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sábado, 8 de abril de 2017

Jose Osvaldo de Meira Penna, 100 anos - Ricardo Velez-Rodriguez

José Osvaldo de Meira Penna (1917): Um Liberal CentenáRio
Amigos, comemorou-se no passado 14 de março o centésimo aniversário do embaixador e grande pensador liberal José Osvaldo de Meira Penna. Desde o início dos anos oitenta do século passado, quando o conheci em São Paulo, tenho tido o privilégio de desfrutar da sua amizade. Meira Penna é um desses raros membros da intelligentsia brasileira comprometido profundamente com a defesa da liberdade. Quando tive o primeiro contato com ele, em 1980, estava à frente da embaixada na Polônia. Vivia-se, no país europeu, o clima de glassnost, com as acirradas lutas do velho stablishment comunista contra os que demandavam o fim da tutela soviética. Meira Penna conheceu por dentro as desgraças vividas pelos cidadãos comuns no regime comunista. Preocupado com os rumos da abertura brasileira, Meira Penna insistia na necessidade de que as novas gerações conhecessem em profundidade os pensadores liberais clássicos, a começar por John Locke, os pais fundadores americanos e Alexis de Tocqueville. O meu amigo propôs a mim e a outros intelectuais a criação da Sociedade Tocqueville e, junto com Antônio Paim e Ubiratan Macedo, o ajudamos a elaborar a Carta de Princípios da mencionada entidade, que foi criada em 1986, no Rio de Janeiro e em Brasília, onde ficava a sua residência. Ele foi o presidente-fundador da Sociedade Tocqueville e eu o primeiro secretário.

Ciente da minha responsabilidade na divulgação das ideias de Tocqueville, mergulhei no estudo de A democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução, bem como na leitura da vasta correspondência de Tocqueville com Stuart Mill e dos seus estudos sobre a pobreza, publicados na edição clássica da editora Gallimard. Li o informe sobre a pesquisa que Tocqueville fez, em companhia do seu amigo Gustave de Beaumont, sobre o sistema penitenciário estadunidense, estudo que motivou, aliás, a sua viagem por nove meses aos Estados Unidos, entre 1832 e 1833, da qual emergiria a magna obra tocquevilliana sobre as instituições democráticas americanas, que seria publicada nos anos subsequentes, até 1840. Elaborei, então, projeto de pesquisa acerca das ideias liberais de Tocqueville, notadamente no que tangia à sua concepção republicana. Era meu interesse culminar esse estudo antes de 1989, a fim de publica-lo com motivo da celebração do centenário da República. Passei o meu projeto a Meira Penna. 

O meu amigo sugeriu-me que buscasse algum centro na França onde pudesse adiantar essa pesquisa e encaminhou o meu projeto a Jean-Claude Lamberti, de quem era amigo, autor do clássico livro intitulado: Tocqueville et les deux démocracies. O professor Lamberti faleceu, no entanto, algum tempo depois, sem que eu tivesse tido oportunidade de entrar em contato com ele. Mas a viúva passou o meu projeto à assistente de Lamberti, a jovem professora Françoise Mélonio, que trabalhava no Centre Raymond Aron, ligado à Haute École de Sciences Sociales de Paris. François Furet era, na época, diretor desse Centro. 

Em viagem que realizei à França em 1994 entrei em contato com a professora Mélonio, que se dispôs a me orientar na pesquisa almejada. Assim, entre 1994 e 1996, desenvolvi os estudos que deram ensejo a dois ensaios: Tocqueville au Brésil(publicado em 1999 pela Universidade de Toronto) e A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville(publicado em São Paulo, pela Editora Mandarim, em 1998). Ainda sob orientação da professora Mélonio (em cuja obra: Tocqueville et les Français1994) encontrei valiosos subsídios para o estudo do pensamento tocquevilliano, ampliei as minhas pesquisas para o grupo dos doutrinários, a começar pelos seus precursores, Madame de Staël e Benjamin Constant e continuando com o estudo do pensamento do mais importante doutrinário, François Guizot. Estudei, também, as repercussões do pensamento doutrinário nos teóricos liberais franceses do século XX, a começar por Raymond Aron. Dessa pesquisa surgiu a minha obra intitulada: O Liberalismo Francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil (2002).

MEIRA PENNA, O HOMEM E A OBRA

I - BREVE SÍNTESE BIOGRÁFICA
José Osvaldo de Meira Penna nasceu no Rio de Janeiro a 14 de março de 1917. Concluiu o Curso de Direito na Universidade dessa cidade, em 1939. Ingressou por concurso na carreira diplomática em 1938, tendo permanecido nela durante mais de quarenta anos, até sua aposentadoria, ocorrida em 1981. Cursou estudos complementares na Universidade de Columbia (New York), no Instituto Jung de Psicologia (Zurich) e na Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro).
Os primeiros anos de sua vida diplomática foram vividos em Calcutá, Xanghai, Ankara e Nandjing. Quando da sua primeira permanência na China foi surpreendido pela guerra (1942) e assistiu posteriormente ao colapso do regime nacionalista chinês. Desempenhou funções diplomáticas também em Costa Rica, no Canadá e na Missão Brasileira junto às Nações Unidas, de onde regressou ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, onde chefiou a Divisão Cultural, no período compreendido entre 1956 e 1959. Foi embaixador na Nigéria, Secretário-Geral Adjunto do Ministério das Relações Exteriores para a Europa Oriental e a Ásia e embaixador em Israel no período compreendido entre 1967 e 1970. Ocupou também o cargo de Assessor do Ministro da Educação e Cultura. Desempenhou as funções de embaixador na Noruega, no Equador e na Polônia, cargo com o qual encerrou a sua carreira diplomática. Depois de aposentado, Meira Penna ingressou no magistério, como professor vinculado ao Departamento de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade de Brasília. Desde fins da década de sessenta desenvolve ampla e combativa atividade jornalística, sendo colaborador de importantes diários brasileiros como O Estado de São PauloJornal da Tarde (São Paulo), Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), e outros. Em 1986 criou, junto com alguns intelectuais de inspiração liberal, a Sociedade Tocqueville, entidade da qual ainda é o Presidente. Preside, também, o Instituto Liberal de Brasília e é membro ativo da Sociedade Mont Pélérin.
Meira Penna é um dos mais importantes e polêmicos ensaístas brasileiros. Os seus livros, ensaios e artigos cobrem ampla gama de assuntos. A sua produção intelectual pode ser aglutinada ao redor de três grandes centros de interesse: a história, a filosofia (notadamente a dedicada à reflexão sobre a política e a ética pública) e a sociologia. No campo da história, sobressaem as seguintes obras: ShangaiO sonho de Sarumoto e Quando mudam as capitais. No terreno da filosofia, pode-se mencionar vários títulos como por exemplo: Elogio do burroO Evangelho segundo MarxOpção preferencial pela riqueza, Decência jáO espírito das Revoluções e A Ideologia do século XX. No campo sociológico, as suas obras mais representativas são: Política externa: Segurança & DesenvolvimentoPsicologia do subdesenvolvimentoEm berço esplêndidoO Brasil na idade da razãoO Dinossauro e Utopia brasileira.
Parte significativa da obra de Meira Penna insere-se, como já foi apontado, no terreno da filosofia política, com a discussão do problema das relações entre epistemologia e poder. Nesse contexto situam-se obras como O Evangelho segundo Marx, A Ideologia do século XX, Opção preferencial pela riqueza e O espírito das Revoluções. O autor tem adotado a defesa do ponto de vista neo-liberal, seguindo a tradição da escola austríaca de Hayek e von Mises. Tem participado ativamente do debate acerca da problemática do estatismo, defendendo a tese do "estado mínimo" e da máxima liberdade para a iniciativa privada e o mercado. Com a finalidade de analisar criticamente a realidade do Estado patrimonial brasileiro do ângulo neo-liberal, o autor escreveu vários artigos e ensaios em revistas especializadas, que foram compilados na sua obra intitulada O Dinossauro, que constitui, como destacarei no item seguinte, uma das mais importantes contribuições à análise crítica das relações de poder na sociedade brasileira.
 


II
A CRÍTICA DE MEIRA PENNA AO ESTADO PATRIMONIAL
O Brasil não chegou ainda à idade da razão. O cogito ergo sum cartesiano foi substituído, na nossa sociedade presidida pelas relações afetivas, pelo coito ergo sum macunaímico. Essa seria a primeira caracterização que Meira Penna formula em relação à nossa realidade. Não se trata, evidentemente, de atitude puramente negativista em face do país. A atitude do nosso autor é crítica, não perdoa as incoerências nem dá trégua ao bom-mocismo. Mas trata-se de uma atitude crítica construtiva. Se quisermos sair do marasmo secular em que estamos confinados, como eterno país do futuro, devemos olhar com claridade para dentro de nós mesmos, conhecermos a fundo as nossas potencialidades e mazelas, a fim de remediar as segundas e fazer crescer as primeiras. É nesse contexto de ética intelectual weberiana em que se situa a crítica de Meira Penna ao Patrimonialismo.
A análise de Meira Penna acerca do Estado patrimonial inspira-se, basicamente, na crítica de Tocqueville ao centralismo francês. Meira Penna, aliás, inicia o seu livro O Dinossauro [1988] com a seguinte paráfrase, tirada de A Democracia na América [cit. por Meira Penna, in 1988: II]: "Sobre essa raça de homens opera um poder imenso e tutelar que se atribui a obrigação exclusiva de gratificá-los e presidir sobre seu destino. Esse poder é absoluto, minucioso, regular, providente e suave. Seria como uma autoridade de pai se, como essa autoridade, fosse seu propósito preparar os homens para a idade adulta; mas ele procura, ao contrário, mantê-los em perpétua infância: contenta-se em que o povo se divirta, contanto que não pense em outra coisa senão divertimento. Para sua felicidade tal governo trabalha com prazer, mas deseja ser o agente único e árbitro exclusivo dessa felicidade... Assim cada dia torna menos útil e menos freqüente o exercício da livre capacidade do homem; circunscreve a vontade num âmbito cada vez mais estreito e gradualmente priva o homem de todos os usos que, de si mesmo, pode fazer. O princípio da igualdade preparou os homens para essas coisas, os predispôs para suportá-las e freqüentemente para considerá-las como bens".
Não podia ser outra a fonte de inspiração do nosso autor na sua crítica ao patrimonialismo, levando em consideração que o seu livro O Dinossauro constitui, no sentir dele, "(...) a minha primeira contribuição para a Coleção do pensamento neoliberal ou liberal-conservador, que a Sociedade Tocqueville pretende editar" [Meira Penna, 1988: III, nota]. Lembremos que a mencionada Sociedade tinha sido criada em 1986, sob a inspiração de Meira Penna, por alguns intelectuais (entre os quais eu próprio me encontrava) do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre e Santa Maria, com o propósito, como frisava a Carta de Princípios e Programa de Atuação [in Meira Penna, 1988: III], de "contribuir, pelo seu exemplo, no sentido de que as diversas correntes em que se divide a opinião nacional sejam levadas a explicitar corretamente os princípios em que se louvam", a fim de que fiquem claras as diferenças entre socialistas e liberais, no que se refere à construção do Estado. Este, pelos primeiros, sempre foi entendido como realidade mais forte do que a sociedade, enquanto que, para os segundos, deve estar a serviço da mesma. Segundo rezava mais adiante a Carta de Princípios da Sociedade Tocqueville, "a realidade do Estado patrimonial burocratizado configura ainda (...) o complexo de clã (Oliveira Vianna), em que predominam as funções afetivas e os critérios concretos de simpatia ou antipatia, no relacionamento pessoal privilegiado, em detrimento dos princípios abstratos de obediência à lei, de ordem, de responsabilidade e de justiça. Ainda existimos em berço esplêndido, sob a proteção do clã familiar. Quem não tem pai, padrinho ou patrono não tem vez. Só entramos parcialmente na Idade da Razão. A nossa modernização se processou a médias. O anacronismo e defasagem de nosso desenvolvimento cultural e mental é o que abre as portas à tentação totalitária".
A crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial insere-se, portanto, nessa finalidade mais ampla (encampada pela Sociedade Tocqueville), de contribuir para o ingresso do Brasil na idade da razão. Segundo o nosso pensador, a sua primeira crítica ao Estado patrimonial data de 1972. A sua convicção viu-se reforçada pela débacle do estatismo na Europa e nos Estados Unidos, ao longo dos anos 80. "Universalmente, --frisa a respeito Meira Penna-- o público descobriu, como uma revelação súbita, que a culpa dos nossos males atuais cabe ao Estado forte e açambarcador, ao Estado burocrático repressivo" [1988: 9].
Em que consiste a essência do Patrimonialismo? Meira Penna considera que foi Max Weber quem melhor a definiu. "Nesse sistema -- frisa o nosso autor -- poderes particulares e as vantagens econômicas correspondentes são apropriadas, isto é, tornam-se propriedade particular do Chefe. Weber discute com certo pormenor a maneira como se processa essa apropriação. Vemos, no caso do Brasil, que a descrição se enquadra com bastante exatidão no que ocorre em nosso regime clientelista (...)" [1988: 142]. Neste, segundo Meira Penna, consolida-se a confusão entre as esferas pública e privada. A respeito, frisa: "O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o empreguismo, esse emaranhado extremamente confuso de relacionamentos e obrigações personalistas, ao nível municipal, que se associam à estrutura patrimonial do país, consistem essencialmente no aproveitamento privado da coisa pública. O coronelismorepresenta a forma local de domínio personalista. O patrimônio privado é ao mesmo tempo o patrimônio público. A privatização concreta se traduz pela incapacidade de conceber o governo como oriundo de um pacto social abstrato em que, segundo Hobbes, Locke e Rousseau, o Estado utiliza as leis como instrumento de sua autoridade. Um antigo governador do Ceará, o ministro Parsifal Barroso, contou-me que, quando visitava uma aldeia do interior, a população acudia para recebê-lo, aos gritos de lá vem o governo: a pessoa do governador é confundida com o próprio governo, sem distinção entre o corpo concreto do homem e a idéia abstrata de uma instituição" [1988: 144].
Analisarei neste ensaio a crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial, em seis itens: 1) Patrimonialismo, o mal latino; 2) Patrimonialismo e familismo clientelista; 3) Patrimonialismo e formalismo cartorial; 4) Patrimonialismo e estatismo burocrático; 5) Patrimonialismo e mercantilismo; 6) Patrimonialismo e corrupção. Concluirei mostrando quais são, do ponto de vista brasileiro e na perspectiva do nosso autor, as alternativas em face do Patrimonialismo.
 

1) Patrimonialismo, o mal latino
Para Meira Penna, o vício do Patrimonialismo não é apenas caraterística culturológica que acompanhou a formação do Estado no Brasil. É herança, também, dos povos latinos. Franceses, italianos, espanhóis, portugueses e latino-americanos em geral, viram consolidar as suas instituições políticas de forma patrimonialista.
Em relação à França, o nosso autor alicerça-se diretamente na obra de Tocqueville L'Ancien Régime et la Révolution. Os franceses acostumaram-se a enxergar os seus chefes como tutores, após séculos de centralismo paternalista do Monarca sobre a nação. Meira Penna cita as palavras de Tocqueville a respeito: "Quando penso nas pequenas paixões dos homens de nossos dias, na frouxidão dos costumes, na potencialidade de suas luzes, na pureza de sua religião, na condescendência de sua moral, em seus hábitos metódicos, no apego que experimentam em relação ao vício, não creio que eles vejam seus chefes como tiranos, mas antes como tutores" [cit. por Meira Penna in 1988: 223-224].
Comentando as palavras do pensador francês, Meira Penna escreve: "Tocqueville acentua ainda, enfaticamente, como o novo regime democrático, longe de favorecer o desenvolvimento da liberdade individual, proporcionou o crescimento do poder estatal centralizador. Tocqueville é sem dúvida o primeiro pensador que caracterizou concretamente o antagonismo entre o puro democratismo e o conceito de liberdade. Escreve ele (..): Por debaixo da superfície aparentemente caótica, se desenvolvia um poder vasto e altamente centralizado que atraía para si e moldava num todo orgânico todos os elementos de autoridade e influência que até então se encontravam dispersos entre uma multidão de poderes menores e não coordenados... Nunca desde a queda do Império Romano o mundo contemplou um governo tão altamente centralizado. Tocqueville salienta, desde logo, que foram o aumento da burocracia estatal, juntamente com sua crescente ineficiência e corrupção, muito mais que as guerras, os magníficos palácios e o luxo da corte que determinam o colapso financeiro da França, motivo imediato da Revolução. Versailles e as aventuras bélicas dispendiosas arruinaram, sem dúvida, o final do reino de Luís XIV. Mas a segunda metade do século XVIII foi relativamente pacífica e Luís XVI não se excedeu em construções extravagantes. A estrutura econômica do país era basicamente saudável. O que estava acontecendo é que um número realmente excessivo de indivíduos da nobreza e da burguesia mamavam nos úberes fartos do Tesouro. O Estado se depauperava. A França estava falida" [1988: 224].
A figura centralizadora e omnipresente de Colbert é, no contexto francês, o exemplo do superbarnabé que faria as delícias do cartorialismo lusitano rejuvenescido sob Pombal. A respeito desse arquétipo e dos nefastos efeitos da sua ação cartorial sobre a França, escreve Meira Penna: "(...) Colbert é uma espécie de primeiro modelo do superburocrata. O Leviatã absolutista que Luís XIV impusera sobre a França incluía esse funcionário típico que trabalhava dezesseis horas por dia, que era tão frio, inflexível e cruel que madame de Sévigné o apelidara Le Nord, e que esfregava as mãos de volúpia quando chegava ao escritório, às 5:30 da madrugada, e encontrava a mesa apinhada de processos para despachar. De fato, tudo despachava. Despachava também para as galeras os comerciantes que ousassem importar do exterior, em concorrência às manufaturas estatais, tecidos de algodão. E tudo regulamentava, disciplinava, obstruía, ordenava, coibia com suas famosas Ordonnances. E multiplicava os decretos criando empresas públicas, manufaturas reais, tecelagens reais, forjas reais, arsenais reais e milhares de outras companhias reais, sempre na crença de que cabia ao Estado incentivar a indústria. A iniciativa privada era a priori suspeita. A economia era desenhada geometricamente, à la française como os jardins, mas o resultado final é que em todos os terrenos a França começa a ficar para trás já a partir de 1800. Uma por uma, as repúblicas e monarquias capitalistas de religião protestante, com exceção da Bélgica, ultrapassam os índices de produtividade e de renda ostentados pela França (...)" [1988: 229].
Meira Penna considera que o centralismo francês em muito se assemelha ao centripetismo do Estado patrimonial português, no período colonial. A semelhança alicerça-se num ponto específico: manter inalterada a dominação do centro, aniquilando qualquer tentativa de atividade organizada e de solidariedade espontânea. É o que Weber diz quando afirma que, para o patrimonialismo, é intolerável qualquer pretensão de dignidade por parte dos dominados [Weber, 1944: IV, 175 seg.].
Em relação a essa semelhança, afirma Meira Penna: "Tocqueville também explicou com muito acerto como a política municipal e principalmente a política fiscal dos monarcas absolutos dos séculos XVII e XVIII acabaram definitivamente com qualquer veleidade de iniciativa e qualquer possibilidade de atividade organizada espontânea, particularmente nos escalões inferiores. Nesse sistema de impostos, afirma Tocqueville, cada contribuinte tinha, efetivamente, um interesse direto em espionar seus vizinhos e denunciar aos coletores os progressos de suas fortunas: todos eram instruídos para a delação e o ódio. Vemos assim a semelhança com o que ocorreu no Brasil colonial em virtude das mesmas causas. A rigidez, a centralização e o controle opressivo do sistema francês se sustentam na necessidade de manter a ordem numa sociedade por natureza rebelde (...)" [1988: 231].
Esse centripetismo produziu o atraso das colônias francesas, segundo Tocqueville. Meira Penna destaca, com as seguintes palavras, a semelhança no atraso produzido nas suas respectivas colônias pelas políticas ultramarinas patrimonialistas francesa e ibérica, "(...) a experiência canadense constitutiu uma espécie de caso-limite, alguns de cujos aspectos mais lamentáveis deviam reproduzir-se mais tarde, na segunda grande experiência de colonização realizada pela sociedade francesa, a experiência argelina. O ponto importante é que Tocqueville salienta a rigidez e centralização burocrática extrema do sistema colonial francês, em condições que muito lembram o ocorrido no Brasil e no resto da América Latina. O fracasso desse tipo de colonização e o subdesenvolvimento deixado como herança no Québec, testemunham o fato de que as mesmas causas tiveram o mesmo efeito lamentável. É nesse sentido que as observações de Tocqueville são relevantes" [1988,: 233].
mal latino do patrimonialismo afetou também aos italianos. Eles teriam herdado da ocupação espanhola dos séculos XVI e XVII os preconceitos contra o trabalho produtivo, que constituem o caldo de cultura apropriado para o espírito orçamentívoro. Em relação a esse ethos do não trabalho (que é típico também da cultura brasileira), o nosso autor comenta com as seguintes palavras os estudos de conhecido ensaísta italiano: "(Luigi) Barzini começa aceitando em parte a explicação de alguns escritores, seus compatriotas, que atribuem ao longo domínio espanhol na Itália meridional alguns dos males administrativos aparentemente incuráveis do país. A culpa caberia, diz ele, ao desprezo feudal dos espanhóis pelas ocupações úteis e produtivas. O galantuomo consideraria sinal de distinção o não fazer nada. A ociosidade representaria um status symbol. Barzini (...) denomina preconceitos barrocos o conjunto de características que Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, entre nós, estudaram e classificaram como complexo do gentleman. A forma principal é o desdém pelo trabalho manual, pelo comércio, o dinheiro e a atividade produtiva. Dizia-se, no Brasil colonial, o ócio vale mais do que o negócio... Hoje, a vingança do burocrata preguiçoso, que não é promovido, e do intelectual ocioso, que está na miséria, é pôr a culpa em cima do capitalismo e do imperialismo yankee..." [1988: 237].
mal latino também está presente na América espanhola. A mais acabada manifestação dele é o patrimonialismo telúrico da ditadura científica mexicana, tão bem estudado por Octavio Paz. Segundo Meira Penna, para o mencionado Prêmio Nobel "(...) o Estado patrimonial mexicano constitui uma sociedade cortesã, pois no regime patrimonial o que conta, em última análise, é a vontade do príncipe e de seus clientes e agregados" [1988: 247]. O nosso autor antecipava, na época da publicação de O Dinossauro em 1988, os dissabores que a bem comportada ditadura científica do Partido Revolucionário Institucional enfrentaria em Chiapas, nos anos 90. Estas são as suas palavras a respeito: "(O governo mexicano) sustenta o regime marxista da Nicarágua e as guerrilhas vermelhas da América Central e não seria de admirar se um dia o feitiço se virasse contra o feiticeiro: afinal, poucos países na América Latina continuam a oferecer um espetáculo mais deprimente de tamanhas massas de miseráveis desempregados, alimentados com tortilla e propaganda. Um dia poderá ocorrer que eles se decidam a passar da ingestão passiva da theoria para o exercício mais ativo da praxisrevolucionária..." [1988: 251].
Traço comum aos patrimonialismos ensejados pelo mal latino é o clericalismo, que constitui uma manipulação da variável religiosa, com a finalidade de preservar a dominação de uma elite que privatizou o poder em benefício próprio. Essa é uma caraterística geral dos países que incorporaram a mentalidade tridentina. Esse caráter culturológico estende-se no plano histórico desde o século XVI até os nossos dias. Espírito contra-reformista e Teologia da Libertação seriam dois momentos dessa evolução. A respeito, escreve Meira Penna: "O Estatismo absolutista está implícito na Contra-Reforma: a Igreja apelara para o Estado no sentido de suprimir a heresia. A Igreja conclamara os soberanos temporais para a luta contra o liberalismo dito protestante, anglo-saxão e modernizante. Os reis absolutistas, Felipe II na Espanha, Luís XIII, com Richelieu, na França e Luís XIV se aproveitaram da oportunidade para hostilizar os primeiros anseios de liberdade que se faziam sentir. Um liberalismo nascente que implicava a liberdade de julgar problemas morais ou liberdade de consciência e que seria fruto, segundo argumentava a Igreja, das detestáveis heresias de Lutero e Calvino. Em última análise, o liberalismo seria diabólico. O Catolicismo da Contra-Reforma é que, por tradição, transmite o autoritarismo o qual se transmuda hoje, naturalmente, no social-estatismo dos marxistas e dos teólogos da libertação" [1988: 230]. Convém destacar que o nosso autor dedicou dois trabalhos à crítica da Teologia da Libertação: O Evangelho segundo Marx [1982] e Opção preferencial pela riqueza [1991].
2) Patrimonialismo e familismo clientelista
Para Meira Penna, as sociedades estruturadas de forma patrimonialista são, antes de mais nada, organizações não puramente racionais, mas portadoras de uma racionalidade afetiva. O nosso autor alicerça em Weber e Jung essa sua apreciação, destacando, de um lado, o distanciamento das organizações patrimoniais em relação ao puro modelo racional-legal weberiano, mas identificando nelas, ao mesmo tempo, uma modalidade especial de legitimação, alicerçada no sentimento [1988: 149-150].
Meira Penna define a sociedade legitimada pela racionalidade afetiva como Coisa Nossa ou Patota. Eis a forma em que o nosso autor aplica esses conceitos à sociedade patrimonialista brasileira, seguindo, nesse ponto, a análise que Oliveiros Ferreira desenvolveu em relação à Máfia siciliana: "A Coisa Nossa brasileira não é necessariamente uma organização criminosa porque é tradicional. A Máfia siciliana também não é, na Sicília, considerada criminosa. Considera-se, ao contrário, uma honrada sociedade. Ela constitui tão somente (...) uma coterie. Uma teia de relações sociais, às vezes centrada no que se poderia chamar de estruturas de parentesco, o mais das vezes tecidas na intimidade, primeiro, das experiências comuns nos bancos acadêmicos, depois na compartilha de iguais vicissitudes do início da vida profissional, dos mesmos desejos de fugir às responsabilidades do trabalho assalariado (...). A Coisa Nossa é uma coterie, ou se se quiser, no sentido da gíria brasileira, uma patota, isto é, grupo ou bando que, até se poderia dizer, faz patotadas. Os membros do sistema burocrático ou o que mais recentemente também se designa como Nova Classe ou Nomenklatura, vivem de e para o aparelho de Estado. Não diria que são corruptos ou cínicos quando aceitam favores deste ou daquele a quem um dia favorecerão... Eles têm esses favores (de) que são cumulados como coisa natural: é parte inerente da função receber presentes!" [1988: 148].
O patotismo, no entender de Meira Penna, constitui a privatização do poder por uma minoria que se assenhoreia do Estado em benefício próprio. Na nossa tradição sociológica esse fenômeno recebeu também os nomes de clientelismo, coronelismo, compadrio. Tratando de caracterizá-lo mais detalhadamente, o nosso autor frisa: "O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o empreguismo, esse emaranhado extremamente confuso de relacionamentos e obrigações personalistas, ao nível municipal, que se associam à estrutura patrimonial do país, consistem essencialmente no aproveitamento privado da coisa pública. O coronelismo representa a forma local de domínio personalista. O patrimônio privado é ao mesmo tempo o patrimônio público. A privatização concreta se traduz pela incapacidade de conceber o governo como oriundo de um pacto social abstrato em que, segundo Hobbes, Locke e Rousseau, o Estado utiliza as leis como instrumento de sua autoridade (...)" [1988: 144].
Seguindo as análises feitas sobre a nossa realidade patrimonialista por Riordan Roett, o nosso autor destaca o caráter minoritário da nomenklatura que empolgou o poder no Brasil. A respeito, afirma: "Seria uma minoria mas assim mesmo uma minoria ponderável pois, com sete ou oito milhões de funcionários públicos e suas respectivas famílias, os parasitas do Estado não constituem parcela pequena da nossa sociedade" [1988: 146]. Esses parasitas são, no entender de Meira Penna, os identificados por Raymundo Faoro como donos do poder [1988: 147].
O vício do familismo clientelista é tão antigo quanto o Brasil. Estende-se por gerações e gerações, desde os tempos de Pero Vaz de Caminha (que pedia ao Monarca, na sua carta, sinecuras para familiares), até o dia de hoje. Meira Penna ilustra essa tendência com muitos exemplos tirados da sua longa experiência no serviço público. Citemos apenas três casos dos muitos apresentados pelo autor.
O primeiro foi vivido pessoalmente por ele, quando do início da sua vida diplomática. Ele era concursado, com todas as exigências legais para ingressar no serviço diplomático. Mas teve alguns felizardos, amigos do Homem, que entraram pela janela. Eis as suas palavras a respeito: "O testemunho de minha experiência pessoal, como burocrata do Serviço Exterior brasileiro, pode contribuir para reforçar esses conceitos (...) sobre o patrimonialismo do sistema administrativo brasileiro. Em 1938, com vinte anos de idade, ingressei por concurso na carreira diplomática. Nem meu pai, nem qualquer outro membro da minha família, mantinham qualquer relação de amizade ou clientelismo com os donos do poder da época. A própria instituição do concurso, com todos os cuidados que a protegem da intervenção de fatores afetivos relacionados com o personalismo, constitui uma expressão do sistema burocrático funcional, democraticamente aberto e concebido como instrumento da autoridade racional-legal. A instituição do Mandarinato na China confuciana já o admitira há quase dois mil anos! Pois bem, na véspera do dia em que eu e mais cinco colegas, aprovados no concurso, fomos nomeados para a carrière a que faziamos jus automaticamente por aquele instrumento legal, dez outros simpáticos personagens locupletaram-se igualmente do decreto presidencial: eram todos filhos ou parentes de autoridades, ou amigos gaúchos do ditador. Nenhum deles preenchia as condições mínimas exigidas para a candidatura por concurso ao cargo inicial do Itamaraty. Chamava-se então àquilo de entrar pela janela... Queiram imaginar o estímulo que, para nós, concursados, representou aquele ato estupendo de privilégio patrimonialista!" [1988: 152].
Os outros dois exemplos que mencionaremos a seguir, ilustram como o vício do clientelismo familístico é próprio da nossa estrutura patrimonialista, tanto em tempos de autoritarismo (como no caso anteriormente mencionado), quanto em épocas mais brandas de abertura democrática. A respeito, Meira Penna escreve: "Quando (...) o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o mais altamente colocado magistrado do país e aquele de quem mais se poderia exigir o cumprimento rigoroso das Leis, quando esse juiz, dizia eu, exerceu interinamente a presidência da República, em 1945, após a primeira derrubada de Getúlio Vargas por um golpe militar, sua primeira preocupação, senão única, consistiu em nomear todos os parentes para cargos públicos, inclusive o próprio filho para a carreira diplomática. Em outras palavras, considerou imediatamente que a presidência da República era seu patrimônio particular. Por que não dela se locupletar enquanto houvesse tempo? Estou seguro de que nenhuma compunção moral o deteve. Criticado, o aludido magistrado achou suas iniciativas perfeitamente legítimas, não podendo mesmo compreender o sentido da crítica... Quarenta anos depois, terminou o regime militar e a chamada Nova República se inaugurou com uma verdadeira maré de nomeações e promoções da enorme clientela respectiva, em praticamente todos os Estados da Federação e em Brasília. O governador de São Paulo, em que pese sua sofisticação, discretamente colocou em posições no Palácio dos Bandeirantes toda a sua família. O resultado do sistema é que a classe privilegiada que se apropriou das alavancas do governo graças a mecanismos representativos imperfeitos e, em muitos casos espúrios, mantém indefinidamente seu poder, quaisquer que sejam as peripécias da vida política da nação. As revoluçõesocorrem. Mudam os regimes. Os governos se sucedem. Mas os mesmos políticos ou seus clientes conservam o poder de controle absoluto sobre a Cosa Nostra..." [1988: 150-151].
O mecanismo para ingressar na estrutura do Estado Patrimonial brasileiro, acabamos de ver, não é certamente o concurso, embora estes aconteçam como exceções que confirmam a regra. O mecanismo normal de ingresso e promoção, no seio do patrimonialismo, é o conhecido pistolão, que é definido pelo nosso autor como "(...) a relação de um empregado (nomeado ou promovido) com alguém na organização hierárquica, por força de laços de sangue, casamento ou amizade" [1988: 213].
Entre os muitos exemplos de pistolão apresentados pelo nosso autor, citemos este, tirado da carreira diplomática: "O critério do pistolão adquiriu outrora uma complexidade prodigiosa. Houve um Presidente da República que se queixava de serem as promoções do Itamaraty (...) um dos atos mais difíceis de sua administração. Os candidatos à promoção de embaixador ou a ministro ou ao posto de conselheiro da Embaixada em Paris se apresentavam armados, como num jogo de pôquer, de um par de senadores e um par de arcebispos; ou de uma trinca de generais; ou de uma seqüência parlamentar (a bancada do Estado); ou de um pôquer de ministros, acrescido da diretora do Museu de Arte Moderna. Em outros ramos do serviço público o sistema não atingia tal sofisticação, mas o mecanismo é o mesmo" [1988: 214].
Aspecto deveras paradoxal do familismo é o chamado por Meira Penna de nacionalismo uterino, que constitui "uma combinação indecente de burocracia e ideologia nacionalista", que "se rebela contra uma política necessária, urgente e nacional de controle da natalidade" e que, ao mesmo tempo, "age no sentido de dificultar o processo de adoção". Trata-se, para o nosso autor, de um caso de cruel ignorância das elites política e eclesiástica acerca desse gravíssimo problema, cuja essência é assim identificada: "O espetáculo nacional apresenta curiosidades e incoerências que, às vezes, nos enchem de grande perplexidade. Vejam, por exemplo, o seguinte caso: nascem aqui cerca de quatro e meio milhões de crianças por ano. O índice de natalidade talvez ainda ultrapasse os 4%, elevadíssimo e próprio de país subdesenvolvido (...).Dos quatro e meio milhões de bebês nascidos vivos, mais de 300.000 morrerão antes de alcançar cinco anos. Milhões serão abandonados. Milhares se transformarão em trombadinhas e, eventualmente, em marginais, assaltantes e assassinos (...)" [1988: 176-177].
3) Patrimonialismo e formalismo cartorial
Alheia à racionalidade weberiana, a burocracia tupiniquim terminou se fossilizando num vácuo formalismo cartorial, que tudo paralisa e que inferniza a vida do cidadão comum. Se o monstro patrimonial é bonzinho com os seus, com o resto é autêntico ogre. O Estado Patrimonial, como aliás destacou acertadamente Octavio Paz, é um ogre filantrópico [Paz, 1983], ou como se diz nestes tempos de máfias previdenciárias, um ogre pilantrópico.
A caracterização que desse irracional formalismo faz Meira Penna é deveras rica e ampla, porquanto abarca aspectos os mais diversos da vida social brasileira. Eis as suas palavras a respeito: "O Brasil é o país das certidões, dos documentos carimbados com firma reconhecida, dos processos tão pesados e lentamente elaborados quanto o Antigo Testamento, das filas intermináveis no suplício medieval dos guichets. É o país onde o processo de aposentadoria de um velho e cansado funcionário, que tudo deu pelo Estado, sofre a via dolorosa de, pelo menos, 193 encaminhamentos (se devemos dar crédito a um ministro do Planejamento), antes de ser despachado em favor do beneficiário. Outro ministro certa vez apresentou, na televisão, dezenas de metros de formulários, colados uns ao lado dos outros, para ilustrar qual a documentação necessária a um processo de exportação: verdadeira jibóia destinada a estrangular o afoito que pretendeu vender ao estrangeiro soutiens de senhoras. (...) Demora-se no Brasil quinze dias para obter um atestado de bons antecedentes porque todo cidadão, até prova em contrário, é considerado mentiroso e salafrário... Neste nosso país um doente, à morte, que dá entrada no hospital (...) tem previamente de apresentar contra-cheque, fotografia e certidão de casamento. Um candango que precisa obter uma carteira de identidade do INI de Brasília, tem de tirar fotografia com paletó e gravata: só assim se identifica... Um cadáver de brasileiro, embarcado no exterior para ser enterrado no abençoado torrão natal, deve ser legalizado, pagar emolumentos consulares e ser despachado com a classificação espécimen de história natural, sem o que não vencerá a barreira do Aquerontes alfandegário. Nessa barreira, uma escultura metálica de Mary Vieira foi certa vez embargada porque classificada como sobressalente de automóvel com similar nacional, sem licença de importação. Dois elefantes doados pela Índia para o jardim zoológico do Rio não atravessaram o Styx. Pudera! Enorme esforço é empreendido pelo Estado para o desenvolvimento das nossas inesgotáveis potencialidades turísticas, e no entanto este mesmo Estado ergue, em suas repartições, uma barreira de desconforto, impolidez e terror destinada a afugentar o mais entusiástico admirador de Copacabana e das Cataratas do Iguaçu. Barreiras fiscais internas, denominadas Barreiras do Inferno, compartimentam ainda o país, semelhantes às que dividiam a Europa antes da Idade da Razão (...)" [1988: 164-165].
Mas este mal, como o familismo, não é recente. Confunde-se com as nossas origens. Humboldt e Darwin já sofreram, no passado remoto, com essas mesmas barreiras da nomenklatura tupiniquim. A respeito, escreve Meira Penna: "Mal de muitos consolo é: visitando o Brasil em 1832 (uma experiência inolvidável para ele e para a ciência, pois aqui se inspirou antes de escrever A Origem das Espécies), Charles Darwin teve que obter um passe, a fim de penetrar no interior. Sua experiência foi semelhante à de outro famoso colega, um tal barão de Humboldt, que também, no alto rio Branco, se deparou com a desconfiança do burocrata brasileiro. Eis o que escreve Darwin em seu Diário: Passou-se o dia procurando obter passaporte para minha expedição pelo interior. Não é nada agradável a gente submeter-se à insolência de funcionários públicos; mas se submeter aos brasileiros, que são tão desprezíveis no espírito como miseráveis no corpo, chega a ser intolerável. A perspectiva, porém, de ver uma floresta que é habitada por belas aves, macacos, preguiças e lagos onde moram jacarés, fará qualquer naturalista lamber o pó que acaba de ser pisado até mesmo pelo pé de um brasileiro.... Como explicar esse caráter agressivo da burocracia patrimonialista, num país que se orgulha de ser tolerante e ambiciona desenvolver-se racional e legalmente, segundo o modelo democrático?" [1988: 165-166].
O formalismo cartorial brasileiro é estetizante, no sentir de Meira Penna, pois constitui uma espécie de liturgia dos donos do poder, destinada a manter os seus privilégios e a sua preeminência sobre a sociedade. A respeito frisa o nosso autor: "Na burocracia brasileira o que vale é o status. O mandarim tem que se dar ares de importância. A Persona é importantíssima! O conceito de manter a face. Carro oficial com chapa branca, casa na península ou apartamento funcional na Asa Sul, esposa bem vestida pela moda francesa, casamento com a presença do senhor Presidente da República. Reina, sobretudo em assuntos de interesse financeiro, uma atmosfera de solenidade, de mistério: os menores problemas se transformam em enigmas insondáveis. Cria-se uma barreira intransponível, se não existe um mínimo de intimidade pessoal entre os interessados (...)" [1988: 189].
Outra nota do nosso cartorialismo é a ineficiência. Alicerçado na ética macunaímica do menor esforço, o burocrata, além de se dar ares de importância, age com mentalidade de elevador: empurra todos os processos para cima. Em relação a esse ponto, frisa Meira Penna: "A combinação do desejo de se dar ares de importância com a relutância em tomar decisões, em seu próprio nível, tem como conseqüência a pressão tremenda exercida no sentido de empurrar todos os expedientes para cima, para os ministros de Estado e para o Presidente da República (...)" [1988: 190].
Mais uma nota do cartorialismo brasileiro: as leis não possuem entrelaçamento racional. Consequentemente, o povo não acredita nelas. O único cimento que as cola é a interpretação voluntariosa delas, feita pelos próprios funcionários, de acordo com os seus interesses. A respeito, o nosso autor cita o testemunho do diplomata húngaro Peter Kellemen, para quem o brasileiro "é um povo onde as leis são reinterpretadas; onde regulamentos e instruções do governo já são decretados com um cálculo prévio da percentagem em que são cumpridos; onde o povo é um grande filtro das leis e os funcionários, pequenos ou poderosos, criam sua própria jurisprudência. Ainda que esta jurisprudência não coincida com as leis originais, conta com a aprovação geral, se é ditada pelo bom senso" [cit. por Meira Penna in 1988: 191].
4) Patrimonialismo e estatismo burocrático
A ausência de racionalidade fez com que a estrutura burocrática do Estado patrimonial brasileiro crescesse adiposamente, sem nenhuma preocupação de eficiência. O nosso autor ilustra de forma plástica esse mostrengo, que cresceu com o correr dos séculos como uma espécie de pirâmide inamovível, em cujo vêrtice repousam, inatingíveis, os nobres da nomenklatura, "duques e marqueses poderosos" servidos por um exército de intermediários, uma classe média visceral identificada com a "Maria Candelária", que vive sentada e fofoca durante o expediente e uma base ampla de ineficientes funcionários de baixo escalão, os contínuos.
Eis a fotografia de corpo inteiro do Leviatã brasileiro: "Monstro antediluviano, foi a burocracia brasileira erguida como instituição patrimonial com seus castelos, cercados de bastiões, fossos e pontes-levadiças. Neles habitam os grandes barões do Estado cartorial, a aristocracia soberba dos altos funcionários, duques e marqueses com sua enorme clientela de gordas escriturárias e magricelas serventes famintos, que suplementam o salário-mínimo com gorjetas e comissões. Sobrevivem o foro, a enfiteuse e o laudêmio. Sólidos como o Pão de Açúcar, resistem ao sopro de renovação os direitos adquiridos, que são muitos: o direito ao cargo para o qual foi nomeado sem concurso, por ser filho de fulano ou primo de dona Carmen; o direito à promoção por ser amigo de beltrano; o direito à reclassificação, por ser amante de sicrano" [1988: 188].
No corpo médio da pirâmide burocrática do Estado patrimonial brasileiro encontramos os intermediários, que possuem duas caraterísticas visceralmente unidas: servir de dique aos chatos que pretendem perturbar o repouso remunerado da cúpula, se beneficiando, nessa sua função patrimonialista, da privatização das vantagens que lhes garante a indústria de oferecer dificuldades para vender facilidades. Em relação a este estamento, escreve Meira Penna: "Para defender o status dos altos funcionários, a burocracia criou uma série de intermediários, o principal dos quais é o chefe de gabinete. A função desse é essencialmente a do Cão Cérbero: barrar a entrada. Sobretudo aos chatos. Ai daquele que não possa colocar com suficiente ênfase e força de convicção, para penetrar no augusto recinto, a clássica pergunta: O senhor sabe com quem está falando?... Uma outra classe de intermediários é o despachante. Trata-se de um prodígio biológico: o parasita dos parasitas. Quando não se pode recorrer a esse espécime burocrático, há que utilizar uma das técnicas especiais de penetração na burocracia. O funcionalismo criou o que já foi chamado a indústria de dificuldades para vender facilidades. Contra essa indústria, o recurso é o jeito. O trêfego e vivo Macunaíma, manhoso e cheio de velhacarias, aparece com seu saco de surpresas que sugerem a saída com uma brilhante sugestão salvadora. Toda a técnica pegajosa e açucarada do Eros é então utilizada para impô-la à situação, sobrepujando o obstáculo. A relação pessoal que se estabelece entre o funcionário e a parte sobrepõe-se ao dispositivo legal ou à inércia burocrática. Eros vence Anankê, a necessidade. É o jeitinho..." [1988: 190-191].
A base da pirâmide cartorial é formada pela arraia miúda da burocracia patrimonialista, as Marias Candelárias e os Contínuos, que constituem, respectivamente, a classe média visceral do sistema e a sua classe baixa. Eis a descrição desses personagens: "A massa passiva do funcionalismo, que se poderia chamar o tecido adiposo formado de glicerina e ácido grasso do nosso Dinossauro, é a Maria Candelária. Constitui a classe média visceral da burocracia. Sentada o dia inteiro, notável pela sua esteatopigia, conversa ela com as colegas sobre as peripécias da última novela de rádio e as fofocas da repartição, enquanto se estende a fila do público desesperado pelos corredores da repartição e até o portão do Ministério. Abaixo de todos, na escala hierárquica, temos a figura melancólica do contínuo. Sua missão é difícil de definir em qualquer sociedade que acredite em desenvolvimento e eficiência. Ele simplesmente existe. É expressão do subemprego generalizado com que o social-estatismo caritativo procura liqüidar com esse horroroso crime do capitalismo que é a concorrência e o desemprego. O contínuo aparece num corredor ou numa portaria, ao lado de um gabinete, geralmente sentado com um olhar vago de indiferença. Às vezes fica de pé, respeitosamente, quando passa um alto funcionário. Abre-lhe a porta. Carrega papéis e mensagens de um lado para outro. Tem o importante encargo de fazer café, levar a aposta da loteria esportiva, comprar cigarros e, ocasionalmente, o de receber propinas para desencravar processos perdidos em alguma gaveta ou obter assinaturas do chefe. Em troca, pede emprego para o filho..." [1988: 191].
5) Mercantilismo e patrimonialismo
Como se financia o Dinossauro Patrimonialista? Certamente não mediante o empreendimento capitalista teorizado por Adam Smith na sua clássica obra A Riqueza das Nações. O Patrimonialismo afina-se com uma concepção mercantilista das relações econômicas, que parte do pressuposto de que a riqueza já está feita e que o problema reside em como se apropriar dela, ou como realizar, segundo dizia Marx, a "acumulação primitiva". A concepção macro-econômica de Adam Smith, segundo a qual a riqueza não precisa ser roubada de ninguém, porquanto pode ser produzida mediante o trabalho, arrepia o lombo do rebanho burocrático, que sente calafrios quando lhe mencionam a palavra tarefa ou produtividade. O mercantilismo, para Meira Penna, "(...) foi uma forma econômica que dominou a Europa, na fase preparatória da Revolução Industrial desencadeada pelo Capitalismo. Ele precede, portanto, o sistema de autoridade que Max Weber qualifica de racional-legal, correspondendo antes à fase final do modelo de autoridade dito tradicional patrimonialista" [1988: 140].
É longa, na nossa história, a tradição mercantilista aliada ao Patrimonialismo. Os prolegômenos desse modelo deram-se em Portugal. A propósito, frisa o nosso autor: "O mercantilismo que inspirou a conquista da Índia transformou o Estado português em gigantesca empresa de tráfico. Esse crescimento prematuro do poder do Estado, consolidado subseqüentemente e modernizado com o despotismo de Pombal, teria conseqüências ominosas. Ele impediu o desenvolvimento do capitalismo industrial que é, essencialmente, fruto da iniciativa privada. A península ibérica e suas colônias não conheceram as relações capitalistas na sua expressão industrial íntegra. O atraso ocorreu em virtude dessa ausência de raízes feudais profundas e da permanência teimosa de estruturas patrimonialistas centralizadas. O poder perene do príncipe português sobre o comércio e a economia está na origem do social-estatismo burocrático e paternalista (ou seria maternalista?) que hoje descobrimos no Estado brasileiro. A herança é o Dinossauro (...)" [1988: 156-157].
Essa tradição se fortaleceu, portanto, no período pombalino, quando o Estado começou a ser definido como fonte da riqueza da Nação, e passou a alicerçar os hábitos econômicos da sociedade, de forma que até os atores econômicos passam a esperar do Estado tutor o lucro subsidiado. É uma espécie de colbertismo caboclo, que tira da empresa econômica o caráter de risco, para transformá-lo em sujeição ao poder político. A respeito, afirma o nosso autor: "Tão fortemente entrincheirado na tradição e nos hábitos empresariais é o fato de que o próprio setor privado não se julga, muitas vezes, inclinado a enfrentar os árduos riscos do empreendimento, recorrendo ao Estado quando as coisas andam mal (...). Existe uma velha definição da empresa privada como uma empresa controlada pelo governo, sendo a empresa pública aquela que não é controlada por ninguém, mesmo se, na aparência, é administrada por coronéis reformados, tecnocratas profissionais, amigos do presidente da República ou políticos fisiológicos" [1988: 145].
O Brasil, atrelado ainda ao modelo mercantil-patrimonialista herdado do ciclo pombalino, está defasado históricamente em relação ao mundo desenvolvido. Vivimos, efetivamente, um modelo muito mais próximo das monarquias absolutistas dos séculos XVII e XVIII. A respeito, escreve Meira Penna: "Ora, a filosofia econômica desse sistema político foi articulada pelo que os entendidos (...) tendem a descrever como expressão econômica da monarquia absoluta e da autoridade patrimonialista: o Mercantilismo. No fundo, como aponta Antônio Paim, é ainda o espírito do marquês de Pombal que aqui impera" [1988: 158].
Esse modelo econômico de mercantilismo patrimonialista em que o Estado, através das empresas do setor público, garante a riqueza da nação, empolgou no Brasil sobretudo o pensamento da esquerda, que terminou formulando uma proposta de social-estatismo ou de nacional-socialismo, em que se insere, inclusive, a chamada opção preferencial pelos pobres dos chamados setores progressistas da Igreja. O nosso autor destaca o caráter retrógrado de tal política, que deixa as coisas como sempre estiveram, em mãos do Estado patrimonial e da sua burocracia. A respeito, escreve: "Não estou seguro de que uma revolução marxista no Brasil modificaria fundamentalmente a situação: a apropriação pessoal das rédeas de comando continuaria como dantes, com uma simples mudança de quadros numa estrutura burocrática já toda montada. O vício fatal do socialismo é, com efeito, a concentração do poder político e do poder econômico nas mesmas mãos. Sem o controle de um poder por outro poder, sem a liberdade de crítica, não pode haver justiça, nem é possível evitar a corrupção" [1988: 151].
O efeito mais claro do mercantilismo patrimonialista é a pobreza da Nação, assim como o efeito direto do Capitalismo seria a sua riqueza. Efetivamente, o modelo mercantilista é eminentemente improdutivo e espoliativo da riqueza existente. Esse modelo ultrapassado já causou à humanidade, ao longo dos séculos XVII e XVIII, inúmeras guerras, pois como frisa Irving Kristol, citado por Meira Penna, "o Mercantilismo não pretendia o aumento da riqueza permanente do povo (aquilo que é o propósito da economia capitalista), mas antes aumentar a riqueza temporária do Estado, a riqueza que podia ser traduzida em poder internacional" [1988: 159].
6) Patrimonialismo e corrupção
A soma dos fatores mercantilismo mais familismo produz um resultado concreto: a corrupção. Esta não é outra coisa do que a apropriação, pelos particulares, dos bens públicos, como se se tratasse de bens privados. Ora, essa é a essência do Patrimonialismo que constitui, portanto, uma fonte inesgotável de corrupção. O grande objetivo da burocracia é a privatização do orçamento em benefício próprio. É o fenômeno que Oliveira Vianna chamou de burocratismo orçamentívoro. Os números apresentados por Meira Penna acerca do acelerado crescimento da burocracia estatal brasileira e da sua cupidez, ao longo das últimas décadas, não mentem, e são sobejamente conhecidos por todos. Já frisava o professor Mário Henrique Simonsen, na sua obra Brasil, 2001, que o nosso país bateu todos os recordes de crescimento do setor burocrático estatal no Hemisfério Ocidental, ao longo do século que ora finda.
Apenas para ilustrar o mal do burocratismo orçamentívoro, citemos um texto do nosso autor: "O mal, infelizmente, não é apenas federal. É também estadual e, sobretudo, municipal. Ele está profundamente enraizado nos hábitos do governo e do povo, penetrando por todos os poros da administração ao nível mais regional e local. No Estado de São Paulo, unidade da Federação que é a mais avançada e progressista do país, haveria cerca de 800.000 funcionários em fins de 1985, segundo revelou a Secretaria da Fazenda do Estado. Isso representaria 120.000 a mais do que em dezembro de 1982, quando eram pouco mais de 640.000. Foi um crescimento de 18% em 3 anos, ou 6% ao ano, crescimento muito mais rápido que o aumento demográfico e o do produto interno bruto do Estado. A maior parte das nomeações dos 120.000 teria ocorrido na administração Montoro, mas também grande quantidade no final do governo anterior, explicando-se o exagero por motivações indiscutivelmente eleitoreiras. Os abusos do empreguismo, dos privilégios e da ociosidade parecem ser tanto maiores quanto mais pobre ou atrasado é o Estado ou o Município. Vejam o caso de Alagoas, que adquiriu uma triste notoriedade. A Assembléia Legislativa alagoana encerrou suas atividades, em 1985, criando 240 cargos de assessores para cada um dos 24 deputados. O diretor da Assembléia, Edvaldo Meira Barbosa, recebe um salário mensal equivalente a dez mil dólares, salário do mais bem remunerado executive americano, com a diferença que o diretor brasileiro não paga imposto de renda. (...) Dessa multidão de assessores (580), pelo menos 400 não trabalham, por falta de espaço físico. Alguém se espanta com a pobreza de Alagoas? Serão as multinacionais, o capitalismo industrial, a dívida externa ou os bancos estrangeiros responsáveis pela situação? Não parece claro qual o motivo local do subdesenvolvimento? (...)" [1988: 211].
7) Alternativas ao Patrimonialismo
Meira Penna encontra, na difusão das luzes da Razão no seio da sociedade brasileira, a solução para as contradições e irracionalidades ensejadas pela nossa tradição patrimonialista. O de que precisamos é, com dois séculos de atraso, da entrada definitiva do Brasil na Idade da Razão. É o que o nosso autor denomina de Revolução do Lógos. A respeito, escreve: "O de que precisamos, sem prejuízo da contribuição que sempre nos darão os que sentem, é uma revolução do Lógos (do bom senso, do equilíbrio, da inteligência), coisas que são necessárias, embora difíceis de obter, pois sem elas o monstro burocrático obsoleto estará sempre crescendo desmesuradamente. É nesse ponto que se coloca uma das mais cruéis opções com que nos deparamos em nosso esforço de renovação e modernização, pois se não eliminarmos a mamãezada e substituirmos o paquiderme terciário por um organismo mais evoluído, serão vãs as nossas esperanças de desenvolvimento. A opção é essa. Só essa" [1988: 259].
A proposta de Meira Penna aponta para um processo educacional que modifique a mentalidade. Somente assim garantir-se-á uma solução de fundo ao problema do Estado Patrimonial, que repousa em hábitos administrativos sedimentados ao longo dos séculos. Trata-se de uma proposta de pedagogia social e política. É o ponto que o nosso pensador destaca no seguinte trecho: "A pergunta natural para quem, de frente, fita o Dinossauro anteriormente descrito é a seguinte: Que fazer? Como caçar o monstro? Como eliminá-lo? Como diminuir o empreguismo, banir o clientelismo, combater o nepotismo, selecionar os melhores, aumentar a dedicação dos servidores, apressar e simplificar os processos, suprimir as tolices, racionalizar os serviços, reduzir o poder do Estado?Não se trata tanto, a meu ver, de tomar esta ou aquela medida legal corretiva quanto de mudar a mentalidade. Algo que virá lentamente com a educação, com o esforço consciente do governo e com o próprio desenvolvimento. Uma sociedade liberal moralmente estruturada poderá superar o estágio da mamãezada patrimonialista. Mas não é o caso de debater os remédios. Todo mundo sabe quais são, sobretudo se pertence à própria classe(...)" [1988: 259].
Duas instituições o nosso autor enxerga para, a partir delas, deflagrar o amplo processo educativo de que o Brasil carece: uma Escola Nacional de Administração, destinada à formação da elite técnica civil de que o Estado carece e um Instituto Superior de Ciência Política, destinado à formação da nova classe política. Ambas as instituições foram inspiradas, ao nosso ver, na experiência que Meira Penna teve no Itamaraty como diplomático de carreira. O Instituto Rio Branco representa, na burocracia brasileira, o mais bem sucedido intento de escola de altos estudos para formação de pessoal técnico a serviço do Estado. Diríamos que é uma das instâncias profissionalizantes que mais se aproximam, na nossa sociedade, do ideal burocrático-racional weberiano.
A primeira das instituições apontadas, a Escola Nacional de Administração proposta por Meira Penna, encontra uma outra fonte de inspiração: a École National d'Administration francesa, bem como a nossa Fundação Getúlio Vargas e a própria Escola Superior de Guerra. Essa instituição "assumiria uma função precisa e nitidamente delimitada: assegurar o recrutamento e a formação da fração superior do funcionalismo civil. A Escola apontada, como a ENA francesa, adotaria rigorosos critérios de seleção alicerçados exclusivamente na capacidade dos candidatos, desmontando portanto qualquer mecanismo familístico ou clientelista. Nela, frisa o nosso autor, "(...) são os próprios alunos que, por ordem de classificação final segundo o mérito, escolhem a carreira desejada nesse ou naquele Ministério, Tribunal ou Conselho mais procurado. O sistema cria um extraordinário estímulo, pois a escolha vai determinar o destino do rapaz nos 30 ou 40 anos seguintes. O serviço público deixa assim de constituir uma sinecura, alcançada a golpes de pistolão, para se tornar uma honraria dada ao mérito, e acompanhada de forte incentivo material. O serviço público adquire, em suma, o sentido mais alto de carreira, que encontramos nas armas e na diplomacia" [1988: 260].
A segunda das instituições propostas, o Instituto Superior de Ciência Política, encontrou inspiração imediata na Escola Superior de Guerra e na Escola de Governo de Harvard. O nosso pensador parte do seguinte princípio filosófico, herdado de Sócrates e Platão: "a boa política pode ser ensinada" [1988: 264]. Meira Penna formula nos seguintes termos o seu projeto de Instituto: "(...) o que apresento como proposta idônea é a organização de uma Escola de Altos Estudos Políticos, funcionando no quadro da Universidade de Brasília e sediada na capital. Seu propósito central seria constituir um fulcro de pesquisa e uma ponte entre a universidade, como mais alta instituição educacional, a meio caminho entre a esfera privada e a esfera pública, e o mundo da política" [1988: 266].
O Instituto apontado buscaria profissionalizar a atividade político-administrativa pelo estudo e pela pesquisa. Na trilha do princípio de Bacon de que conhecimento é poder, a ciência política permite, hoje, desenvolver um treinamento sério para o serviço público. A respeito, escreve Meira Penna: "(...) O de que se necessita, em conclusão, é de educação superior adequada de uma nova elite política. Uma profissão que incluiria as pessoas eleitas para o legislativo, nomeadas pelo executivo ou promovidas em suas carreiras estatutárias, independentemente das vicissitudes da vida partidária. Pessoas todas selecionadas na base de sua capacidade analítica, de seus conhecimentos teóricos, de sua sensibilidade aos imperativos da justiça, sua responsabilidade moral, sua competência administrativa prática e o seu sentido de fidelidade institucional" [1988: 267].
Conclusão
Algumas breves considerações para terminar. Meira Penna, graças ao seu conhecimento aprofundado do serviço público e da máquina administrativa do Estado, desenvolve uma das mais completas análises críticas do Patrimonialismo brasileiro. A sua contribuição coloca-o junto dos que se destacaram, ao longo dos últimos sessenta anos, no estudo da nossa tradição política: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Simon Schwartzman, Guerreiro Ramos, Vianna Moog, Caio Prado Júnior, Miguel Reale, João Camillo de Oliveira Torres, Antônio Paim, Fernando Uricoechea, Wanderley-Guilherme dos Santos, Celso Lafer, Bolívar Lamounier e outros.
A análise efetivada por Meira Penna não faz concessões ao bom-mocismo ou ao politicamente correto. Corajosa atitude de quem, na casa dois oitenta anos, ainda não perdeu a capacidade de indignação diante das irracionalidades do nosso Leviatã e dos hábitos tortos por ele estimulados no seio da sociedade brasileira.
As propostas apresentadas pelo nosso autor, como vimos, situam-se no contexto do que o saudoso Roque Spencer Maciel de Barros denominava de "a ilustração brasileira", e que Meira Penna denomina de "a idade da Razão". Na trilha da lição aprendida do mestre embaixador, com quem criei, em 1986, a Sociedade Tocqueville e de quem sempre recebi estímulo para os meus estudos sobre o liberalismo, vou me permitir uma observação crítica. Não bastam, no combate ao Estado Patrimonial, a meu ver, medidas no terreno de uma nova paideia que aponte para a formação de uma elite civil e política. O ponto que me parece fundamental é que essas medidas venham acompanhadas de um aperfeiçoamento da representação e da vida político-partidária, sem as quais não se renova a capacidade da nossa sociedade para domar o dinossauro patrimonialista.
Falta-nos, no Brasil atual, como dizia Tocqueville em relação à França da sua época, construir o homem político, empreendimento que tanto ele como os seus mestres doutrinários entendiam em duas etapas, intimamente correlacionadas: ilustrada e institucional. Não há dúvida que é importante a instância ilustrada, concretizada, no nosso caso, nas propostas apresentadas por Meira Penna na sua obra. Mas falta-nos muito caminho para percorrer no que tange à questão do aperfeiçoamento das instituições que no Brasil garantam o exercício da liberdade e da democracia. Sem aperfeiçoarmos o sistema representativo e a vida político-partidária, terminarão vingando soluções aventureiras de rousseaunianismo caboclo, como a que anda apregoando o presidente Chavez na Venezuela. Neste campo não podemos deixar para depois, como filigrana jurídica, a discussão dos mecanismos institucionais e das reformas que precisam ser feitas. Este aspecto é tão fundamental quanto a Revolução do Lógos proposta pelo nosso autor.

BIBLIOGRAFIA CITADA
  • MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Evangelho segundo Marx. São Paulo: Convivio, 1982.
  • MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Dinossauro. Uma pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. São Paulo; T. A. Queiroz, 1988.
  • MEIRA PENNA, José Osvaldo de. Opção preferencial pela riqueza. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991.
  • TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). 2a. edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.
  • TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. (Tradução de Y. Jean; apresentação de Z. Barbu; introdução de J. P. Mayer). 3a. edição. Brasília: Universidade de Brasília, 1989.
  • WEBER, Max. Economía y Sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina Echavarría et alii). 1a. edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 4 volumes, 1944.

© José Luis Gómez-Martínez
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Antonio Paim, 90 anos - Ricardo Vélez-Rodríguez


OS NOVENTA ANOS DE ANTÔNIO PAIM

Ricardo Vélez-Rodríguez
Rocinante, 8/04/2017


Antônio Paim (1927), o maior pensador vivo do Brasil.
No dia 7 de abril de 2017 foi comemorado, em São Paulo, o 90º aniversário de Antônio Paim. Não pude estar presente. Mas segui de perto as notícias sobre o almoço com que o meu amigo foi homenageado por amigos que vieram dos quatro cantos do país. Merecida homenagem para quem é, hoje, figura de prol da cultura brasileira e o mais importante pensador vivo do nosso país. 

Paim tem dedicado a sua vida ao estudo do Brasil e das nossas possibilidades de virarmos uma grande Nação. Imperativo categórico de rigor kantiano acompanhou, sempre, esse seu compromisso inarredável. Nestas horas de desvios de conduta de autoridades, de agentes públicos, bem como de políticos, empresários e cidadãos comuns é fundamental lembrar um exemplo como o de Antônio Paim. Porque se falta ao brasileiro médio espírito público, esse não falta ao idealismo e total dedicação às coisas brasileiras da parte do meu amigo.

Ao longo das várias décadas do meu convívio com Paim, sempre me chamou a atenção a clarividência com que antecipava os horizontes pelos que enveredaria o nosso país. Daí o seu pessimismo soft, que sempre o deixou com um pé atrás em relação às conquistas que nos levariam ao primeiro mundo sem perder, no entanto, totalmente a fé em que isso seria possível num futuro promissor. Uma esperança escatológica vive no fundo do idoso coração do meu amigo. E é a ela que me agarro ao tecer estas considerações em sua homenagem.

Antônio Paim, como destacava o saudoso e bem-humorado amigo José Fernando Tostes Vilela Leandro (prematuramente desaparecido para tristeza dos que com ele convivemos em épocas luminosas, lá na Universidade Gama Filho de meados dos anos 80), "tem pavio curto para com os que não amam o Brasil". Concordo. Não hesita em entrar na mais acirrada briga quando o desafeto que atravessa o seu caminho fá-lo em nome de interesses carreiristas, deixando para trás o espírito público. Foi assim com os burocratas da CAPES. Foi assim com Lima Vaz e os esquerdistas escondidos que jamais deram as caras para encarar a abertura política de peito aberto dizendo qual era o seu programa. Foi assim com a plêiade de funcionários medíocres que para colher fáceis louvações em foros e palestras de moda conspiraram contra o estudo do pensamento brasileiro na PUC do Rio dos anos 70, na Gama Filho dos anos 80 e 90, na UFJF do mesmo período, etc. E sai de perto quando o assunto é briga com ele pelo estudo e valorização das coisas brasileiras!

Destaco uma qualidade pedagógica do meu mestre: o seu compromisso com aqueles que se chegaram à sua orientação, sem distinções de ideologia, idade, credo ou origem. Paim sempre tem sido o mestre que se doa para os seus orientandos e alunos. A nota característica do seu comportamento para com eles, digo-o por experiência própria, é a ilimitada generosidade intelectual e humana com que os acolhe. Generosidade que se alarga no decurso do tempo por um longo período, chegando até os dias de hoje. Ainda Paim mantém o diálogo construtivo com a nova geração de intelectuais liberal-conservadores que busca, nele, um norte para a sua reflexão e ação transformadora das instituições deste país. Um representante dessa nova geração é, por exemplo, Alex Catharino, que está sempre em contato com o Mestre.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Da velha guerra fria geopolitica 'a nova guerra fria economica - Paulo Roberto de Almeida


Da velha guerra fria geopolítica à nova guerra fria econômica:
cenários prospectivos das relações internacionais

Paulo Roberto de Almeida

Sumário:
1. A paz continua impossível, mas é improvável um novo conflito global
2. Velhas e novas realidades da guerra fria geopolítica
3. O que acontece de novo, atualmente, que pode ser igual ao passado?
4. O que vem a ser a nova guerra fria econômica?
5. Como escapar dos velhos moldes mentais, viseiras conceituais?
6. Novas perspectivas para novas realidades?
7. Quais implicações para o Brasil em termos de defesa e segurança?


1. A paz continua impossível, mas é improvável um novo conflito global
Raymond Aron, no seu primeiro livro de geopolítica publicado no pós-guerra, após voltar de Londres, em 1944, com as forças do General De Gaulle, intitulado Le Grand Schisme (1948), registrou uma “fórmula” arriscada sobre o estado das relações internacionais, tal como ele via o cenário mundial naquela conjuntura, mas que ainda confirmou quase quarenta anos depois, no momento de escrever suas Memórias (1983):
Paz impossível, guerra improvável
Registre-se, talvez desnecessariamente, que ele se referia – ainda antes da exibição do seu próprio artefato nuclear por parte da então União Soviética, o que só ocorreria em 1949 – a um enfrentamento nuclear entre as duas grandes potências, apostando, desafiadoramente, que elas saberiam manter-se sabiamente “pacíficas”, ante à realidade devastadora de qualquer novo conflito global depois das demonstrações de Hiroshima e Nagasaki, pouco mais de dois anos antes. Esse argumento, praticamente um julgamento arriscado de um pensador genial sobre os cenários à sua frente – e que ele também julgava válido para o futuro que se lhe oferecia como previsível naquele momento –, lhe era ditado pela lógica implacável da racionalidade stricto sensu de estadistas responsáveis, levando em conta a imensa capacidade destruidora trazida pela posse de armas nucleares aos grandes contendores do jogo geoestratégico. Ele talvez se permitisse revisar ligeiramente sua “fórmula”, em face de ditadores ao estilo daquele gordinho sinistro da Coreia do Norte, que não se constrange, como não se constrangia o líder chinês Mao Tsé-tung, à época, ante a possibilidade de um confronto nuclear.
No livro que escrevi em homenagem ao mestre francês – Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2002), cujo título reproduz, obviamente, a mensagem de seu último livro, publicado postumamente, Les dernières années du siècle (1983) –, eu comecei por lembrar esse “julgamento” e por confirmar minha adesão a ele. Mas eu também ia além do pensamento do grande polemólogo francês, do grande pensador da guerra e da paz, o maior geopolítico da segunda metade do século XX, no sentido em que eu me permitia fazer uma análise basicamente aroniana, mas essencialmente econômica, das novas realidades criadas a partir da implosão final do socialismo (um evento histórico a que ele não tinha tido a felicidade de contemplar, confirmando o acertado de suas posições, um prazer intelectual que foi facultado a Roberto Campos, “nosso” Raymond Aron), e é sobre isto que eu pretenderia desenvolver algumas ideias neste ensaio que recolhe algumas reflexões que venho desenvolvendo nos últimos anos.
Neste ensaio, de características talvez impressionistas, pretendo desenvolver algumas ideias que se provavelmente se chocarão com a “paranoia” profissional dos militares (não apenas dos nossos, mas sobretudo os das grandes potências), mas que me confirmam como um true believer num futuro não isento de grandes atritos e fricções entre os superpoderes, mas sem recurso a um confronto global entre esses contendores, com algumas possíveis proxy wars (inevitáveis, porque incontroláveis por qualquer uma das grandes potências). Creio que o que teremos pela frente será um jogo geoestratégico basicamente econômico e tecnológico, no qual militares continuarão ordenando gastos inúteis (mas com vários spill-overs tecnológicos e industriais) e os líderes nacionais continuarão apoiando esses inúteis brinquedinhos militares, numa infeliz demonstração de machismo militar e de miopia econômica.
E antes que se me cobre qualquer revisão de meu pensamento, ante a eleição de qualquer grande idiota à frente de qualquer uma das grandes potências, confirmo que, sim, líderes políticos e militares continuarão a dar demonstrações desse machismo militar, numa aparente escalada aos extremos. Mas também afirmo que muito disse é mera transpiração, mais do que inspiração, e não resultará em nada mais do que retórica vazia, muitos orçamentos militares inchados e uma importante perda de oportunidades para níveis mais elevados de prosperidade e de bem-estar, dados os desvios inevitáveis de recursos que poderiam estar sendo empregados em educação e ciência e que estarão sendo devotados a esses brinquedinhos militares de cada vez última geração.
A lógica política e econômica dos principais personagens não mudará, assim que a humanidade, nos próximos 50 ou 100 anos, não será muito diferente do que ela é hoje: um pelotão de nações avançadas, basicamente as mesmas de hoje, um novo pelotão, reforçado, de economias emergentes (uma designação altamente enganosa) e, ainda, e sempre, uma massa (mas declinante) de nações muito pobres, entregues a cenários não muito diversos dos que temos na atualidade: demagogos políticos, populistas econômicos, alguns ditadores, poucos tiranos, mas ainda muitos líderes nacionais irresponsáveis, incapazes de retirar seus povos de uma pobreza dispensável para colocá-los numa situação de modesta classe média, que é para o que converge a humanidade. Estou sendo tão futurista quanto o foi Raymond Aron em 1948, mas é assim que vejo o lento desenvolvimento da humanidade no decorrer do século XXI.
Dito isto, vejamos o que eu poderia apresentar como nova provocação de minha parte, a partir de velhos e novos argumentos que podem ser esgrimidos em defesa de uma tese que contesta algumas das posturas assumidas por soldados e diplomatas. Em fevereiro de 2011, num pequeno artigo que publiquei em Mundorama, eu perguntava se a minha hipótese de uma nova guerra fria econômica se apresentava como um estado já confirmado das relações internacionais ou se ainda constituía uma espécie de cenário de transição para uma nova realidade ainda não totalmente definida (ver Paulo Roberto de Almeida, “A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?”, Mundorama, 01/02/2011; link: http://www.mundorama.net/?p=7197). Mais recentemente, ao ser solicitado a me pronunciar sobre o que a atual conjuntura nos oferece em matéria de economia e de relações internacionais para 2017, redigi um novo artigo, também publicado em Mundorama, no qual retomo, sob nova forma, argumentos já usados anteriormente (Ver, deste autor, “O que esperar de 2017: economia e política internacional”, Mundorama, 23/03/2017; link: http://www.mundorama.net/?p=23347). Como o essencial dos argumentos efetuados nesses dois artigos ainda se mantém válido, permito-me reproduzir trechos dessas formulações iniciais de minha “tese”.

2. Velhas e novas realidades da guerra fria geopolítica
A Guerra Fria geopolítica está encerrada definitivamente, ao que parece. A despeito de tensões políticas “normais” e fricções comerciais entre as grandes potências, não existem mais concepções totalmente opostas sobre como organizar o mundo, economicamente ou politicamente. Ninguém mais está dizendo algo semelhante a “nós vamos enterrar vocês”, como ocorreu em 1959 pela voz do então líder soviético Nikita Krushev. O sociólogo americano Daniel Bell já tinha antecipado, desde meados dos anos 1950, o “fim das ideologias”, julgamento em certa medida confirmado por Francis Fukuyama décadas depois. No que depender, entretanto, de true believers à la Eric Hobsbawm, que dispõe, ele, de um número considerável de inocentes úteis seguidores da mesma doutrina, as ideologias ainda têm um brilhante futuro pela frente. Mas, não só de inocentes úteis é feito o mundo; muitos, inclusive responsáveis governamentais e alguns observadores de alto calibre intelectual, acreditam que estejamos retornando a padrões já enterrados das relações internacionais, quais sejam, os da velha Guerra Fria, agora renascendo sob novas roupagens, mas correspondendo, similarmente, a uma disputa pelo chamado pivô mackinderiano, o controle da Eurásia, em sua parte central.
De fato, muitos analistas contemporâneos, partindo da constatação, aliás evidente, da nova agressividade da Rússia de Putin em relação ao Ocidente em geral – isto é, à OTAN, e aos EUA e à UE, basicamente – e da velha desconfiança do Império do Meio, ou seja a China, em relação a esse mesmo Ocidente, já estão falando de uma nova Guerra Fria, agravada sobretudo pela invasão russa da Ucrânia oriental e pela incorporação forçada da Criméia à Rússia, bem como por outros gestos em direção dos bálticos e da Geórgia que, no conjunto, revelam uma tomada de postura contra a expansão irrefletida da OTAN nos confins imediatos da Rússia. A China de Xi Jin-ping também tem demonstrado uma política de maior assertividade na defesa dos seus interesses nacionais, inclusive no controle da sua própria população, como se pretendesse demonstrar que a sua já enorme inserção econômica mundial não significa que ela esteja caminhando na direção dos valores e princípios típicos das economias democráticas de mercado, e que essa atitude positiva na defesa do livre comércio e da livre concorrência internacional não se traduz necessariamente em maior democracia no plano político interno.
Do outro lado do mundo, confirmando a atitude típica dos militares, em todo e qualquer lugar do planeta – que é a da paranoia securitária –, o pessoal do Pentágono e do próprio governo americano elegeu a China como a substituta da Rússia nos possíveis embates decorrentes de algum choque futuro de interesses, seja nos mares da China, os do sul e os do leste, seja na velha questão de Taiwan, ou seja, reforçando a hipótese de uma nova Guerra Fria, podendo desdobrar-se em algum futuro conflito bélico, ou seja, uma guerra quente. Alguns analistas, até famosos, acreditam, ou fingem acreditar, numa Terceira Guerra Mundial, isto é, envolvendo as grandes potências militares, dotadas de um poder propriamente devastador em todas as áreas das ferramentas militares, das mais convencionais às nucleares. Não partilho absolutamente desse tipo de temor, que na verdade pode ser simples demonstração de oportunismo publicitário.
Não apenas descarto qualquer possibilidade de uma terceira grande conflagração global, como tampouco considero que estejamos assistindo a uma nova Guerra Fria no sentido usual, geopolítico, da expressão. A Guerra Fria foi um episódio circunscrito das relações internacionais do imediato pós-Segunda Guerra e até um aspecto peculiar das relações bilaterais de competição política estratégica entre os dois grandes atores do cenário internacional, EUA e URSS, naquela conjuntura histórica específica da história mundial, que não tem mais chance de se reproduzir atualmente entre os dois novos grandes atores das relações internacionais contemporâneas, os EUA e a China. Não creio que estejamos caminhando para uma grande confrontação estratégica potencial, suscetível de configurar um novo ambiente de Guerra Fria entre esses dois gigantes. Tal tipo de cenário implica igualmente conflitos quentes entre atores secundários, que seriam o equivalentes dos cenários regionais de enfrentamento estratégico, do tipo proxy wars, como vimos naquele período histórico (digamos a guerra civil na Grécia e a guerra da Coreia, na era Truman-Eisenhower, o episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, nos anos Kennedy, a guerra do Vietnã, que atravessa diversas administrações americanas, ou diferentes guerras civis na África, servindo também a essa competição estratégica, notadamente em Angola).
Essa Guerra Fria tipicamente geopolítica dos anos 1940 aos 80 passou, e não voltará mais. E nem foi a Guerra Fria que determinou o desaparecimento de um dos dois grandes atores daquele período, nomeadamente a União Soviética, dotada de um arsenal militar impressionante, incluindo um número formidável de ogivas nucleares e seus respectivos meios de delivery. A União Soviética não desapareceu por causa dessa competição, ou mesmo, isso ocorreu apenas indiretamente, se considerarmos o efeito da Strategic Defense Initiative, a “guerra nas estrelas” de Reagan, no enfraquecimento decisivo de sua capacidade econômica ao tentar competir com a enorme fortaleza do império americano no plano econômico. A URSS desapareceu por uma espécie de implosão auto-induzida, pela pressão de suas próprias contradições internas, por que simplesmente ela não consegui satisfazer economicamente o seu próprio povo, e também por que a inevitável fome de liberdade dos povos submetidos ao seu império despótico ajudou na sublevação geral de todo o sistema coletivista criado na Europa central e oriental durante a era do moderno socialismo escravocrata.
Segundo o novo autocrata de Moscou, referindo-se à essa auto-implosão, “o desaparecimento da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX”, uma opinião com a qual se pode facilmente concordar, desde que se façam os ajustes necessários para medir o real impacto dessa “catástrofe geopolítica”. Ela teve, de fato, um enorme impacto, não apenas nas relações internacionais, mas também, e sobretudo, para o próprio povo russo, até então escravizado sob o jugo soviético do Partido Comunista. O desaparecimento da União Soviética deu um golpe fatal na legitimidade do comunismo enquanto forma de governo, retirou as bases econômicas de um sistema totalmente ineficiente de organização social da produção e libertou milhões de pessoas da entropia totalitária, trazendo, talvez, um pequeno acréscimo ao PIB global das economias de mercado, mas um enorme aporte de trabalhadores podendo, enfim, serem integrados à divisão internacional do trabalho e aos fluxos mundiais de consumo. Foi, portanto, uma “catástrofe” eminentemente positiva para os povos antes submetidos a um regime de exclusão interna e externa, e para a própria interdependência global.

3. O que acontece de novo, atualmente, que pode ser igual ao passado?
O que estamos assistindo agora, na verdade, é a uma Guerra Fria econômica, ou algo próximo disso. Digo isto porque não me parece haver nada capaz de provocar uma confrontação em grande escala entre as maiores potências. O que temos, na presente conjuntura, são fricções comerciais e desalinhamentos monetários, num cenário de ajustes pós-crise. Existem disputas políticas sobre como as políticas econômicas nacionais devem levar em consideração seus impactos sobre a situação econômica de outros países. Como Mark Twain poderia ter argumentado, os rumores sobre uma guerra cambial global são grandemente exagerados. É certo que vários países ainda não superaram totalmente a crise financeira que os abateu entre 2008 e 2009, mas essa crise é apenas uma, dentre muitas outras, que afetam mercados dinâmicos de forma recorrente desde o começo do capitalismo. Os profetas da crise final do capitalismo e outros utopistas do gênero que se apresentaram com estardalhaço no momento das turbulências em Wall Street, e que até ensaiaram um ridículo movimento para “Ocupar Wall Street” (sempre contando com o apoio verbal de diversos idiotas da academia), já recolheram suas bandeiras, em face do novo vigor demonstrado pela recuperação do emprego e da produção – ainda que ainda não da renda – nos Estados Unidos.
Na ocasião foram apresentadas muitas concepções errôneas, várias delas propagadas pelos mesmos utopistas conhecidos, sobre as origens e o desenvolvimento dessa crise financeira, que teria iniciado – para se contrapor à Grande Depressão dos anos 1930 – uma Grande Recessão que prometia durar muitos anos. Como novamente poderia ter argumentado Mark Twain, os rumores a esse respeito também foram algo exagerados. Não é exatamente verdade que a crise de 2008-2009 tenha sido provocada pela desregulação dos mercados financeiros, ainda que a regulação flexível, ou mal implementada, possa ter facilitado a expansão de várias bolhas nos mercados. O maior responsável pela bolha que provocou o desastre, porém, foram as baixas taxas de juros definidas pelos bancos centrais, a começar pelo Federal Reserve, durante um período muito longo. Da mesma maneira, mas talvez por meios e instrumentos um pouco diferentes, que os velhos Lords of Finance dos anos 1920 criaram as condições que levaram à crise de 1929 e à depressão dos anos 1930, pela sua ação ou inação, a presente crise é o resultado de políticas inadequadas dos novos Lords of Finance (ver o livro de Liaquat Ahamed, Lords of Finance: the Bankers who Broke the World; New York: Penguin, 2009.)
Tampouco é verdade que essa crise, ou as crises – já que elas são várias, como sempre interconectadas – são suficientemente severas para justificar o programa, que muitos recomendam, de um novo Bretton Woods, ou seja, um redesenho completo das relações econômicas mundiais, com a restruturação das organizações existentes. Menções a uma nova arquitetura financeira internacional, ou mesmo de redistribuição do poder econômico mundial, estão em contradição com as realidades mais prosaicas dos nossos dias. Comentaristas superficiais gostam de recorrer a grandes analogias históricas – que em geral são falsas – para falar dos eventos correntes, mas o fato é que não estamos vivenciando nenhum grande ajuste posterior a alguma crise de proporções monumentais, como gostariam alguns. Vivemos, é certo, uma transição, mas não uma revolução, qualquer que seja o sentido que possamos dar a esses conceitos. Pode-se, em todo caso, verificar rapidamente os precedentes.
 Não estamos em face de um reordenamento radical e completo da ordem mundial, após algum evento cataclísmico, afetando todos e cada um dos grandes atores da cena internacional, ou mesmo regional. Não estamos em Vesfália, em 1648; não estamos em Viena em 1815; tampouco estamos em Paris ou Versalhes, em 1919, sequer em Bretton Woods em 1944, e muito menos em São Francisco, em 1945. Tampouco enfrentamos turbulências financeiras nas principais economias emergentes, como foi o caso na segunda metade dos anos 1990. Definitivamente, não estamos em nenhum momento de refundação fundamental da ordem política e econômica internacional. Simplesmente estamos, atualmente, no meio de algo semelhante aos anos 1930, ou seja, uma crise em países avançados, tentando administrar sua recuperação por meio de respostas nacionais, cada uma delas adaptada a circunstâncias específicas de cada país, e desvinculada dos maiores desastres afetando os demais e cada um dos países envolvidos no processo.
Para ser mais preciso, com exceção dos Estados Unidos, que já realizou seu dever de casa, alguns países europeus atravessam algum ponto entre 1931 e 1933, ainda no meio de uma recessão, mas não numa depressão. O nível de desemprego não é tão alto quanto em 1933, e está provavelmente alinhado com os padrões dos nossos dias. Os fluxos comerciais e financeiros não foram tão desestruturados quanto nos anos 1930, ainda que a liberalização econômica tenha regredido: apenas revertemos a uma versão light do protecionismo comercial dos velhos tempos, mas sem cotas ou restrições quantitativas ao velho estilo.

4. O que vem a ser a nova guerra fria econômica?
Esta nova Guerra Fria Econômica emerge a partir de mudanças estruturais na economia mundial, já em curso desde os anos 1980, quando a China começou a flexionar os seus músculos novamente; desde então muitas coisas mudaram, no mundo e na própria China. Nesse processo, muitos países em desenvolvimento deixaram de implementar projetos nacionais, introvertidos, de desenvolvimento nacional e abriram-se aos investimentos estrangeiros. Peter Drucker já apontava essas transformações na economia mundial num famoso artigo da Foreign Affairs, em meados dos anos 1980. A partir dessas novas realidades, que foram sendo implementadas por vezes gradualmente, em outros casos de forma brusca, a economia mundial foi sendo transformada numa nova configuração, geralmente de maneira irreversível, embora gradualmente. No caso do Brasil, o que tivemos foi uma ascensão fulgurante, muito vinculada à demanda da China, diga-se de passagem, seguida de uma derrocada espetacular, mas esse fracasso retumbante não tem nada a ver com uma suposta crise mundial, e sim decorre, de modo acabado e inteiramente, de erros de política econômica exclusivamente nacionais.
No plano mundial, nem tudo mudou, obviamente. As principais instituições de tomada de decisões ainda continuam a ser o que sempre foram, com quase a mesma distribuição dos direitos de voto. O FMI e o Banco Mundial estão no meio de seus labores para definir uma nova repartição de votos, tendo já operado algumas acomodações. Os votos coletivos da China, da Índia e do Brasil são 20% menores do que os da Bélgica, dos Países Baixos e da Itália, a despeito do fato que o PIB conjunto do primeiros países é quatro vezes maior do que aquele de seus contrapartes europeus; eles têm uma população 29 vezes maior. Estas são algumas das razões para uma nova Guerra Fria econômica, mas não são, nem de longe, as únicas. Seus principais atores parecem ser os dois novos gigantes da economia mundial, mas provavelmente o cenário não ficará restrito a essa nova bipolaridade, ainda que ela seja dominante.
O que temos hoje, portanto, é algo completamente diferente da velha Guerra Fria geopolítica daqueles tempos de oposição não só ideológica, mas sobretudo militar entre dois impérios absolutamente nas antípodas nos planos ideológico e de organização econômica e política, uma confrontação geopolítica por poder e prestígio entre aqueles dois gigantes, o que não é o caso, de nenhuma forma, da suposta atual confrontação estratégica entre EUA e China. A nova Guerra Fria econômica entre esses dois atores não significa uma competição entre polos opostos do sistema internacional de poder: tanto os EUA quanto a China são representantes da moderna interdependência global, duas jurisdições políticas distintas e separadas, mas unidas no mesmo universo das economias de mercado, ainda que, de um lado, tenhamos uma velha democracia política e do outro, uma ainda mais velha tirania política administrando uma nova economia de mercado. Trata-se, obviamente uma nova situação política, inédita nas relações internacionais, que é difícil de ser mentalmente aceita, e considerada como válida, por aqueles que tendem a visualizar o mundo sob o prisma das mesmas velhas concepções que vigoraram em períodos anteriores.
Em outros termos, não é possível analisar a nova Guerra Fria Econômica ficando prisioneiro dos mesmos esquemas mentais da velha Guerra Fria geopolítica, o que é o que parece estar acontecendo com os estrategistas do Pentágono e com um número considerável de analistas políticos contemporâneos (mas ainda raciocinando com base em antigos cenários, que não mais vão se reproduzir na atual fase das relações internacionais contemporâneas). Esses estrategistas anacrônicos, mais especializados em desperdiçar os recursos da coletividade do que em analisar as reais ameaças ao seu país, elegeram a China como o grande contendor da atual fase da política mundial, o que representa um erro monumental em termos de alocações orçamentárias e de disposições táticas sobre o terreno, ademais de investimentos exagerados em novos meios de combate que provavelmente nunca serão usados nas dimensões imaginadas.

5. Como escapar dos velhos moldes mentais, viseiras conceituais?
Como administrar as novas realidades no terreno econômico, dispondo das mesmas alavancas políticas e das mesmas velhas estruturas de tomada de decisão como nos processos do passado? Esta é uma questão complicada, sem uma resposta clara ao dilema, uma vez que duas questões se sobrepõem, aqui: uma é a tarefa dos tomadores de decisão, que precisam administrar concretamente seus países respectivos, a outra é justamente interpretar políticas e tomadas de decisão com base em discursos que possam ser apresentados como credíveis aos olhos (e bolsos) de uma cidadania cada vez mais ativa, participante e votante. Administrar a economia mundial é uma pretensão que mesmo o velho G7 nunca conseguiu alcançar nos seus tempos gloriosos. Os países desenvolvidos controlavam então uma grande proporção do PIB mundial e dos fluxos comerciais e financeiros. Mas eles nunca foram capazes de coordenar suas políticas macroeconômicas entre eles mesmos; menos ainda se poderia esperar que eles estabelecessem regras e metas para o resto do mundo. O G8, que durante certo tempo incorporou a Rússia, tampouco o fez, e por isso o G20 foi chamado à mesa de operação.
Atualmente, com uma lenta e penosa recuperação nas economias avançadas, parece difícil conceber que mesmo o G20 possa ser capaz de formular o que poderia ser feito para restaurar o crescimento a partir dos níveis próximos da estagnação em várias economias europeias. Além dos problemas cíclicos afetando as grandes economias (com as exceções da China, da Índia e de alguns outros países), existem vários desafios globais à frente, entre eles o da pobreza nos países menos avançados, e grandes decisões a serem tomadas em relação a questões ambientais, a violações dos direitos humanos em países não democráticos, e vários outros temas relevantes.
Uma estratégia singular poderia ser a definição de apenas uma grande meta global para a comunidade mundial: teria de ser a promoção do desenvolvimento global, não exatamente através da assistência (ou a tradicional Ajuda Oficial ao Desenvolvimento), mas prioritariamente através de uma real liberalização comercial, especialmente no setor agrícola, a única possibilidade efetiva para que os países menos avançados possam ser integrados à economia mundial. Os Estados Unidos e a União Europeia possuem, evidentemente, a maior responsabilidade nesse terreno.
É altamente improvável que propostas consensuais relativas ao desenvolvimento global possam emergir de um fórum tão amplo quanto o G20 financeiro, muito heterogêneo para ser capaz de alcançar posições comuns. Talvez fosse mais indicado lograr uma evolução informal do atual G8 para um novo G13, interrompendo o ciclo do atual G20 (o que talvez já seja difícil de se obter). Isso representaria agregar aos atuais membros do G8 outras cinco grandes economias, nomeadamente Brasil, China, Índia, África do Sul, e ou Indonésia ou México. A experiência demonstra que pequenos grupos informais estão mais próximos de se entenderam sobre ações concretas do que grandes órgãos institucionalizados que acabam dominados pela lerdeza burocrática e desentendimentos políticos. 

6. Novas perspectivas para novas realidades?
O que deve ser feito? O maior problema nessa modalidade organizacional de se ter um G20 diminuído seria o de como adquirir a legitimidade implícita ao ato de falar para toda a comunidade mundial partindo de um fórum de apenas 13 países.  Para resolver essa limitação se necessitaria de um grau de confiança política entre os líderes desses 13 países, definindo um terreno de entendimentos recíprocos entre eles que teria de ser compatível com a função de representação mais ampla que eles pretenderiam assumir em nome de toda a comunidade de nações.
Encontrar terrenos comuns é uma tarefa dura de ser alcançada no estado atual das relações internacionais, caracterizada, como já se sublinhou, por uma guerra fria econômica típica das fases de transição. Parece ser bastante difícil de se lograr uma coordenação perfeita das agendas dos grandes países avançados e das economias emergentes e, mais ainda, entre eles todos e os demais membros das organizações internacionais que eles pretenderiam “substituir”. O mundo não é, simplesmente, tão globalizado como se requereria para alcançar esse tipo de interação. Disparidades de interesses, diferenças entre níveis de desenvolvimento, desequilíbrios entre os países, vários fatores se combinam para tornar praticamente impossível um exercício de coordenação desse tipo.
Uma proposta mais modesta poderia ser se obter uma interação mais frequente – uma vez ao ano – entre os líderes desse novo G13. Sherpas especialmente designados, encontrando-se duas vezes ao ano, poderiam ser mobiliados para discutir questões comerciais, assuntos ambientais, a proteção dos direitos humanos em países apresentando conflitos, missões de peace-keeping das Nações Unidas e outros temas do gênero, dotados de mandatos específicos de seus líderes políticos. Mas não se deve esperar pela ONU para organizar esse tipo de agenda. Já é difícil implementar qualquer coisa através da ONU, um órgão muito burocrático e passavelmente caótico. Melhor realizar a coordenação de agendas através das três mais importantes agências para a globalização contemporânea: o FMI, o Banco Mundial e a OMC.
A tarefa principal dos “novos sherpas” seria a de assegurar a coordenação econômica internacional em torno dos temas mais relevantes para a comunidade global. Uma sugestão possível seria tentar estabelecer um “global new deal”, um novo pacto mundial, intercambiando uma proteção extensiva aos investimentos e à riqueza proprietária (patentes e coisas do gênero), assim como outras condições apropriadas para o desenvolvimento da atividade produtiva no plano microeconômico, do lado dos países em desenvolvimento (ou recebedores de IDE), contra práticas de licenciamento extensivo e investimentos efetivos e liberalização comercial da parte dos países ricos e dos investidores privados. Esse tipo de pacto, ao ampliar os direitos proprietários para os ricos, poderia resultar no fortalecimento dos fluxos de investimentos financeiros e de comércio para os pobres, dando um grande impulso à globalização.
A assistência tradicional ao desenvolvimento, por ineficiente, deveria ser substituída, essencialmente, por um novo foco nas melhorias educacionais graduais, ou seja, um extenso programa para a qualificação de recursos humanos. A assistência, enquanto tal, deveria ser  as limitada à implementação de um programa consistente de erradicação da maior parte das doenças infecciosas nos países africanos e em vários outras nações em desenvolvimento. A maior razão para a persistência da pobreza nesses países não é exatamente a falta de recursos, mas a ausência de governança e sua não-integração à economia mundial através de vínculos comerciais.
Considerando que questões de governança democrática e de proteção dos direitos humanos podem ser um desafio para países como a China, ou mesmo, talvez, para a Rússia, o alvo principal da agenda de um novo G13 poderia ser a adoção de altos padrões de governança pública na acepção técnica desta expressão. Na atual fase de guerra fria econômica pode ser precoce a tentativa de se fazer  da governança democrática e do respeito pelos direitos humanos o critério decisivo para a cooperação bilateral ou multilateral. Mas estes devem ser os fins últimos de qualquer tipo governança global.
Em última instância, a agenda de Fukuyama permanece atual e absolutamente necessária. Remeto, a propósito, ao meu artigo: “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?” (Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; link: http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/05/v11n1a03.pdf). Esse programa não tem nada a ver com o fim da história, e sim com o fim dos regimes autoritários e fechados economicamente. Esse fim não será imposto de fora para dentro, mas as democracias de mercado, se são coerentes com seus princípios e valores, devem ter democracia e direitos humanos como critérios distintivos em suas respectivas políticas externas. Ou seja, tudo o que não foi feito pela diplomacia lulopetista a partir de 2013.

7. Quais implicações para o Brasil em termos de defesa e segurança?
Não tenho nenhuma ilusão de que minha visão – relativamente benigna, digamos assim – acerca dos desenvolvimentos atuais e futuros da interdependência global seja partilhada pelos responsáveis pela segurança e defesa do país, ou por aqueles que são supostos representar sua diplomacia, agora ou no futuro imediato. Os fundamentos de minha visão do mundo, e da política externa brasileira, são bem diferentes das que exibem, respectivamente, soldados e diplomatas, os dois atores por excelência, segundo Raymond Aron, das relações internacionais dos grandes estados da contemporaneidade, ou de todas as épocas, para ser preciso. Considero que a visão de ambos, soldados e diplomatas brasileiros, carece de realismo, os primeiros por excesso de zelo defensivo, os segundos por carência de espírito ofensivo, embora não consiga, neste momento, explicar de maneira conveniente os fundamentos desta minha visão, ou de porque considero as posturas de ambas categorias essencialmente utópicas e desconectadas das realidades do mundo. Eu o farei no momento oportuno, mas neste momento ofereço apenas algumas alusões a estas diferenças de visão do mundo.
O Brasil costuma dizer, pela voz autorizada de seus diplomatas, que sua projeção internacional se dá como um “Estado de Direito”, ou seja, ele não pretende, e talvez não possa, se projetar como um “Estado de poder”, que é o que fazem normalmente as grandes potências. O refúgio no Direito, e na invocação sempre lembrada, e repetida, no multilateralismo podem ser a expressão dessa incapacidade material, que é simplesmente a demonstração unilateralista, e arrogante, de poder, a que o Brasil recorreria, em determinadas circunstâncias, se outras fossem as características básicas de sua ordem interna. Não conheço Estados que, podendo se projetar através do poder, escolham se recolher no multilateralismo e no Direito internacional, enquanto princípios organizadores de sua expressão própria. Ou talvez existam, como por exemplo Canadá, Alemanha e Japão, atualmente, mas temos de reconhecer que esses Estados, com exceção do Canadá (por circunstâncias específicas à sua história), já tentaram, mas falharam, se impor pela projeção de poder. Foram contidos por uma coalizão ou por poderes mais poderosos, digamos assim.
Os diplomatas se refugiam no universo confortável do multilateralismo contemporâneo, que tem discurso e regras próprias, num tranquilo distanciamento em relação às duras realidades do interior do Brasil, um país que, se não é um Failed State, no sentido que se costuma atribuir a esse conceito, é pelo menos um Failing State, no sentido em que ele falha terrivelmente em assegurar uma vida digna à maioria de seus cidadãos (ou seriam súditos do Estado). O Brasil se constituiu como Estado antes de se instituir como nação, e assim continua até hoje, com agravantes. O Estado tudo absorve, tudo determina, tudo regula (menos a si próprio, como dizia Roberto Campos) e tudo proíbe, falhando terrivelmente em conceder aquilo que pode ser considerado mínimo em suas obrigações estatais: um Estado de direito (ainda estamos aquém da Magna Carta, mais de 800 anos depois), a segurança nos contratos, a segurança individual contra ameaças à vida e à propriedade, uma infraestrutura razoável, enfim, a liberdade de ir e vir, a liberdade de empreender, para que possamos criar nosso próprio bem-estar e prosperidade. O Estado brasileiro não é apenas patético em sua sanha reguladora, ele é sumamente ridículo. É este Estado que nós, diplomatas, somos chamados a defender nos cenáculos do multilateralismo contemporâneo.
Os soldados, por sua vez, projetam sobre si mesmos, e sobre o Estado brasileiro uma missão universal de defesa da soberania brasileira, supostamente ameaçada por não se sabe bem quais ameaças externas, que vai muito além da sua própria capacidade de defesa efetiva, e que vai, também, muito além das próprias necessidades do país. Eles o fazem por dever de ofício, e por imaginarem que estão oferecendo a melhor defesa que o dinheiro (da nação) pode comprar. O problema é que esse dinheiro não é, nem nunca será, suficiente para o que eles, soldados, imaginam ser necessário; pior, talvez, esse dinheiro, de toda forma, é excedentário ao que é, ou seria, realmente necessário para a defesa e a segurança do país, ou passa à margem, ao lado, longe daquilo que seria realmente adequado a essa defesa e segurança, soberanamente indiferente ao que seria conveniente do ponto de vista da melhor relação custo-benefício imaginável.
Sou suspeito para dizer, por não ser especialista nem em defesa, nem em segurança, sendo apenas um modesto observador de realidades econômicas e sociais, antes até de ser um suposto especialista em relações internacionais. Mas a minha modesta impressão é a de que nem a diplomacia, nem a defesa do país estão adaptados aos requerimentos de modernização da sociedade brasileira, requerimentos estes que estão sendo permanentemente obstaculizados, sabotados, impedidos pela existência de um Estado disfuncional, de corporações de ofício autocentradas e autistas, por uma realidade que um jurista inventivo poderia chamar de patrimonialismo weberiano, uma espécie de estamento burocrático largamente disseminado por todos os poros do Estado, servindo a si mesmo e a seus interesses através, por meio desse Estado disfuncional. O Brasil, hoje, é uma nação acorrentada a um ogro famélico, que é esse Estado.
Não vou elaborar mais a esse respeito, sob risco de ser confirmado em uma (auto?) designação de “anarco-diplomata”, o que já seria uma contradição nos termos, pois um servidor do Estado não poderia ser, teoricamente, contra esse mesmo Estado. Pois eu sou, tranquilamente, contra o atual Estado brasileiro, uma monstruosidade burocrática que consome imensos recursos da nação, devolvendo muito pouca coisa em troca, a não ser dispensando proibições, regras, interdições, e obrigações impositivas, fiscais e para-fiscais, que tornam a vida do empreendedor, e do trabalhador um inferno pior que o primeiro círculo de Dante. Fica aqui uma condenação em regra desse Estado, que pode parecer injusta, despropositada, inadequada, inconveniente e irrealista, mas creio que esse tipo de acusação é próprio das corporações de ofício na defesa de sua própria razão burocrática, que se agrega à razão de Estado, em muitos casos contrária aos interesses da cidadania.
Vou elaborar a respeito, e retornarei para me justificar.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de abril de 2017