Esperando Godot: o nunca existente neoliberalismo brasileiro
Paulo Roberto de Almeida
Paper preparado para o I Congresso da ABRI
(Brasilia, 25-27 de julho de 2007)
Sumário:
1. Introdução: as razões e o significado de um debate
2. Parâmetros conceituais do suposto neoliberalismo: o “consenso de Washington”
3. O contexto histórico-econômico do “neoliberalismo” no Brasil
4. O núcleo duro do neoliberalismo no Brasil e seu desempenho histórico
5. Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil
5. Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil
7. Uma avaliação preliminar da era “não neoliberal” no Brasil
8. Conclusões: o “iliberalismo” essencial da formação social brasileira
1. Introdução: as razões e o significado de um debate
A bibliografia especializada na história econômica do Brasil contemporâneo e, mais especificamente, no estudo dos padrões de desenvolvimento econômico observados ao longo do último meio século, costuma praticar uma espécie de bipolaridade conceitual entre, de um lado, um modelo dito “autônomo” ou “desenvolvimentista” – que teria sido aquele praticado, grosso modo, por Getúlio Vargas e por governos do regime militar – e, de outro, um modelo dito “associado” ou “dependente” – alegadamente defendido por lideranças contrárias ao “nacional-trabalhismo” do primeiro e ao estatismo dos segundos –, modelo que teria sido encarnado pelos governos Collor e FHC. O primeiro encontra, ao que se diz, defensores intelectuais nas correntes identificadas com o chamado estruturalismo e a heterodoxia econômica – pretensamente de extração keynesiana –, ao passo que o segundo modelo teria adeptos na ortodoxia econômica e no liberalismo de tipo econômico, mas também político. Basicamente, segundo as “explicações” históricas oferecidas, os primeiros promoveriam o desenvolvimento nacional por meio de políticas ativas patrocinadas pelo Estado, ao passo que os segundos prefeririam ver o Brasil guiado unicamente pelas chamadas “forças do mercado”.
Segundo a literatura de cunho interpretativo, essas orientações divergentes em matéria de política econômica teriam se sucedido e alternado em diversas épocas desde o final da segunda guerra mundial, ao sabor da correlação de forças entre correntes opostas: “intervencionistas”, de um lado, “liberais”, de outro. A dicotomia filosófica conformaria uma espécie de “zig-zag econômico” entre uma postura basicamente “independente” (também identificada com o “nacionalismo econômico”) e uma outra essencialmente “interdependente” (por suposição inversa comprometida com uma orientação mais aberta em relação ao capital estrangeiro). Em que pese o simplismo dessa visão, ela parece ainda encontrar ainda adeptos nos dias que correm, como revelado no debate público (pobre, [e verdade) em torno das principais escolhas de políticas econômicas (macro e setoriais).
A incompreensão mútua entre ambas as correntes, aliada a certas caracterizações apressadas, derivou muitas vezes para o equacionamento simplista do “intervencionismo estatal” com o “desenvolvimento nacional”, de um lado, e para uma identificação igualmente mistificadora entre o “liberalismo” e o “crescimento dependente”, por definição “alinhado” e “desnacionalizador”, de outro. Para ficar apenas nos casos mais evidentes, assim como os dois governos de Getúlio Vargas e o de João Goulart teriam encarnado todas as virtudes do “nacional-desenvolvimentismo”, os governos de Dutra, de Collor e de FHC concentrariam, por excelência, os vícios do modelo “associado”. Mas estes são apenas os casos mais paradigmáticos do maniqueísmo virtual praticado por certa historiografia em relação aos caminhos do desenvolvimento nacional.
Existem casos de “fronteira”. Vejamos os mais evidentes dentre eles. Tendo sido precocemente jogado num incômodo ostracismo pelo nacionalismo ideológico de alguns estudiosos não exatamente isentos do ponto de vista político, o Governo JK poderia ser visto, de alguma forma, como uma espécie de “patinho feio” da história econômica brasileira, primeiro por ter sido considerado um exemplo de governo desnacionalizador, para ser depois reabilitado no altar desenvolvimentista do período contemporâneo. Os governos José Sarney e Itamar Franco poderiam lhe fazer companhia, pelo caráter híbrido – isto é, intervencionista-liberalizante – das políticas econômicas conduzidas de forma errática em suas respectivas administrações, da mesma forma como alguns governos militares, hoje cultuados como “planejadores”, como teria sido o caso do governo ultra-estatizante de Ernesto Geisel.
A pergunta que cabe legitimamente ser colocada, ao início deste ensaio de revisão histórica, é se esse tipo de avaliação essencialmente dicotômica no campo econômico – consubstanciada, por exemplo, nos vocábulos “desenvolvimentista” ou “liberal” com que muitos pesquisadores acadêmicos rotulam esses governos – permanecerá fazendo parte do nosso universo historiográfico. O próprio conceito de “liberalismo” continuará, por sua vez, a ter a conotação essencialmente pejorativa que assumiu para gerações inteiras de brasileiros engajados na luta pelo desenvolvimento nacional? Seria a busca de “interdependência econômica” uma espécie de “pecado original” de economistas e líderes políticos considerados excessivamente associados ao modelo capitalista de mercado?
Escapa às pretensões do presente trabalho a tentativa de resgatar a reputação e a credibilidade política do liberalismo econômico, sobretudo num país ainda seriamente marcado por julgamentos ideologicamente comprometidos por décadas de lutas entre “varguistas” e “anti-varguistas”, entre “autônomos” e “associados”, entre “nacionalistas” e “entreguistas”, entre “independentes” e “interdependentes”. Tampouco se pretende reconstituir por inteiro uma história econômica e política já adequadamente coberta por estudiosos de grande calibre acadêmico e de credenciais insuspeitas.
O presente ensaio histórico persegue um objetivo mais modesto, ainda que mais desafiador: explorar não apenas a teoria, mas essencialmente a prática do que se poderia caracterizar como “política econômica do liberalismo”, tal como posta em prática durante a fase recente da trajetória econômica brasileira, aquela identificada por muitas lideranças políticas da atualidade como tendo sido “neoliberal”. Sua principal virtude talvez possa ser encontrada na tentativa de operar uma consulta às evidências materiais desta época e de proceder a uma releitura das interpretações efetuadas de maneira tendenciosa com vistas a redimensionar o que foi por muitos chamado de “neoliberalismo econômico”.
Algumas premissas iniciais e uma hipótese de trabalho precisam ser formuladas desde já, de molde a deixar clara a postura do autor em relação às acusações lançadas contra a política do “liberalismo econômico”, tal como praticado desde o início dos anos 1990 no Brasil. Isso se justifica pelo fato de que, nas ciências humanas, a discussão de qualquer temática – que não possui, muitas vezes, a materialidade e a possibilidade de testes ou experiências concretas, que constituem a marca das chamadas ciências “exatas” – exige, previamente, um entendimento quanto aos conceitos empregados e em relação às hipóteses de trabalho. No caso deste ensaio, os conceitos centrais, obviamente, são os de “liberalismo” e de “dirigismo”, na experiência histórica do desenvolvimento econômico brasileiro, e a principal hipótese de trabalho é a de que o Brasil é, claramente, um caso exacerbado de intervencionismo estatal durante toda a trajetória histórica desse processo, em contraposição ao que teria ocorrido, hipoteticamente, no caso de uma expansão mais equilibrada da iniciativa privada e das forças de mercado no sistema econômico brasileiro. É essa hipótese de trabalho que explica, aliás, a escolha do título do trabalho, uma vez que, como ocorre na peça de Samuel Beckett, o personagem principal jamais aparece em cena ou dá ele sinais de que existe, efetivamente.
Caberia deixar claro que nunca houve essa entidade fantasmagórica que muitos representantes de correntes acadêmicas – e, no seu seguimento, os jornalistas e militantes políticos – chamam de “neoliberalismo”, assim como não existem, no cenário político brasileiro, personagens que poderiam ser chamados de “neoliberais”, pela simples razão que nunca houve, no Brasil, algo que se pareça, de perto ou de longe, com o liberalismo econômico. Trata-se de uma designação que, nos últimos quinze anos aproximadamente, converteu-se em uma espécie de superlativo conceitual, quando não um epíteto ofensivo, equivalente a uma condenação sumária ao “gulag dos entreguistas”.
O conceito “neoliberal” esclarece pouco e confunde muito. Para que tivéssemos tido neoliberalismo, teria sido preciso que tivesse existido algum liberalismo concreto, de alguma forma afastado ou travado em suas manifestações práticas por formas veladas ou abertas de estatismo ou de dirigismo centralista, que depois tivessem sido, estes últimos, varridos por alguma “onda neoliberal” dominante nos círculos dirigentes e nas academias das últimas duas décadas. Não é o que constatamos pela leitura dos debates ocorridos nesta fase, nem o que se verifica por um exame detido da realidade econômica do país.
Dito isto, vejamos como pode ser organizado este debate intelectual (unilateral, é verdade) em torno das idéias “neoliberais” no Brasil. Numa primeira seção, trataremos de resumir o que os “acusadores” entendem serem políticas “neoliberais”, que costumam ser confundidas, ainda que erroneamente, com as prescrições do chamado “consenso de Washington” (CW). Em seguida, com base em perguntas formuladas em torno dessas “acusações”, trataremos dos aspectos enfocados nas prescrições, confrontando sua suposta aplicação com a prática efetiva do Brasil em cada uma dessas vertentes, para constatar em que medida a política econômica do país seguiu, de fato, os cânones do “neoliberalismo”. Ainda que algumas simplificações sejam inevitáveis, acreditamos que a contribuição aqui efetuada possa esclarecer a natureza do desenvolvimento brasileiro no período recente e, sobretudo, evidenciar o quanto ainda o Brasil encontra-se afastado de “neoliberalismo” (ou do liberalismo, tout court). Nesse processo, alguma repetição de argumentos do autor, expressos em trabalhos anteriores, é igualmente inevitável.
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