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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 26 de abril de 2016

O Estado como fora-da-lei no Brasil (2): publicacao Anuario da Justica

Como eu sempre afirmei, o Estado, no Brasil, é o principal fora-da-lei, o grande infrator da constitucionalidade, o violador da legalidade no Brasil.
Fiz artigos a esse respeito, embora sem a quantificação agora feita pelo Anuário da Justiça:
Paulo Roberto de Almeida: “Autobiografia de um fora-da-lei, 1: uma história do Estado brasileiro” (Brasília, 19 outubro 2007), Espaço Acadêmico (ano 7, n. 78; novembro 2007 link: http://www.espacoacademico.com.br/078/78almeida.htm).
Como o site da revista parece estar indisponível, postei novamente esse artigo, o esquema e a apresentação metodológica do livro neste meu blog, como informo aqui:  
Blog Diplomatizzando (26/04/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/04/o-estado-como-fora-da-lei-1-artigo-de.html).  
O que deve fazer a cidadania em face das inconstitucionalidades do Estado? Rir, chorar, trocar de Estado? Acho melhor esta última alternativa...
Paulo Roberto de Almeida

Anuário da Justiça
Sete em cada dez leis analisadas pelo STF são inconstitucionais
Robson Pereira é editor da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2016, 8h05
24 de abril de 2016, 8h05
 
Será lançada nesta terça-feira (26/4), no salão Branco do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, a décima edição do Anuário da Justiça Brasil 2016. Trata-se de um especial com o retrato dos últimos 10 anos do Judiciário brasileiro. Na oportunidade, também será inaugurada a exposição “1215: Magna Carta Libertatum – 1824: A Primeira Constituição Brasileira”, que homenageia os 800 anos da Magna Carta inglesa, a primeira constituição da história da humanidade, e os quase dois séculos da Constituição brasileira de 1824.

Leia a seguir a íntegra de reportagem que será publicada no Anuário da Justiça Brasil 2016.

O Supremo Tribunal Federal manteve em 2015 o esforço para purgar o arcabouço legal brasileiro, confirmando ou excluindo leis contestadas em ações diretas de inconstitucionalidade. Ao longo do ano, julgou 69 ADIs, das quais 49 foram consideradas procedentes (71%). Significa que em cada dez leis submetidas ao crivo definitivo do STF sete foram editadas de forma contrária à Constituição Federal. Outras quatro ações foram levadas ao Plenário, mas não foram julgadas por perda do objeto (a lei questionada foi revogada após a impugnação) ou por ilegitimidade da parte autora. Das ações analisadas no mérito, 17 foram protocoladas ainda nos anos 1990. Outras 13 foram encaminhadas ao Supremo entre os anos 2000 e 2005.
Controle de Constitucionalidade – ADIs julgadas em 2015
Ações
Quantidade
Porcentagem
Analisadas
69
100%
Procedentes
49
71%
Improcedentes
20
29%
Fonte: STF
Entre 1989 e o final de 2015, um total de 1.621 ações diretas foram submetidas ao controle de constitucionalidade exercido pelo STF. Desde que assumiu a presidência do tribunal, em agosto de 2014, o ministro Ricardo Lewandowski estabeleceu como uma de suas prioridades o julgamento definitivo do mérito de todas as ações diretas de inconstitucionalidade com liminares concedidas pelo Supremo. Das 68 normas julgadas em 2015, 48 delas foram editadas há mais de 15 anos.
Santa Catarina foi a unidade da Federação com o maior número de leis consideradas inconstitucionais. Das seis promulgadas pelo estado e questionadas no Supremo, cinco estavam em desacordo com a Constituição. O Rio Grande do Sul teve seis leis impugnadas, quatro delas declaradas inconstitucionais. Quase a metade das ADIs julgadas em 2015 tiveram como alvo as Assembleias Legislativas dos estados e do Distrito Federal: das 31 leis produzidas e submetidas ao controle de constitucionalidade, 26 (84%) foram derrubadas no todo ou em parte – quase sempre por vício de iniciativa, casos em que os temas tratados na lei são de competência exclusiva do Executivo estadual ou federal. Os tribunais de Justiça também foram parte em quatro ações levadas ao Supremo, duas delas relativas a resoluções consideradas inconstitucionais.
Ranking de inconstitucionalidade
Entes 
Inconstitucionais
Constitucionais
Contestadas
União
7*
7
14
RS
4
3
7
SC
6
1
7
SP
4
2
6
RJ
2
2
4
ES
2
2
4
DF
3
1
4
PR
3
0
3
MT
2
1
3
GO
2
0
2
MA
2
0
2
RN
2
0
2
RO
2
0
2
AP
2
0
2
AM
1
0
1
BA
1
0
1
MG
1
0
1
PA
2
0
2
PE
1
0
1
RR
1
0
1
SE
0
1
1
Total
49
20
69
*Inclui três liminares deferidas. Fonte: STF
Os governadores lideram com folga o ranking de contestações, com 29 ações diretas de inconstitucionalidade impetradas no Supremo, das quais 22 (76%) foram consideradas procedentes, seguidos pelo Ministério Público, autor de dez ADIs, oito delas procedentes, e pelos partidos políticos, com nove ações ajuizadas, quatro pela procedência. A melhor taxa de sucesso (87,5%), no entanto, ficou com a OAB Federal, com sete entre as oito ações protocoladas sendo consideradas procedentes pelo Supremo.
Quem propôs a ação
Proponente
Ações ajuizadas
Procedentes
Taxa de Sucesso
Governadores
29
22
76%
Procuradoria-Geral da República
10
8
80%
Partidos
9
4
44%
Conselho Federal da OAB
8
7
87,5%
Confederações patronais
6
4
67%
Associações de classe
6
3
50%
Assembleias legislativas
1
1
100%
Fonte: STF
Entre os casos que mais repercutiram ao longo de 2015, está a ADI 4.815, pela qual a Associação Nacional de Editores de Livros contestou a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias, prevista nos artigos 20 e 21 do Código Civil. Há pelo menos 10 anos, com fundamento nos dois artigos, autores de livros e filmes sobre figuras marcantes no cenários esportivo e cultural, além de personagens da história recente do país, foram levados ao tribunais pelos próprios biografados ou por seus herdeiros.
Ao entendimento de que a Constituição proíbe qualquer censura e que a liberdade, constitucionalmente garantida, não pode ser anulada por norma de hierarquia inferior, no caso a lei civil, o Supremo decidiu, por unanimidade, julgar procedente a ADI, para dar a ambos os artigos do Código Civil interpretação conforme à Constituição, sem redução de texto, no sentido de declarar “inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes”.
Em outro julgamento que também recebeu destaque no meios de comunicação, o Supremo colocou ponto final nas discussões sobre as audiências de custódia. Na ação, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil arguiu a inconstitucionalidade de uma resolução do Tribunal de Justiça de São Paulo que, seguindo a orientação do Conselho Nacional de Justiça, obriga a autoridade policial a providenciar a apresentação da pessoa detida ao juiz competente até 24 horas após a prisão. Para a Adepol, a regra, por ter natureza jurídica de norma processual, dependeria da edição de lei federal, estando, assim, fora da competência normativa do tribunal paulista. Por unanimidade, o Plenário julgou improcedente a representação, ao declarar a legalidade das audiências de apresentação não apenas pelo TJ-SP, “mas por todos os tribunais do país”.
Unânime também foi a decisão do plenário do STF pela improcedência da ADI proposta pela Confederação Nacional do Comércio contra o artigo 3º de emenda constitucional, aprovada em setembro de 2003 pelo Congresso Nacional, que autorizou aos municípios a progressividade fiscal do IPTU em razão do valor venal dos imóveis e da localização e do uso da propriedade urbana. Para o Supremo inexiste incompatibilidade entre a técnica da progressividade e o caráter real do IPTU, “uma vez que a progressividade constitui forma de consagração dos princípios da justiça fiscal e da isonomia tributária”.
Entre as ações diretas de inconstitucionalidade julgadas em 2015, dez tinham como fundamento principal a suposta burla ao artigo 37 da Constituição, que impõe a necessidade de aprovação prévia em concurso público para todo e qualquer ocupante de cargo público. Apesar da clareza do texto constitucional, a imaginação legislativa não tem limites, com o emprego das mais variadas formas de tentar contornar a exigência constitucional, como destacou o ministro Teori Zavascki no julgamento da ADI 3.415, proposta pelo Ministério Público contra duas leis editadas pelo governo do Amazonas em um intervalo de cinco meses. A primeira (Lei 2875/04) equiparou os titulares dos cargos de Delegado de Polícia Civil e de Comissário de Polícia Civil, enquanto a segunda (Lei 2.917/04) transformou 124 cargos de comissário de polícia em cargos de delegado de polícia.
“Tanto a inusitada transformação do cargo de comissário em delegado de polícia, como a extinção de outros 124 cargos da classe inicial da carreira de delegado de polícia representaram um franco atentado ao instituto do concurso público, razão pela qual deve a Lei 2.917/04 ser declarada inconstitucional na sua totalidade”, concluiu Teori Zavascki, relator da ADI. Para o ministro, a forma pela qual foi conduzido “o rearranjo administrativo revela que houve, de fato, burla ao postulado do concurso público, mediante o favorecimento de agentes públicos alçados por via legislativa a cargo de maior responsabilidade do que aquele para o qual foram eles aprovados em concurso”. Com relação à Lei 2.875/04, o Supremo determinou que fosse excluído do texto a expressão “Comissário de Polícia”.
Outra tentativa “engenhosa” de burlar a exigência de concurso público foi exposta na ADI 3.926, proposta pelo governo de Santa Catarina contra a Assembleia Legislativa, que incluiu, em projeto encaminhado pelo Executivo, uma emenda aditiva, “sem qualquer pertinência com a proposição inicial”. A emenda aditiva, incluída durante tramitação de projeto de lei complementar, que visava à criação de funções comissionadas no âmbito da Secretaria de Estado de Educação, Ciência e Tecnologia, acabou por impor ao governo catarinense o reenquadramento de quase uma centena de servidores lotados no Instituto de Previdência do Estado de Santa Catarina no cargo de procurador jurídico. “Não se tratou de simples emenda, mas de inclusão de matéria estranha à proposição inicial”, entendeu o ministro Marco Aurélio, relator da ADI, ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Complementar 376, de 25 de abril de 2007.
Decisão semelhante contra o artifício, que ficou conhecido como “contrabando legislativo” ou “jabuti”, foi tomada pelo Supremo no julgamento da ADI 5.127. A ação foi proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais, que questionou alterações feitas pela Câmara dos Deputados em uma medida provisória, convertida depois na Lei 12.249/2010, que resultaram na extinção da profissão de técnico em contabilidade. A MP encaminhada pelo governo federal tratava de temas diversos, sem relação com a profissão de contador. O Plenário julgou improcedente a ação, mantendo a validade da lei em razão do princípio da segurança jurídica, mas comunicou ao Congresso que a prática é incompatível com a Constituição.
Em outro caso também exemplar, o Plenário do Supremo derrubou a Lei 17.882, de 27 de dezembro de 2012, do estado de Goiás, que criou o Serviço de Interesse Militar Voluntário Estadual na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros Militar, uma classe de policiais temporários, cujos integrantes, todos desligados do Exército após o período de serviço militar obrigatório, passaram a exercer funções de natureza policial militar. Ajuizada pelo Ministério Público, a ADI 5.163 tinha como alvo tanto o governador de Goiás como a Assembleia Legislativa, que, supostamente atuaram em conjunto, sob o argumento de que se tratava de uma contratação temporária e com justificativa no altos índices de criminalidade no estado.
“A Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, conquanto instituições públicas, pressupõem o ingresso na carreira por meio de concurso público, ressalvadas as funções administrativas para trabalhos voluntários (Lei 10.029/2000), restando inconstitucional qualquer outra forma divergente de provimento”, entendeu o ministro Luiz Fux, relator da ADI. Para ele, à luz do entendimento já consagrado pelo Supremo, em sede de Repercussão Geral, a contratação temporária reclama requisitos para sua validade, entre os quais a necessidade de casos excepcionais estarem previstos em lei. “No caso sub examine, não há qualquer evidência de necessidade provisória que legitime a contratação de policiais temporários para o munus da segurança pública”, destacou o relator.
Na mesma linha, a ministra Cármen Lúcia disse que “a lei criou um filhote, um serviço voluntário, que de voluntário não tem nada, já que seus integrantes foram recrutados e são pagos pelo Estado, entregando-se a eles armas, para quem cumpram atribuição que é a própria função do policial, sem concurso público”. Em março, por ocasião do julgamento que reconheceu a inconstitucionalidade da lei goiana, cerca de 2.500 “voluntários” já haviam sido contratados. Para evitar um problema ainda maior, o Plenário decidiu que a ilegalidade da lei passaria a valer a partir de novembro, prazo final de validade para um concurso público em andamento, com 1.460 aprovados para ingresso nos quadros da Polícia Militar, mas que ainda não haviam sido convocados.
Também foram declaradas inconstitucionais três leis que criavam pensões especiais para ex-governador no valor equivalente à remuneração de desembargadores na ativa (ADI 4.552/DF), para policial militar do sexo feminino (ADO 28/SP) e até mesmo para a família de vítimas de todos os crimes hediondos ocorridos em Brasília desde 21 de abril de 1960, quando foi inaugurada a Capital Federal (ADI 1358/DF). Neste último caso, a lei que criou o benefício vigorou entre 13 de setembro de 1995, quando foi editada, e 7 de dezembro do mesmo ano, quando teve seus efeitos suspensos por uma liminar, confirmada no mérito pelo Supremo em julgamento de fevereiro de 2015.
Contra quem foi proposta a ação
Agente passivo
Ações ajuizadas
Procedentes
Assembleias legislativas
31
26
Governadores e assembleias (juntos)
20
14
Presidente e Congresso (juntos)
5
2
Tribunais de Justiça
4
2
Presidente da República
2
1
Congresso Nacional
4
2
Confaz
1
1
Governadores
2
1
Fonte: STF
De que tratam as leis impugnadas
Remuneração de servidor público
12
Nomeação de servidor sem concurso público
10
Convênios, contratações e atos do governador
9
Tributos, tarifas, taxas e emolumentos
7
Pensão especial
3
Execução financeira do orçamento estadual
2
Criação ou extinção de órgãos da administração
2
Adoção de programas sociais
2
Restrição ao comércio de produtos agrícolas
2
Outros
20
Fonte: STF
As ADIS mais antigas julgadas em 2015
ADI
Entrada
Julgamento
Decisão
232
5/4/1990
5/8/2015
Improcedente
253
5/4/1990
28/5/2015
Improcedente
402
16/11/1990
7/10/2015
Procedente
443
19/2/1991
18/06/2015
Procedente
524
29/05/1991
20/5/2015
Procedente em parte
821
17/12/1992
2/09/2015
Procedente
763
12/8/1992
25/11/2015
Improcedente
1.046
14/3/1994
18/12/2015
Procedente
1.077
7/6/1994
2/9/2015
Procedente
1.148
18/10/1994
2/9/2015
Improcedente
Fonte: STF

O Estado como Fora-da-lei (1): artigo de 2007, esquema e prefacio de livro - Paulo Roberto de Almeida


Autobiografia de um fora-da-lei, 1:
uma história do Estado brasileiro

Paulo Roberto de Almeida
Introdução a um grande ensaio histórico-político,
que pode tornar-se um livro verdadeiro, sobre o Estado brasileiro,
narrado, de forma inédita, na primeira pessoa. Politicamente emocionante!
  Espaço Acadêmico (ano 7, n. 78; novembro 2007 link: http://www.espacoacademico.com.br/078/78almeida.htm).

Bom dia, caro leitor! Alô, cidadãos! Como estão, prezados contribuintes e caros amigos? Como têm passado, distintos trabalhadores e senhoras donas-de-casa? Escrevo estas linhas – ou parágrafos, que podem virar páginas e, talvez, até, um livro – porque senti que era chegado o momento de me dirigir diretamente a vocês, pessoas comuns, dispensando tantos intermediários – sociólogos, ou cientistas políticos – que, ao longo do tempo, têm tentado cobrir meu itinerário histórico, desvendar o meu passado, interpretar o meu desenvolvimento institucional, analisar o modo de funcionamento dos meus órgãos internos (oh!, perturbadores), ou até desvendar o meu futuro, como cabe a especialistas tão reputados (e, por vezes, tão enganados e tão enganosos).
Depois de tantas páginas memoráveis dedicadas ao meu modo de ser e às mais variadas formas de minha intervenção na vida de vocês, cheguei à conclusão que era a hora de eu mesmo tomar da pluma – mas, que antiquado eu sou: sentar-me à frente do computador, melhor dito – para escrever minha autobiografia, algo raro em se tratando de uma instituição pública que emana da própria sociedade, como vocês podem bem adivinhar. Mas, vocês bem que mereciam este gesto, pois, afinal de contas, são vocês que pagam as minhas contas, alimentam os meus cofres, financiam a construção de um palácio aqui, outro acolá, provêm os recursos dos quais eu tiro os salários de tantos empregados a meu serviço – sim, sim, não me enganei, a meu serviço, eu disse – me permitem, enfim, umas tantas loucuras de vez em quando (ou tantas quantas eu consigo levar adiante, sem maiores turbulências nas redondezas). Estava, de fato, devendo isso a vocês. Já estou ficando velho e gordo, atacado da gota e de alguns achaques aqui e ali, e queria dar a vocês alguma satisfação sobre o que tenho feito nestes últimos anos (nestes últimos duzentos anos, quero dizer, mas com certa ênfase no período recente, talvez os mais movimentados de minha longa trajetória de vida).
Se ouso tomar da pluma – ops, teclar estas notas, na tela à minha frente – para contar algumas coisas edificantes e outras talvez menos dignas, não o faço movido por ódios ou paixões, nem como reação a tantas bobagens que tenho lido nos livros, revistas ou jornais a meu respeito, tampouco em função de alguma urgência do momento. Afinal de contas, eu sou, aparentemente, “eterno”, e nada obsta a que uma nova biografia seja escrita sobre mim em mais cem ou duzentos anos. Apenas senti necessidade de colocar no papel – ou melhor, em bits and bytes do meu laptop – uma trajetória de vida que tem muito a ver com a vida de cada um de vocês, especialistas em destrinchar as minhas entranhas, cidadãos preocupados com os assaltos que faço regularmente em seus bolsos ou no caixa de suas empresas, ou simples curiosos, que sofrem ou se beneficiam com minhas ações ou omissões.
De fato, senti que devia a todos vocês este racconto storico eminentemente pessoal sobre a minha carreira, as minhas aventuras de vida, as minhas expectativas e os meus projetos. Tenho estado – sem trocadilho – insatisfeito com tantas análises capciosas que encontro nos livros de supostos estudiosos de minha trajetória e ações, de tantos ataques furibundos que venho constatando nas folhas liberais, assim como em face de tantas reclamações que tenho ouvido, como resultado de frustrações acumuladas por cidadãos que confessam não terem sido atendidos em esperanças e promessas que me teriam sido endereçadas por vocês mesmos, cidadãos do país.
Antes de começar, porém, a reconstituição de minha trajetória, vale uma explicação pelo título e subtítulo escolhidos para este ensaio autobiográfico. Por que “fora-da-lei”, exatamente? E por que o subtítulo não mais pessoal e sim, aparentemente, impessoal, ou, pelo menos, na terceira pessoa? A que se deve este exercício de auto-flagelação, esta decisão em prol da auto-acusação?
De fato, hesitei muito quanto à qualificação que eu deveria dar à minha própria trajetória de vida, sendo eu, supostamente, o personagem mais importante da história brasileira, aliás, ainda antes que o Brasil se conhecesse por esse nome, ou que fosse ele um Estado independente, como tal reconhecido pelas outras potências soberanas. Tendo estado – perdão pela nova redundância estilística – na origem da nação antes mesmo que ela se constituísse em Estado, eu deveria ser, presumivelmente, o personagem em princípio mais interessado no estrito cumprimento da lei, na correta observância da legalidade, no fiel atendimento das regras de vida social e das normas de organização pública que orientam, pelo menos em teoria, a vida dos cidadãos, a conduta dos agentes públicos, a atividade dos agentes econômicos privados e, a rigor, de todos aqueles que estabeleceram residência regular (ou passageira) no território colocado sob a minha jurisdição exclusiva. Por que, então, “fora-da-lei”? Sim, o que justificaria uma tal infração ao gentil tratamento de praxe que se deve estabelecer entre o detentor da soberania e súditos ou cidadãos – como você que está me lendo agora –, com essa auto-classificação de “infrator da legalidade”?
Tal se deve a uma razão muito simples (e vou ser absolutamente sincero com vocês). Eu tenho sido, a despeito de todos os preceitos constitucionais que me cercam, o mais freqüente e o mais constante violador da legalidade criada por vocês – ou seus representantes – para orientar minha conduta e as minhas ações práticas. Confesso que tenho sido um mau cumpridor desses preceitos e admito abertamente violar a lei em tantas ocasiões que já perdi a conta de todas as ilegalidades cometidas ao longo desta minha vida de, digamos, dois séculos justos. Eu sou, reconhecidamente, o maior infrator constitucional já conhecido neste país e um grande descarado quando se trata de atender às obrigações constitucionais ou infra-constitucionais que me foram historicamente atribuídas por nada menos do que – acho que já perdi a conta – cinco ou seis processos de elaboração constitucional e outros tantos remendos constitucionais, ao longo desta minha trajetória conturbada. Sim, confesso que sou um reincidente nas violações constitucionais, e mais ainda nas pequenas normas que deveriam, supostamente, guiar a vida dos meus súditos – êpa!, cidadãos – e orientar-lhes a conduta diária.
A bem da verdade, não posso reclamar dos meus conterrâneos, a maior parte formada por honestos cidadãos e modestos trabalhadores, cumpridores da lei e defensores da normalidade democrática, desejosos que sempre foram de uma vida normal, feita de segurança na vida diária, oportunidades abertas a todos para o desenvolvimento de atividades respeitadoras dos direitos de propriedade, eleitores fiéis em todos os momentos em que foram chamados às urnas, enfim, pessoas que aspiram a uma vida digna e merecedora de respeito por parte daquele mesmo que deveria atender a esses requisitos mínimos da vida em sociedade, isto é, eu mesmo. Sei disso, e é por isso mesmo que eu tive este ataque de franqueza e de sinceridade e resolvi me classificar como um “fora-da-lei”, nesta biografia tão crítica quanto desautorizada (digo isto porque não solicitei a autorização de nenhum dos meus poderes constituídos para escrevê-la, sendo ela, mais exatamente, a pura expressão de uma vontade passageira e irrefletida, um desejo repentino de auto-confissão, que provavelmente não se repetirá nos próximos cem anos). Aproveitem, pois!
Quanto ao subtítulo, que parece contradizer o título, ele se deve, tão simplesmente, a que pretendi que esta minha autobiografia fosse concebida e escrita com o maior grau de isenção possível, com tanta objetividade quanto seja admissível num panfleto crítico centrado sobre um personagem suscetível de todas as críticas, e que ainda assim se dispõe a desvendar um pouco de suas reflexões sobre sua longa trajetória de logros e frustrações. Atentos aos próximos capítulos!

Brasília, 1826, 19 outubro 2007, revisão: 27.10.2007.
 
Esquema tentativo

1. Prefácio: uma história do Estado brasileiro
       (já escrito; sob nr. 1826)
2. Uma questão de método: como o Estado pode escrever sua própria biografia?
       (considerações sobre quem fala, ou escreve, e como fala e se manifesta) (n. 1831; abaixo)
3. Um nascimento impreciso: data e local do parto, paternidade presumida...
       (digressões sobre minha trajetória colonial: um Estado fora do estado normal)
4. Minha criação pelo “método confuso”: tocata e fuga, sem qualquer partitura...
       (a fuga da família real portuguesa em 1807 e sua instalação em 1808)
5. De colônia a Reino-Unido: uma promoção merecida...
       (o que o bom príncipe D. João fez por mim, antes e depois de 1816)
6. Em face do meu próprio destino: a caminho da independência
       (saquearam o meu banco e me deixaram na penúria; então, tome...)
7. Um príncipe impulsivo: meu primeiro mandatário, de muitos maus modos...
       (o príncipe convertido em Imperador, fechando a Constituinte)
8. Uma carta liberal-escravista: meu primeiro contrato constitucional
       (aspectos bizarros e pouco recomendáveis da Constituição de 1824)
9. Esquartejando o corpo da pátria: revoltas e rebeliões adolescentes...
       (expulsão do meu imperador, revoltas da Regência, violência de toda espécie)
10. Em paz com meu novo chefe: um jovem inexperiente, mas de boas intenções
       (digressões sobre o modo de ser do bom imperador D. Pedro II)
11. Como é duro reformar e modernizar um país: as amarras conservadoras
       (tentativas de abolir o tráfico, a escravidão, trazer progresso e indústria)
12. Desafios externos e incapacidade interna: enfrentando ditadores e déficits
       (Guerras platinas, desequilíbrios orçamentários, dívida externa)
13. Deliqüescência senil?: os reumatismos de minha condição monárquica
       (problemas no enfrentamento das questões sociais e políticas)
14. Um golpe algo improvisado: o nascimento da República
       (finalmente, virei “americano”: adeus à velha Europa)
15. Artigo de imitação: minha primeira constituição “federativa”
       (a Constituição de 1891 e seus muitos equívocos conceituais)
16. Testando a minha vontade: ameaças regressistas e reações jacobinas
       (como se resolvem alguns problemas a bala...)
17. Na santa paz das oligarquias: o café-com-leite do menu republicano
       (arranjos oligárquicos e instabilidade político-econômica)
18. Controvérsias internas e externas: o consenso das elites
       (revoltas provinciais, fixação das fronteiras externas)
19. O voto no bico da pena: eleições falsas, mas representação verdadeira
       (como eleger um presidente com um mínimo de voto, e fraudando além de tudo)
20. O que devo ao café: tudo, ou quase tudo...
       (a base das minhas receitas, minha presença no mundo)
21. De repente, afundam os meus navios
       (minha primeira experiência em uma briga de grandes: a primeira guerra mundial)
22. Como eleger um presidente sem precisar fazer campanha: Epitácio na Europa
       (nossa participação na conferência de Versalhes)
23. Jovens exaltados: meus inconstantes súditos militares
       (as revoltas dos tenentes se espalham pelo país)
24. Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade
       (investimentos estrangeiros, reações xenófobas, nosso difícil desenvolvimento)
25. Meus liberais autoritários: desalojando a oligarquia, refazendo minhas fundações
       (a Revolução de 1930 e todo o resto)
26. Esses paulistas presunçosos: os guardiões da constitucionalidade
       (breve história da revolta de 1932: forçando a enfrentar os fatos)
27. Novo arranjo constitucional: desta vez, sob o signo do corporativismo
       (a elaboração constitucional de 1934)
28. Vermelhos e verdes: os meus radicais de esquerda e de direita
       (comunistas e integralistas tentam me conquistar)
29. A longa noite autoritária: me convertem em “Estado Novo”
       (o golpe de 1937, e o lado bom da não-democracia)
30. Entre o martelo e a bigorna: decidindo quem são meus verdadeiros amigos
       (minha decisão pelas nações aliadas)
31. Lutando na Europa pela democracia: e o que acontece lá em casa?
       (ideais e valores confrontados à realidade: a caminho do fim de uma etapa)
32. Luz no fim do túnel: a caminho da normalidade democrática
       (presidência provisória, eleições e um presidente militar)
33. O soneto melhor que a emenda: avaliando retrospectivamente a Carta de 1946
       (Dutra e a legalidade democrática: alguns arranhões na normalização)
34. A volta do mito: o ditador me conquista pelo voto
       (o segundo Vargas e as confusões intermináveis)
35. Um Estado de crise permanente: golpes e contra-golpes civil-militares
       (as crises de meados dos anos 1950)
36. O otimismo em pessoa: JK me encanta, mas a conta foi salgada...
       (cinqüenta anos em cinco, com despesas multiplicadas por dez)
37. De vassoura em punho, para o desconhecido: como tentaram me limpar
       (JQ e uma experiência inesquecível)
38. Meu primeiro Forrest Gump: Jango e a indecisão em pessoa
       (a grande confusão do governo populista-voluntarista)
39. Nova violência constitucional: esses militares impacientes
       (não quiseram esperar até 1965)
40. Tentando minha modernização, pelo alto: a via prussiana da mudança
       (as grandes reformas da era militar)
41. Querendo me transformar em grande potência: o fortificante da dívida externa
       (rápido crescimento, com ilegalidades a olhos vistos)
42. Do auge ao declínio do Estado militar: um retrato em tons de cinza
       (tentando um balanço honesto da era militar: tarefa impossível?)
43. Mobilização pela minha conquista: helàs, uma transição conservadora
       (como a nova República se instalou; aos trancos e barrancos e com muitos conchavos)
45. Todos os poderes ao povo (ou quase): a Constituinte congressual
       (sabores e dissabores do processo de elaboração constitucional)
46. Uma Constituição cidadã?: talvez, mas depois virou madastra...
       (análise das promessas generosas, economicamente impossíveis)
47. Acharam que eu era uma cornucópia: a descida na voragem inflacionária
       (como destruir uma economia com dois ou três congelamentos)
48. A grande fraude: como um caçador de marajás seqüestra a poupança dos incautos
       (mas pelo menos o cidadão começou a me transformar)
49. Meu segundo Forrest Gump: Itamar e a estabilização sem sacrifícios (ou quase)
       (trajetória de um bem sucedido plano de estabilização macroeconômica)
50. Na euforia da globalização, com um breve chamado à razão
       (tentando colocar as coisas em ordem, com alguns desajustes inevitáveis)
51. Remendando o que fizeram errado: a ordem econômica da introversão
       (consertando os desvios mais evidentes da Constituição de 1988)
52. Violando um velho princípio republicano: a caixa de Pandora da reeleição
       (esses políticos e suas fantásticas elocubrações)
53. Da glória ao inferno em pouco tempo: apagão cambial e energético
       (enfrentando os dragões da crise financeira e da imprevidência energética)
54. Tudo pronto para a mudança: a mais perfeita campanha de ilusionismo que conheci
       (prometendo uma coisa e se preparando para outra: a transição de 2002)
55. Contando uma bela história e atuando na penumbra: o Richelieu do Planalto
       (como comprar políticos a preço vil: a democracia violada pelo dinheiro)
56. Do carisma ao mito: como comprar o apoio do povo no cartão magnético
       (o grande curral eleitoral do Bolsa-Familia)
57. Uma tentativa de balanço: do Estado ideal ao estado a que chegamos
       (o barão de Itararé tinha razão?; como é difícil me reformar...)
58. Conclusões: uma trajetória aventurosa, cheia de riscos, sempre mais cara
       (quanto eu custo para o povo brasileiro?; será que ele me merece?)

Brasília, 27 outubro 2007.
(a ser desenvolvido progressivamente)

Autobiografia de um fora-da-lei, 2
(uma história do Estado brasileiro)

Paulo Roberto de Almeida

Uma questão de método: como o Estado pode escrever sua própria biografia?

Expostas as razões pelas quais decidi escrever minha próprias história, cabe agora responder à difícil questão de como pode uma entidade que é, por definição, impessoal, vale dizer, indefinível enquanto personalidade individual e, portanto, sem vontade própria, escrever sua biografia na primeira pessoa? Quem é você, seu fora-da-lei assumido?
Sim, afinal de contas, quem está falando, ou quem está escrevendo, exatamente? Seria sempre a mesma pessoa, ao longo do tempo, em toda e qualquer circunstância? Qual inteligência anima essa pluma, ou movimenta esse mouse a bate os dedos nesse teclado de computador? Que cérebro está atrás dos argumentos escritos e responde pela veracidade do que vou aqui expor? O Estado, isto é, eu mesmo, não foi o mesmo ao longo do tempo, não há um fio condutor que leva da mera capitania-geral e do vice-reinado da era colonial, para um reino sui generis no contexto americano, no início do século XIX, daí para um império pretensioso em seu aristocratismo mestiço e, finalmente, uma república de oligarcas e de aventureiros que foi se transformando ao longo do século XX. Em cada uma dessas etapas da minha existência, forças e ânimos diferentes estiveram atrás de minhas ações (e omissões), vontades diversas, e muitas vezes contraditórias, me empurraram para esta ou aquela aventura política ou militar, interesses concretos daqueles que ocuparam minhas sedes eventuais levaram a características muito particulares que fui assumindo no decorrer dessas fases, algumas mais tempestuosas do que outras, sem que se possa, em todos os casos, identificar o momento certo de ruptura com certas práticas e hábitos ancestrais e o começo de uma nova era de dominação.
Claro, o que permanece constante no decorrer de toda a minha existência é essa essência verdadeira de todo Estado: a concentração do poder e o exercício indisputável – algumas vezes disputado – da dominação política, ou seja, o comando sobre os homens e a administração das coisas. Tirando essa característica fundamental do meu modo de ser, tudo o mais mudou, ao longo desses anos e séculos de trajetória errante, de ações claudicantes, por vezes decisivas, em outras timoratas, em todo caso, determinantes para o destino de tanta gente e de tantos interesses. Eu sempre fui fiel a um único princípio, a uma única vontade, ou seja, a mim mesmo, buscando preservar a lógica do poder absoluto, que é o monopólio do uso da força e a eliminação de todo e qualquer concorrente no exercício daquela capacidade de agir que os cientistas políticos chamam de nomes aliás coincidentes: Macht, power, puissance. Não admito competição quando se trata da minha própria vontade!
Por isso mesmo eu sou único, ainda que diversas personalidades se tenham sucedido no comando de minhas ações. Mas todos aqueles que se sentaram na minha cadeira de comando, estiveram a meu serviço exclusivo e encarnaram minha vontade pessoal, mesmo sem o saber ou sequer perceber. Muitos pensaram, sobretudo aqueles com vocação caudilhesca ou ditatorial, que se guiavam por sua própria vontade, quando na verdade estavam cumprindo meus desígnios permanentes, que são o de sempre acumular poder e o de aumentar cada vez mais meu domínio sobre os homens e as coisas. Alguns me serviram fielmente, outros pensaram que estavam devolvendo o “poder ao povo”, quando nada mais faziam do que confirmar minha determinação em exercer solitariamente toda e qualquer decisão relevante na vida da nação. O país se coloca aos meus pés: este é princípio diretor que orienta todas as minhas ações.
Isto não quer dizer que eu tenha sido sempre arbitrário e prepotente no decorrer de minha história multissecular, longe disso. Na maior parte das vezes, eu agi com o consentimento e a concordância da maior parte dos meus súditos, ou cidadãos, conforme o caso. Raras vezes me vi obrigado a me afastar de meu próprio livro-guia para impor minha vontade unilateral ao povo miúdo ou aos poderosos que me sempre me cercaram. Normalmente todos eles me obedecem, por costume ou porque são sensatos, não lhes importando muito saber de onde vem a minha força e o poder de minha clave, apenas interessando-lhes ter certeza de que ela poderia se abater sobre suas cabeças caso ousassem infringir as normas fixadas nas tábuas da lei.
E, para tocar no ponto certo, quem impunha a sua lei sobre os pergaminhos e papéis que condensavam a vontade superior que eu representava ao longo do tempo? Bem, isso variou muito no decorrer dos séculos pois, ainda que a minha palavra fosse unívoca e singular, os comandos foram sendo articulados pelas diferentes figuras que, na sucessão dos reis postos, de sucessores impostos, de monarcas de ocasião e de tribunos cooptados pelas oligarquias, ocuparam os meus palácios pela razão ou pela força. Essas leis, em todo caso, foram sempre sendo interpretadas à minha própria maneira, segundo meus desejos circunstanciais, foram sendo modificadas sempre quando isso me convinha, foram sendo dobradas à minha vontade ou descartadas como inúteis e substituídas por novas leis, sempre melhores, claro, do meu ponto de vista.
Foi assim que eu fui acumulando, sem sequer enrubescer uma única vez, constituições várias e milhares de normas, centenas de alvarás-régios, dezenas de milhares de leis, incontáveis decretos, medidas provisórias, portarias, circulares, instruções, avisos e tudo o que foi possível humanamente (e até de forma desumana) inventar como injunções aos súditos e cidadãos (à falta de poder me dirigir às coisas inanimadas). Confesso que eu mesmo me perdi, inúmeras vezes, no meio dessa barafunda de regras, nessa selva de leis, sem saber ao certo qual a que se devia aplicar a cada caso específico. Mas, isso não importa muito, pois o que vem com o carimbo do Estado e a chancela da autoridade merece ser cumprido, sob as penas da lei, que sou eu mesmo quem faço (ainda que alguns juízes inventem de interpretá-la).
Sendo assim, nada obsta a que eu escreva minha própria história, nas minhas próprias palavras, com o que hão de concordar (obrigatoriamente) os mais sensatos. Nada impede que eu tenha escolhido para ser meu escriba particular – e temporário – um mero empregado do Estado, um servidor público temporariamente disponível para estas digressões fora do comum, posto que raramente me é dado o lazer de eu mesmo descrever minha trajetória política (e econômica). No mais das vezes, minha história e carreira política têm sido escritas por cientistas sociais ou sábios da academia, ocasionalmente até um ou outro psicanalista ou filósofo improvisado. Eles falam muita bobagem a meu respeito, e até algumas inverdades.
Esta é, portanto, a minha autobiografia autorizada, a única que me foi dada escrever até este momento, ao que eu saiba, pelo menos. Desconheço, na verdade, se em outras encarnações de minha múltipla personalidade, antecessores tomaram eles mesmos da pluma – aqui no sentido literal – para escrever minha história pregressa, ou se delegaram a outros essa tarefa. Não tenho registro de exemplos precedentes nos meus arquivos implacáveis, algo confusos, é verdade, e, no mais das vezes, impenetráveis. Quero, em todo caso, deixar constância de minha honestidade proverbial na reconstituição dos meus atos e fatos, o que aliás vem expresso no subtítulo desta autobiografia: eu escrevi que se trata de “uma” história do Estado brasileiro, e não “da” história desse Estado. Esta é a minha história, quem quiser que conte outra. Nunca pretendi retirar o sustento de tantos cronistas voluntários da minha existência, nem competir deslealmente com tantos intérpretes da academia. O presente rábula é de ocasião, mas ele é meu, ele sou eu.
Esta é, portanto, a minha versão da minha história, a única por mim autorizada. Outras existirão, que não receberam a minha chancela ou até à minha revelia, quando não deformando totalmente as minhas ações e os meus dizeres. Não me importa! Sou democrata, se isto não causar arrepios (ou calafrios) ao mais respeitável dos filósofos políticos. Minha vontade é a lei, mas eu deixo que a interpretem à vontade, à condição que ela seja cumprida. Tem sido assim nos últimos quatro ou cinco séculos e não vejo por que isso tenha de mudar agora.
Não temam os historiadores se eu não revelar as fontes documentais dos muitos atos e fatos que eu aqui relatar: não tenho tempo, agora, para ir remexer no pó dos arquivos e dali retirar as “provas irrefutáveis” do que vou contar, em linguagem livre e por vezes desabusada. Vou ser sincero, tanto quanto me permitem a idade e o alcance da memória e não tenho por que esconder as coisas mais escandalosas que andaram dizendo ao meu respeito. Aprendi, em outros tempos, com um intérprete genial, Niccolò Machiavelli, que não devemos nos envergonhar de exercer a única coisa que nos é dada como essência da nossa própria existência: o poder total, em todas as suas formas e manifestações. Dele faço questão e é por isso mesmo que eu decretei ao meu escriba: senta-te e escreve a minha história verdadeira.
É a que eu passo agora a relatar...

Brasília, 2 de novembro de 2007