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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres

1. A busca de culpados (sempre deve existir algum...)
Dentre todos os mitos já explorados e a serem examinados nesta avaliação serial dos equívocos mais renitentes no meio acadêmico, nenhum parece tão poderoso quanto o que pretende que os países ricos, que teriam outrora alcançado o seu desenvolvimento graças a uma série de políticas por eles hoje recusadas aos países emergentes, estariam agora ativamente empenhados em impedir que esses países, eufemisticamente ditos em desenvolvimento, possam galgar, igualmente, a escada da prosperidade econômica e os degraus da capacitação industrial e tecnológica, tornando-se, como eles, desenvolvidos.
Continuemos, pois, o exame dos equívocos selecionados nesta série[1] pela análise crítica de um dos exemplos mais notórios da "teoria conspiratória da história", a tese do complô dos ricos contra os pobres, a presumida ação mancomunada dos desenvolvidos contra o crescimento e o progresso material dos países pobres ou menos desenvolvidos. O conjunto de "teses" defendidas pelos partidários do que classifico desde já como mais uma falácia, não deixa de apoiar-se em exemplos históricos que estariam aparentemente em linha com os argumentos dos defensores dessa teoria conspiratória, em especial no que se refere às políticas setoriais (industrial e comercial, em especial) e à suposta ação clarividente do Estado "empreendedor".
2. Friedrich List: versão século XXI
O mais conhecido defensor contemporâneo dessa teoria é o economista coreano, atualmente na Cambridge University, Ha-Joon Chang, que se utiliza da famosa imagem forjada pelo seu predecessor alemão de 150 anos atrás, Friedrich List, para afirmar que os países ricos estão querendo "chutar a escada" que os levou a ser o que hoje são. Este é, aliás, o título de um de seus livros mais famosos.[2]
Sua obra mais recente, Bad Samarithans, também publicada no Brasil, segue na mesma linha.[3]Promovida pela Ordem dos Economistas do Brasil, a obra constituiu o centro de atração de um seminário realizado em São Paulo, em janeiro de 2009, sob a responsabilidade da Ordem e da Fundação Getúlio Vargas, em torno de um programa de estudos focado na revisão do pensamento econômico sobre o desenvolvimento.
Seguindo as idéias de Chang, o coordenador da Escola de Economia da FGV-SP, Paulo Gala, acredita que "as experiências de maior sucesso observadas nos anos recentes, Coréia do Sul e Taiwan, nos anos 70 e 80, e China e Índia nos 90, basearam-se justamente em políticas contrárias às recomendações de Washington".[4] Como já tratamos do problema do Consenso de Washington em ensaio anterior desta série,[5] não iremos nos debruçar novamente sobre mais esse mito do pensamento acadêmico. Mas caberia registrar os "seis mitos neoliberais" que este professor brasileiro considera que vêm sendo propostos pelas instituições símbolo da globalização capitalista e que, em sua opinião, se revelaram incapazes de produzir os resultados prometidos.
Os "seis mitos neoliberais", vários deles fictícios, seriam os seguintes: "1) os países ricos atualmente alcançaram seu sucesso através de políticas comprometidas com o livre mercado; 2) o neoliberalismo funciona; 3) uma globalização neoliberal não pode e não deve ser interrompida; 4) o modelo americano de capitalismo neoliberal representa o ideal, o qual todos os países em desenvolvimento devem replicar; 5) o modelo do Leste Asiático é idiossincrático, o modelo americano é universal; 6) países em desenvolvimento precisam de disciplina fornecida pelas instituições internacionais e por instituições politicamente independentes (Banco Central, por exemplo)".[6] Não vou agora rebater argumentos que são mistificadores, em sua maior parte, inclusive porque o autor em nenhum momento traz qualquer comprovação de que esse tipo de proposição simplista venha sendo defendido pelas organizações "neoliberais" (eu apenas recomendaria que ele lesse mais história do mundo, estudasse um pouco mais de economia e observasse a realidade, simplesmente). Para preservar o foco, vamos tratar aqui apenas dos argumentos centrados sobre a "teoria do complô", que constitui todo um capítulo na história das falácias acadêmicas.
3. Uma história secreta do capitalismo?
O subtítulo do mais recente livro de Ha-Joon Chang já constitui, por si só, uma prova eloqüente em favor de uma tese, aliás, uma verdadeira teoria, muito disseminada em certos meios acadêmicos. Colocada de maneira simplista, mas nem por isso menos correta, essa tese diz mais ou menos o seguinte: os países ricos — durante os momentos iniciais de sua decolagem econômica, e na fase de consolidação do desenvolvimento social — puderam exercer toda a latitude de políticas econômicas: desde as mais liberais — quando podiam, ou precisavam — até as mais protecionistas e subvencionistas — estas últimas, de maneira mais intensa ou freqüente, e sem que alguma entidade "ortodoxa", do tipo do FMI ou o Banco Mundial, viesse lhes dizer o que deveriam ou poderiam adotar como políticas macroeconômicas e setoriais — até que puderam garantir para si um processo de crescimento sustentado, marcado pela autonomia tecnológica e a plena soberania sobre suas principais políticas públicas.
Uma vez alcançado o estágio em que se encontram, ou seja, de países líderes nas classificações de prosperidade econômica e do avanço tecnológico, eles se empenham todos — como se tivessem combinado tudo em algum local secreto de planejamento de maldades capitalistas — em impedir que países retardatários e os subdesenvolvidos, de maneira geral, os imitem, copiem o que fizerem, enfim, que os alcancem, do alto de seu progresso econômico e capacitação tecnológica. Numa reedição prolongada da falácia original de List e, de maneira tão perversa quanto calculada, os países ricos "chutam a escada" que permitiria aos atrasados chegar onde eles chegaram; constroem, assim, um fosso intransponível entre eles, um grupo pequeno de egoístas desenvolvidos, e todo o resto do mundo, um imenso conjunto de eternos condenados ao atraso e à pobreza (e, no mesmo movimento, levados a transferir renda para os de "cima", como agravante).
Trata-se de uma caricatura, claro, mas apenas em parte. Vejamos a síntese que faz seu principal defensor, e prefaciador, no Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira, desse tipo de teoria propagada com maior competência por Chang: "Em Maus Samaritanos, Ha-Joon Chang faz uma crítica devastadora da teoria econômica ortodoxa ou neoclássica ao mostrar que suas propostas de política econômica são para uso externo, não sendo utilizadas pelos países ricos que as propagam" (p. xiii). Não contente em aderir à teoria conspiratória da história, Bresser Pereira agrava o seu caso, insistindo na tese do complô dos ricos contra os pobres seguidores infelizes do terceiro mundo. Vejamos o que ele diz, numa reconstituição histórica do processo de desenvolvimento econômico em escala mundial: "Desde a Revolução Industrial a teoria econômica tem sido um instrumento para justificar internamente o capitalismo e para evitar que os demais países que ficaram atrasados no seu processo de industrialização também cresçam e lhes façam concorrência" (p. xiii). Trata-se, sem dúvida alguma, de uma grave acusação a todos os teóricos da economia ortodoxa ou neoclássica, que poderiam invocar, se fosse o caso, o sentido moral de sua atividade, posto que transformados em simples feitores de uma espécie de "colonização mental" conduzida a partir de seus centros de estudo. Seria risível, se não fosse eticamente questionável.
O professor da FGV-SP parece apreciar piadas históricas, já que Bresser Pereira tem prazer em reincidir na teoria: "A onda ideológica neoliberal que tem início nos anos 1970 tem como uma de suas motivações essa neutralização [dos concorrentes dos países em desenvolvimento], como objetivo nunca confessado, e jamais plenamente consciente" (p. xiv). Todos os elementos da teoria conspiratória estão presentes, posto que, segundo Bresser, Chang não hesita em "criticar os ‘maus samaritanos’ — os agentes dos países ricos e do neoliberalismo que aconselham mal os países em desenvolvimento, que afirmam estarem ajudando-os quando, de fato, estão criando obstáculos ao seu desenvolvimento" (p. xv). Esses agentes seriam uma combinação de professores adeptos da teoria neoclássica, os funcionários e consultores das organizações internacionais mais importantes na área econômica (FMI, BIRD, OMC) e os representantes dos países ricos que conduzem programas de ajuda e de cooperação técnica para os países pobres.
Mas não vale a pena continuar a falar da tese principal por meio de intérpretes de segunda mão; melhor ir direto ao original. Dois equívocos parecem estar em causa na construção desse tipo de mito que recebeu a poderosa contribuição de um economista que se lança de maneira ousada (embora leviana) nos caminhos da história: (a) a falácia de que os países ricos se tornaram o que eles são atualmente em virtude de um conjunto racional de políticas direcionadas a tal objetivo, aplicadas de forma sistemática e consciente, a despeito de contrariarem o pensamento econômico liberal de sua época; (b) e outra falácia, já pertencente à "teoria conspiratória da história", é a de que esses países têm-se empenhado, desde então, em impedir que os pobres os alcancem, armando ardilosamente um complô para obstar a que os atrasados cheguem ao topo da escada.
Esses dois argumentos se baseiam numa leitura seletiva, incompleta e deformada da história, e são incapazes de se sustentar pela lógica de funcionamento do sistema capitalista (na verdade, da economia de mercado), ou pelo seguimento da experiência concreta de diferentes países engajados desde então no caminho do desenvolvimento, alguns bem sucedidos, outros, infelizmente, não.
4. Políticas estatais como fator de desenvolvimento?
Chang, tanto no seu livro anterior, Chutando a Escada, como neste atual, Maus Samaritanos, conta a mesma história, embora com argumentos ligeiramente diferentes, mas por meio do mesmo uso seletivo dos dados históricos. Na verdade, não é tanto da história que ele pretende falar — inclusive porque não se trata de um historiador econômico, nem, aliás, de um economista historiador — mas da "história" presente, ou o que ele pretende por tal. Essa "história" seria dominada pelas políticas neoliberais e pela imposição das "regras do Consenso de Washington" aos países em desenvolvimento, o que resultaria, assim segue a teoria do complô, em que estes não possam o que antes fizeram os países ricos.
Todos sabem quais são essas políticas e não seria preciso estender-se em demasia em sua descrição: políticas macroeconômicas estáveis e responsáveis, redução do peso do Estado, liberalização comercial e do regime de investimentos estrangeiros, defesa dos contratos e dos direitos de propriedade intelectual, banco central independente, etc. Existe em vários setores críticos — mas que provavelmente nunca leram os textos originais — uma grande confusão entre, de um lado, o que pode ser eventualmente recomendado pelos conselheiros das instituições de Bretton Woods e, de outro lado, as regras originais do economista John Williamson, que detém o copyright — ou pelo menos os
moral rights — sobre o chamado Consenso de Washington. Este "consenso", em sua versão original, não compreendia nem a taxa de câmbio fixa (ele recomendava flexível), nem a liberalização do setor financeiro (ou dos movimentos de capitais, para ficar em algo mais tangível).
Não é o caso de dirimir essa confusão neste momento, tanto porque isto não parece preocupar aqueles que criticam de maneira leviana as "regras" de Washington, em primeiro lugar o próprio Chang. Sua principal missão é a de desmantelar essas regras, posto que elas seriam prejudiciais aos interesses atuais dos países em desenvolvimento. Usando mais suas impressões do que a pesquisa histórica, Chang recomenda o contrário: sua sugestão é a de que os países pobres façam aquilo que ele imagina que os países hoje ricos teriam feito nas etapas iniciais de crescimento e consolidação de seus processos de autonomia tecnológica.
E quais seriam essas políticas? Elas são muito diversas, obviamente, sendo que em alguns casos sequer houver políticas claramente definidas ou implementadas de maneira contínua segundo um plano pré-determinado. Mas Chang, em sua leitura seletiva dos dados históricos, identifica basicamente dois conjuntos de políticas que teriam sido usadas pelos países ricos em sua caminhada racional para o desenvolvimento: políticas industriais, do tipo "indústria infante" — tal como recomendado por List e, antes dele, pelo Secretário americano do Tesouro, Alexander Hamilton —, e comerciais. As principais medidas seriam o apoio direto às indústrias nacionais na fase inicial de instalação, por meio de subsídios, incentivos fiscais, proteção tarifária e outros tipos de defesa comercial e dirigismo setorial. Ele é bastante detalhista na coleta de medidas governamentais, ao longo do século XIX (e mesmo antes), que teriam sido mobilizadas para sustentar a industrialização desses países. O resultado entusiasma os dirigistas de várias épocas e de vários países, sobretudo aqueles que também pretendem criticar o suposto complô dos ricos e dos "washingtonianos".
O fato é que os argumentos de Chang são distorcidos, seus "fatos" são incompletos e falham, lamentavelmente, em estabelecer as relações causais efetivas entre as medidas industrializantes apontadas por ele e o desenvolvimento dos países considerados, processo necessariamente mais complexo do que sua visão simplista da história. Ele não considera uma série imensa de outros fatores institucionais — tal como destacada por historiadores econômicos como Douglass North, por exemplo — e passa completamente por cima dos fatores culturais e educacionais que sustentaram — não apenas a industrialização, mas — a transformação tecnológica abrangente que teve lugar em vários desses países (alguns deles não necessariamente industriais, mas "essencialmente agrícolas", como Dinamarca e Nova Zelândia).
É, por outro lado, igualmente simplificadora sua visão de que foram aquelas medidas estatais que provocaram a industrialização e o crescimento econômico; como se os países ricos tivessem "planejado" racionalmente seu processo de desenvolvimento, por uma série de medidas encadeadas no tempo, e estruturalmente integradas umas às outras, todas elas com o objetivo expresso — e talvez pré-determinado — de provocar essa modernização. Ele certamente não considera a contraditória e muitas vezes improvisada colcha de retalhos que constitui a trama da história real, na qual, indivíduos, grupos de pressão, ideologias e, não menos importante, reações defensivas ou "imitativas", interagem de modo desordenado, ao sabor das relações de forças que se estabelecem na sociedade, para produzir um resultado que está longe de ser aquele desejado por categorias específicas de atores sociais.
A história não é certamente um livro branco, no qual governos supostamente esclarecidos podem ditar ordens e regras para sua implementação racional: ela é, bem mais, um pesado carro de bois que avança lentamente por uma estrada esburacada, com interrupções e deslizes que pouco têm de intencional ou planejado. Mesmo admitindo-se a existência de políticas claras para favorecer este ou aquele resultado antevisto — como costumam ser as medidas de subsídio industrial, de proteção tarifária ou de apoio logístico — é muito difícil ao honesto historiador econômico separar fatores estruturais e contingentes no complexo processo de desenvolvimento dos países atualmente ricos; a começar que eles não estavam desenhando políticas de desenvolvimento e sim respondendo a impulsos que lhes vinham de dentro e de fora, e nem sempre, aliás, pela mão dos governos.
Haveria muito mais a dizer sobre a peculiar leitura da história do professor Chang. Mas a discussão poderia nos levar muito longe, no espaço limitado deste ensaio. Bastaria, talvez, dizer isto: se o protecionismo comercial e as políticas dirigidas em apoio ao setor industrial fossem o sucesso que ele alega, nesse caso, os países da América Latina, que, durante várias décadas, praticaram ambos em doses altamente concentradas, deveriam ser hoje não apenas nações altamente industrializadas, como tecnologicamente desenvolvidas, o que obviamente não é o caso. Por outro lado, em sua própria Coréia natal, Chang deixa de ver todos os fatores institucionais e educacionais que favoreceram o seu desenvolvimento, e se concentra unicamente nas políticas industrializantes e de cunho comercial, que teriam, supostamente, impulsionado o crescimento e a transformação tecnológica. Em conclusão, como economista, Chang pode até ter seu valor de mercado, mas como historiador ele falha miseravelmente em comprovar as suas teses.
5. A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa
O que dizer, então, da outra parte deste mito ridículo, que consiste em afirmar que os países na vanguarda do progresso industrial atuam deliberadamente para impedir outros de os seguirem na "escada" do desenvolvimento? Essa tese é tão ridícula — como compete a uma "boa" teoria conspiratória da história — que nem valeria o esforço de desmenti-la, se não fosse a existência de tantos crédulos nos países retardatários, sempre em busca de um bode expiatório para culpá-lo pela sua industrialização deficiente ou seu desenvolvimento insatisfatório. Mais uma vez Chang falha em trazer as "provas históricas" desse tipo de argumento, e apenas avança as recomendações dos atuais "conselheiros washingtonianos" como a evidência de que os países ricos desejam manter todos os demais no fundo do poço do não-desenvolvimento: para isso, eles "chutam a escada", num sentido metafórico, claro, pois a única coisa que fazem seria recomendar políticas que inviabilizariam a "subida da escada", mantendo os retardatários na eterna dependência dos que estão no topo.
Curioso que esses mesmos "alpinistas industriais" investem nos retardatários, e não apenas para contornar barreiras comerciais e outras restrições ao capital estrangeiro, como sabemos por todos os exemplos dos movimentos de capitais de risco na história econômica mundial. Mais curioso ainda é que todo esse ardor obstrucionista não impediu os Estados Unidos e a Alemanha, no século XIX, e os demais países avançados, na passagem da segunda revolução industrial — grosso modo a partir dos anos 1870 — de galgarem eles também a escada da industrialização e do desenvolvimento econômico. Seria por que a história só começa, de verdade, quando as ex-colônias pretendem se industrializar? Mas tanto o Japão "feudal", como a Coréia "colonial" desmentem a visão conspiratória do bloqueio dos ricos exercido contra os pobres periféricos, como isso também é cabalmente desmentido por outros exemplos atuais em outras regiões.
Certo, Chang e seus seguidores poderiam argumentar que os "asiáticos" — que são os exemplos que ele seguidamente invoca para comprovar a sua "teoria" — justamente não seguiram as recomendações do Consenso de Washington e por isso puderam se desenvolver com base em políticas ativas; aquelas mesmas supostamente utilizadas outrora pelos países ricos e que agora eles não mais recomendam aos retardatários (ao contrário, buscam impedir por todos os meios). A história é, contudo, mais complexa. Assim como Chang não conseguiu estabelecer relações de causalidade entre as suas "políticas ativas" e o progresso industrial e tecnológico nos países hoje ricos, ele tampouco consegue provar de maneira cabal que são essas políticas que estão na origem do desenvolvimento relativo dos países asiáticos.
O fato é que os países de desenvolvimento rápido na Ásia — e também em algumas outras regiões, como no Brasil, tempos atrás — conseguiram "construir" condições institucionais que puderam atender, eventualmente, a alguns dos "requerimentos" — talvez necessários, mas certamente não suficientes — que os colocaram no caminho da autonomia tecnológica e industrial; entre eles fatores de natureza fiscal, tributária, logística e, acima de tudo, de cunho cultural e educacional compatíveis com as "regras" do desenvolvimento. O processo é certamente complexo e reduzi-lo a medidas de política industrial ou comercial, quaisquer que sejam os méritos respectivos dessas últimas, pode tornar impossível o ato de manter-se fiel ao registro histórico e à realidade de determinadas experiências concretas.
De resto, existem tantos exemplos de sucesso quanto de fracasso na história da industrialização contemporânea — como a Europa do Sul ou a América Latina, até um período ainda recente da história econômica mundial — e estes últimos, curiosamente, não são enfatizados por Chang em sua "reconstituição" do desenvolvimento de uns e outros. O trabalho do historiador — a fortiori do "planejador" de desenvolvimento, também — envolve presumivelmente a consideração de todos os casos relevantes, e não apenas os de sucesso. É verdade que aprendemos tanto, ou mais, com os casos de fracasso — e mesmo com desastres espetaculares — pois são eles que podem nos indicar a combinação errada da "receita" do desenvolvimento — se é que ela existe —, quando os fatores de sucesso podem ser múltiplos e difíceis de determinar.
Como, aliás, indica a história da própria humanidade — na qual a maior parte dos povos ainda vegeta em baixos níveis de prosperidade e de bem-estar — o mundo é feito bem mais de "fracassos" que de "sucessos", ainda que esses conceitos sejam altamente dúbios, para não dizer completamente equivocados. Dos 35 a 40 bilhões de seres humanos que já viveram na superfície do planeta, provavelmente um número muito reduzido, equivalente, digamos, a 5% desse total, desfrutou, até hoje, de uma esperança razoável de vida, com o gozo simultâneo de bons padrões de alimentação e de bem estar. A afluência material — isto é, a "libertação" da penúria, da fome e da doença — ainda é algo relativamente "recente" na história da humanidade, correspondendo, talvez, aos últimos dois ou três séculos de avanços na agricultura e de progressos industriais.
Ao se questionarem "por que o mundo todo não é desenvolvido?",[7] os historiadores economistas acabam chegando aos verdadeiros fatores de progresso material e de avanços tecnológicos que, longe de terem sido provocados por "políticas industriais e comerciais", têm a ver, basicamente, com os ganhos de produtividade do trabalho humano ao longo do tempo e em diferentes sociedades, aspecto eminentemente vinculado ao desenvolvimento cultural, de modo geral, e à educação básica e técnica, de modo particular. Estes são fatores que um economista historiador — mas Chang não é um — deveria considerar na avaliação das diferentes experiências nacionais de desenvolvimento, não um aspecto, apenas, da ação governamental em favor deste ou daquele ramo industrial.
Quanto ao complô dos países ricos para "chutar a escada" dos retardatários, bem, ficou, é verdade, faltando tratar desse "aspecto" da história com maior grau de detalhe. Mas a crença é tão ridícula que me constrange ter de levantar argumentos para derrubar hipótese tão fantasiosa. Para começar, ela contraria a "lógica" — se alguma existe — da economia de mercado (e do capitalismo, diriam alguns marxianos mais razoáveis) que consiste em ampliar continuamente a "esfera da acumulação" — para retomar esse linguajar barroco — e conectar os mercados de forma contínua. Como já tinha explicado Marx em 1848, o capital busca sempre derrubar barreiras feudais e muralhas de modos de produção ancestrais, para instalar suas máquinas infernais, que seriam teoricamente suscetíveis de submeter à sua dominação implacável os povos de todo o mundo, ainda que convertidos em um "exército industrial de reserva" (logicamente, para deprimir os salários dos trabalhadores na pátria de origem do capital; para o que mais seria?). Por que, nessas condições, desejaria o capital restringir as possibilidades de desenvolvimento capitalista na periferia? Deixo a resposta — se é que existe alguma, racional, quero dizer — aos adeptos da teoria do bloqueio capitalista.
A rigor, essa tese já era inoperante, inaplicável e "fantástica" na época do próprio mentor de Chang, o economista alemão Friedrich List — que publicou seu livro de economia política em meados do século XIX — e parece-me que ela continua a ser tudo isso, 150 anos depois. De fato, a teoria conspiratória não se sustenta, e só consegue desmoralizar seus partidários, a menos, claro, que eles sejam imbuídos dessa crença numa "história secreta do capitalismo", que só consegue causar
frisson naqueles imbuídos do "secreto desejo" de enterrar o (mal)dito sistema. A verdade é que, numa economia de mercado, que combina diversos tipos de capitalismos, o processo de desenvolvimento adota caminhos diversos, nenhum deles controlável por alguma força social específica, e muito menos por governos ou atores sociais estrangeiros. Nessas condições, imaginar que capitalistas e burocratas do FMI e do Banco Mundial se reúnam na calada da noite — ou talvez nas reuniões anuais do Fórum Econômico Mundial — para encontrar maneiras de impedir países pobres de ascender na escala do desenvolvimento, cozinhando para eles receitas de não-desenvolvimento, acreditar nisso representa bem mais do que defender alguma teoria conspiratória da história e redundaria, simplesmente, em ofender a mais comezinha inteligência econômica (além de fazer pouco caso, obviamente, da própria inteligência dos burocratas e dirigentes de países pobres, ou pelo menos daqueles que não foram "comprados" pelos primeiros).
Quem adota esse tipo de postura — histórica ou econômica — também costuma enveredar por outras teorias fantasiosas para explicar o sucesso de alguns e a "derrota" de outros, posto que as teorias conspiratórias se retro-alimentam e produzem, de contínuo, novas razões para velhos fracassos, como, por exemplo, a persistente pobreza e a imensa desigualdade na maior parte dos países latino-americanos. Muitos — espera-se, ao menos, que este número seja decrescente — acreditam que isso se deve à exploração imperialista e à existência de estruturas capitalistas produtoras de miséria e de desigualdade; mas eu não preciso antecipar o que penso a respeito, não é mesmo? (disso tratarei em futuro ensaio). Os que assim "pensam" — se o verbo se aplica — não estão apenas ofendendo a simples verdade dos fatos e distorcendo a natureza do processo histórico; eles também estão diminuindo suas próprias chances de ascenderem a uma explicação mais consistente sobre as verdadeiras causas do atraso de alguns povos e do progresso de outros. De certa forma, eles estão "chutando a escada" que os levaria a um patamar superior de conhecimento.
Mas este parece ser o destino de muitas falácias acadêmicas: baseadas num contato superficial com a realidade, elas acabam desenvolvendo uma explicação de "senso comum" que não é apenas redutora e simplista, mas que se alimenta de suas próprias crenças equivocadas.
Até a próxima falácia...
[2] Cf. Ha-Joon Chang, Kicking Away the Ladder:Development Strategy in Historical Perspective (Londres: Anthem Press, 2002), já publicado no Brasil:
Chutando a Escada: estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica (São Paulo: UNESP, 2004).
[3] Cf. Ha-Joon Chang, Bad Samarithans:
The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism (Londres: Bloomsbury, 2007);Maus Samaritanos: o mito do livre-comércio e a história secreta do capitalismo (Rio de Janeiro: Elsevier, 2009).
[4] Cf. Paulo Gala, Apresentação a Maus Samaritanos, op. cit., p. ix.
[5] Ver, deste autor, "Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington", in Espaço Acadêmico, n. 88, setembro 2008; link:http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm.
[6] Cf. Gala, idem, p. x.
[7] Ver, a este propósito, o trabalho, já antigo, de Richard A. Easterlin, "Why Isn't the Whole World Developed?", The Journal of Economic History, vol. 41, n. 1, The Tasks of Economic History, (Mar. 1981), p. 1-19; disponível:
http://links.jstor.org/sici?sici=0022-0507%28198103%2941%3A1%3C1%3AWITWWD%3E2.0.CO%3B2-Y. Cabe reconhecer que esse autor foi excessivamente otimista em suas suposições mais importantes — sobre a disseminação cada vez mais rápida dos elementos culturais e educacionais que "produziram" desenvolvimento em vários países —, mas talvez ele tenha razão no longo prazo. Infelizmente, esse prazo tem-se revelado desnecessariamente mais longo do que o desejável para muitos povos, mas fatores políticos, não técnicos ou econômicos, podem explicar esse atraso inexplicável para os padrões da racionalidade ocidental.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Ha-Joon Chang: o mau samaritano do nao desenvolvimento - Rodrigo Constantino e Paulo Roberto de Almeida

Recentemente, um aluno universitário que deve ter sido a vítima inocente de lições (lições??!!) mal dadas por algum professor universitário certamente convencido da perversidade do neoliberalismo e das benesses e bondades do dirigismo estatal e do protecionismo comercial, escreveu-me para criticar-me por algo que não fiz, mas que teria feito com prazer se colocado na mesma situação: uma resenha sobre um livro do economista coreano de Cambridge Ha-Joon Chang, um convertido tardio a outras más lições: as do cepalianismo prebischiano requentado dos anos 1950 e as do antineoliberalismo vulgar que começou a soterrar corações e mentes de milhares de universitários a partir dos anos 1990, quando se acreditava nessas más academias que o neoliberalismo e um suspeito complô dos autores do Consenso de Washington eram os responsáveis pelos fracassos, frustrações e pelo não desenvolvimento de nações em desenvolvimento, entre elas e principalmente as da América Latina, que nessa versão simplificadora e mistificadora teria sido impedida de se desenvolver pelos mesmos vorazes capitalistas centrais que a exploram há mais ou menos 500 anos.
Como ele me criticou pelo que não fiz, vou fazer o que ele não fez, e que pode ter escapado aos leitores dos muitos blogs que mantenho. Um deles é dedicado apenas a resenha de livros, e lá anda um pouco esquecido.
Portanto, vou postar aqui a resenha de Rodrigo Constantino de um dos livros desse mau economista que é Ha-Joon Chang, não sem antes esclarecer sobre um artigo meu, que desmantela suas pretendidas "lições" de história econômica

Paulo Roberto de Almeida:
Falácias acadêmicas, 5: o mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres
Brasília, 21 janeiro 2009, 11 p. Continuação da série, tratando desta vez das teses do economista Ha-Joon Chang. 
Espaço Acadêmico (n. 93, fevereiro 2009; arquivo em pdf); 

Aqui vai a resenha de Rodrigo Constantino, já postada em outro blog meu: 

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O Mito do Protecionismo Esclarecido
Rodrigo Constantino

Uma coletânea de falácias econômicas. Assim pode ser resumido “Maus Samaritanos”, o novo livro do economista de Cambridge Ha-Joon Chang, que é também o autor de “Chutando a Escada”. Ele tomou emprestada essa expressão de Friedrich List, o economista do século XIX que defendia o nacionalismo mercantilista. O novo livro de Chang ataca o livre comércio e defende o protecionismo estatal, através tanto de subsidies como de tarifas alfandegárias. O prefácio da edição brasileira foi escrito por Luiz Carlos Bresser-Pereira, que foi ministro das Finanças durante o governo Sarney e adotou o congelamento de preços como meio para combater a inflação galopante. Bresser denomina a estratégia pregada por Chang de “novo desenvolvimentismo”. Na verdade, trata-se do velho mercantilismo de List.
A principal tese do livro é que os países atualmente desenvolvidos chegaram neste patamar de desenvolvimento graças ao protecionismo estatal, e não ao livre comércio. Uma vez no topo, eles pretendem “chutar a escada” e impedir o acesso aos demais países pobres. Contam com um grande e poderoso aparato de economistas neoliberais – os “maus samaritanos” – para defender essa estratégia. Assim, a privatização, a redução da burocracia, um banco central menos politizado, a meta de inflação, a abertura comercial e o equilíbrio orçamentário do governo seriam medidas prejudiciais aos países pobres, defendidas pelos neoliberais por auto-interesse ou ignorância. A “Trindade Profana”, representada pelo FMI, OMC e Banco Mundial, seria o principal mecanismo para derrubar essa escada de acesso ao desenvolvimento.
O desenvolvimentismo de Chang é muito similar ao nacionalismo de List, economista que representava o oposto daquilo que Adam Smith defendia. Contra a “mão invisível” do mercado, seria necessária a “mão benevolente” do governo. O protecionismo de Chang é o mercantilismo com um véu novo. Retirando o eufemismo, resta o velho dirigismo estatal, a crença de que o Estado deve assumir a locomotiva do desenvolvimento econômico. Friedrich List já dizia que somente onde o interesse dos indivíduos estivesse subordinado ao da nação, haveria desenvolvimento decente. A nação era vista como um ente concreto, com desejos e interesses, que justificavam inclusive o sacrifício dos indivíduos. Quem saberia dizer quais os verdadeiros interesses da nação? Com certeza, os “sábios”, entre eles List. A glória futura da nação valeria mais que tudo. Nesse aspecto ao menos, Hitler não foi muito criativo.
O nacionalismo de Chang parece um marxismo exportado para nações. Os países ricos exploram os países pobres. Portanto, as regras do jogo não podem ser iguais. Seria injusto, segundo o autor, tratar da mesma forma países desiguais. Os países ricos deveriam aceitar o protecionismo dos mais pobres sem reclamar, pois são mais ricos. Justiça, por esta ótica, é garantir um tratamento diferencial com base na renda. Um dos problemas disso é que o protecionismo não beneficia os países pobres, mas sim alguns grupos ricos desses países, à custa do restante do povo. É análogo ao próprio marxismo dentro de cada nação: atacar os mais ricos não favorece os mais pobres, e sim o contrário. Outro problema desse raciocínio é que o protecionismo seria, então, desejável dentro da nação também. Cada estado deveria proteger suas indústrias para garantir seu desenvolvimento. A lógica poderia continuar: cada bairro deveria fazer o mesmo, para estimular seu desenvolvimento. Afinal, o que há de tão especial no conceito de nação? No extremo, acaba-se na conclusão de que a auto-subsistência do indivíduo pode ser desejável.
Chang parece confundir correlação com causalidade. Ele cita que fases protecionistas e com intervenção estatal forte apresentaram bons resultados, enquanto reformas neoliberais geraram crises. A falácia desse raciocínio é que o crescimento desenvolvimentista apenas hipotecou o futuro. O autor chega a defender abertamente essa política, quando afirma que “faz sentido para um país em desenvolvimento ‘emprestar das gerações futuras’, assumindo déficits orçamentários para investir por seus próprios meios no presente e, portanto, acelerar o crescimento econômico”. Após uma era de crescimento artificialmente criado pelos gastos estatais sem lastro, um duro ajuste se faz necessário. Mas Chang prefere condenar o termômetro pela febre. Ele ataca os sintomas expostos pelo livre mercado, em vez das causas plantadas pelo desenvolvimentismo. Não obstante essa falácia estatística, resta questionar qual país não está em desenvolvimento. O autor trata os países mais desenvolvidos como países que chegaram ao patamar máximo de desenvolvimento, e não mais tivessem que se desenvolver.
O autor defende até mesmo os programas de substituição das importações, que nos remete ao caso brasileiro da “Lei da Informática”, que condenou o país ao atraso tecnológico. Como pode ser bom para o desenvolvimento de uma economia comprar verdadeiras carroças pelo preço de uma Ferrari? Chang defende ainda que uma inflação de até 40% ao ano pode ser desejável. Ele afirma: “A inflação baixa e a prudência do governo podem ser prejudiciais ao desenvolvimento econômico”. Dificilmente um brasileiro poderá concordar com isso, se tem alguma memória.
O caso da Coréia, terra natal de Chang, é freqüentemente citado no livro. Fica a impressão de que o protecionismo comercial seletivo e a clarividência do governo foram responsáveis pelo sucesso relativo do país, e não a maior abertura comercial e o investimento na educação, respeitando-se a meritocracia. As falhas do modelo coreano acabam transformadas pelo autor nas causas do sucesso. Nenhuma vez é citada no livro a palavra “chaebols”, por exemplo. O autor fala da ajuda estatal à Samsung, mas esquece que os grandes conglomerados ajudados pelo governo estiveram no epicentro da grande crise de 1997. O modelo da Coréia deu certo a despeito do protecionismo, não por causa dele.
Outra falácia comum praticada pelo autor chama-se non sequitur: de premissas verdadeiras, ele conclui coisas que não seguem delas. Se há protecionismo nos países desenvolvidos, então ele é causa do sucesso, afirma Chang. No livro, “aprendemos” que Taiwan, Cingapura, Irlanda, Estados Unidos, Inglaterra e Suíça são exemplos de sucesso do protecionismo esclarecido, e que Argentina, Brasil e Rússia são casos de fracassos do neoliberalismo. Quanta inversão!
O autor afirma que o livre-comércio pode trazer benefícios no curtoprazo, mas condena o país pobre no longo prazo. É justamente o contrário: proteger empresas nacionais pode gerar algum ganho artificial no curto prazo, mas sacrifica o desenvolvimento do país no futuro.
Como todo desenvolvimentista, o autor se coloca sempre do lado do poder. Ele parece acreditar que um “déspota esclarecido” irá decidir qual protecionismo é desejável, e tomar medidas sempre com o “bem-comum” em mente. O governante será clarividente e honesto, uma espécie de “rei filósofo” platônico. Chang chega a afirmar: “O desenvolvimento econômico requer pessoas como Henrique VII, que constroem um futuro novo, em vez de pessoas como Robinson Crusoé, que vivem o dia de hoje”. Em outras palavras, os indivíduos não conseguem, através da sua liberdade, gerar desenvolvimento econômico por conta própria. Eles precisam da sabedoria dos governantes, sob o auxílio dos conselheiros, Chang incluído. A arrogância vem à tona quando o autor diz: “O comércio é simplesmente muito importante para o desenvolvimento econômico para ser deixado por conta dos economistas do livre-comércio”. Ou seja, o comércio não deve ser livre, mas sim controlado pelos economistas “esclarecidos”, os desenvolvimentistas, como o próprio Chang. Apenas eles sabem quais são os “interesses da nação”, e estão dispostos a sacrificar seus próprios interesses por este fim.
O paternalismo está presente na mentalidade desenvolvimentista também. O governo é o pai que ama seu filho – o povo, e que irá cuidar dele. De fato, Chang usa a analogia para defender o protecionismo das “empresas nascentes”, alegando que cuida de seu filho de seis anos, protegendo-o da concorrência até sua maturidade. Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, não faria uso de uma metáfora diferente. De fato, esses paternalistas são mesmo os “pais dos pobres”, já que suas políticas costumam parir muita pobreza.
Em um abuso da linguagem orwelliana, Chang chega a afirmar que, “paradoxalmente, a política de livre-comércio reduz a liberdade dos países em desenvolvimento que a praticam”. Bota paradoxo nisso! Como um povo pode perder liberdade ao receber mais liberdade para escolher de quem comprar os bens e serviços demandados, independente da nacionalidade do vendedor? Eis um mistério que somente o “duplipensar” pode explicar.
Chang entende os problemas da gestão estatal, como o uso do dinheiro da “viúva”, o orçamento ilimitado e a falta de incentivos adequados. Mas ele acha que o mesmo se dá no setor privado, na mesma escala. Para defender esta estranha premissa, ele cita exemplos de fracassos no setor privado, como a WorldCom, e supostos casos de sucesso de empresas estatais, como a Petrobrás e Embraer no Brasil, e a POSCO na Coréia. Ele apela para a falácia de usar alguns casos isolados para concluir algo generalizado. Além disso, ele ignora o custo de oportunidade, ou seja, como teriam sido utilizados os recursos drenados pelo governo para sustentar por tanto tempo essas estatais. Como já alertava Bastiat, existe aquilo que se vê e aquilo que não se vê. Para a Petrobrás atingir uma tecnologia de ponta em águas profundas, quanto custou ao país suas décadas de monopólio garantido pelo governo? Como estaria o setor atualmente se o governo tivesse permitido a livre concorrência desde cedo, incluindo empresas estrangeiras? O caso da Embraer é ainda mais enganoso: o governo sustentou a empresa deficitária por anos, e apenas com sua privatização ela realmente deslanchou. A POSCO foi privatizada como um conglomerado bastante ineficiente, que investia em diversos setores sem ligação alguma.
A inversão que Chang faz em relação ao foco no longo prazo é total. Para ele, apenas o governo tem esse foco, enquanto o capitalista quer somente o lucro imediato. É justamente o contrário. O político foca nas próximas eleições, pois precisa ser eleito para sobreviver como político; enquanto o capitalista foca na maximização do valor presente dos fluxos de caixa, muitas vezes distantes no tempo.
Para Chang, entre as principais causas da corrupção estão a baixa receita tributária do governo e os salários baixos dos funcionários públicos (que no Brasil ganham, na média, o triplo do que ganha o setor privado). Reduzir as regulamentações, a burocracia e a quantidade de recursos que transita pelo governo levaria a um aumento da corrupção! Ele diz com todas as letras: “A corrupção normalmente existe porque há muitas forças de mercado, não poucas”. A Rússia que o diga! Ou o Brasil também, um país com problema crônico de corrupção e um governo totalmente inchado. Chang  parece defender o uso de sanguessugas para curar a leucemia.
Chang se coloca como o “bom samaritano” em defesa dos países pobres, mas, na verdade, ele é apenas o defensor dos ricos dos países pobres. Seu discurso nacionalista e protecionista seria abraçado com empolgação pelos grandes empresários da FIESP, por exemplo, interessados em barrar a livre concorrência que vem de fora. Nenhum “lobista” dos grandes grupos de interesse dos países pobres poderia contar com um apoio mais sintonizado que aquele oferecido por Chang. Após expor tantas falácias, pode-se concluir apenas uma coisa: com “bons samaritanos” como o senhor Chang, os pobres dos países subdesenvolvidos não precisam de inimigos!

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Ha-Joon Chang: um debate sobre suas teses - Ricardo Piccoli vs PRAlmeida

Recebi, hoje (28/12/2012), a correspondência abaixo, cujo autor parece não ter lido sequer a atribuição inicial da transcrição da resenha que fiz em meu blog de resenhas de livros, e que pertence a um outro autor que não este modesto escriba que assina esta nota introdutória.
Como o Ricardo Piccoli se engana de interlocutor, não me cabe responder em nome de outrem.
Sugiro apenas que ele:
1) Compre um óculos de grau, pois deve ter algum problema de miopia;
2) Leia com atenção o que pretende criticar, o que ele não parece ter feito, sequer no título e no autor em destacado, que transcrevo aqui para seu esclarecimento e iluminação:
O Mito do Protecionismo Esclarecido
Rodrigo Constantino
 3) Tente formular ideias com um pouco mais de clareza, coerência e ordem no pensamento, pois não consigo entender qual é o seu ponto, exatamente, ao defender Ha-Joon Chang (que poucos acadêmicos ingleses ou americanos levam a sério), sem articular corretamente seus muitos conceitos e teorias.
4) Cresça mais um pouco, para ser menos afoito em distribuir lições confusas de história econômica; manifestamente ele não conhece a história do desenvolvimento alemão ou americano, ou da própria Coreia, mas pretende criticar Adam Smith.
5) Não misture alhos com bugalhos...
Paulo Roberto de Almeida

Mensagem recebida: 

On Dec 28, 2012, at 08:59 PM, Ricardo Piccoli <piccoli@xxxxxxx.xxx> wrote:
Li no blog do seguinte endereço: http://praresenhas.blogspot.com.br/2009/02/218-desconstruindo-ha-joon-chang-um.html, de 28 Fevereiro de 2009, sua crítica titulada “Desconstruindo Ha-Joon Chang, um samaritano simplesmente equivocado”, escrito por sua pessoa. Já faz quase 4 anos que foi escrito. Não sei se mudaste de ideia, mas, como ainda está lá, criticá-lo-ei.
A despeito do teu extenso currículo, o qual demonstra que és uma pessoa inteligente, tua análise do Chang é pobre e eivada de maus juízos de valores. Desculpe-me, serei direto e franco, sem misericórdia. Nesse quesito, farei uso de uma lógica quase Calvinista e Malthusiana. Por outro lado, já seguindo uma lógica dialética, considero que até uma pessoa inteligente pode se deixar cegar por ideologias defendidas com arraigada paixão. Parece ser esse o teu caso.
No início, utilizas uma pobreza de juízo de valores ao “acusar” (e antes que reclames que é “fato”m a tua colocação tem “cheiro” de acusação) Bresser Pereira de ser o ministro do congelamento da era Sarney. Ora, Senhor Paulo Roberto, tu mesmo sabes que o Bresser Pereira é muito mais do que isso. Seja inteligente na tua crítica. Não diminua o argumento contrário, para engrandecer o teu. E, sempre, lembre-se do seguinte ditado, dito por Vitor Hugo: “palavras amargas indicam causa fraca”. Essa é minha contribuição inicial à tua análise. Aproveite as próximas.
Primeiro
Vou começar por List (Friedrich List) e não por Chang. Tu enxergas List apenas como mercantilista e reduz a importância dele a esse fato (bastante discutível, por sinal). Em poucas palavras, List nunca foi um teórico da economia como Smith, Marthus, Ricardo, Marx, Mill e outros tantos. Talvez esteja mais próximo de Schumpeter no estilo “mais focado”. List nunca quis fazer teoria econômica. O que ele estudava era o seguinte: POR QUE ALGUMAS NAÇÕES SE DESENVOLVEM E OUTRAS NÃO? Respondido isso (ou encontrada uma ideia sobre isso), dedicou-se à próxima questão: O QUE A ALEMANHA TEM QUE FAZER PARA RECUPERAR SEU ATRASO?
Ou seja, List nunca quis fazer nenhuma teoria e buscar algumas verdades universais (de maneiras a contribuir com a ciência) sobre a Economia. Ele buscou a realidade da Alemanha e a ela se dedicou. Assim, defendeu o protecionismo (que os Ingleses fizeram muito, que a Europa faz muito e que os EUA, disfarçadamente, também faz); defendeu o mercantilismo ou a exploração das colônias ou outros países menos avançados (ou seja, tudo que os países centrais fazem) e uma política voltada ao crescimento da indústria em detrimento dos atrasos de um país agrário e sem classe média (os milicos alemães criaram uma classe média “a porrete” e induziram a Aelmanha à modernidade)
E, adivinha o que aconteceu: A ALEMANHA SE TORNOU A POTÊNCIA EUROPÉIA QUE FOI DESTRUÍDA DUAS VEZES E CONTINUA NADANDO DE BRAÇADA NA ECONOMIA MUNDIAL.
Entende, agora, porque o Chang “segue” o List? Com esse entendimento, tens ideia, ainda, de continuar fazendo essa crítica mesquinha e infantil ao List e ao Chang? Entenda um pouco mais de história econômica e do pensamento econômico e extrairás melhores resultados das tuas leituras. Essa é a segunda contribuição. Enjoy it.
Segundo
Chang (ou List) nunca diz que “a privatização, a redução da burocracia, um Banco Central menos politizado, a meta de inflação, a abertura comercial e o equilíbrio orçamentário do governo seriam medidas prejudiciais aos países pobres”.
Primeiramente, há que se avaliar cada um desses itens. Avalie cada variável individualmente, à moda Ricardiana (ou cartesiana, de Renè Descartes). Vá ao individual e, depois, volte ao todo (à moda Marxista).
Privatizações podem ser interessantes, desde que se tenha um horizonte bem claro da economia, tanto ao nível de maturidade de investimento como em prioridade e foco desenvolvimento. Possível isso em países com pouca cultura e em baixo estágio de desenvolvimento (econômico, cultural, social, intitucional)?
Redução da burocracia, Banco Central menos politizado e uma certa dose de controle na meta de inflação é de interesse de todos. Mas, dialeticamente falando, depende do contexto de cada economia. Como sair-se com uma receita (de bolo?) preparada para cada sociedade, independente do seu estágio de desenvolvimento? Oooops... não vais dizer que o que é bom pros EUA é bom pro Brasil, não é?
Abertura comercial deve vir na esteira de uma análise da maturidade da economia doméstica. Equilíbrio orçamentário tem que ser precedido por uma avaliação das condições de investimento e da demanda, à moda Keynesiana, da economia doméstica.
Por favor, leia mais sobre isso. E, principalmente, não empobreça tua análise ao jogar variáveis e dados sem se dar ao trabalho de avaliar.
Terceiro
Veja essa passagem de tua análise, corroborando minha pecha de que tua análise é pobre e infantil:
O desenvolvimentismo de Chang é muito similar ao nacionalismo de List,economista que representava o oposto daquilo que Adam Smith defendia. Contra a “mão invisível” do mercado, seria necessária a “mão benevolente” do governo. O protecionismo de Chang é o mercantilismo com um véu novo. Retirando o eufemismo, resta o velho dirigismo estatal, a crença de que o Estado deve assumir a locomotiva do desenvolvimento econômico.
Friedrich List já dizia que somente onde o interesse dos indivíduos estivesse subordinado ao da nação, haveria desenvolvimento decente. A nação era vista como um ente concreto, com desejos e interesses, que justificavam inclusive o sacrifício dos indivíduos. Quem saberia dizer quais os verdadeiros interesses da nação? Com certeza, os “sábios”, entre eles List. A glória futura da nação valeria mais que tudo. Nesse aspecto ao menos, Hitler não foi
muito criativo.
Em primeiro lugar, acrescentar Hitler à tua análise (mesmo que queiras aproveitar o mote dos “interesses da nação”) é infantil e tendencioso. Muito pobre para uma pessoa inteligente (que é diplomata, por sinal) como tu. Certo?
Na continuação, a defesa neoliberal e a mão-invisível do Adam Smith só existem nos contos da carochinha (ou no Instituto Von Mises) e na tua cabeça. Acorde, pois tua dose de Rohypnol foi forte. Observe que os interesses da nação sempre foram fortes nos países mais liberais (que tu mesmo conheces), como EUA e UK. Onde está o mérito de tua análise?

Bom, o resto da tua análise está pior ainda, com passagens acusativas ao marxismo e outros pontos de vista pobres. Porém, não farei a crítica hoje. Se responderes a esse e-mail, voltarei a ensinar a esse “Doutor em Ciências Sociais” e “Mestre em Planejamento Econômico” a fazer uma melhor análise da História Econômica e uma melhor avaliação do Pensamento Econômico. Assim, clareando um pouco mais sua ideologia neoliberal, distorcida e tendenciosa. Não creio.....

Hasta
Ricardo Piccoli