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sábado, 7 de março de 2015

Mercosul e uma tal de "cidadania sul-americana" (sera'?) - Ayrton Ribeiro de Souza


O Mercosul precisaria caminhar em direção de uma "cidadania sul-americana".
Talvez, num futuro distante, digamos dentro de uns 50 anos.
Por enquanto ele nem consegue ser o que pretende.
Vejamos o que pode ser dito, sinteticamente, a propósito do trabalho abaixo transcrito:

O MERCOSUL e a construção da cidadania sul-americana
Ayrton Ribeiro de Souza
Mundorama, 7/03/2015

1) “cidadania sul-americana”
            PRA: se trata de um mito, entre muitos outros disseminados na academia. Não sei, por exemplo, se já existe uma “cidadania europeia”, a despeito de mais de 50 anos de um processo muito mais avançado do que o do Mercosul, que é muito incipiente, e na verdade está retrocedendo, e muito menos de qualquer processo sul-americano, que é simplesmente inexistente.

2) O Mercosul não resultou “de uma convergência de interesses dos dois maiores integrantes do bloco de alinhar suas políticas externas visando uma maior cooperação econômico-comercial”.
PRA: Ele não foi feito com esse objetivo, mas apenas com o de construir um espaço econômico comum, mediante a modalidade clássica da união aduaneira. Este é o objeto do Tratado de Assunção, a despeito dele prometer, equivocadamente, um mercado comum, que não está definido de nenhuma forma nesse instrumento provisório e incompleto que é o TA: ele apenas descreve a liberalização comercial intra-zona e a adoção de uma TEC, o que significa uma união aduaneira, nada mais do que isso.

3) O Mercosul “teria a prerrogativa de falar com voz própria à comunidade internacional bem como assinar tratados internacionais.”
            PRA: Nunca vi isso ocorrer: essa coisa de personalidade de direito internacional é para inglês ver, como se diz; na prática, os quatro países devem assinar tudo conjuntamente. Que ele fale por um porta-voz e pelo presidente de turno é uma coisa, que ele tenha competência para assinar tratados internacionais, isso não existe.

4) 1999: “... a conjuntura econômica desfavorável nos Estados Partes – primeiramente no Brasil que praticou uma política de desvalorização do Real...”
            PRA: O Brasil não praticou nenhuma política de desvalorização do Real; ela foi imposta pelas circunstâncias e depois da crise cambial de 1999, o Brasil simplesmente adotou uma política de flutuação suja, como muitos outros países. O autor diria que a Argentina adotou uma política de fixação irrevocável do peso argentino? Pois deveria dizer, mas depois de 2001, o país também adotou a flutuação suja, na verdade uma política cambial administrada, muito mais intervencionista do que a brasileira.

5) Depois disso, o Mercosul “passou a ser marcado pelo acirramento das disputas comerciais internas e pela dificuldade de coordenar posições em fóruns e negociações internacionais.”?
            PRA: Dizendo assim, parece que o Mercosul tem comportamentos atávicos, e que o bloco não sabe se conduzir como tente grande. A realidade é que tudo o que o autor diz sobre o bloco deve ser imputado aos países membros, em especial aos dois maiores, e em particular à Argentina.

6) Medo de dizer a verdade? Vejamos: “eletrodomésticos da chamada “linha branca” produzidos pela indústria brasileira, que sofreram com o endurecimento das regras do comércio impostas pela Argentina.”
            PRA: Mas isso é extraordinário: o que a Argentina fez é simplesmente ilegal, tanto do ponto de vista do Mercosul, quanto das regras do sistema multilateral de comércio; isso precisaria ser dito com todas as letras pelo autor do artigo.

7) A cereja do bolo: “um aspecto muito relevante para o avanço da integração regional é a ampliação da agenda dos governos a temas que vão além dos objetivos de liberalização comercial e cooperação econômica.”
            PRA: Não, não é relevante, em nenhum aspecto, para os objetivos do TA, essas coisas que foram sendo criadas como penduricalhos do Mercosul. O TA é um tratado de comércio, mais exatamente de união aduaneira, ponto. Todo o resto não faz parte do TA, e só foi feito por demagogia dos dirigentes. Condenaram o Mercosul a ser um zumbi, ou um Frankenstein, cheio de partes adicionadas que não servem para nada em seus objetivos originais.

8) A piada final: “No decorrer destes 24 anos, o MERCOSUL soube superar os desafios à integração sempre valendo-se de seus princípios de gradualismo, flexibilidade, simetria e equilíbrio.”
            PRA: Não, não soube, mas isso não tem absolutamente nada a ver com o Mercosul. Ele é um tratado de comércio, como já dito. Esse objetivo foi deixado de lado pelos governos dos países, que se empenharam em desmantelar o Mercosul e desviá-lo de seus objetivos precípuos. Simples assim.
            De forma geral, o artigo tenta ser otimista para uma realidade patética, e não toca nos problemas reais.
            O autor precisa estudar mais um pouco..

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 7 de março de 2015

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O MERCOSUL e a construção da cidadania sul-americana
Ayrton Ribeiro de Souza
Mundorama, 7/03/2015

Fundado a partir do Tratado de Assunção em 26 de março de 1991 por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, o MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) surgiu como o resultado de uma convergência de interesses dos dois maiores integrantes do bloco de alinhar suas políticas externas visando uma maior cooperação econômico-comercial entre seus membros, até alcançar a total eliminação de barreiras comerciais, bem como o fortalecimento de seu poder de negociação com grandes atores comerciais através da criação de uma união aduaneira graças à implantação de uma Tarifa Externa Comum (TEC).
Os objetivos iniciais de eliminação tarifária interna estabelecidos em 1991 deveriam estar concluídos no prazo máximo de 31 de dezembro de 1994 (ou 31 de dezembro de 1995 para Paraguai e Uruguai) e assim o foi, representando já nesses primeiros anos de vigência do Tratado um considerável aumento das relações comerciais entres seus membros, com relevante aumento das exportações de bens manufaturados, notavelmente os provenientes das indústrias brasileiras. Neste mesmo ano de 1994, culminando o cumprimento dos compromissos estabelecidos pelo Tratado de Assunção, foi assinado pelos 4 Estados Partes o Protocolo de Ouro Preto. O mesmo dotou o MERCOSUL de uma estrutura mais permanente e funcional, bem como definiu o bloco como detentor de personalidade jurídica internacional própria, ou seja, o MERCOSUL (cujas decisões são tomadas em consenso pelos Estados Partes) teria a prerrogativa de falar com voz própria à comunidade internacional bem como assinar tratados internacionais. Além disto, já em 1995 os Estados Partes adotaram a Tarifa Externa Comum (TEC), tal como previsto no Tratado de Assunção, constituindo uma medida essencial para a efetivação da União Aduaneira.
A partir desta consolidação institucional e a consecução dos objetivos iniciais de liberação comercial intra-bloco e formação da união aduaneira com a adoção da TEC, o MERCOSUL se consolidava como um instrumento eficaz de aproximação entre seus Estados Partes e como um interlocutor legítimo nas negociações com terceiros atores comerciais, tal como se denotou pela assinatura do Acordo Quadro com a União Européia em 15 de dezembro de 1995.
Além disto, avançou-se na agenda que previa a expansão dos temas abrangidos pelo bloco, que se ampliaram a aspectos políticos, sociais e de direitos humanos. Em 25 de julho de 1998, por exemplo, aprovou-se o Protocolo de Ushuaia, também conhecido como “cláusula democrática do MERCOSUL”, que estabelece que “a plena vigência das instituições democráticas é condição indispensável para a existência e desenvolvimento do MERCOSUL”. Em 10 de dezembro de 1998, seria aprovada a Declaração Sociolaboral que incorporaria diversos direitos individuais e coletivos dos cidadãos aos princípios básicos do MERCOSUL.
A partir de 1999, no entanto, a conjuntura econômica desfavorável nos Estados Partes – primeiramente no Brasil que praticou uma política de desvalorização do Real, e depois na Argentina com a crise de 2000 que a levou a protelar o pagamento de sua dívida externa – o MERCOSUL passou a ser marcado pelo acirramento das disputas comerciais internas e pela dificuldade de coordenar posições em fóruns e negociações internacionais. Uma reação do bloco ao agravamento dos interesses comerciais unilaterais foi a adoção do Protocolo de Olivos em 18 de fevereiro de 2002 que estabeleceu as normas e estrutura de funcionamento do Sistema de Solução de Controvérsias, que passaria a contar com um Tribunal Permanente de Revisão, composto então por 5 árbitros de reconhecida competência (sendo 1 árbitro designado por cada Estado Parte mais 1 árbitro de uma nacionalidade alheia aos Estados Partes e escolhido em consenso por estes).
Apesar desta evolução institucional, o MERCOSUL não foi alheio aos efeitos negativos que as crises econômicas internas de seus Estados Partes pudessem acarretar. Desta forma, a desvalorização do Real brasileiro em 1999 e a crise em que mergulhou a Argentina a partir do ano 2000 criaram um cenário mais adverso para a plena execução das intenções de livre-comércio estabelecidas em 1991. Os primeiros anos do século XXI, então, marcariam o MERCOSUL com um acirramento das medidas protecionistas dentro do bloco. O caso do trigo argentino é um exemplo das constantes tensões entre interesses protecionistas e grupos que defendem um comércio mais aberto. Esta contraposição de interesses surgiu também para os eletrodomésticos da chamada “linha branca” produzidos pela indústria brasileira, que sofreram com o endurecimento das regras do comércio impostas pela Argentina. O contexto de impasses comerciais como estes, no entanto, conta desde a assinatura do Protocolo de Olivos (2002) com um Sistema de Solução de Controvérsias permanente, que representa um importante avanço para dirimir de forma regional e satisfatória estes obstáculos à plena integração.
Quanto ao maior parceiro comercial externo do MERCOSUL, a União Européia, o bloco também enfrenta dificuldades em deslanchar um acordo de livre-comércio cujas negociações se arrastam desde a década de 1990. Apesar do grande volume das trocas comerciais entre ambos os blocos, há dificuldades em se estabelecer um consenso acerca dos produtos a serem isentos de tarifas (bem como em dirimir as posições antagônicas quanto a restrições não-tarifárias), o período de carência que implicaria estes acordos e divergências entre os membros do MERCOSUL acerca destas questões.
Finalmente, um aspecto muito relevante para o avanço da integração regional é a ampliação da agenda dos governos a temas que vão além dos objetivos de liberalização comercial e cooperação econômica. Neste sentido, a busca do MERCOSUL por se tornar mais representativo aos povos dos países que o compõem teve um grande progresso com a criação do Parlamento do Mercosul (PARLASUL) a partir da assinatura do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul em 9 de dezembro de 2005. A criação do órgão significa uma maior vinculação entre o organismo (originalmente estruturado para estimular a integração econômica) e as respectivas populações, o que incrementaria a legitimidade do MERCOSUL e aumentaria a credibilidade democrática de seus projetos.
Estas três esferas do MERCOSUL analisadas – de grande impacto nas vidas dos cidadãos e fundamentais para seu fortalecimento institucional – merecem a atenção que têm recebido dos governos e da sociedade civil. No decorrer destes 24 anos, o MERCOSUL soube superar os desafios à integração sempre valendo-se de seus princípios de gradualismo, flexibilidade, simetria e equilíbrio. Espera-se, portanto, que os esforços conjuntos dos Executivos dos 5 Estados Partes continuem contribuindo para a inclusão das vozes e interesses de suas respectivas populações para, atraindo e cultivando um senso de comunidade entre os cidadãos dos diversos países, poder avançar de forma exitosa nos objetivos de cooperação e desenvolvimento compartilhados por todos os membros.

Bibliografia
  • ALMEIDA, Paulo Roberto de. Mercosul: Fundamentos e perspectivas. São Paulo: LTR, 1998.
  • BASSO, Maristela. Aprimoramento jurídico e institucional do Mercosul. In: Grupo de Reflexão Prospectiva sobre o Mercosul.  Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, 2003.
  • BASSO, Maristela (org.). Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-Membros. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1996.
  • CASELLA, Paulo Borba. Mercosul, exigências e perspectivas, integração e consolidação do espaço econômico (1995-2001-2005). São Paulo: LTr, 1996.
  • CASAL, Oscar. Parlamento do Mercosul: desafio para sua consolidação. Pontes: entre o comércio e o desenvolvimento sustentável. São Paulo: FGV-ICTSD, v. 4, n. 3, julho 2008.
  • COUTINHO, George Gomes. O Parlamento do Mercosul em sua primeira fase: uma análise preliminar da transnacionalização da política no Cone Sul. São Leopoldo: Ciências Sociais Unisinos, v. 45, n. 3, setembro-dezembro 2009.
  • HUGUENEY FILHO, Clodoaldo; CARDIM, Carlos H. (orgs.). Grupo de Reflexão Prospectiva sobre o Mercosul.  Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, 2003.
  • ONUKI, Janina. O Brasil e a construção do Mercosul. In: Relações Internacionais do Brasil. São Paulo: Ed. Saraiva, 2006.
  • PEÑA, Félix. As salvaguardas argentinas. Disponível em: < http://www.felixpena.com.ar/index.php?contenido=wpapers&wpagno=documentos/1999-07-25-salvaguardas-argentinas&gt;. Acesso em 10 Fev. 2015.
  • PEÑA, Felix. Mercosur-UE: opciones por si no llegamos a la meta. La Nación: 23 de abril de 2013. Disponível em: < http://www.felixpena.com.ar/index.php?contenido=wpapers&wpagno=documentos/2013-04-23-mercosur-ue-opciones&gt; Acesso em: 15 Fev. 2015.
  • VIGEVANI, Tullo; MARIANO, Karina; OLIVEIRA, Marcelo de. Democracia e atores políticos no Mercosul. Araraquara: Cenários (UNESP), v. 2, 2000.
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Ayrton Ribeiro de Souza é mestre em Estudos Hispânicos pela Universidad de Cádiz, Espanha.