O inevitável e o imprevisível: o Brasil e a questão da neutralidade num grande conflito global
Paulo Roberto de Almeida
Nota sobre as posturas adotadas pelo Brasil nos dois grandes conflitos globais do século XX e agora em face da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia.
Certas coisas são previsíveis: o Brasil se declarar neutro ao início de um grande conflito, como em 1914 e em 1939.
Mas terá sido inevitável o país ficar do lado dos agredidos contra as potências agressoras, como finalmente ocorreu em 1917 e em 1942-43?
Para isso concorreram dois fatores, um objetivo, o outro subjetivo: o fato de termos sido igualmente agredidos pelas potências responsáveis pela guerra de agressão e o fato de contarmos com lideranças políticas com visão de estadistas nas duas circunstâncias, e aqui eu me refiro mais a Rui Barbosa e a Oswaldo Aranha do que ao presidente em 1917 ou ao ditador do Estado Novo.
Pode, agora, não ser mais assim e a questão crucial do ponto de vista diplomático é a de saber o que mudou em 2022-2023, em relação aos contextos de 1917 e de 1942-43?
O Brasil não foi diretamente agredido, como extensão de uma guerra de agressão deslanchada por impérios militaristas e expansionistas, como ocorreu depois de 1914 e 1939, mas sim tínhamos fortes vinculos comerciais, econômicos e até humanos, como havia naquelas duas primeiras circunstâncias e que continuaram existindo no atual contexto: Alemanha imperial ou Alemanha nazista mantinham grandes relações econômicas com o Brasil em suas respectivas épocas, assim como atualmente Rússia e China exibem tais capacidades, sobretudo no campo comercial (mas também, e de modo talvez imprevisível, no campo, da visão do mundo por parte das lideranças).
O que mudou foi provavelmente o fator subjetivo, a qualidade do capital humano em cada circunstância. Essa circunstância pode ajudar a explicar uma outra dimensão da postura diplomática, o fator moral, geralmente descurado em favor de razões propriamente econômicas ou materiais.
Bolsonaro e Lula, por razões notoriamente diferentes, acabaram adotando uma postura similar, se não semelhante (independentemente das orientações recomendas pela diplomacia profissional): uma falsa neutralidade, objetivamente favorável ao agressor, provavelmente evitável, se outros tivessem sido os condicionantes humanos em cada caso.
Interesses eleitoreiros, num caso, adesão a uma visão do mundo e a compromissos com um projeto político não exatamente condizente com nossos padrões políticos, culturais e diplomáticos mais tradicionais, levaram a uma postura que difere daquelas a que acabamos aderindo em 1917 e 1942.
No atual contexto, o fator humano talvez explique porque o Brasil se afastou de uma postura de se afastar, na prática, das potências agressoras e de continuar exibindo uma postura objetivamente favorável a estas, em contradição com os interesses de longo prazo do Brasil.
Estes são, na minha concepção, e com base nas tradições diplomáticas do Brasil, os de se alinhar preferencialmente ao campo das democracias defensoras das liberdades e dos direitos humanos.
Nem sempre, todavia, é assim: fortes inclinações personalistas à direita e à esquerda podem destoar daquilo que seria previsível e inevitável.
A guerra de agressão de uma Rússia imperial declinante talvez fosse previsível, mas a Segunda Guerra Fria não era inevitável, fossem outros os condutores dos grandes impérios existentes (com a exceção do meio império europeu).
Não era imprevisível que o Brasil adotasse uma postura de neutralidade em face de grandes conflitos interimperiais.
Mas era evitável que suas lideranças circunstanciais adotassem, na prática, uma postura de neutralidade objetivamente favorável à parte agressora.
Não faz parte de nossas tradições e não condiz com nossos interesses nacionais de médio e longo prazos. Mas isto a História poderá confirmar oportunamente.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de setembro de 2023
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