Este trabalho não pode ser considerado completo ou acabado, mas como vou ter de debater a respeito nesta data, no encontro da ABRI, deixo-o disponível no formato em que se encontra, para acesso pelos interessados em saber o que eu teria a dizer a respeito do tema escolhido para debate nesta mesa de que participo no evento:
3131. “Perspectivas da
política externa em um Brasil em redefinição”, Brasília, Lisboa, 22-26 junho
2017, 7 p. Notas para mesa redonda no 5o. encontro da ABRI em Belo
Horizonte, em 27 de julho. Em revisão.
Paulo Roberto de Almeida
Paulo Roberto de Almeida
[Notas para
mesa redonda; 5o. Encontro da ABRI; BH, 27/07/2017]
Programa: http://www.encontro2017.abri.org.br/programacao
O que está em redefinição: o mundo ou o Brasil?
Recebo convite para
falar das “Perspectivas da política externa brasileira
em um mundo em redefinição”, em mesa redonda no quadro do quinto encontro nacional
da ABRI, Associação Brasileira de Relações Internacionais, em Belo Horizonte. O
título da mesa redonda se encaixa no tema geral do encontro: “Redefinindo a
diplomacia em um mundo em transformação”. Esse tema geral é apresentado da
seguinte maneira: “Há no ambiente
internacional contemporâneo um desafio bastante óbvio para a atividade
diplomática: a redefinição do relacionamento entre os Estados, à luz do elevado
grau de incerteza associado à ascensão de diversos deles a novas posições de
influência e protagonismo — em alguns casos, duradoura e consistente; em
outros, uma trajetória mais errática, ambígua e ainda indefinida.” Suponho que
o Brasil esteja nesse segundo caso, ou pelo menos assim pensaram os autores do
texto de apresentação do encontro.
Minha primeira reação é considerar
que a segunda parte do título da mesa redonda, a expressão “um mundo em redefinição”, constitui uma
redundância ou uma tautologia. O mundo está sempre em redefinição, qualquer que
seja o momento retido para falar a seu respeito, algumas vezes de forma mais
pronunciada, em outras vezes menos de forma menos evidente, mas sempre em constante
redefinição, pois esta é sua característica essencial, incontornável, aliás
imutável. Tudo é movimento, diria um antigo filósofo grego, e assim deve
continuar. As razões são perfeitamente conhecidas: dinâmicas e letargias econômicas;
alternâncias, mudanças ou mesmo rupturas políticas, sobretudo nas democracias
de mercado; mutações sociais e demográficas; tensões e conflitos entre Estados
ou entre líderes políticos; tais são os elementos que compõem os ambientes nacionais,
os cenários regionais, ou o sistema internacional de poderes reconhecidos. Tais
cenários apresentam essa tendência, talvez irritante aos olhos dos conservadores,
que é a de estar sempre mudando (algumas vezes para pior).
Em todo caso, se o mundo
está ou não em redefinição, em determinadas fases ou momentos da história, isso
pode ser um assunto de preocupações e afazeres acadêmicos, mas raramente o é
para um diplomata, pois este toma o ambiente mutante dos sistemas regionais ou o
do cenário internacional como um dado essencial para o seu trabalho analítico e
de formulação de posições destinada a iluminar a tomada de decisões em sua
esfera de atuação. Ou seja, longe de ser um dado secundário, essa tal de
“redefinição do mundo” perpassa todo e qualquer ambiente próprio de trabalho no
qual se exercem acadêmicos e diplomatas. Não há propriamente algo que possam
fazer, acadêmicos ou diplomatas, a propósito dessas supostas redefinições do
mundo, a não ser tentar entender, interpretar corretamente e indicar possíveis
tendências em relação a “coisas” relativamente fora do seu alcance, no sentido
em que seria vão esperar qualquer tentativa de influenciar a direção das mudanças
esperadas, ou imprimir ao processo uma direção determinada. No caso do Brasil tal
incapacidade parece evidente: o país consegue influenciar, se tanto, copas do
mundo de futebol, algum desabastecimento de café (mas cada vez menos, pois já
existem outros grandes fornecedores no mercado) e, agora, uma novidade
“literária”: graças à Odebrecht, o Brasil figura com destaque no livro Guinness
dos recordes de corrupção, hemisférica e mundial.
Prefiro, portanto, falar
das perspectivas da política externa num Brasil em redefinição, pois é um fato
que o Brasil se encontra em um governo de transição, embora ainda não saibamos
bem para qual direção. Na verdade nem sabemos se teremos governo no próximo mês
ou até o final do ano. E vamos fingir que nós, acadêmicos ou diplomatas,
conseguimos exibir alguma inteligência na definição de perspectivas para a
política externa num Brasil em redefinição. Vamos então ver o que um acadêmico
disfarçado de diplomata teria a dizer sobre essa política externa nesse Brasil
em transformação para algo desconhecido: seria para algo melhor, ajuste feito,
crescimento de novo, ou algum desastre pela frente, desastre econômico,
política delinquente?
O que é esta tal de redefinição do Brasil? Alguém
prevê melhoras?
Admitindo-se que o
Brasil é o país que necessita de “redefinições”, por ter permanecido atrasado
durante muito tempo, vejamos quais seriam as perspectivas de uma política
externa adequada às novas circunstâncias sob as quais o Brasil precisa
necessariamente viver. Existem várias dimensões associadas a uma eventual
política externa futura do Brasil, isto é, diferente da atual, sendo que algumas
são impostas pela agenda internacional, outras derivadas das próprias opções e
iniciativas brasileiras.
Eu começaria por estas
últimas, pois como já sugerido é o Brasil que necessita de redefinições adotadas
por vontade própria, sob o comando de seus próprios líderes e representantes
setoriais, inclusive neste caso os responsáveis pela chancelaria e os decisores
da política externa. Aplicando o princípio do first things first, comecemos pelo mais importante: a despeito de o
maior atraso brasileiro ser mais exatamente mental e não propriamente material,
temos de começar pelo que é factível fazer, e mudar mentalidades é algo muito
difícil de acontecer. Sendo a modernização econômica o aspecto mais urgente a
ser objeto de políticas decisivas de inserção do Brasil na economia global,
isto significa abandonar todas as políticas introvertidas, protecionistas ou
autárquicas adotadas nas últimas décadas, em especial no período lulopetista
(na verdade, algumas dessas atitudes nos acompanham desde sempre, apenas
amenizadas temporariamente em raras fases de nosso processo de
desenvolvimento).
O Mercosul, por exemplo,
retrocedeu tremendamente durante o período lulopetista, ao longo do qual as
autoridades políticas no mais alto escalão consentiram em aceitar as
salvaguardas ilegais impostas pela Argentina e até tiveram a petulância de
requerer a concordância dos exportadores brasileiros para tais práticas
ilegais. Na política comercial, de modo geral, o Brasil se encontra hoje na
incômoda e vergonhosa posição de se ver condenado num painel da OMC por ter
infringido normas básicas nessa área, tanto em matéria de subsídios à produção,
quanto no que tange discriminação à oferta estrangeira, ou seja, desrespeito ao
princípio do tratamento nacional. Na esfera dos investimentos estrangeiros, os
governos lulopetistas recusaram ratificar todos os acordos de promoção e
proteção recíproca de investimentos (APPIs) que o Brasil havia voluntariamente
aceito, vários deles, aliás, assinados pelo mesmo chanceler do lulopetismo em
sua primeira encarnação como ministro do governo Itamar Franco, num outro
período de transição.
Em várias esferas, o
Brasil lulopetista conseguiu enorme projeção internacional para o seu governo,
o que lhe trouxe imenso prestígio externo e grande aprovação por parte da
academia. Acadêmicos gramscianos, ou mesmo desprovidos de qualquer base
ideológica preferencial, são propensos a aceitar acriticamente certos gestos
simbólicos de caneladas no império, e de resistência simulada a projetos de
potências hegemônicas. A militância, de seu lado, ficou entusiasmada com todas
essas alianças bolivarianas feitas ao longo do período, com a formação de
“parcerias estratégicas” com países supostamente identificados com projetos
alternativos aos das antigas potências coloniais e com essa preferência por uma
“nova geografia do comércio internacional”. Fazendo, entretanto, um balanço
objetivo dos resultados efetivos dos grandes objetivos do lulopetismo
diplomático – conquista de uma cadeira permanente no CSNU, reforço e ampliação
do Mercosul, conclusão bem sucedida das negociações comerciais da Rodada Doha –
o que emerge são rotundos fracassos em toda a linha, sem considerar aqui o lado
criminoso de diversos projetos conduzidos com recursos do BNDES, sem que
garantias apropriadas fossem oferecidas para diversos desses financiamentos
geralmente feitos com perfeitas ditaduras e regimes corruptos (o lado negro do
formidável ativismo externo do lulopetismo mafioso).
O que será a política externa no futuro imediato?
Brilhante? Razoável?
Em resumo, o Brasil
precisaria abandonar todo um capítulo de política econômica externa caracterizado
por vários ismos anacrônicos: protecionismo, nacionalismo, isolacionismo,
intervencionismo, que se somaram a diversos outros ismos tradicionais, como o
patrimonialismo, o corporativismo, o fisiologismo, o nepotismo, o
prebendalismo, o burocratismo, etc.
Nesse sentido, a demanda
por ingresso na OCDE pode e deve ajudar muito nesse aggiornamento da política econômica, embora a tendência seja a de
que os negociadores nacionais insistam em, tentem preservar o máximo das
características atuais da economia brasileira, que é tudo aquilo que precisa
realmente mudar num sentido mais liberal e globalizador. No plano da política
global, aliás, não creio que se deva investir tempo, energia e recursos nessa
pretensão de se conquistar uma cadeira permanente no CSNU: trata-se de um
objetivo fútil, típico de quem se crê melhor do que realmente é. Quando, e se,
a Carta da ONU for reformada, o Brasil parece ser um candidato natural a ocupar
um lugar permanente, e nem precisaria fazer campanha para tal objetivo: a
cadeira virá, quase que por inércia ou por ação da lei de gravidade.
No plano regional, essas
alusões à liderança, geralmente autopropostas, são no mínimo ridículas, quando
não inconvenientes, no limite prejudiciais à própria pretensão do país fazer da
América do Sul um espaço econômico unificado, uma zona de paz e de segurança
conectada fisicamente, um continente democrático e respeitador dos direitos
humanos, partilhando mecanismos regulatórios comuns ou harmônicos entre si de
maneira a explorar conjuntamente os imensos recursos de que dispõe o
continente, em alimentação, energia, matérias primas, comunicações, enfim, uma
ampla gama de bens e serviços ofertados e intercambiados segundo os velhos
princípios do livre comércio e da abertura aos investimentos externos.
Mas pode a política
externa do Brasil caminhar para tal revolução copernicana em seus fundamentos
conceituais, em seus propósitos ambiciosos, em suas grandes linhas de atuação?
Poder pode, ou poderia, se depender apenas de seus diplomatas, que são capazes
de todas as mudanças que se revelarem parte do imperativo categórico
determinado pelo Príncipe de plantão. Em outros termos, os diplomatas se
adaptam a quaisquer ordens e instruções que emanem do Príncipe, e unicamente do
Príncipe que os comande. Os diplomatas são assim.
Seria, no entanto, por
demais esperar que surja, assim como que por encanto, um Príncipe iluminado,
esclarecido, inteligente, corajoso, consciente da necessidade de abertura
econômica, de liberalização comercial, que tome todas as iniciativas
necessárias em prol da plena aceitação da globalização, o que requereria, antes
de qualquer outra coisa, um desarme psicológico por parte das elites atrasadas
do Brasil? Pode-se esperar que uma tal personalidade ideal, um estadista
modernizador seja eleito por um desses golpes de sorte, por alguma astúcia da
história, e empreenda o duro caminho do estabelecimento de plenas liberdades
econômicas e transforme, por vera arte do convencimento, a superestrutura
mental da sociedade brasileira? Registre-se que tal empreendimento exigiria, no
mínimo, o desmantelamento de todo um arcabouço regulatório, que teima em
amarrar os empresários, e os próprios trabalhadores, em grilhões burocráticos
muito piores do que os do antigo cartorialismo português?
Mesmo que tal Príncipe
existisse – o que já é uma dessas apostas que qualquer broker londrino não
aceitaria por menos de que dez contra um – e fosse eleito por uma feliz
conjunção de circunstâncias favoráveis, com tantos nomes horríveis circulando
nas pesquisas de opinião, ele teria de haver-se, em primeiro lugar, com toda a
fragmentação partidária, com um Congresso verdadeiramente representativo da
sociedade brasileira, ou seja, corporativo ao extremo, disfuncional, além de
disfuncional por causa dos muitos lobbies e grupos de interesse bastante fortes
ali representados. Ele teria, ademais, de confrontar-se com outras fontes de
poder, a maior parte delas comprometida com uma mentalidade anacrônica,
favorável ao protecionismo, à introversão, a um nacionalismo rastaquera, em uma
palavra, a mesma carga de atraso mental já referida.
Os demais grandes temas
da agenda diplomática do Brasil não mudarão muito, ou praticamente nada. A política
externa brasileira continuará seguindo o farol do multilateralismo principista
além de todo o aparato conceitual do politicamente correto nos vários itens
dessa agenda: direitos humanos, meio ambiente, não proliferação, cooperação ao
desenvolvimento, preferência pelo chamado Sul global, com os Palops à frente,
integração retórica na América do Sul, enfim toda a gama mais de transpiração
do que de inspiração a que já estamos acostumados desde longos anos. Em uma
palavra, o Brasil continuará a ser o que sempre foi: um país ricamente dotado
em recursos naturais mas insuficientemente desenvolvido, lutando contra suas
próprias contradições e limitações, mas também continuando a agitar os velhos
fantasmas internacionais de sempre. Estes seriam: a assimetria nas relações
internacionais – o que é um dado do sistema internacional; a desigualdade de
representação nos organismos internacionais; a baixa disposição dos países
avançados em matéria de acesso a tecnologias favoráveis ao desenvolvimento dos
países em desenvolvimento; o monopólio nuclear das grandes potências e o seu
total descompromisso com o desarmamento nuclear; enfim, temas e agendas que já
fazem parte da retórica diplomática brasileira desde largo tempo.
Conclusões pouco conclusivas
Imaginemos, por um
instante, totalmente por acaso, que
seria possível traçar uma política externa ideal, sem pretensões
megalomaníacas, uma política engajada na construção de um país satisfeito
consigo mesmo, sem angústias terceiro-mundistas ou projetos de grande potência,
propenso a abrir-se a todos os vizinhos de maneira ampla e sem qualquer
critério de reciprocidade, apenas acolhendo bens e serviços, trabalhadores, em
bases unilaterais, de maneira generosa, um país apto a contribuir para a
formação de um espaço econômico integrado, como seria teoricamente possível
ocorrer se o Brasil fosse esse país dotado de uma política externa ideal. Mas
esta é uma projeção utópica que não parece próxima de realizar-se no futuro
previsível.
A única coisa que
deveria realmente mudar, no âmbito mais geral das políticas públicas, mas
envolvendo também a política externa, seria um compromisso inarredável com
ampla abertura externa, em especial com as liberdades econômicas vinculadas ao
exercício das atividades produtivas, expostas estas à concorrência externa.
Mudará isto?
Não acredito! O Brasil,
e sua política externa, é um país que preza um alto grau de soberania econômica,
e orgulhoso de assim proceder, o que significa que continuará patinando no
mesmo lugar pelo futuro previsível. Isso também nos garantirá um crescimento
medíocre nos anos à frente.
Os diplomatas poderiam
ajudar nessa tarefa de modernização mental das elites e da própria agenda
brasileira de modernização globalizante? Não tenho certeza disso. Eles sempre
foram, são e continuarão sendo educados no mesmo espírito do nacionalismo
desenvolvimentista que caracteriza as elites brasileiras desde sempre. O que significa
que eles continuarão submissos ao consenso nacional que é também o que emerge
de Príncipes timoratos e concordantes com os interesses de suas elites
gatopardianas.
O mundo, em maior ou
menor transformação, seguirá o seu curso, ou seja, passando por constantes
mudanças, sobretudo econômicas. O Brasil também seguirá o seu curso, que é o de
progredir a passos pequenos, hesitantes, em direção a um futuro indefinido.
Existem motivos de preocupação? Talvez, mas como já dizia Mario de Andrade em
1924: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma
fatalidade.”
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/06/2017; Em voo Brasília-Lisboa, 23-24/2017; Lisboa,
25-26/06/2017.