para lembrar apenas um deles, o Brasil apequenou-se ante a ocupação, por tropas bolivianas, de duas refinarias da Petrobrás naquele país, em maio de 2006. Como resposta ao óbvio vilipêndio do patrimônio brasileiro, Lula, em vez de defender a Petrobrás, disse que o ato boliviano era "soberano" e que a Bolívia precisava de "carinho".
Com a chegada de Dilma ao Planalto, houve a expectativa de que esse perfil danoso ao País fosse alterado. O otimismo foi alimentado, para começar, pelo discurso público da presidente na direção da defesa dos direitos humanos no Irã - cujo presidente, além de negar a ocorrência do Holocausto e dirigir um regime que persegue minorias e opositores, era aclamado por Lula como seu "companheiro". Parecia que Dilma abandonaria enfim o antiamericanismo pueril do lulopetismo ao alinhar-se aos países civilizados na condenação da violência iraniana. Agora, no entanto, acumulam-se demonstrações de que aquele gesto era na verdade o primeiro de uma série de movimentos voluntaristas de Dilma, interessada sobretudo em imprimir sua marca pessoal na diplomacia.
Quando teve a chance de mostrar sua força como estadista, na conferência do clima Rio+20, em junho, Dilma impacientou-se com seus diplomatas e preferiu festejar um documento final articulado, às pressas, para não ter peso decisório nenhum, de modo que pudesse ser aceito por todos e dar a impressão de uma grande competência diplomática.
Depois, quando chamada a apagar o incêndio causado pela destituição do então presidente Fernando Lugo no Paraguai, também em junho, jogou mais gasolina no fogo, ao aceitar a tese de que houve um golpe e que, portanto, o Paraguai tinha de ser duramente punido.
Mais tarde, patrocinou pessoalmente a lamentável manobra para incluir a Venezuela no Mercosul, aproveitando a oportunidade do "gancho" a que foi submetido o Paraguai, que resistia ao ingresso do país de Hugo Chávez no já desacreditado bloco sul-americano.
Na essência, o excessivo personalismo de Dilma na política externa não difere da contaminação político-ideológica observada nos oito anos de Lula. Em ambos os casos, as decisões foram tomadas não exatamente segundo o interesse nacional, conforme manda a Constituição, mas de acordo com projetos de afirmação e manutenção de poder. No governo de Lula, esse desvio se deu na aproximação imprudente com autocratas como Chávez, comprometendo a independência do Brasil na definição de seus interesses externos. Em nome da exigência de buscar a "formação de uma comunidade latino-americana de nações", conforme determinação constitucional, Lula colocou o País a serviço do delirante projeto bolivariano.
Com Dilma, a ideologia lulopetista segue em primeiro plano nas relações internacionais, mas a "gerentona", como ela gosta de ser vista, acrescentou um componente ainda mais explosivo, que são suas idiossincrasias. A presidente não se entende com seu chanceler, Antonio Patriota. Ela quer uma "diplomacia de resultados" e nutre franca hostilidade a fazer concessões e aos rapapés das mesas de negociação, o que contraria um dos princípios basilares da diplomacia. Nessa toada, com mais dois anos e meio na cadeira de presidente, ainda há tempo de sobra para que Dilma dê novos trancos pessoais na diplomacia nacional, que sempre se pautou pelo comedimento, comprometendo ainda mais a influência do Brasil no concerto internacional.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Mercosul RIP (mas ele nao vai conseguir descansar em paz) - Rubens A. Barbosa


Réquiem para o Mercosul
Rubens Barbosa*
O Estado de S. Paulo, 24 de julho de 2012

...O Mercosul começou com um movimento andante grazioso, passou pelas fases de andante con spirito, andante con moto, allegro moderato e, com o novo membro, em vez de um allegro majestoso, vai acabar lacrimoso...

Wolfgang Amadeus Mozart morreu cedo, com pouco mais idade que o Mercosul, que completou 21 anos. Teve uma vida bastante agitada, alternando momentos de sucesso e de dificuldades. Nos últimos anos, com a saúde crescentemente debilitada, recebeu a visita de um misterioso personagem que encomendou a criação de uma peça fúnebre, um réquiem, mediante o oferecimento de boa recompensa. Mozart, sem recursos, acedeu e começou a compor, mas morreu e deixou uma obra inacabada.
Lembrei-me do Réquiem de Mozart e do fim da vida do compositor de Salzburg ao acompanhar os últimos desdobramentos do que está acontecendo com o Mercosul. Os países-membros compuseram o Réquiem ao atenderem ao pedido da Venezuela.
O Mercosul começou com um movimento andante grazioso, passou pelas fases de andante con spirito, andante con moto, allegro moderato e, com o novo membro, em vez de um allegro majestoso, vai acabar lacrimoso...
A chegada do visitante ao Mercosul, da maneira ilegal como está sendo feita, encerra antecipadamente uma obra que poderia ser tão grandiosa como a de Mozart. O quarteto - Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai - poderia ter-se beneficiado de um processo de integração que, passando da atual união aduaneira, levaria ao mercado comum.
Em 2006, quando foi admitido como membro pleno em processo de adesão, sintomaticamente, em Córdoba, na Argentina, Hugo Chávez disse que a partir daquele momento "tudo seria diferente, pois haveria um relançamento do Mercosul". Chávez estava certo. A agonia do Mercosul começou com sua politização. Passaram a predominar a retórica e as decisões político-ideológicas sobre a realidade econômica. Esqueceu-se de que o Mercosul não é uma união de governos, mas de Estados. A partir desse momento, mudou a lógica do processo de integração do Cone Sul, com a formação do eixo Buenos Aires-Caracas. Prevaleceram as agendas nacionais sobre a agenda da integração regional. A Venezuela, por seu lado, procurará utilizar a plataforma do Mercosul para seus próprios projetos.
O ingresso da Venezuela, aprovado - contra o aconselhamento do Itamaraty - com o mesmo rito sumário, Dies Irae, que afastou Fernando Lugo da presidência do Paraguai e determinou a suspensão do país, representou uma agressão institucional. A adesão, decidida por motivos políticos, sem cumprir as condições negociadas pelo Protocolo de 2006 nem ter sido feito corretamente o depósito dos instrumentos de ratificação, pode representar um custo altíssimo para os membros fundadores. A decisão abre a porta para o ingresso da Bolívia, do Equador e do Suriname nas mesmas circunstâncias, isto é, sem apreciação técnica. Como há algum tempo disse o presidente Lula, "o Mercosul é como o coração de mãe: sempre cabe mais um".
Depois de politizar o Mercosul, pretende-se transformá-lo num mecanismo de desenvolvimento econômico com ênfase no social e no político, panaceia que resolveria todos os problemas dos países-membros. Como se fora possível modificar uma realidade de dificuldades e de assimetrias inevitáveis em qualquer exercício de integração, soprando uma "Flauta Mágica", tocada de forma dissonante por apressados ideólogos.
Debilitado pelo descumprimento das normas e regras previstas no Tratado de Assunção de 1991, bem como pelas recorrentes restrições à liberalização e à abertura do mercado dos países-membros, o subgrupo regional, como inicialmente previsto, chegou a seu fim de maneira inglória. "Cosi Fan Tutti", todos fazem isso, repetem os formuladores das decisões no bloco, referindo-se às barreiras protecionistas.
A disposição e a força criativa, que sobraram em Mozart para compor o Réquiem, faltaram aos dirigentes do Mercosul nos seus estertores para tentar reavivar seus mecanismos institucionais. No momento atual, os entraves comerciais, a falta de apoio para a defesa dos interesses setoriais que impediram a integração das cadeias produtivas afetadas por medidas burocráticas ilegais, sobretudo da Argentina, desviando nossas exportações para concorrentes asiáticos, e a insegurança jurídica tornaram o Mercosul menos atraente para o Brasil.
Sem acabar com o Mercosul, pois nenhum governo está preparado para assumir o ônus dessa decisão, o Brasil deveria libertar-se das amarras da negociação conjunta para os produtos que poderiam ser liberalizados com terceiros países que se dispuserem a negociá-los separadamente. Quem poderá duvidar de que, com a Argentina e a Venezuela no bloco, dificilmente será concluído qualquer acordo de livre-comércio com terceiros países? Parafraseando Groucho Max, quem vai negociar com o Mercosul, que aceita a Venezuela de Chávez como sócia?
Para o Brasil a entrada da Venezuela poderia ser positiva do ângulo estratégico (o Mercosul estender-se-á da Patagônia ao Caribe) e comercial (se for cumprido o que foi negociado no Protocolo de Adesão, com a abertura do mercado venezuelano a produtos brasileiros pela liberalização do comércio e pela aplicação da Tarifa Externa Comum). Sob o aspecto político, contudo, poderá pôr a política externa brasileira em situação delicada pela mudança do eixo Brasília-Buenos Aires e por eventuais problemas internos na Venezuela, sem mencionar os possíveis vetos de Caracas a negociações comerciais de nosso interesse.
O último movimento do Réquiem, Libera Me, que não foi escrito por Mozart, ajusta-se ao quadro agonizante do Mercosul, pois inclusive tem relação com o Brasil. Dentre as alternativas compostas para o final do Réquiem estão "Os manuscritos do Rio", de autoria de Neukomm, encontrados em 1819. Esse finale completa, de forma perfeita, o divertissement mercosulino.
Libera Me! Réquiem para o Mercosul!
É triste ver o Mercosul virar tema de anedota.

Rubens Barbosa - FOI O PRIMEIRO COORDENADOR NACIONAL DO MERCOSUL (1991-1994)