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segunda-feira, 12 de junho de 2023

POLÍTICA EXTERNA: A diplomacia ‘repentista’ de Lula - José Eduardo Faria (Jota)

POLÍTICA EXTERNA

A diplomacia ‘repentista’ de Lula

Com a cabeça nos tempos da Guerra Fria, presidente tornou assertiva sua posição à esquerda na economia e na geopolítica

José Eduardo Faria
Jota, 11/06/2023

 

diplomacia de Lula
Lula recebe presidentes sul-americanos em Brasília. Crédito: Ricardo Stuckert/PR

Para um presidente da República inteligente mas pouco instruído que optou por priorizar a política externa, deixando a política interna para seus ministros, os primeiros cinco meses de mandato estão corroendo rapidamente sua autoridade e credibilidade. Com a cabeça nos tempos da polarização da Guerra Fria, Lula tornou assertiva sua posição à esquerda quer na economia quer na geopolítica.  

Na economia, por exemplo, criticou a hegemonia do dólar no comércio mundial, na viagem à China. Também defendeu a criação de uma moeda alternativa ao fim de seu encontro em Brasília com 11 presidentes de países sul-americanos em maio. “Por que hoje um país precisa correr atrás de dólar para exportar, quando ele poderia exportar em sua própria moeda, e os bancos centrais certamente poderiam cuidar disso”, indagou Lula na ocasião, não escondendo a pretensão de ser porta-voz dos interesses da região. 

No plano político, surpreendeu ao afirmar nos Emirados Árabes Unidos que o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, é tão culpado quanto o presidente russo, Vladimir Putin, pela invasão da Ucrânia pela Rússia. E, depois de dizer que “a construção da guerra foi mais fácil do que será a saída da guerra, porque a decisão da guerra foi tomada por dois países”, defendeu a criação de uma espécie de G20 político com o objetivo de restabelecer a paz naquela região. 

Além disso, durante o encontro com os líderes sul-americanos, também surpreendeu ao conceder ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, uma reunião fora da agenda oficial. Na ocasião, afirmou que esse país – classificado pelos relatórios da OEA como “um regime autocrático e sem garantias de liberdades fundamentais” – estaria sendo alvo de “narrativas, em referência às afirmações de que é uma ditadura”. E criticou Washington por desclassificar a legitimidade de Maduro e impor sanções contra seu regime. No dia seguinte, o presidente do Uruguai, um conservador, e do Chile, um esquerdista, protestaram. Não se pode tapar o sol com a peneira, violação de direitos humanos não é narrativa, alegaram. 

Muitas foram as críticas sobre os equívocos e bobagens que Lula vem cometendo e falando em matéria de política externa. Uma das mais felizes foi a do diplomata brasileiro Marcos Azambuja, ex-embaixador na França e na Argentina e ex-secretário-geral do Itamaraty. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, ele lembrou, no plano formal, que diplomacia é feita com “palavras medidas milimetricamente, com precisão conceitual e rigor semântico”. E também disse que Lula vem primando pela desatenção à linguagem e pela imprecisão conceitual. “Não pode improvisar linguagem em temas de terreno minado”, como os de política externa. No plano substantivo, Azambuja enfatizou que a falta de “disciplina das ideias” do presidente está levando o Brasil a ter uma política externa “espontânea e improvisada”, o que tende a reduzir a estatura internacional do país. 

Como as críticas foram respeitosas e procedentes, e Lula ainda tem três anos e meio de mandato, o mais sensato é que ele as ouça enquanto é tempo. Sem ser pretensioso nem professoral, eu sugeriria a ele que aproveitasse uma manhã de sábado e se concentrasse por pelo menos meia hora na leitura de um discurso pronunciado na tribuna da Câmara em 26 de agosto de 1959 por um deputado que mais tarde seria ministro das Relações Exteriores e da Fazenda. Trata-se de San Tiago Dantas, e sua fala disse respeito a uma reunião de chanceleres sul-americanos da qual participou. Ocorrida no Chile, ela foi convocada para discutir uma política externa dos países da América do Sul capaz de defender a democracia em plena Guerra Fria.

A base do documento aprovado foi a proposta brasileira, apresentada pelo então titular do Itamaraty, ministro Horácio Lafer. A proposta enfatizava a importância do império da lei, da independência dos Poderes e do controle da legalidade dos atos de governo. Defendia eleições livres e classificava como antidemocrática a perpetuação dos governantes no poder. Enfatizava a importância dos direitos individuais, do direito de manifestação do pensamento e da liberdade de imprensa.

O argumento básico do documento era que apenas com base nesses princípios os governos sul-americanos conseguiriam adotar políticas capazes de promover o desenvolvimento econômico, reduzir desigualdades sociais e assegurar a independência dos povos. “Se o florescimento da democracia na comunidade regional depende do desenvolvimento econômico e se este por sua vez depende da cooperação internacional, é claro que entre esta e o fortalecimento da democracia há uma relação de causalidade indisfarçável, à qual cumpre dar adequada expressão jurídica”, concluiu San Tiago, um nome até hoje respeitado por suas posições avançadas em seu tempo, ao justificar e defender a posição  brasileira. 

Publicado em 1983 pela Câmara na série Perfis Parlamentares, um livro com 695 páginas, esse discurso tem 16 páginas. Mas, se concentrar atenção somente nas páginas 281, 282 e 283, Lula poderá seguir, para seu próprio sucesso político e em benefício do país, o conselho de Azambuja: “Na defesa de valores e de interesses os países precisam usar da sobriedade nas palavras e na moderação no tom; com valores, interesses, sobriedade e moderação costuma-se errar menos”, disse ele, após propor ao presidente que não se comporte mais como um repentista – o cantor nordestino que responde com naturalidade o verso que virá enquanto ainda está cantando o verso anterior. “Na diplomacia, esse é um exercício perigoso”, concluiu.

sábado, 4 de junho de 2022

Dois projetos de nação: o autoritário e o democrático - José Eduardo Faria (Estado da Arte)


O PROJETO DE NAÇÃO E O LABIRINTO VISTO DE CIMA

JOSÉ EDUARDO FARIA (ESTADO DA ARTE), 3/06/2022

BRASILPOLÍTICA

 

Deixada de lado desde o advento da globalização dos mercados entre o final do século 20 e o início do século 21, período em que a ideia de governo inerente ao Estado keynesiano foi substituída pela ideia de governança subjacente ao Estado liberal, a expressão “projeto de nação” foi recolocada novamente na agenda por duas iniciativas colidentes entre si.

(Projeto de Nação do Instituto Villas Boas)

 

A primeira iniciativa tem origem nos meios militares — mais precisamente, do grupo que apoia o governo Jair Bolsonaro e acredita, de alguma forma, se manterá no poder até 2035. Ela foi tomada pelo Instituto General Villas Bôas, criado pelo grupo do general Eduardo Villas Bôas, que foi o comandante do Exército entre 2015 e 2019, em parceria com o Instituto Federalista e o Instituto Sagres — Políticas e Gestão Estratégica Aplicadas. Com o título Projeto de Nação, coordenado por um general e revisado por três militares, dois embaixadores e dois professores, ele apresenta um cenário prospectivo do país até 2035, a partir de seis perspectivas: “temas estratégicos e incertezas críticas, consultas áugures (especialistas e outros públicos), cenários prospectivos, “cenário foco”, objetivos nacionais (políticos), diretrizes político-estratégicas e óbices”.

A segunda iniciativa foi tomada por dois economistas, Fabio Giambiagi e Ricardo de Menezes Barboza, que aproveitaram a comemoração dos 70 anos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para lançar um livro no qual técnicos de carreira de diferentes áreas decidiram apresentar uma agenda econômica e socioambiental. Com o título Labirinto visto de cima — saídas para o desenvolvimento do Brasil e publicado pela Editora Lux, a obra foi redigida por especialistas que analisaram a transição de uma economia fechada rumo a uma economia mais integrada ao mundo, porém com baixo crescimento ao longo das últimas décadas e incapaz de aproveitar todo seu potencial de desenvolvimento.

O lançamento desses dois trabalhos às vésperas do início da campanha presidencial certamente balizará as discussões e as propostas de alguns candidatos ao Palácio do Planalto. Seu denominador comum é a identificação e análise dos gargalos estruturais que têm impedido o Brasil de sair do labirinto em que se encontra e a apresentação de propostas para removê-los. Evidentemente, as duas iniciativas refletem o ethosdas corporações a que seus autores pertencem. Enquanto a primeira expressa o viés estamental dos militares, especialmente do Exército, a segunda apresenta o pensamento das novas gerações de profissionais do desenvolvimento lotados num órgão de excelência da administração pública, como é o caso o BNDES.

Se o ponto comum dos dois trabalhos é a ideia de um “projeto de Nação”, mencionada expressamente no primeiro e subentendida no segundo, no restante só há divergências. A começar pelo fato de que, enquanto um trabalho prima por seu rigor técnico e sólida fundamentação, o outro é inteiramente comprometido por uma visão de mundo ideologizada e limitada — uma visão nacionalista e fortemente autoritária, que condiciona a transformação do país à “revitalização dos valores morais, éticos e do civismo”, ao fortalecimento do “sentimento de Pátria”, ao “combate à revolução cultural”, à “promoção do sentimento coletivo de Nação” e à “valorização dos vultos históricos do Brasil, sem viés ideológico, a fim de resgatar a identidade nacional”. Por isso, a distância entre as duas iniciativas é abissal.

Embora toque em pontos importantes para o desenvolvimento socioeconômico, o primeiro trabalho não só carece de objetividade, precisão técnica e propostas sofisticadas, como também não consegue deixar de lado o mantra da denúncia da “ideologização nociva”, ao mesmo tempo em que propõe como alternativa visões ingênuas, simplórias e distorcidas da realidade atual. Por exemplo, enquanto o livro dos técnicos do BNDES chama atenção para a necessidade de iniciativas voltadas à ampliação da exposição da economia brasileira à abertura do comércio internacional, o documento dos militares, explicitando o nacionalismo de cartilha de seus autores, opõe-se a um fato concreto — a globalização dos mercados de bens, serviços e finanças, acelerada após a crise do petróleo na década de 1970.

(Fabio Giambiagi e Ricardo Barbosa (orgs.): Labirinto Visto de Cima)

“O globalismo é um movimento internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la; [para] determinar, dirigir e controlar tanto as relações internacionais quanto as dos cidadãos entre si”. “No centro do movimento está a Elite Financeira Mundial, ator não estatal constituído por megainvestidores, bancos transnacionais e outros entes megacapitalistas […]. O argumento central do globalismo é de que lidar com problemas cada vez mais complexos, como crises econômicas, proteção do meio ambiente, direitos humanos e outros, requer um processo centralizado de tomada de decisões em nível mundial. É comum a Elite cooptar, aliar-se ou se alinhar com potências mundiais, organismos internacionais e ONGs […]”. No Brasil, “é visível a união de esforços entre determinadas entidades nacionais e o movimento globalista, inclusive com o apoio de relevantes atores internacionais, visando a interferir nas decisões de governantes e legisladores, especialmente em pautas destinadas a conceder benesses a determinadas minorias, em detrimento da maioria da população, a exercer ingerência em nosso desenvolvimento econômico,  usando pautas ambientalistas a reboque de seus interesses e não pela necessária preservação da natureza, e a provocar crises que enfraquecem a Nação em    sua busca pelo desenvolvimento”.

Entre outras afirmações inverossímeis, o documento afirma que, em sua “face mais sofisticada”, o globalismo deflagrou o “ativismo judicial político-partidário”, levando parte do Judiciário, do Ministério Público e das Defensorias Públicas a atuarem “sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição brasileira”. Essa é uma posição de quem desconhece o funcionamento do Judiciário, não acompanhou as mudanças do direito contemporâneo, não sabe que a interpretação de uma lei não é uma atividade mecânica e ignora as técnicas mais elementares de hermenêutica jurídica[1].

Problema semelhante também pode ser visto no capítulo do documento relativo à educação. Os técnicos do BNDES apontam a importância de investimento em capital humano, por meio de uma reforma educacional capaz de melhorar as condições de chegada das novas gerações ao mercado de trabalho formal. Ao beneficiar jovens dos setores mais desfavorecidos da sociedade, um ensino público de qualidade reduziria desigualdades sociais gritantes, classificadas pelos autores como “uma chaga moral da sociedade” brasileira. Já o documento dos militares, entre outras platitudes, como a proposta de melhorar “as técnicas pedagógicas de emprego de recursos tecnológicos”, fala em “aperfeiçoar a formação profissional, ética e cívica dos docentes”, em “coibir a ideologização nociva do ensino” e desprezar “propósitos de ideologias de qualquer natureza”. Em que medida essa linha programática não é, ela própria, uma ideologia autoritária, avessa à pluralidade valorativa que deve nortear o sistema de ensino? No caso do ensino superior, além disso, esse pessoal se esquece de que, por princípio, a universidade não deve ser voltada apenas para a tarefa de produzir profissionais destinados a exercer tarefas específicas, limitadas pela própria especialização, nem converter a ciência em força produtiva. Pelo contrário, por ser um centro de formação, de produção do conhecimento, de geração de cultura e de liberdade de criação, com capacidade de colocara e equacionar problemas, ela deve ser livre, laica e independente. Seu papel é articular saberes, desenvolver pensamento crítico, forjar lideranças intelectuais e, acima de tudo, descortinar horizontes — em vez de encurtá-los ou até de fechá-los.

Em seu livro, os técnicos dessa ilha de racionalidade, que é o BNDES, apontam medidas para melhorar a qualidade dos gastos públicos. Entre os problemas relativos à má qualidade dos gastos públicos está a corrupção. Sobre este tema, o trabalho dos militares afirma, mais uma vez, que a maneira de combatê-la é… “coibir a pregação ideológica radical nos três níveis da educação”, reduzindo a corrupção e a improbidade na administração pública a uma simples questão ideológica. Para assegurar a retomada do crescimento, os técnicos do BNDES também propõem “uma nova construção política” com base em quatro itens: alterar a regra do teto de gastos; promover um aumento “modesto” da carga tributária; formular “uma política social inteligente e adequadamente dosada”, por meio de programas para beneficiar trabalhadores informais; e medidas de ajuste para reforçar a austeridade fiscal. Um pacto com esses objetivos só pode ser obtido por meio de amplo diálogo com todos os setores sociais, baseado nas regras democráticas e no respeito às prerrogativas do Legislativo.

Neste ponto, o documento dos militares parece avesso a esse diálogo amplo. O texto parte da premissa de que é preciso “fortalecer a democracia por meio de reformas institucionais que saneiem as disfuncionalidades do Estado, neutralizem a corrupção, o poder de ideologias radicais de qualquer natureza e valorizem o civismo”. Propõe o aperfeiçoamento dos sistemas político e jurídico, a fim de que a “a liberdade” possa ser “exercida com responsabilidade”, sem, contudo, explicitar quem é que define o que é responsabilidade. Defende a neutralização do “poder político e social das correntes de pensamento radical, sectárias, não democráticas, que dividem a Nação”. Afirma que a percepção de liberdade no país está sendo “confundida com liberalidade e sem cidadania e espírito cívico”. Diz que o “sistema jurídico” está submisso a lideranças corrompidas, motivo pelo “não garante leis iguais para todos e permite que elas sejam manipuladas por grupos poderosos”. Aponta como óbice para a democracia a “falta de lideranças atuantes e de movimentos sociais organizados que contribuam […] para que a grande maioria da população adepta da liberdade econômica com responsabilidade social e conservadora evolucionista, faça valer sua vontade e seu pensamento político”, desqualificando assim os demais movimentos sociais como interlocutores. E, de modo obsessivo, volta a tratar como problemas a “revolução cultural que vem comprometendo a coesão nacional” e o “enfraquecimento do sentimento de Pátria e de Nação, com tendência à divisão da sociedade, pela crescente submissão dos interesses da coletividade nacional aos que atendem aos anseios de grupos minoritários”.

São afirmações perigosas. De um lado, porque são retrógradas, desprezando o pluralismo do mundo contemporâneo. Se ficasse fora dessa revolução cultural, o Brasil seria um país isolado, como uma Coreia do Norte. De outro lado, porque essas afirmações justificam a tutela da sociedade por um estamento que se arvora, sem legitimidade, em uma autoridade moderadora acima das instituições democráticas. Esse pessoal se esquece de que a República brasileira é fruto de um golpe militar, origem que viciou o regime político-democrático desde seu início. Como lembra José Murilo de Carvalho, aquela “intervenção militar tornou-se um modelo, quase uma norma recorrente ao longo da República. Esta origem criou entre os militares a ideia de que eles são os pais da República. Que eles são os responsáveis pela República e herdaram o direito, como corporação, de intervir na política quando assim o desejarem”[2].

Além de uma visão de mundo da altura de um rodapé, esse é o maior problema do documento dos oriundos de uma corporação que, desde 1889, têm dificuldades para conter ao desejo de ir muito além de sua missão constitucional específica. Ele cheira a naftalina, dada sua associação ao preâmbulo dos Atos Institucionais 1, 2 e 5 da ditadura de 64, nos quais os militares se diziam autorizados a legislar em nome de uma “autêntica ordem democrática”, porém assumindo-se como instrumento de neutralização de quem fizesse oposição à “ordem revolucionária”. O problema é que, quando esse tipo de Estado define o inimigo, ele se converte em Estado totalitário. Quando um regime político quer que todos cantem pelo mesmo missal, não há democracia. Quem mudar de hino terá de sair da igreja, espontaneamente ou pela força. Nesse sentido, falta aos autores do projeto de Nação dos militares o que os técnicos do BNDES, ao entreabrirem o encontro entre o pensamento econômico e a realidade do mundo atual, têm de sobra — capacidade de compreender a história como processo, levando em conta a tensão entre continuidades e rupturas. Em seu livro, eles defendem ideias e instituições para melhorar a realidade, o que traz novos problemas — e estes, para serem enfrentados, exigem pesquisas, estudos e embates acadêmicos com atores que são expressamente desqualificados pelos autores do documento dos militares.

Essa é a distância abissal entre as duas iniciativas que recolocam na agenda a ideia de definição de um projeto de país. No limite, o documento dos militares — o estamento que almeja estar por trás do Estado e que, apesar de ser uma instituição permanente, deixa-se confundir com o atual governo, que é transitório — caminha na linha do pereat mundi, fiat ordo, sob comando deles, é claro. Já para os técnicos do BNDES está claro que economia e democracia são coisas sérias; suas propostas manifestam a consciência de que a responsabilidade política é uma via de mão dupla, tendo como marco fundamental um Estado que ouve e responde ante os poderes constituídos e os setores articulados da sociedade e que se prepara para atender às demandas e pressões da sociedade.

 

Notas:

[1] Ver, nesse sentido, meu artigo “Judicialização da política, ativismo judicial e tensões institucionais”, in Journal of Democracy, edição de novembro de 2021.

[2] Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, publicada em 5 de novembro de 1989, p. 13.


(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 03 de junho de 2022: https://estadodaarte.estadao.com.br/projeto-nacao-labirinto-cima-jef/ )

 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O debate entre presidenciáveis, o revigoramento da democracia e o futuro do país - José Eduardo Faria


O debate entre presidenciáveis, o revigoramento da democracia e o futuro do país

por José Eduardo Faria

Não fosse o candidato que disputará a reeleição, em 2022, conhecido por sua ignorância, pela compulsão à mentira, pelo desprezo ao diálogo construtivo e pela obsessão em desqualificar adversários, os debates entre os candidatos à presidência da República poderiam recolocar na ordem do dia alguns temas esquecidos, como, por exemplo, os relativos à capacidade organizadora, indutora e administrativa do Estado. Como esses temas são fundamentais para o futuro do País, sua discussão poderia ajudar a revigorar a democracia após a deterioração e a polarização do debate público que marcaram a vida política após o pleito de 2018.

Um dos temas mais importantes é a ideia de planejamento, o que exige a definição de objetivos, a fixação de metas, a formulação de indicadores, o estabelecimento de estratégias de longo prazo e a coordenação das ações necessárias. A ideia de planejamento é fundamental, dados os efeitos sociais dramáticos decorrentes da política de austeridade fiscal sem critérios sociais adotada por este e pelo governo que o antecedeu. Trata-se de uma política que, por estar focada somente na solvência do poder público, promoveu cortes orçamentários sem escalas de prioridade e sem consideração de suas repercussões sociais.

Ao ampliar o alcance da política de privatizações, convertendo em negócio privado o que até então eram determinados serviços públicos, essa política hiper-responsabilizou cada cidadão pelo seu destino, independentemente de sua condição social. A premissa era de que cada cidadão dependeria de suas capacidades, de seu empenho e de seus méritos, o que, no fundo, acaba culpando os mais desvalidos por sua situação. E como isso ocorreu num contexto de reformas trabalhistas, de enxugamento de direitos sociais e de baixas taxas de crescimento econômico, o resultado foi darwinista. Ou seja, preservou o poder dos que já tinham autonomia econômica, financeira e patrimonial e excluiu os que já estavam marginalizados.

Para reverter esse cenário de agravamento das desigualdades, uma vez que essa hiper-responsabilização reduz dramaticamente a capacidade dos cidadãos de controlarem os fatores que determinam sua situação pessoal e social, o planejamento é fundamental. Contudo, para que uma política de planejamento seja posta em pratica, é preciso que os candidatos apresentem seu projeto de poder para o País e que tenham consciência de que parte de seus esforços, em matéria de planificação, somente oferecerá resultados no governo do sucessor daquele que for eleito em 2022.

Outro tema não menos importante diz respeito ao modo como os candidatos encaram as funções do poder público, a regulação das atividades socioeconômicas e a atuação dos agentes econômicos privados. Esse tema implica a distinção entre função pública, por um lado, e negócio, por outro. Como dizia Rolf Kuntz, que considero até hoje meu professor de filosofia política, embora seja possível analisar uma função pública em termos de eficiência e de rentabilidade financeira, esses critérios não podem ser determinantes para sua manutenção. No plano político, a ideia de função pública envolve a noção de responsabilidade. E, se as atividades na prestação de um serviço público podem ser transferíveis, a responsabilidade não pode. Por isso, concluía ele, a questão politicamente importante é determinar o que é ou não é a responsabilidade estatal.

Nas duas ou três últimas gestões presidenciais, falou-se muito a respeito disso. No entanto, os dirigentes governamentais se comportaram de modo bastante contraditório. Os mais recentes pareceram desconhecer até mesmo que, em determinadas áreas da máquina administrativa, somente o poder público tem autoridade efetiva para decidir e regular. Igualmente, pareceram ignorar que um dos aspectos básicos da implementação e execução de políticas públicas diz respeito, justamente, aos meios e instrumentos públicos.

Por causa desse desconhecimento e da incapacidade de compreender a diferença entre público e privado, esses dirigentes se imiscuíram de modo abrupto no livre jogo de mercado, tentando controlar preços e interferindo desastrosamente na administração das políticas de tarifas e preços. Com isso, passaram por cima de atos jurídicos perfeitos, desprezando assim o fato de que garantias contratuais são inerentes ao Estado democrático de Direito. Ao agir desse modo, enfraqueceram a segurança jurídica, que é fundamental para que o País possa atrair os investimentos de que necessita para retomar o crescimento.

Esses governantes também se revelaram incapazes de diferenciar funções que são intrínsecas do poder público — e, portanto, não intransferíveis, das funções governamentais que podem ser executadas por meio de convênios com a iniciativa privada. Neste caso, especificamente, o problema foi que não souberam conjugar a lógica do lucro privado (já que os empresários concessionários de determinados serviços públicos encaram a concessão como negócio), com os objetivos de prestação de serviços públicos, que são de interesse de toda a sociedade. Não compreenderam que o público é mais do que a interação das ações privadas, o que leva à distinção entre Estado e mercado. Esqueceram-se de que o próprio livre jogo de mercado necessita de uma ordem legal que ultrapasse a perspectiva particular.

Associado aos demais, um terceiro tema envolve a questão do tempo, que é de longo prazo em matéria de planejamento, e de curtíssimo prazo, com relação ao funcionamento dos mercados financeiros. À medida que as novas tecnologias de comunicação propiciaram as decisões em tempo real, tomadas online, e os investimentos no setor industrial passaram a depender cada vez mais de emissão de ações, de bancos de investimento e de fundos de pensão, os mercados financeiros ganharam enorme poder de pressão sobre os governos e os bancos centrais dos Estados.

A história recente revela que os capitais financeiros se tornaram hegemônicos no campo da economia, a ponto de influenciar e — até de capturar — o braço monetário dos Estados. Baseando-se nas premissas do máximo de lucro no menor período de tempo possível, e com o máximo de segurança e o menor risco igualmente possível, os mercados financeiros levaram os Estados a perder progressivamente o horizonte de longo prazo. Dito de outro modo, com o avanço da globalização econômica, que restringe a autonomia nacional para definir seus próprios impostos e seus mecanismos regulatórios, dada a liberdade que os capitais têm para cruzar fronteiras, os mercados impuseram essas premissas como critérios aferidores de rentabilidade e atratividade dos investimentos.

Por operar basicamente no horizonte de curto prazo, perseguindo ganhos correntes crescentes e se protegendo somente de riscos imediatos, os mercados financeiros levaram as decisões alocativas dos Estados a ficarem distantes da sociedade, não sendo mais resultantes — ainda que indiretamente — de escolhas coletivas por meios democráticos. Desse modo, à medida que as escolhas coletivas foram sendo substituídas por escolhas seletivas dos mercados financeiros, a capacidade de planejamento dos Estados foi ficando progressivamente comprometida.

Este é um dos dilemas que os presidenciáveis têm de enfrentar e que tem de ser discutido nos debates eleitorais. Como disse acima, para um país tão desigual e excludente como o Brasil, o planejamento é fundamental para a reorganização da economia, propiciando a remoção dos gargalos estruturais que impedem uma distribuição de renda mais equitativa e acesso a serviços públicos, principalmente nas áreas de educação e saúde — condições necessárias, ainda que não suficientes, para propiciar inclusão socioeconômica.

Um último tema, entre outros não menos importantes, diz respeito à formulação de uma política externa em um mundo de incertezas globais — algo que foi desprezado por um governo que chegou até a afirmar, por meio de seu chanceler, que não haveria problema algum caso o país se tornasse um “pária” nas relações internacionais. Política externa envolve uma discussão sobre a afirmação ou renúncia às interconexões globais após a pandemia, especialmente por causa da interdependência do comércio e da produção de fármacos, nos quais os países avançados se especializavam em produtos sofisticados de alta tecnologia, vendendo-os para mercados mais remuneradores, como os países desenvolvidos e em desenvolvimento,  enquanto países tecnologicamente menos avançados e com baixo custo de produção forneciam peças, equipamentos e remédios mais simples.

A excessiva dependência de bens intermediários e a concentração de sua produção na China foram uma armadilha para as cadeias globais de valor, que são redes complexas que propiciam vantagens de custos baixos, alta escala e flexibilidade espacial. Esses processos de produção fragmentados e espacialmente espalhados em vários continentes, com diferentes estágios localizados em distintos países mostraram sua vulnerabilidade quando a Covid chegou à China e o governo destinou sua produção para atender à demanda interna, restringindo suas exportações, apoiando fornecedores internos e deixando de cumprir suas obrigações contratuais com os demais países. Em resposta, as chancelarias dos países que ficaram sem receber o que haviam contratado passaram a ver na produção local de vacinas uma forma de defesa de seus respectivos interesses nacionais.

Ao lado de questões fundamentais, como desenvolvimento sustentável financiado pela emissão dos chamados “títulos verdes e sociais”, ação climática, segurança alimentar, comércio internacional e tecnologias fundamentais, a política externa agora também envolverá a discussão sobre o multilateralismo num mundo pós-Covid, num contexto de crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Envolve, igualmente, discussões sobre como neutralizar riscos geopolíticos daí advindos, que podem abrir caminho para tensões internacionais.

Esses são alguns temas fundamentais que presidenciáveis têm de debater, para que o País possa revigorar sua democracia e os cidadãos tenham plena condição de escolher em quem votar. Contudo, pelo perfil do candidato que disputará a reeleição, com seu círculo de assessores primatas civis e militares, esse debate poderá não ocorrer. E, caso essa previsão não se confirme, esse debate, infelizmente, correrá o risco de acabar em picadeiro de circo por quem, no exercício do poder, vem confundindo a presidência da República com o banco da Praça da Alegria.

José Eduardo Faria

José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

domingo, 24 de outubro de 2021

José Eduardo Faria: a democracia em questão - O Estado da Arte, 24/10/2021

O debate entre presidenciáveis, o revigoramento da democracia e o futuro do país

Por José Eduardo Faria

O Estado da Arte, 24/10/2021

 

Não fosse o candidato que disputará a reeleição, em 2022, conhecido por sua ignorância, pela compulsão à mentira, pelo desprezo ao diálogo construtivo e pela obsessão em desqualificar adversários, os debates entre os candidatos à presidência da República poderiam recolocar na ordem do dia alguns temas esquecidos, como, por exemplo, os relativos à capacidade organizadora, indutora e administrativa do Estado. Como esses temas são fundamentais para o futuro do País, sua discussão poderia ajudar a revigorar a democracia após a deterioração e a polarização do debate público que marcaram a vida política após o pleito de 2018.

Homem de terno e gravata olhando para o lado

Descrição gerada automaticamenteJair Bolsonaro, que em 2018 se negou a participar dos debates

Um dos temas mais importantes é a ideia de planejamento, o que exige a definição de objetivos, a fixação de metas, a formulação de indicadores, o estabelecimento de estratégias de longo prazo e a coordenação das ações necessárias. A ideia de planejamento é fundamental, dados os efeitos sociais dramáticos decorrentes da política de austeridade fiscal sem critérios sociais adotada por este e pelo governo que o antecedeu. Trata-se de uma política que, por estar focada somente na solvência do poder público, promoveu cortes orçamentários sem escalas de prioridade e sem consideração de suas repercussões sociais.

Ao ampliar o alcance da política de privatizações, convertendo em negócio privado o que até então eram determinados serviços públicos, essa política hiper-responsabilizou cada cidadão pelo seu destino, independentemente de sua condição social. A premissa era de que cada cidadão dependeria de suas capacidades, de seu empenho e de seus méritos, o que, no fundo, acaba culpando os mais desvalidos por sua situação. E como isso ocorreu num contexto de reformas trabalhistas, de enxugamento de direitos sociais e de baixas taxas de crescimento econômico, o resultado foi darwinista. Ou seja, preservou o poder dos que já tinham autonomia econômica, financeira e patrimonial e excluiu os que já estavam marginalizados.  

Para reverter esse cenário de agravamento das desigualdades, uma vez que essa híper-responsabilização reduz dramaticamente a capacidade dos cidadãos de controlarem os fatores que determinam sua situação pessoal e social, o planejamento é fundamental. Contudo, para que uma política de planejamento seja posta em pratica, é preciso que os candidatos apresentem seu projeto de poder para o País e que tenham consciência de que parte de seus esforços, em matéria de planificação, somente oferecerá resultados no governo do sucessor daquele que for eleito em 2022.  

Outro tema não menos importante diz respeito ao modo como os candidatos encaram as funções do poder público, a regulação das atividades socioeconômicas e a atuação dos agentes econômicos privados. Esse tema implica a distinção entre função pública, por um lado, e negócio, por outro. Como dizia Rolf Kuntz, que considero até hoje meu professor de filosofia política, embora seja possível analisar uma função pública em termos de eficiência e de rentabilidade financeira, esses critérios não podem ser determinantes para sua manutenção. No plano político, a ideia de função pública envolve a noção de responsabilidade. E, se as atividades na prestação de um serviço público podem ser transferíveis, a responsabilidade não pode. Por isso, concluía ele, a questão politicamente importante é determinar o que é ou não é a responsabilidade estatal. 

Uma imagem contendo texto, pessoa, homem, segurando

Descrição gerada automaticamentePlanejamento é atividade essencial na esfera pública

Nas duas ou três últimas gestões presidenciais, falou-se muito a respeito disso. No entanto, os dirigentes governamentais se comportaram de modo bastante contraditório. Os mais recentes pareceram desconhecer até mesmo que, em determinadas áreas da máquina administrativa, somente o poder público tem autoridade efetiva para decidir e regular. Igualmente, pareceram ignorar que um dos aspectos básicos da implementação e execução de políticas públicas diz respeito, justamente, aos meios e instrumentos públicos.

Por causa desse desconhecimento e da incapacidade de compreender a diferença entre público e privado, esses dirigentes se imiscuíram de modo abrupto no livre jogo de mercado, tentando controlar preços e interferindo desastrosamente na administração das políticas de tarifas e preços. Com isso, passaram por cima de atos jurídicos perfeitos, desprezando assim o fato de que garantias contratuais são inerentes ao Estado democrático de Direito. Ao agir desse modo, enfraqueceram a segurança jurídica, que é fundamental para que o País possa atrair os investimentos de que necessita para retomar o crescimento.

Esses governantes também se revelaram incapazes de diferenciar funções que são intrínsecas do poder público – e, portanto, não intransferíveis, das funções governamentais que podem ser executadas por meio de convênios com a iniciativa privada. Neste caso, especificamente, o problema foi que não souberam conjugar a lógica do lucro privado (já que os empresários concessionários de determinados serviços públicos encaram a concessão como negócio), com os objetivos de prestação de serviços públicos, que são de interesse de toda a sociedade. Não compreenderam que o público é mais do que a interação das ações privadas, o que leva à distinção entre Estado e mercado. Esqueceram-se de que o próprio livre jogo de mercado necessita de uma ordem legal que ultrapasse a perspectiva particular.

Associado aos demais, um terceiro tema envolve a questão do tempo, que é de longo prazo em matéria de planejamento, e de curtíssimo prazo, com relação ao funcionamento dos mercados financeiros. À medida que as novas tecnologias de comunicação propiciaram as decisões em tempo real, tomadas on-line, e os investimentos no setor industrial passaram a depender cada vez mais de emissão de ações, de bancos de investimento e de fundos de pensão, os mercados financeiros ganharam enorme poder de pressão sobre os governos e os bancos centrais dos Estados.

Pessoas andando na calçada

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaO domínio dos mercados financeiros é global

A história recente revela que os capitais financeiros se tornaram hegemônicos no campo da economia, a ponto de influenciar e – até de capturar – o braço monetário dos Estados. Baseando-se nas premissas do máximo de lucro no menor período de tempo possível, e com o máximo de segurança e o menor risco igualmente possível, os mercados financeiros levaram os Estados a perder progressivamente o horizonte de longo prazo. Dito de outro modo, com o avanço da globalização econômica, que restringe a autonomia nacional para definir seus próprios impostos e seus mecanismos regulatórios, dada a liberdade que os capitais têm para cruzar fronteiras, os mercados impuseram essas premissas como critérios aferidores de rentabilidade e atratividade dos investimentos.

Por operar basicamente no horizonte de curto prazo, perseguindo ganhos correntes crescentes e se protegendo somente de riscos imediatos, os mercados financeiros levaram as decisões alocativas dos Estados a ficarem distantes da sociedade, não sendo mais resultantes – ainda que indiretamente – de escolhas coletivas por meios democráticos. Desse modo, à medida que as escolhas coletivas foram sendo substituídas por escolhas seletivas dos mercados financeiros, a capacidade de planejamento dos Estados foi ficando progressivamente comprometida.

Este é um dos dilemas que os presidenciáveis têm de enfrentar e que tem de ser discutido nos debates eleitorais. Como disse acima, para um país tão desigual e excludente como o Brasil, o planejamento é fundamental para a reorganização da economia, propiciando a remoção dos gargalos estruturais que impedem uma distribuição de renda mais equitativa e acesso a serviços públicos, principalmente nas áreas de educação e saúde – condições necessárias, ainda que não suficientes, para propiciar inclusão socioeconômica.

Um último tema, entre outros não menos importante, diz respeito à formulação de uma política externa em um mundo de incertezas globais – algo que foi desprezado por um governo que chegou até a afirmar, por meio de seu chanceler, que não haveria problema algum caso o país se tornasse um “pária” nas relações internacionais. Política externa envolve uma discussão sobre a afirmação ou renúncia às interconexões globais após a pandemia, especialmente por causa da interdependência do comércio e da produção de fármacos, nos quais os países avançados se especializavam em produtos sofisticados de alta tecnologia, vendendo-os para mercados mais remuneradores, como os países desenvolvidos e em desenvolvimento,  enquanto países tecnologicamente menos avançados e com baixo custo de produção forneciam peças, equipamentos e remédios mais simples.

Janela com vista para cidade

Descrição gerada automaticamenteA produção chinesa impacta o mundo 

A excessiva dependência de bens intermediários e a concentração de sua produção na China foram uma armadilha para as cadeias globais de valor, que são redes complexas que propiciam vantagens de custos baixos, alta escala e flexibilidade espacial. Esses processos de produção fragmentados e espacialmente espalhados em vários continentes, com diferentes estágios localizados em distintos países mostraram sua vulnerabilidade quando a Covid atingiu a China e o governo destinou sua produção para atender à demanda interna, restringindo suas exportações, apoiando fornecedores internos e deixando de cumprir suas obrigações contratuais com os demais países. Em resposta, as chancelarias dos países que ficaram sem receber o que haviam contratado passaram a ver na produção local de vacinas uma forma de defesa de seus respectivos interesses nacionais.  

Ao lado de questões fundamentais, como desenvolvimento sustentável financiado pela emissão dos chamados “títulos verdes e sociais”, ação climática, segurança alimentar, comércio internacional e tecnologias fundamentais, a política externa agora também envolverá a discussão sobre o multilateralismo num mundo pós-Covid, num contexto de crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Envolve, igualmente, discussões sobre como neutralizar riscos geopolíticos daí advindos, que podem abrir caminho para tensões internacionais.        

Esses são alguns temas fundamentais que presidenciáveis têm de debater, para que o País possa revigorar sua democracia e os cidadãos tenham plena condição de escolher em quem votar. Contudo, pelo perfil do candidato que disputará a reeleição, com seu círculo de assessores primatas, civis e militares, esse debate poderá não ocorrer. E, caso essa previsão não se confirme, esse debate, infelizmente, correrá o risco de acabar em picadeiro de circo por quem, no exercício do poder, vem confundindo a presidência da República com o banco da Praça da Alegria.

(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 24 de outubro de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jose-eduardo-faria-debates-democracia/)