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sexta-feira, 29 de março de 2024

Na antessala do horror: lembranças do golpe de 1º de abril - Roberto Amaral

A visão da esquerda e dos derrotados em 1964. Creio que todas as visões são relevantes para a informação, o esclarecimento e o debate sobre nossas crises políticas. PRA 

Na antessala do horror: lembranças do golpe de 1º de abril
Roberto Amaral*
      Desde 1961, com a derrota imposta pelo povo nas ruas ao golpe militar que intentara impedir a posse de Jango, vivíamos um processo histórico tenso. Hoje, com o distanciamento de tantos anos, diríamos que tenso, mas muito rico, atravessado que foi por uma realidade em construção, povoada por dúvidas e receios, muitos sonhos e muitas esperanças.
      Com os termos de hoje, diria que vivíamos de forma aguda o teatro de uma grande polarização, a que nos persegue há 500 anos, entre a necessidade do avanço (então o pleito das reformas de base, ainda hoje por serem realizadas) e a resistência do statu quo, nome de fantasia do atraso e da concentração de renda, de escandalosa injustiça. Acreditávamos, a esquerda de então, na revolução brasileira, vista como em processo, e nos considerávamos construtores de uma nova sociedade. A direita, por seu turno, a um tempo negava a ruptura e a conciliação, e direita e esquerda disputavam aliança com os militares, de um lado os “entreguistas”, de outro, o nosso campo, os legalistas, herdeiros do Marechal Lott.
   Em certos momentos tínhamos a sensação de tocar com as mãos o horizonte socialista, nossa utopia de sempre, e ao mesmo tempo confiávamos no governo João Goulart, o que punha rédeas em nosso deslumbramento revolucionário juvenil. Muitos achavam inconcebível os velhos generais abrirem as portas do poder para sargentos, políticos de esquerda, “empresários progressistas”, estudantes e camponeses sem terra. Nossos ideólogos no PCB ensinavam que a primeira fase da revolução seria em aliança com a burguesia nacional. Contava-se, de igual, com a estabilidade do governo Jango, assentado em larga maioria no Congresso e festejado pelo apoio popular, apesar da campanha ferrenha que lhe movia a grande imprensa, sempre reacionária. E,  sobretudo, confiávamos na sua base de sustentação na caserna, que se dizia forte. Era o tal do “dispositivo militar do general Assis Brasil”. 
O país discutia as reformas de base, a plataforma-síntese de nosso projeto e o divisor de águas da política. O país era uma só assembleia, e discutia-se seu destino em auditórios por todo o país. Certamente alcançou-se, naquela altura do século passado, o momento de maior nível de educação das massas e organização popular. Eram os nossos anos dourados, após o sucesso de JK;  os anos do Cinema Novo, de Maria Esther Bueno, nossa tenista campeã, do Brasil bicampeão mundial de futebol ao lado do Brasil das ligas camponesas, da UNE, da Frente Parlamentar Nacionalista, das centrais sindicais em ebulição e do crescimento do movimento popular. Mesmo a Guerra Fria nos favorecia, e foi um marco a viagem de Iuri Gagarin. 
Mas a lua tem duas faces: nossos avanços eram acompanhados pelo avanço dos centros da reação que se espalhavam Brasil afora, como o IBADE (encarregado de financiar as candidaturas de direita nas eleições brasileiras) e o IPES (formulador da doutrina golpista). Nas eleições de 1962 a direita comprometida com o golpe havia eleito os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o chamado centro dinâmico do país, aproximadamente 40% da população e 60% da economia nacional.
 A partir de 1963 sentíamos, sem clareza quanto ao significado, que algo impalpável se movia no quadro tradicional da política brasileira: a rebelião dos sargentos em Brasília e o motim dos marinheiros no Rio. Eram fatos bastante objetivos para serem ignorados.  
O recuo de Jango, retirando do Congresso o pedido de decretação do estado de sítio, que dizia amparado no apoio dos ministros militares e com o qual pretendia atingir o governador Carlos Lacerda, da Guanabara, seu principal opositor, era evidente indicador de conflito no seu núcleo mais íntimo: contra o estado de sítio moveram-se Arraes e Brizola, a Frente Parlamentar Nacionalista, a UNE e as centrais sindicais.  
Consolidava-se a ideia da iminência de um golpe, quando sonhávamos com a revolução. No Rio, ex-vice-presidente da UNE, fui conversar com José Serra, então presidente da entidade e quadro político influente. A conversa confluiu para o plano nacional, e para o golpe, que não se expunha,  mas se sentia.  Indagado sobre sua visão, o líder estudantil que seria ministro de Estado no governo FHC e governador de São Paulo, respondeu algo que ainda relembro, passados tantos anos: "- O golpe será dado. A dúvida é simplesmente sobre a iniciativa, se da direta ou da esquerda”. Voltaria a ver o Serra de longe, daí a poucos dias,  discursando no palanque do comício de 13 de março. Passadas dezenas de anos, nos reencontramos no Recife, no velório de Miguel Arraes. Ele não se recordava do diálogo. Mas, de fato, a esquerda, ou pelo menos setores da esquerda vinculados ao Partidão, já contavam com o golpe, a nosso favor, mas comandado pelos generais, e cuidavam de tomar assento. Estava na esquina o governo democrático-nacionalista e era a hora de negociar sua composição. Algo como dois dias passados do encontro com Serra, deparo-me com Antônio Carlos Peixoto, intelectual de primeira linha do PCB, assistente da fração da UNE: nosso amigo Fco. Faria, vice-presidente, iria representar a entidade em reunião que começaria a definir nosso futuro ministério. O Partidão teria dois votos, o seu, da organização, e aquele que chegaria no galope da entidade estudantil. O golpe não seria das Forças Armadas, nem contra o povo.
O comício da Central foi um marco e mudou muitas cabeças, inclusive a minha. Antes reticente em relação às vias de conquista do poder, passei a me incorporar ao contingente dos conquistados pela demonstração de força para uma imediata e irresistível conquista do poder.
No dia 17 de março, havia o que comemorar. Era o aniversário do Partidão (que desfrutava de plena liberdade e de uma legalidade fatual), e a festa foi uma conferência de Prestes, nosso secretário-geral e líder quase mítico. A “festa” foi no 9º andar da ABI, e constituiu de longa e didática preleção sobre o processo social brasileiro e a presença dos militares em nossa história. Relembro, de memória, três pontos que ainda hoje considero os de maior relevo: I) os militares brasileiros eram oriundos da classe-média, e por isso refletiam o sentimento nacional; II) as forças armadas eram legalistas e democráticas, e, corolário, III) não havia o menor risco de golpe de Estado militar. O que, dito pelo grande comandante, valia para nós como verdade irrefutável. Saímos empolgados e fomos tomar chope no bar Vermelhinho, bem em frente à ABI. No dia seguinte, Prestes repetiria sua pregação no grande comício do Pacaembu, em São Paulo. A tradução de tudo isso foi a absoluta desmobilização das forças populares.
Dois dias passados subíamos ao Nordeste, Marcos Lins, dirigente da AP,  eu e outro personagem cuja imagem e nome a história e a memória não registraram. Marcos Lins levava cartas para dois governadores da região, e eu para o governador Virgílio Távora, do Ceará, com quem me encontrei logo na  noite de minha chegada. Por indicação do movimento sindical e partidos de esquerda,  eu exercia, a partir de 1963, uma assessoria política no gabinete do governador, quadro da UDN, amigo a um só tempo de Jango (era o que se dizia) e do banqueiro Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais e figura das mais decisivas na maquinação do golpe - que, não sabia Prestes e não sabíamos nós, logo  saltaria às ruas.
No dia seguinte, estou restabelecendo contatos e tentando montar uma linha de informações, quando sou chamado ao gabinete do governador. Quando entro em sua sala, ele está saindo deu uma pequena cabine que mandara instalar, “para ter mais privacidade em suas ligações “com Brasília e Rio”. Após os rápidos cumprimentos de praxe, dirige-se a mim: “- Doutorzinho (assim ele identificava todos os colaboradores jovens), seu amigo Jango acaba de nos foder: mexeu na única coisa em que não se mexe neste país, a hierarquia militar (o governador se referia ao discurso do Presidente aos sargentos no Automóvel Clube do Rio, na noite do dia 30/03). O golpe está dado e eu não posso fazer nada por vocês Vou tentar salvar meu mandato. Saia daqui e vá avisar aos seus amigos”.
Saí, atordoado. Mesmo assim falei com quem pude, saiu de circulação quem pôde, mas não havia nenhuma retaguarda, nem opção tática: estávamos preparados, política e estrategicamente, tão-só, para assumirmos a direção revolucionária. Caminhávamos ou corríamos sem direção, como formigas expulsas do formigueiro. E houve muita resistência, talvez de ordem mais psicológica do que política, a aceitar a desagradável informação que eu levava. Ela desmontava as fantasias de há pouco. Estávamos todos sem chão, e, pior de tudo, sem saber o que fazer, sem ter a quem consultar. No auditório da Fênix Caixeiral, no centro de Fortaleza, antigo e liberal estabelecimento de ensino fundado por comerciários, sucediam-se discursos inflamados. O sentimento geral era de um repeteco de agosto de 1961 e da resistência democrática.  Mas não surgiu um novo governador Brizola, não teve voz uma nova Campanha da Legalidade. 
No dia seguinte dessa longa noite, chego cedo à Faculdade de Direito e me dou com algo que semelhava uma festa. Os companheiros comemoravam o levante do general Mourão, porque, diziam, era o que “o gal. Brasil esperava para cortar a cabeça dos golpistas”. Achei mais prudente ir à casa do governador. Era fundamental obter informações. Lá o encontrei pressionado por uma delegação de empresários que cobravam uma declaração sua de apoio ao golpe e promessa de repressão a qualquer agitação popular. Imperturbável, Virgílio, coronel do exército, repetiu não poucas vezes que seu papel era o de garantir a ordem, o que faria. Depois se soube que oficiais do 23º Batalhão de Caçadores, que seria o centro da repressão, trabalhavam naquele transe pela sua cassação. Mas o governador era sobrinho do Marechal Juarez Távora. 
Finda a pressão dos endinheirados, ficamos ali, alguns políticos e auxiliares diretos do governador. Tentando recuperar o ânimo enquanto via diante de mim o desmoronamento de um sonho que até há pouco tínhamos como realizado, virei-me para meu amigo deputado Pontes Neto, um quadro de escol, e comentei, querendo ser otimista, mas carente de convicção, e ao mesmo tempo em busca do que quer que fosse que me tirasse das previsões pessimistas que me assaltavam:  “- Pontes, isso é como um mandato que nos foi tomado. Em cinco anos tudo volta ao seu leito...” “- Não... - respondeu o sábio parlamentar - isso é coisa para dez a quinze anos”. Pontes seria um dos primeiros presos. Com o peso da realidade me oprimindo, tomei o rumo que as circunstâncias me permitiam, mas até minhas mãos chegou, na manhã seguinte, o jornal O Estado, com meu retrato na capa ao lado do deputado Moisés Pimentel, “empresário progressista”, em um encontro com camponeses promovido pelo Círculo Operário Católico, e a legenda: “Comunista até no gabinete do governador”. Ficou claro para mim que o alvo era o governador, e tive tempo para entender que Fortaleza ficara muito pequena. Logo chegaram os idos de abril, que pareciam não ter fim  pois não nos deixavam  uma só fresta para contemplarmos o horizonte. Nossas dores falavam de dias luciferinos, e falavam claramente as imagens de Gregório Bezerra, espancado, torturado, seminu sendo arrastado, corda no pescoço, exibido como presa de carniceiros pelas assustadas ruas do Recife.  Depois, muito depois, seriam as histórias de Mário Alves, nosso dirigente (torturado até a morte nas dependências da Polícia do Ex;ercito, no Rio de Janeiro), e do menino Stuart Angel (trturado até a  orte nas dependência da Base Aerio do Galeão. 
 Dois saudosos amigos, Luciano Magalhães e Aquiles Peres Mota, percorriam de carro as saídas de minha cidade. 
 

***

O 31 de março segundo Almino Afonso-  Um dos livros mais instigantes e informativos sobre o golpe é o 1964, na visão do ministro do trabalho de João Goulart, da autoria de Almino Afonso, parlamentar, jurista e advogado de primeira água. Bem editado, foi pessimamente comercializado, e assim não obteve a repercussão merecida. Documenta  a abulia do governo, e a farsa em que sempre se constituiu o dispositivo militar do Gal. Brasil, Chefe da Casa Militar do Presidente. Leitura sempre indispensável, e mais do que nunca preciosa nesses 60 anos da instauração da mais longeva e brutal ditadura militar brasileira.
Marielle Franco - Com as prisões efetuadas no último domingo, 24/03, vem à tona o grau de desintegração institucional do Rio de Janeiro, já por muitos comentada, e ganha impulso o desnudamento da trama que levou ao assassinato brutal da vereadora e seu motorista, em 2018. Diante de indícios de que as motivações do crime não se circunscreveram a questões paroquias, e seu planejamento pode ter envolvido figuras estreladas da República, surge a pergunta: até onde irão as investigações?


* Com a colaboração de Pedro Amaral


sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Lula e os riscos do imobilismo - Roberto Amaral (comentário inicial Paulo Roberto de Almeida)

 Raramente concordo com Roberto Amaral e quase nunca partilho de suas análises eivadas de recomendações ingenuas tipicas da esquerda estatista, mas permito-me transcrever seu artigo mais recente (9/11/2923), apenas para sinalizar o grau de apreensão nas hostes favoráveis ao governo lulooetista em torno da gravidade da situação, que ele sinaliza como “imobilismo”, e eu como ausência completa de consciência sobre o que fazer, além de mais do mesmo, que no caso quer dizer intervenção estatal no mais alto grau. Vsmos a pique?

Paulo Roberto de Almeida (10/11/2023)


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Lula e os riscos do imobilismo

Roberto Amaral*

Há exatamente um ano a república afastava de sua intimidade a ameaça do projeto protofascista, representada pela possibilidade concreta da reeleição do capitão Bolsonaro.  Como a república de 1946 com seu liberalismo weimariano era a resposta lógica da democracia à ditadura do “Estado Novo”, o retrocesso encaminhado em 2018 (desdobramento, por seu turno, do golpe de 2016), seria o reverso da plenitude democrática oferecida pelo regime da Constituição de 1988, vencidos os 21 anos da ditadura militar instaurada em 1º de abril de 1964, cuja ideologia, contudo,  renascera como chorume.

Em 2022 o fantasma que nos rondava como presságio de uma tragédia iminente era a promessa do aprofundamento do regime autocrático, de índole militar e reacionária, intrinsecamente autoritário e antinacional que haviam sido os quatro anos do bolsonarismo, doravante – e isso nos atordoava os democratas de todos os matizes – referendado pelo pronunciamento da soberania popular. E sabemos todos como foi difícil transpor o Rubicão do dia 30 de outubro de 2022!  Ao fim e ao cabo logramos proclamar  a vitória da  institucionalidade democrática (que assim muito fica a dever à esquerda brasileira), e ao invés da conservação autoritária temida, no 1º de janeiro quem subiu a rampa foi a promessa de um governo nascido nas lutas sociais e marcadamente comprometido com a centro-esquerda brasileira  que começou a se articular a partir das memoráveis jornadas  de 1989.

Temos, pois, o que comemorar, mas esta não é a história toda, pois na difícil vitória eleitoral, fecho de uma campanha despolitizada em país já naquela altura tanto ou mais polarizado quanto em 1964, não houve espaço para o debate ideológico, de modo que não se ensejou às forças socialistas e de esquerda em seu painel mais amplo a exposição de suas críticas ao sistema capitalista e a defesa de suas teses fundamentais. Pôde assim  disputar o voto (a despolitização foi a um tempo uma imposição das condições da campanha e uma opção tática), e fê-lo bem, mas não lhe foi possível conquistar “corações e mentes”. O objeto, afinal, não era a construção de uma nova sociedade, mas impedir a continuidade do bolsonarismo na presidência. E, certificaram os fatos, não se tratava de tarefa fácil. Ademais, os sucessos eleitorais a partir de 2002  se mostraram mais concretos e desfrutáveis que as vitórias políticas, como a de 1989, e logo a esquerda trocou o proselitismo de longo prazo pelos frutos do imediato ensejados pelo eleitoralismo.

Por todas as razões demonstráveis, o fato objetivo que se oferece à análise é que, vencidos o pleito, a intentona de janeiro e as primeiras tentativas de desestabilização do novo governo, e nada obstante o que as investigações policiais e judiciárias vêm revelando da domesticidade do bolsonarismo, a direita fascista e golpista, seu campo, permanece forte, organizada e politicamente ativa, mantendo  vínculos os mais estreitos com a caserna, a Faria Lima, o agronegócio e o neopentecostalismo atrasado, enquanto partilha o controle do Congresso com o Centrão e todas as catervas de assaltantes do erário, e por seu intermédio manipula o Orçamento da União. Governa Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nada menos de 67%do PIB nacional! (Dados do IBGE para 2020). Esta é a república em que se transformou o sonho dos constituintes de 1988, e, nas contingências presentes, ponderadas as ilusões e os pesadelos,  ainda devemos  saudar sua sobrevivência e protestar o compromisso de defendê-la.

Eleito, Lula é jungido a governar em um regime transformista, que, se não é mais o presidencialismo da ordem constitucional, ainda não é um parlamentarismo de fato, ou  consensual (como foi o do Segundo Reinado), embora o presidente da república de hoje, para governar ou simplesmente conservar a faixa,  seja obrigado a compartilhar o poder executivo com o presidente da Câmara dos Deputados, como se fôra este um primeiro-ministro, funções nas quais se investe (exercendo-as de fato), diante da fragilidade parlamentar da base  governista. Mas não o faz por espírito republicano, senão para mercadejar votos de curral inominável  em troca do acesso à máquina pública que enseja ao administrador desonesto o acesso às tetas  do erário. 

Como lembrava o sábio Conselheiro Acácio, as consequências  vêm depois, mas, em nosso caso, elas já marchavam a galope no rasto das negociações dos feiticeiros do Planalto. Incumbidos de adquirir votos na câmara e no senado ao preço da cessão de ministérios (e verbas) e bancos sociais como a Caixa Econômica Federal ao Centrão, terminaram pondo em jogo a própria alma do governo, mergulhado em crise existencial.  

O ministério de hoje – um caleidoscópio de forças de esquerda, centro, direita e uma caterva de parasitas dos mais diversos matizes e especialidades  é, já, um ministério velho e envilecido pelas aquisições bastardas. Sem unidade política, ideológica ou programática, sem unidade de princípios, será sempre um ministério pro tempore, aberto a implantes e transplantes sempre que uma votação decisiva atiçar o ânimo chantagista do Centrão e seu Capo dei capi, que acumula essas relevantes funções com as de presidente da Câmara dos Deputados.

Na insegurança tática, a alternativa presente parece ser adiar as decisões estratégicas. Fica para outros tempos menos severos, por exemplo, a decisão hamletiana entre arrocho fiscal ou déficit zero (cobrado pela banca e seus porta-vozes na grande imprensa),  ou o investimento visando ao desenvolvimento econômico, de cujo pleito Lula fez uma razão de vida.

Este é o lado mais visível da crise do poder institucional, mas o presidente precisa ouvir, e ouvir com muita atenção, e em seguida ceder  generosos espaços de interesse a outros agentes consócios do sistema, embora alheios à soberania popular: a caserna, a Faria Lima,  o Banco Central e os grandes meios de comunicação, aparelhos ideológicos do grande capital. Ou seja, o Palácio do Planalto repousa tão-só naqueles dias em que deveria receber as centrais sindicais, os movimentos sociais de modo geral. Mas se esse vácuo enseja um pouco de distensão, consideradas as pautas sempre pesadas do dia a dia, a ausência dos trabalhadores, ademais de indicar as limitações de nosso pacto democrático, deixa o presidente mais distante das forças populares, o único instrumento de que dispõe para vencer o círculo de giz caucasiano no qual o sistema pretende retê-lo, como se a correlação de forças hoje desfavorável fosse ora uma fatalidade decretada pelo Olimpo, ora  um determinismo histórico, em todo caso irremovível pela forca humana. Quando não é nem uma coisa nem outra, senão uma contingência que sempre pode ser enfrentada por um governo originário da mobilização das grandes massas poulares.  

Muitas podem ser as razões do erro, do nosso governo,  nas relações com o castro,  que por fim estimulam a indisciplina e favorecem   o espírito de corpo que  caracterizam o papel do militar brasileiro, desafeito aos seus deveres constitucionais e funcionalmente desaparelhado para a única função que justifica o alto custo da caserna: a defesa nacional. Mas é difícil entender a decisão política de legitimar o abominável art. 142 da Constituição, ao invocá-lo para uma vez mais levar as forças armadas  – repetindo erros crassos – a atuarem no Rio de Janeiro como auxiliares da polícia fluminense no combate ao crime organizado, no contrapelo de sua destinação precípua, que é a defesa da soberania nacional. E o faz em momento o mais grave do cenário internacional, conturbado pelas disputas hegemônicas que acentuam a crise geopolítica internacional, com guerras localizadas, guerras de conquista e violações de soberania que podem estar anunciando um conflito generalizado, em face do qual as forcas armadas de hoje, peças do Estado brasileiro, não têm condições, sejam politicas e ideológicas (é notória a dependência do pensamento de nossos oficiais em relação ao Pentágono), sejam de treinamento, qualificação e domínio tecnológico de armas e munições

O fascismo cresce no mundo. No Brasil, avança contando com o apoio das instituições estatais, da omissão das esquerdas de um modo geral, o que se revela na renúncia à ação e ao combate ideológico, tendência que se vem consolidando desde os avanços eleitorais de 2002, que ainda hoje servem de defesa para os fracassos políticos de 2016 e 2018,  que tanto contribuíram para o desastre eleitoral que foram as últimas eleições proporcionais, levando o atual governo  pagar o preço que se conhece e o preço que se pode  estimar.

 O quadro conhecido de nosso continente -- vivemos as angustiantes dúvidas quanto ao pleito argentino --  indica uma quase reversão de expectativas, se considerarmos o mapa político contemporâneo face os dois primeiros governos Lula e o mandato de Dilma. Vale lembrar o desastre que foi Pedro Castillo no Peru, e o fiasco que vai se mostrando o governo do jovem e promissor Boric, um e outro exemplos fracassados de tentativa de composição pelo alto com a direita vencida nas urnas, o que parece ser, até aqui,  nossa perigosa estratégia, mais que uma contingência. Em contraste, Petro vai se firmando na Colômbia com uma postura de enfrentamento, mesmo sem maioria no Congresso. A inclinação pela direita indica o curso presente   do Uruguai, do Equador e da Bolívia, sugerindo dificuldades para o Mercosul, para o BRICS e para a política integracionista de Lula e Amorim, da maior relevância para nosso país. 

É importantíssimo participar do processo eleitoral (até porque trata-se, igualmente, de um processo político que abre espaço à politização), mas seu objetivo não pode esgotar-se na pura e simples disputa do voto, pois seu objeto é enfrentar a batalha política e ideológica.

Assim deve ser entendida a memorável eleição de 2022, e assim se coloca para os socialistas a defesa do governo Lula: o contingente necessário que não encerra a luta toda, que deve ser a revolução social, o objetivo que não pode ser descartado.
 
 
* Com a colaboração de Pedro Amaral

 
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sexta-feira, 26 de maio de 2023

O presidencialismo emparedado - Roberto Amaral

 O presidencialismo emparedado

 
Roberto Amaral*
 
O mais famoso dos bardos ingleses valeu-se do disfarce da grande poesia para fazer ciência política. Em uma de suas peças mais lidas, recitadas, ouvidas e vistas (Rei Lear, de 1602), William Shakespeare conta-nos a história de um velho soberano que, descuidado das lições de Maquiavel (O príncipe, 1532), e desprotegido de virtù após ser abandonado pela fortuna, decide, na velhice, pretendendo salvá-lo, dividir seu vasto e poderoso império com suas filhas, igualmente herdeiras. A novela é conhecida: o poder se desconstitui, e o monarca, despido da coroa, conhece o mais vil opróbio, até salvar-se na loucura. A interpretação da saga é, claro, obra aberta. Uma delas pode ser esta: não faz a guerra (ou seja, não se defende), quem foge da adversidade.

Muitas vezes, para poder salvar o mandato, o governante cede o governo. Frequentemente, o dirigente político é levado a se curvar ao que os cientistas grafaram como “correlação de forças” e Ortega y Gasset (Meditaciones del Quijote, 1914) resumiria como o império das circunstâncias: “Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não me salvo nelas não me salvo a mim”. Parece ser este o desafio de Gabriel Boric, no Chile, governante de centro-esquerda (na origem eleitoral) impotente, em face das circunstâncias, para alterar a correlação de forças que se revela adversa, em país ainda polarizado tantos anos passados daquela que certamente vai para a história como a mais abjeta das abjetas ditaduras militares da América Latina. Impotente para levar a cabo um governo de avanços (promessa da campanha eleitoral), acossado por uma constituinte de extrema-direita, tende a seguir no cargo (ou, mais precisamente, a preservar o mandato), mas só podendo implementar, do programa com o qual se elegeu, a pequena parte que os donos do poder julgarem palatável.

Praz aos céus que não estejamos às portas de um recidiva da tragédia chilena, pois a história registra, sem  parcimônia, quantas batalhas foram perdidas simplesmente por não terem  sido travadas. A propósito, acusa-se Jango por não haver resistido em 1964 (para o que, supõe-se, teria apoio), e, para criticá-lo, todos se valem do exemplo de seu cunhado Leonel Brizola, pondo por terra a tentativa de golpe dos militares em 1961, simplesmente por a ele resistir.
 

Essas questões, ainda sem qualquer sorte de dramaticidade, se colocam em nossa história presente, com os impasses que se impõem ao governo Lula.

A conjunção entre o reacionarismo tout court (o atraso que nos persegue desde o período colonial) e o fisiologismo do baixo clero, gerenciado pelo presidente da Câmara dos Deputados, é um dos indicadores do esgarçamento institucional que se vem acentuando nos últimos anos, mais notadamente desde 2016, quando o Congresso Nacional, na contramão da ordem constitucional, se insurgiu contra a vontade da soberania popular, ditada no pronunciamento das urnas, assim atingindo de morte não apenas a reclamada independência dos poderes, mas os fundamentos da democracia representativa  um projeto que, entre nós, ainda  não passa de mera expectativa de futuro. 

Como falar em democracia em sociedade clivada por brutal desigualdade social?

Na década passada, após impedir a presidente Dilma Rousseff de governar, papel levado a cabo pela Câmara dos Deputados, o Congresso extinguiu-lhe o mandato legitimamente conquistado nas urnas, dizendo para a história que entre nós o império da soberania popular não salta das páginas da Constituição para a vida real. Era o golpe de 2016, cujas consequências ainda hoje padecemos. 

Formalmente vencidas as vicissitudes que se instalam em 2018, é eleito em 2022 um novo Congresso, que se afigura como um mostrengo, ainda mais reacionário que o antecedente, ainda mais preso, como craca sedenta, às tetas do erário. Fruto direto do esquema de corrupção que a crônica política identifica como “orçamento secreto”,  o Poder Legislativo de hoje, e nele cumprindo papel primordial a Câmara dos Deputados, é um leviatã insaciável na sua sede por mais poder, impondo-se como verdadeira ditadura sobre o executivo, cuja capacidade de ação é crescentemente limitada, como é limitada sua capacidade de formular políticas. Não se pode dizer que a história intenta repetir-se, mas é fora de dúvida que a este filme já assistimos.

O presidente da Câmara, vitorioso sempre que o governo perde ou a direita (de dentro e de fora de sua  base de apoio) ganha, diz que o governo precisa curvar-se ao “congresso empoderado” e negociar. O verbo negociar, como sabe o leitor, empresta-se aos mais variados entendimentos, e a acepção do jagunço das Alagoas não é a mais canônica. Reimposto por outros meios o teto dos gastos – o que inviabiliza o projeto lulista aprovado majoritariamente pelo eleitorado , alterada a estrutura dos ministérios para facilitar a ação dos grupos de pressão, ameaçados a defesa do meio ambiente e o mínimo de proteção às populações nativas, o presidente da Câmara confronta o Planalto, dizendo que o Congresso é governo, e, nestes termos, mais forte que o governo mesmo: “O congresso conquistou mais protagonismo nos últimos anos, é liberal e conservador e destoa do governo”. Este que se adapte, ou seja, que se adeque às novas circunstâncias de um presencialíssimo emparedado. 

capo porta-se, arrogante, como o toureiro que no meio da arena, cutelo em punho, chama a fera ferida, cansada, exangue, para a última partida. O recado é óbvio: ou o presidente Lula compõe com a direita (e como tal entenda-se o que se quiser), ou não governará. Ou, governará como  o novo rei da Inglaterra, levando a cabo projeto que não é o seu.

O processo em curso, montado à luz do dia, claramente, sem subterfúgios ou cerimônias, visa a reinstalar, no governo Lula, o governo rejeitado pelo eleitorado. Uma afronta à democracia que deve ser interpretada, julgada e enfrentada como o que de fato é, pois o chamado “terceiro turno” das eleições a que se reportam comentaristas políticos tem nome e sobrenome: golpe de Estado.

Na retaguarda, um ministério que, concebido com o justo objetivo de garantir estabilidade institucional (donde determinadas concessões) e governabilidade (donde outra série de concessões) não oferece hoje ao presidente nem a homogeneidade de que carece todo projeto de governo (que continua sendo um projeto do presidente Lula) e menos ainda o respaldo parlamentar que era sua justificativa. É um ministério velho de cinco meses, visivelmente cansado quando é tão óbvia a virulência dos adversários, pois a oposição parlamentar tem na sua retaguarda o grande capital.
 
      Perigosamente, a esquerda, e, a partir dela, o movimento social e as chamadas forças democráticas, progressistas ou não, bem como os ditos liberais (estes como sempre), submergem, e assistem, como plateia silenciosa, ao embate entre direita e extrema-direita, que passam a ocupar o proscênio.

Tudo isso enseja uma questão crucial: a tarefa fundamental das forças democráticas – portando para além da esquerda e dos liberais  é sustentar o governo Lula.
  
***
 
As mãos sujas – Henry Kissinger completará cem anos de idade no próximo sábado, e será amplamente festejado. Falar-se-á do estrategista que intermediou a abertura dos EUA para a China e buscou a détente com a URSS durante suas passagens como conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado de Richard Nixon. É preciso, contudo, fazer as contas dos horrores causados pelas conspirações, golpes e sabotagens que o teuto-americano planejou ou apoiou. Centenas de milhares – um milhão, talvez – de mortos em Bangladesh, Camboja e Timor Leste. Dezenas de milhares de mortos e torturados na guerra suja da Argentina e na ditadura pinochetista, no Chile. Democracias golpeadas. E é preciso lembrar que Kissinger, para sempre impune, sequer levado a julgamento, não agiu por conta própria, como um matador solitário, mas tramou atrocidades trabalhando para dois presidentes da nação que ainda ousa  apesar de toda evidência  se apresentar ao mundo como baluarte da democracia e dos direitos humanos, estabelecendo parâmetros com os quais muita gente boa, mundo afora, até hoje se orienta no cenário global.
 
Um sopro – Em meio a dúbias celebrações pela aprovação, na Câmara que aí está, do novo arcabouço fiscal, por meio do qual o governo Lula voluntariamente se lança a uma armadilha, merece destaque a declaração de voto assinada por 23 deputados, quase todos petistas, por meio da qual reiteram sua lealdade ao presidente da república, mas não se furtam em denunciar a trampa: "Lamentamos que ainda não tenha sido possível libertar o poder público do estrangulamento provocado pelos interesses do capital rentista, que busca subjugar o Tesouro [...] às custas do empobrecimento do povo brasileiro e da sangria de nossa economia".

Educação em perigo - Uma pergunta não quer calar: por que o Executivo não lutou, até aqui, para preservar o Fundeb, fabulosa conquista do primeiro governo Lula, sempre combatido pelo capital privatista, e que até mesmo Temer, o perjuro, deixou de fora das amarras impostas pela ortodoxia liberal?
 

 

* Com a colaboração de Pedro Amaral
 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Carta aberta a José Múcio Monteiro: perseguição ao Cel. Res. Marcelo Pimentel - Roberto Amaral

 Carta aberta a José Múcio Monteiro

Roberto Amaral
Caro amigo, 

Venho denunciar a perseguição política que de forma insidiosa e covarde, como toda perseguição política,  escalões superiores do exército do Estado brasileiro movem contra oficial que se tem destacado pela defesa da legalidade democrático-republicana. Legalidade seguidamente ofendida pelos seus algozes, e cujo império cumpre restabelecer. São esses, ministro, os nossos tempos: a ilegalidade governa e pune os que defendem a ordem democrática. 
 Denuncio o processo kafkiano com o qual o torturam, torturam seus familiares e ameaçam seus amigos, e peço sua intervenção enérgica, já no dia 1º de janeiro, quando, espera a nação cansada (mas ainda cheia de esperanças), estaremos retomando a interminável construção da democracia brasileira. Uma obra de Sísifo, pois, quando mais a supomos consolidada, mais a vemos ameaçada, como ainda agora. E mais ameaçada é a democracia quando a política partidária e a indisciplina, insuflada por oficiais-generais em comando, dominam os quartéis, tradicionalmente afeitos, em nosso país, à insubordinação e à insurgência. 
Árdua é a tarefa que o aguarda. 
A infâmia que denuncio ocorre aí, ao seu lado, no Recife, mas no silêncio dos quartéis, onde age impunemente a prepotência, e onde tanto agiu, em tempos que não podemos esquecer, a tortura de quantos pernambucanos e brasileiros de todos os quadrantes, muitos nossos amigos ou conhecidos, imolados na luta contra a ditadura militar instalada a partir do golpe de 1º de abril. Luta a qual, em novos termos, tivemos de retomar, desta feita para impedir a continuidade do projeto protofascista civil-militar instalado a partir do golpe que depôs Dilma Rousseff, a cujo governo servimos, cada um do seu modo. Luta que agora lhe incumbe dar continuidade  no desempenho de missão histórica que lhe delega o presidente Lula como depositário da vontade da nação, expressa no pleito de outubro último. Os velhos métodos do autoritarismo militar  – como as cassações de mandatos, as aposentadorias tanto quanto  as reformas compulsórias – são substituídos pela tentativa de, mediante punições disciplinares desamparadas de arrimo legal, enlamear a biografia de um oficial exemplar. Conhecendo os fatos, e apurando-os, a dignidade nos manda agir. Omitindo-nos, nos transformaríamos em cúmplices.
A  vítima da vez é o coronel da reserva Marcelo Pimentel, seu conterrâneo, e seu vizinho, cuja carreira – 38 anos na ativa do exército, 30 como oficial – encerrou como chefe do estado-maior no Comando da 7ª Região Militar, em Recife. 
Marcelo Pimentel – como não lhe será difícil apurar – foi instrutor, comandante do curso de artilharia e chefe da divisão de ensino em CPOR, capitão comandante de bateria de obuses, oficial de estado-maior em brigada de infantaria, comandante de grupo de artilharia de campanha, ordenador de despesas, adido de defesa e do exército em missão no exterior. Seguiu com louvor todos os cursos  requeridos a um coronel do quadro do estado-maior, sempre promovido por merecimento. Finalmente, concorreu em primeiro lugar à promoção ao generalato. 
É esse o oficial que a nomenclatura bolsonarista do exército, ainda governante, tenta ofender. Exatamente por isso: por haver sido, o coronel Marcelo, na ativa, um oficial brilhante, legalista e democrata; por continuar a ser, na reserva, um oficial democrata e legalista a quem desagrada a perniciosa partidarização da forças armadas que a desvia de suas finalidades constitucionais, ora  intervindo na vida civil, ora forcejando pelo inaceitável statu de autarquia política na democracia republicana – que, contra os quarteis, a nação tenta construir desde o golpe de 1889. O legalismo democrático,  que hoje é desvio para o estamento ainda governante, haverá de ser, no novo governo, com você no comando da defesa, o modelo do bom oficial. Mas é este modelo que se pretende abater punindo um oficial legalista, e eis o que lhe peço evitar.
A formação castrense de Marcelo Pimentel foi completada pela vida universitária e o curso de direito que o ajudou a compreender o significado do golpe de 1964. Na reserva, livre das justas amarras que limitam, ou deveriam limitar, a atividade político-partidária do oficial da ativa (restrição ignorada pela súcia fardada que comanda o país a partir do terceiro andar do palácio do planalto), dedicou-se à defesa da democracia e da disciplina militar quebrada pela criminosa radicalização do exército pela direita, obra de seus chefes graduados. As consequências, nos limites da tragédia, foram vividas nos últimos quatro anos, e, com os dados de hoje, ainda é justo temer sua sobrevivência no novo governo.
De que é acusado o coronel da reserva Marcelo Pimentel?
De em debates, palestras e artigos, em estudos acadêmicos, classificar como golpe de estado parlamentar a deposição de Dilma Rousseff, violência que, sabemos todos, contou com o decisivo  aval de oficiais do alto comando sob a liderança do próprio comandante do exército, o general Villas-Bôas. Que, não obstante suas circunstâncias pessoais, continua ameaçando o país com novas intervenções militares. 
Oficiais da ativa comprometidos com a continuidade do projeto protofascista não tergiversam quando se trata de, contra a lei e o regimento disciplinar, filiar-se a pregações partidárias e golpistas.  Assim se destacam, entre muitos, o  atual ministro da defesa, os três comandantes das armas e figuras menores como o general comandante da 10ª região militar, dando o tom da insubordinação que contamina o conjunto da tropa, adestrada para a obediência como reflexo condicionado. Descumprem a lei e o regimento disciplinar do exército, ao tempo que negam as garantias da Lei n° 7.524/86, que garante ao “militar inativo o direito à livre expressão do pensamento e da opinião sobre temas políticos, filosóficos, ideológicos e de interesse público, independentemente das disposições dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas”. Esse direito está sendo negado ao coronel Marcelo Pimentel, e por isso vem ele colecionando processos e punições (contam-se em cinco), tanto constrangedoras quanto ilegais, todas violadoras dos princípios constitucionais que asseguram o direito à livre manifestação do pensamento. O objetivo é humilhar, intimidar. É a arte clássica do autoritarismo amparado na força.
Marcelo Pimentel é acusado ora de “desrespeitar superior hierárquico”, ora “de ofender Instituição-Exército”, por criticar, em artigo de jornal, a bolsonarização do exército e a participação de oficiais da ativa e da reserva na campanha eleitoral de 2018. É punido por haver aplaudido artigo publicado no Estadãono qual o autor, um acadêmico, oferece crítica à conduta de oficiais do exército nominados por desmandos no relatório final da CPI da Covid. 
A questão central é o anacrônico, impróprio, indevido, antirregimental e ilegal protagonismo político-partidário das cúpulas hierárquicas das forças armadas, amesquinhando as corporações ao transformá-las em partido político e fazer dos quartéis verdadeiros comitês-eleitorais, como foram  nas eleições de 2018 e 2022. A história republicana registra quão nociva é essa partidarização, e exige nosso permanente combate. 
Por que punir Marcelo Pimentel, que defende a ordem constitucional, e não aqueles que a tentam fraturar? 
Despreocupados com o tráfico de cocaína em aviões da FAB – vimos esse transporte até em aeronave presidencial – os serviços de inteligência não cessam de monitorar o coronel Pimentel, que vem a ser processado por haver produzido um tweet no qual faz restrições à nota-manifesto do insubordinado atual ministro da defesa (seguida de manifestação de igual teor e ilegalidade assinada pelos chefes das três forças) criticando o sistema eleitoral e a segurança da votação mediante as urnas eletrônicas, jogando assim mais lenha na pregação golpista do candidato à reeleição derrotado.
Pretexto após pretexto, o coronel Pimentel é agora punido por “publicar ato ou fato militar que possa contribuir para o desprestígio das forças armadas”. Sua indisciplina foi o registro na demora de atendimento de seu pai, em tratamento de um câncer, em hospital militar. Não se apura a eventual negligência do serviço público essencial, mas, pasme, a reclamação da vítima!
Está à vista que se trata de perseguição politica, inominável por definição, que não podemos admitir. Conheço esses fatos e os levo ao seu conhecimento porque me foram relatados pela vítima. Mas quantas outras muitas violências devem estar correndo Brasil afora, livres da denúncia da publicidade e fora do alcance do novo ministro da defesa? A perseguição ao coronel Marcelo Pimentel não pode ser vista como fato isolado, mas sua denúncia é oferecida como ponto de partida de uma ação enérgica que se reclama  do futuro ministro da defesa do governo democrático do presidente Lula para impedir a continuidade da ignomínia, pois não há conciliação possível com o inconciliável, tanto quanto é inconcebível a acomodação de forças antagônicas. Se não é possível punir os criminosos – admitamos apenas por argumentar –, que pelo menos possamos proteger suas vítimas. 
Receba um abraço esperançoso deste seu amigo.
Roberto Amaral

sábado, 23 de janeiro de 2021

As FFAA ainda não se libertaram de sua inclinação autoritária - Roberto Amaral

 Não concordo com vários argumentos do articulista, nem com o tom geral do artigo, mas cabe-me defender explicitamente a LIBERDADE DE IMPRENSA contra novos arreganhos autoritários dos militares. Eles ainda não aprenderam a conviver com a democracia plena, que inclui o direito de crítica, e AINDA DEVEM, ao povo, mas sobretudo à História, DESCULPAS PELOS CRIMES que cometeram contra os Direitos Humanos e à Democracia em diversos episódios passados. Enquanto não o fizerem, serão sempre devedores da nação.

Paulo Roberto de Almeida

Os militares, seus crimes e a tentação autoritária

Roberto Amaral

O  general comandante do exército não gostou do artigo _“Na pandemia, exército volta a matar brasileiros”_, de Luiz Fernando Viana, (Época. 17.1.2021) e mandou o general chefe do centro de comunicação social do exército responder à revista. O subordinado cumpre à risca o mandato do chefe, e, no melhor (embora canhestro) estilo do velho e expurgado florianismo, ou lembrando os tempos do grotesco marechal Hermes da Fonseca, mais que  defender a corporação, supostamente injuriada,   desanca o jornalista acusado de blasfêmia e tenta intimidar a revista, ou seja, investe contra a  liberdade de imprensa: _“(...) o Exército Brasileiro exige imediata e explícita retratação dessa publicação, de modo a que a Revista Época afaste qualquer desconfiança de cumplicidade com a conduta repugnante do autor e de haver-se transformado em mero panfleto tendencioso e inconsequente”_.  O segundo general, por força do hábito, certamente,  se expressa como se estivesse dando ordem a um subordinado. Ora, senhor, não existe "imediata retratação" na democracia: o general comandante  que busque na Justiça uma possível reparação, nos termos da lei, como qualquer cidadão pode buscar. Agora, conjecturemos. E se a revista não for  acometida de medo e pusilanimidade, que farão os dois generais? Se tal é a pena que pesa como espada de Dâmocles sobre o periódico, que estará  reservado ao articulista? Fosse nos idos do Estado Novo,  ditadura imposta ao país pelas tropas do ministro da guerra, general Eurico Gaspar Dutra, os militares fechariam a revista e o coronel Filinto Muller prenderia o jornalista nas enxovias do DOPS no Rio de Janeiro. Nos idos da ditadura de 1964, os  fardados cassariam os direitos políticos do articulista e o confinariam em Fernando de Noronha, como fizeram com Hélio Fernandes. Mas que fazer agora, quando o regime ainda é o democrático e constitucional? Ameaçam a livre expressão de pensamento, princípio das democracias ocidentais incorporado à nossa ordem constitucional como direito fundamental desde o primeiro texto republicano. Renunciam ao direito de resposta, que implica a contestação do articulado, e ingressam no campo fácil das ameaças e da intimidação, artifício aliás muito cômodo, embora cediço, para quem pode usar a espada como último argumento.

Em síntese: além de arrogantes, os dois generais atentam contra a Constituição o que constitui crime, pelo qual devem ser representados pelo Ministério Público.

Mas o texto dos generais, ademais de não responder ao artigo indigitado, repito,  encerra uma série de imprecisões, ou inverdades, que,  de tanto serem repetidas, tomam foros de verdade. Comento algumas delas. Não é certo, por exemplo, que devemos nossa unidade territorial aos militares. A expansão é obra de mamelucos, negros escravizados, índios, e da ação genocida de bandeirantes saídos de São Paulo, mas saídos também da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão, do Pará e do Amazonas. Segue-se o povoamento do sertão, obra do povo, a que se reporta Capistrano de Abreu.  A integridade territorial, por outro lado, foi obra de nordestinos, na colônia, e de gaúchos na colônia e no império em guerras que consumiram milhares de vidas.  No Império foi obra da Regência, confirmada e consolidada na república pela diplomacia do Barão do Rio Branco. 

     É verdade que nossos soldados foram para os campos da Itália, já ao final da guerra (1944), combater as tropas do Eixo, mas é igualmente verdade que fomos à guerra contra a insistente resistência dos generais Eurico Gaspar Dutra, Ministro do Exército, e do todo poderoso general Góes Monteiro, chefe do estado maior da força, como está fartamente documentado. Aliás, na reunião do ministério (27 de janeiro de 1942) que decidiu pela beligerância, a proposta foi apresentada pelo civil Getúlio Vargas, contra o parecer do ministro da Guerra.  

     De outra parte, há certas e incômodas verdades que os generais não comentam, como a “guerra do Desterro”(1894) e o “ajuste de contas” do sanguinário coronel Moreira César, como não têm uma só  palavra sobre o covarde massacre dos beatos de Antônio Conselheiro, para proteger os interesses dos latifundiários da Bahia. Ainda na República, em 1937, lembro o bombardeio do Caldeirão, no Ceará, contra os camponeses do beato Lourenço, evento esquecido à direta e à esquerda. Não sei se a marinha registra com orgulho a Revolta da Chibata, de 1916. 

     Estamos falando em fatos recentes, republicanos. Mas não foi diverso o papel do exército no império, sufocando, à custa de muito sangue, as tentativas de independência e republicanismo que caracterizaram, por exemplo a Confederação do Equador (1824), esmagada, como a Revolução Praieira (1849), com a mesma fúria que antes se abatera sobre a Revolução pernambucana de 1817 e que terminou com o fuzilamento do Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, que passou à história como Frei Caneca e hoje é pranteado como santo e herói.

     O articulista da Época a ele não se refere, mas a historiografia séria desqualifica qualquer entusiasmo cívico diante de nosso papel na guerra do Paraguai.

      Os militares sustentaram, até a exaustão, em nome dos grandes proprietários, dois impérios, cujas bases radicavam no escravismo e na estagnação, uma das raízes do atraso de hoje. Preferiram, sempre, um país tacanho, de analfabetos e mal alimentados, de deserdados da terra, a tocar nos privilégios da classe dominante, sejam os velhos latifundiários do Império, sejam os grandes fazendeiros da primeira república, seja o empresariado rentista, improdutivo, de nossos dias.

    O progresso é visto como ameaça, pois pode desestabilizar o statu quo do mando secular.

E os militares brasileiros, a quem a nação deve outros serviços, jamais se notabilizaram na defesa da democracia. Na República a golpearam insistentemente desde as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894) até hoje. Vide o golpe de 1937, arquitetado por Góes Monteiro e operado por Eurico Dutra; o golpe de 1954 operado pelas três forças e que teve no general Juarez Távora um de seus comandantes, a tentativa de golpe contra as eleições de 1955 (que teve entre seus líderes o general Canrobert Pereira da Costa e o brigadeiro Eduardo Gomes); a intentona de 1961, encabeçada pelos três ministros militares e o chefe do estado maior do exército, general Cordeiro de Farias; o golpe de 1964, que nos legou 20 anos de ditadura, com seu rol de cassações de direitos políticos, prisões, torturas e assassinatos, muitos levados a cabo em dependências militares, como o assassinato de Mário Alves Alves de Souza Vieira, no quartel da polícia do exército no Rio de Janeiro, e de Stuart Angel, na base aérea do Galeão.

     Sempre na defesa da ordem (pleiteada por todos os privilegiados), dos interesses da grande propriedade da terra, da burguesia e do capital internacional, contra a emergência dos interesses populares, travando o processo histórico. 

     O fato é este: até hoje não se fizeram as reformas necessárias para transformar a nação em país soberano, como a reforma agrária pedida desde o primeiro império por José Bonifácio. Aliás, por defender “reformas de base” um presidente da República foi deposto e implantada, pelos militares, uma ditadura, pesadelo que ainda nos assombra.

      As democracias não falecem por doença congênita. Jovens ou maduras elas são assassinadas, e só há uma arma capaz de atingi-las mortalmente: a espada, seja empunhada por uma sedição,  seja por um golpe de Estado. No Brasil e no mundo o golpe de Estado é a forma que as forças dominantes dispõem para chegar ao poder evitando os percalços de eleições. Ele ou é dado diretamente pelas forças armadas, ou é levado a cabo com seu assentimento cúmplice. Mas em qualquer hipótese nenhum golpe de Estado se sustenta sem o poder militar. No Brasil ele foi agente de todos os golpes de Estado levados a cabo com sucesso. E foi ele que abriu caminho para a aventura do  capitão insidioso, e hoje lhe dá proteção. Os militares, portanto, na medida em que sustentam e participam do comando do governo, até mesmo (e com escandalosa inépcia) na administração da saúde (onde pontifica a estultice de um general da ativa), estão solidários com todos os seus erros e crimes, inclusive os de lesa-pátria, como a política externa que nos transforma em aliados subalternos do império do Norte e seus interesses. 

     Dessa obviedade histórica não podem fugir. Resta-nos supor que as forças armadas ainda conservem – porque nem todos os generais estão ocupando sinecuras no governo –  capacidade de reflexão e, antes que seja irremediavelmente tarde, revejam o papel que estão cumprindo, contra a história que pretendem representar, contra os interesses do país e de seu povo, contra a vida e a esperança.

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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia