Da velha guerra fria
geopolítica à nova guerra fria econômica:
cenários prospectivos das
relações internacionais
Paulo Roberto de Almeida
Sumário:
1. A paz continua impossível, mas é improvável um novo conflito global
2. Velhas e novas realidades da guerra fria
geopolítica
3. O que acontece de novo, atualmente, que pode
ser igual ao passado?
4. O que vem a ser a nova guerra fria econômica?
5. Como escapar dos velhos moldes mentais,
viseiras conceituais?
6. Novas perspectivas
para novas realidades?
7. Quais
implicações para o Brasil em termos de defesa e segurança?
1. A paz
continua impossível, mas é improvável um novo conflito global
Raymond Aron, no seu primeiro
livro de geopolítica publicado no pós-guerra, após voltar de Londres, em 1944,
com as forças do General De Gaulle, intitulado Le Grand Schisme (1948), registrou uma “fórmula” arriscada sobre o estado das relações
internacionais, tal como ele via o cenário mundial naquela conjuntura, mas que
ainda confirmou quase quarenta anos depois, no momento de escrever suas Memórias (1983):
Paz impossível, guerra improvável
Registre-se, talvez desnecessariamente,
que ele se referia – ainda antes da exibição do seu próprio artefato nuclear
por parte da então União Soviética, o que só ocorreria em 1949 – a um
enfrentamento nuclear entre as duas grandes potências, apostando,
desafiadoramente, que elas saberiam manter-se sabiamente “pacíficas”, ante à
realidade devastadora de qualquer novo conflito global depois das demonstrações
de Hiroshima e Nagasaki, pouco mais de dois anos antes. Esse argumento,
praticamente um julgamento arriscado de um pensador genial sobre os cenários à
sua frente – e que ele também julgava válido para o futuro que se lhe oferecia
como previsível naquele momento –, lhe era ditado pela lógica implacável da
racionalidade stricto sensu de
estadistas responsáveis, levando em conta a imensa capacidade destruidora
trazida pela posse de armas nucleares aos grandes contendores do jogo
geoestratégico. Ele talvez se permitisse revisar ligeiramente sua “fórmula”, em
face de ditadores ao estilo daquele gordinho sinistro da Coreia do Norte, que
não se constrange, como não se constrangia o líder chinês Mao Tsé-tung, à época,
ante a possibilidade de um confronto nuclear.
No livro que escrevi em
homenagem ao mestre francês – Os
primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais
contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2002), cujo título reproduz, obviamente,
a mensagem de seu último livro, publicado postumamente, Les
dernières années du siècle (1983)
–, eu comecei por lembrar esse “julgamento” e por confirmar minha adesão a ele.
Mas eu também ia além do pensamento do grande polemólogo francês, do grande
pensador da guerra e da paz, o maior geopolítico da segunda metade do século
XX, no sentido em que eu me permitia fazer uma análise basicamente aroniana,
mas essencialmente econômica, das novas realidades criadas a partir da implosão
final do socialismo (um evento histórico a que ele não tinha tido a felicidade
de contemplar, confirmando o acertado de suas posições, um prazer intelectual
que foi facultado a Roberto Campos, “nosso” Raymond Aron), e é sobre isto que
eu pretenderia desenvolver algumas ideias neste ensaio que recolhe algumas
reflexões que venho desenvolvendo nos últimos anos.
Neste ensaio, de características talvez
impressionistas, pretendo desenvolver algumas ideias que se provavelmente se chocarão
com a “paranoia” profissional dos militares (não apenas dos nossos, mas
sobretudo os das grandes potências), mas que me confirmam como um true believer
num futuro não isento de grandes atritos e fricções entre os
superpoderes, mas sem recurso a um confronto global entre esses contendores,
com algumas possíveis proxy wars
(inevitáveis, porque incontroláveis por qualquer uma das grandes potências).
Creio que o que teremos pela frente será um jogo geoestratégico basicamente
econômico e tecnológico, no qual militares continuarão ordenando gastos inúteis
(mas com vários spill-overs
tecnológicos e industriais) e os líderes nacionais continuarão apoiando esses
inúteis brinquedinhos militares, numa infeliz demonstração de machismo militar
e de miopia econômica.
E antes que se me cobre qualquer revisão
de meu pensamento, ante a eleição de qualquer grande idiota à frente de
qualquer uma das grandes potências, confirmo que, sim, líderes políticos e
militares continuarão a dar demonstrações desse machismo militar, numa aparente
escalada aos extremos. Mas também afirmo que muito disse é mera transpiração,
mais do que inspiração, e não resultará em nada mais do que retórica vazia,
muitos orçamentos militares inchados e uma importante perda de oportunidades
para níveis mais elevados de prosperidade e de bem-estar, dados os desvios
inevitáveis de recursos que poderiam estar sendo empregados em educação e
ciência e que estarão sendo devotados a esses brinquedinhos militares de cada
vez última geração.
A lógica política e econômica dos
principais personagens não mudará, assim que a humanidade, nos próximos 50 ou
100 anos, não será muito diferente do que ela é hoje: um pelotão de nações
avançadas, basicamente as mesmas de hoje, um novo pelotão, reforçado, de
economias emergentes (uma designação altamente enganosa) e, ainda, e sempre,
uma massa (mas declinante) de nações muito pobres, entregues a cenários não
muito diversos dos que temos na atualidade: demagogos políticos, populistas
econômicos, alguns ditadores, poucos tiranos, mas ainda muitos líderes
nacionais irresponsáveis, incapazes de retirar seus povos de uma pobreza
dispensável para colocá-los numa situação de modesta classe média, que é para o
que converge a humanidade. Estou sendo tão futurista quanto o foi Raymond Aron
em 1948, mas é assim que vejo o lento desenvolvimento da humanidade no decorrer
do século XXI.
Dito isto, vejamos o que eu poderia
apresentar como nova provocação de minha parte, a partir de velhos e novos argumentos
que podem ser esgrimidos em defesa de uma tese que contesta algumas das posturas
assumidas por soldados e diplomatas. Em fevereiro de 2011, num pequeno artigo
que publiquei em Mundorama, eu
perguntava se a minha hipótese de uma nova guerra fria econômica se apresentava
como um estado já confirmado das relações internacionais ou se ainda constituía
uma espécie de cenário de transição para uma nova realidade ainda não
totalmente definida (ver Paulo Roberto de Almeida, “A Guerra Fria Econômica:
um cenário de transição?”, Mundorama,
01/02/2011; link: http://www.mundorama.net/?p=7197). Mais recentemente, ao ser solicitado a me
pronunciar sobre o que a atual conjuntura nos oferece em matéria de economia e
de relações internacionais para 2017, redigi um novo artigo, também publicado em
Mundorama, no qual retomo, sob nova
forma, argumentos já usados anteriormente (Ver, deste autor, “O que esperar de
2017: economia e política internacional”, Mundorama, 23/03/2017; link: http://www.mundorama.net/?p=23347). Como o essencial dos argumentos efetuados nesses
dois artigos ainda se mantém válido, permito-me reproduzir trechos dessas
formulações iniciais de minha “tese”.
2. Velhas e novas realidades da guerra fria
geopolítica
A Guerra Fria geopolítica está encerrada
definitivamente, ao que parece. A despeito de tensões políticas “normais” e
fricções comerciais entre as grandes potências, não existem mais concepções
totalmente opostas sobre como organizar o mundo, economicamente ou
politicamente. Ninguém mais está dizendo algo semelhante a “nós vamos enterrar
vocês”, como ocorreu em 1959 pela voz do então líder soviético Nikita Krushev.
O sociólogo americano Daniel Bell já tinha antecipado, desde meados dos anos
1950, o “fim das ideologias”, julgamento em certa medida confirmado por Francis
Fukuyama décadas depois. No que depender, entretanto, de true believers à la Eric Hobsbawm, que dispõe, ele, de um número
considerável de inocentes úteis seguidores da mesma doutrina, as ideologias
ainda têm um brilhante futuro pela frente. Mas, não só de inocentes úteis é
feito o mundo; muitos, inclusive responsáveis governamentais e alguns
observadores de alto calibre intelectual, acreditam que estejamos retornando a
padrões já enterrados das relações internacionais, quais sejam, os da velha
Guerra Fria, agora renascendo sob novas roupagens, mas correspondendo,
similarmente, a uma disputa pelo chamado pivô mackinderiano, o controle da
Eurásia, em sua parte central.
De fato, muitos
analistas contemporâneos, partindo da constatação, aliás evidente, da nova
agressividade da Rússia de Putin em relação ao Ocidente em geral – isto é, à
OTAN, e aos EUA e à UE, basicamente – e da velha desconfiança do Império do
Meio, ou seja a China, em relação a esse mesmo Ocidente, já estão falando de
uma nova Guerra Fria, agravada sobretudo pela invasão russa da Ucrânia oriental
e pela incorporação forçada da Criméia à Rússia, bem como por outros gestos em
direção dos bálticos e da Geórgia que, no conjunto, revelam uma tomada de
postura contra a expansão irrefletida da OTAN nos confins imediatos da Rússia.
A China de Xi Jin-ping também tem demonstrado uma política de maior
assertividade na defesa dos seus interesses nacionais, inclusive no controle da
sua própria população, como se pretendesse demonstrar que a sua já enorme
inserção econômica mundial não significa que ela esteja caminhando na direção
dos valores e princípios típicos das economias democráticas de mercado, e que
essa atitude positiva na defesa do livre comércio e da livre concorrência
internacional não se traduz necessariamente em maior democracia no plano
político interno.
Do outro lado do mundo,
confirmando a atitude típica dos militares, em todo e qualquer lugar do planeta
– que é a da paranoia securitária –, o pessoal do Pentágono e do próprio
governo americano elegeu a China como a substituta da Rússia nos possíveis
embates decorrentes de algum choque futuro de interesses, seja nos mares da
China, os do sul e os do leste, seja na velha questão de Taiwan, ou seja,
reforçando a hipótese de uma nova Guerra Fria, podendo desdobrar-se em algum
futuro conflito bélico, ou seja, uma guerra quente. Alguns analistas, até
famosos, acreditam, ou fingem acreditar, numa Terceira Guerra Mundial, isto é,
envolvendo as grandes potências militares, dotadas de um poder propriamente
devastador em todas as áreas das ferramentas militares, das mais convencionais
às nucleares. Não partilho absolutamente desse tipo de temor, que na verdade
pode ser simples demonstração de oportunismo publicitário.
Não apenas descarto
qualquer possibilidade de uma terceira grande conflagração global, como
tampouco considero que estejamos assistindo a uma nova Guerra Fria no sentido
usual, geopolítico, da expressão. A Guerra Fria foi um episódio circunscrito
das relações internacionais do imediato pós-Segunda Guerra e até um aspecto
peculiar das relações bilaterais de competição política estratégica entre os
dois grandes atores do cenário internacional, EUA e URSS, naquela conjuntura
histórica específica da história mundial, que não tem mais chance de se
reproduzir atualmente entre os dois novos grandes atores das relações
internacionais contemporâneas, os EUA e a China. Não creio que estejamos
caminhando para uma grande confrontação estratégica potencial, suscetível de
configurar um novo ambiente de Guerra Fria entre esses dois gigantes. Tal tipo
de cenário implica igualmente conflitos quentes entre atores secundários, que
seriam o equivalentes dos cenários regionais de enfrentamento estratégico, do
tipo proxy wars, como vimos naquele
período histórico (digamos a guerra civil na Grécia e a guerra da Coreia, na
era Truman-Eisenhower, o episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, nos anos
Kennedy, a guerra do Vietnã, que atravessa diversas administrações americanas,
ou diferentes guerras civis na África, servindo também a essa competição
estratégica, notadamente em Angola).
Essa Guerra Fria
tipicamente geopolítica dos anos 1940 aos 80 passou, e não voltará mais. E nem
foi a Guerra Fria que determinou o desaparecimento de um dos dois grandes
atores daquele período, nomeadamente a União Soviética, dotada de um arsenal
militar impressionante, incluindo um número formidável de ogivas nucleares e
seus respectivos meios de delivery. A
União Soviética não desapareceu por causa dessa competição, ou mesmo, isso
ocorreu apenas indiretamente, se considerarmos o efeito da Strategic Defense Initiative, a “guerra nas estrelas” de Reagan, no
enfraquecimento decisivo de sua capacidade econômica ao tentar competir com a
enorme fortaleza do império americano no plano econômico. A URSS desapareceu
por uma espécie de implosão auto-induzida, pela pressão de suas próprias
contradições internas, por que simplesmente ela não consegui satisfazer
economicamente o seu próprio povo, e também por que a inevitável fome de
liberdade dos povos submetidos ao seu império despótico ajudou na sublevação
geral de todo o sistema coletivista criado na Europa central e oriental durante
a era do moderno socialismo escravocrata.
Segundo o novo autocrata
de Moscou, referindo-se à essa auto-implosão, “o desaparecimento da União
Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX”, uma opinião com a
qual se pode facilmente concordar, desde que se façam os ajustes necessários
para medir o real impacto dessa “catástrofe geopolítica”. Ela teve, de fato, um
enorme impacto, não apenas nas relações internacionais, mas também, e
sobretudo, para o próprio povo russo, até então escravizado sob o jugo
soviético do Partido Comunista. O desaparecimento da União Soviética deu um
golpe fatal na legitimidade do comunismo enquanto forma de governo, retirou as
bases econômicas de um sistema totalmente ineficiente de organização social da
produção e libertou milhões de pessoas da entropia totalitária, trazendo,
talvez, um pequeno acréscimo ao PIB global das economias de mercado, mas um
enorme aporte de trabalhadores podendo, enfim, serem integrados à divisão
internacional do trabalho e aos fluxos mundiais de consumo. Foi, portanto, uma
“catástrofe” eminentemente positiva para os povos antes submetidos a um regime
de exclusão interna e externa, e para a própria interdependência global.
3. O que acontece de novo, atualmente, que
pode ser igual ao passado?
O que estamos assistindo
agora, na verdade, é a uma Guerra Fria econômica,
ou algo próximo disso. Digo isto porque não me parece haver nada capaz de
provocar uma confrontação em grande escala entre as maiores potências. O que
temos, na presente conjuntura, são fricções comerciais e desalinhamentos
monetários, num cenário de ajustes pós-crise. Existem disputas políticas sobre
como as políticas econômicas nacionais devem levar em consideração seus
impactos sobre a situação econômica de outros países. Como
Mark Twain poderia ter argumentado, os rumores sobre uma guerra cambial global
são grandemente exagerados. É certo que vários países ainda não superaram
totalmente a crise financeira que os abateu entre 2008 e 2009, mas essa crise é
apenas uma, dentre muitas outras, que afetam mercados dinâmicos de forma
recorrente desde o começo do capitalismo. Os profetas da crise final do
capitalismo e outros utopistas do gênero que se apresentaram com estardalhaço
no momento das turbulências em Wall Street, e que até ensaiaram um ridículo
movimento para “Ocupar Wall Street” (sempre contando com o apoio verbal de diversos
idiotas da academia), já recolheram suas bandeiras, em face do novo vigor
demonstrado pela recuperação do emprego e da produção – ainda que ainda não da
renda – nos Estados Unidos.
Na ocasião foram
apresentadas muitas concepções errôneas, várias delas propagadas pelos mesmos
utopistas conhecidos, sobre as origens e o desenvolvimento dessa crise financeira,
que teria iniciado – para se contrapor à Grande Depressão dos anos 1930 – uma
Grande Recessão que prometia durar muitos anos. Como novamente poderia ter
argumentado Mark Twain, os rumores a esse respeito também foram algo exagerados.
Não é exatamente verdade que a crise de 2008-2009 tenha sido provocada pela
desregulação dos mercados financeiros, ainda que a regulação flexível, ou mal
implementada, possa ter facilitado a expansão de várias bolhas nos mercados. O
maior responsável pela bolha que provocou o desastre, porém, foram as baixas
taxas de juros definidas pelos bancos centrais, a começar pelo Federal Reserve,
durante um período muito longo. Da mesma maneira, mas talvez por meios e
instrumentos um pouco diferentes, que os velhos Lords of Finance dos anos 1920 criaram as condições que levaram à
crise de 1929 e à depressão dos anos 1930, pela sua ação ou inação, a presente
crise é o resultado de políticas inadequadas dos novos Lords of Finance (ver o livro de Liaquat Ahamed, Lords of Finance: the Bankers who Broke the
World; New York: Penguin, 2009.)
Tampouco é verdade que essa
crise, ou as crises – já que elas são várias, como sempre interconectadas – são
suficientemente severas para justificar o programa, que muitos recomendam, de
um novo Bretton Woods, ou seja, um redesenho completo das relações econômicas
mundiais, com a restruturação das organizações existentes. Menções a uma nova
arquitetura financeira internacional, ou mesmo de redistribuição do poder
econômico mundial, estão em contradição com as realidades mais prosaicas dos
nossos dias. Comentaristas superficiais gostam de recorrer a grandes analogias
históricas – que em geral são falsas – para falar dos eventos correntes, mas o
fato é que não estamos vivenciando nenhum grande ajuste posterior a alguma
crise de proporções monumentais, como gostariam alguns. Vivemos, é certo, uma
transição, mas não uma revolução, qualquer que seja o sentido que possamos dar
a esses conceitos. Pode-se, em todo caso, verificar rapidamente os precedentes.
Não estamos em face de um reordenamento
radical e completo da ordem mundial, após algum evento cataclísmico, afetando
todos e cada um dos grandes atores da cena internacional, ou mesmo regional.
Não estamos em Vesfália, em 1648; não estamos em Viena em 1815; tampouco
estamos em Paris ou Versalhes, em 1919, sequer em Bretton Woods em 1944, e
muito menos em São Francisco, em 1945. Tampouco enfrentamos turbulências
financeiras nas principais economias emergentes, como foi o caso na segunda
metade dos anos 1990. Definitivamente, não estamos em nenhum momento de
refundação fundamental da ordem política e econômica internacional.
Simplesmente estamos, atualmente, no meio de algo semelhante aos anos 1930, ou
seja, uma crise em países avançados, tentando administrar sua recuperação por
meio de respostas nacionais, cada uma delas adaptada a circunstâncias
específicas de cada país, e desvinculada dos maiores desastres afetando os
demais e cada um dos países envolvidos no processo.
Para ser mais preciso, com
exceção dos Estados Unidos, que já realizou seu dever de casa, alguns países
europeus atravessam algum ponto entre 1931 e 1933, ainda no meio de uma
recessão, mas não numa depressão. O nível de desemprego não é tão alto quanto
em 1933, e está provavelmente alinhado com os padrões dos nossos dias. Os
fluxos comerciais e financeiros não foram tão desestruturados quanto nos anos
1930, ainda que a liberalização econômica tenha regredido: apenas revertemos a
uma versão light do protecionismo comercial dos velhos tempos, mas sem cotas ou
restrições quantitativas ao velho estilo.
4. O que vem a ser a nova guerra fria
econômica?
Esta nova Guerra Fria Econômica emerge a partir de mudanças
estruturais na economia mundial, já em curso desde os anos 1980, quando a China
começou a flexionar os seus músculos novamente; desde então muitas coisas
mudaram, no mundo e na própria China. Nesse processo, muitos países em
desenvolvimento deixaram de implementar projetos nacionais, introvertidos, de
desenvolvimento nacional e abriram-se aos investimentos estrangeiros. Peter
Drucker já apontava essas transformações na economia mundial num famoso artigo
da Foreign Affairs, em meados dos
anos 1980. A partir dessas novas realidades, que foram sendo implementadas por
vezes gradualmente, em outros casos de forma brusca, a economia mundial foi sendo
transformada numa nova configuração, geralmente de maneira irreversível, embora
gradualmente. No caso do Brasil, o que tivemos foi uma ascensão fulgurante,
muito vinculada à demanda da China, diga-se de passagem, seguida de uma
derrocada espetacular, mas esse fracasso retumbante não tem nada a ver com uma
suposta crise mundial, e sim decorre, de modo acabado e inteiramente, de erros
de política econômica exclusivamente nacionais.
No plano mundial, nem tudo
mudou, obviamente. As principais instituições de tomada de decisões ainda
continuam a ser o que sempre foram, com quase a mesma distribuição dos direitos
de voto. O FMI e o Banco Mundial estão no meio de seus labores para definir uma
nova repartição de votos, tendo já operado algumas acomodações. Os votos
coletivos da China, da Índia e do Brasil são 20% menores do que os da Bélgica,
dos Países Baixos e da Itália, a despeito do fato que o PIB conjunto do
primeiros países é quatro vezes maior do que aquele de seus contrapartes
europeus; eles têm uma população 29 vezes maior. Estas são algumas das razões
para uma nova Guerra Fria econômica,
mas não são, nem de longe, as únicas. Seus principais atores parecem ser os
dois novos gigantes da economia mundial, mas provavelmente o cenário não ficará
restrito a essa nova bipolaridade, ainda que ela seja dominante.
O que temos hoje,
portanto, é algo completamente diferente da velha Guerra Fria geopolítica
daqueles tempos de oposição não só ideológica, mas sobretudo militar entre dois
impérios absolutamente nas antípodas nos planos ideológico e de organização
econômica e política, uma confrontação geopolítica por poder e prestígio entre
aqueles dois gigantes, o que não é o caso, de nenhuma forma, da suposta atual confrontação
estratégica entre EUA e China. A nova Guerra Fria econômica entre esses dois
atores não significa uma competição entre polos opostos do sistema internacional
de poder: tanto os EUA quanto a China são representantes da moderna
interdependência global, duas jurisdições políticas distintas e separadas, mas
unidas no mesmo universo das economias de mercado, ainda que, de um lado,
tenhamos uma velha democracia política e do outro, uma ainda mais velha tirania
política administrando uma nova economia de mercado. Trata-se, obviamente uma
nova situação política, inédita nas relações internacionais, que é difícil de
ser mentalmente aceita, e considerada como válida, por aqueles que tendem a
visualizar o mundo sob o prisma das mesmas velhas concepções que vigoraram em
períodos anteriores.
Em outros termos, não é
possível analisar a nova Guerra Fria Econômica ficando prisioneiro dos mesmos
esquemas mentais da velha Guerra Fria geopolítica, o que é o que parece estar
acontecendo com os estrategistas do Pentágono e com um número considerável de
analistas políticos contemporâneos (mas ainda raciocinando com base em antigos
cenários, que não mais vão se reproduzir na atual fase das relações
internacionais contemporâneas). Esses estrategistas anacrônicos, mais
especializados em desperdiçar os recursos da coletividade do que em analisar as
reais ameaças ao seu país, elegeram a China como o grande contendor da atual
fase da política mundial, o que representa um erro monumental em termos de
alocações orçamentárias e de disposições táticas sobre o terreno, ademais de
investimentos exagerados em novos meios de combate que provavelmente nunca
serão usados nas dimensões imaginadas.
5. Como escapar dos velhos moldes mentais,
viseiras conceituais?
Como administrar as
novas realidades no terreno econômico, dispondo das mesmas alavancas políticas
e das mesmas velhas estruturas de tomada de decisão como nos processos do
passado? Esta é uma questão complicada, sem uma resposta clara ao dilema, uma
vez que duas questões se sobrepõem, aqui: uma é a tarefa dos tomadores de
decisão, que precisam administrar concretamente seus países respectivos, a
outra é justamente interpretar políticas e tomadas de decisão com base em
discursos que possam ser apresentados como credíveis aos olhos (e bolsos) de
uma cidadania cada vez mais ativa, participante e votante. Administrar a
economia mundial é uma pretensão que mesmo o velho G7 nunca conseguiu alcançar
nos seus tempos gloriosos. Os países desenvolvidos controlavam então uma grande
proporção do PIB mundial e dos fluxos comerciais e financeiros. Mas eles nunca
foram capazes de coordenar suas políticas macroeconômicas entre eles mesmos;
menos ainda se poderia esperar que eles estabelecessem regras e metas para o
resto do mundo. O G8, que durante certo tempo incorporou a Rússia, tampouco o
fez, e por isso o G20 foi chamado à mesa de operação.
Atualmente, com uma lenta
e penosa recuperação nas economias avançadas, parece difícil conceber que mesmo
o G20 possa ser capaz de formular o que poderia ser feito para restaurar o
crescimento a partir dos níveis próximos da estagnação em várias economias
europeias. Além dos problemas cíclicos afetando as grandes economias (com as
exceções da China, da Índia e de alguns outros países), existem vários desafios
globais à frente, entre eles o da pobreza nos países menos avançados, e grandes
decisões a serem tomadas em relação a questões ambientais, a violações dos
direitos humanos em países não democráticos, e vários outros temas relevantes.
Uma estratégia singular poderia
ser a definição de apenas uma grande meta global para a comunidade mundial:
teria de ser a promoção do desenvolvimento global, não exatamente através da assistência
(ou a tradicional Ajuda Oficial ao Desenvolvimento), mas prioritariamente
através de uma real liberalização comercial, especialmente no setor agrícola, a
única possibilidade efetiva para que os países menos avançados possam ser
integrados à economia mundial. Os Estados Unidos e a União Europeia possuem,
evidentemente, a maior responsabilidade nesse terreno.
É altamente improvável que
propostas consensuais relativas ao desenvolvimento global possam emergir de um
fórum tão amplo quanto o G20 financeiro, muito heterogêneo para ser capaz de
alcançar posições comuns. Talvez fosse mais indicado lograr uma evolução
informal do atual G8 para um novo G13, interrompendo o ciclo do atual G20 (o
que talvez já seja difícil de se obter). Isso representaria agregar aos atuais
membros do G8 outras cinco grandes economias, nomeadamente Brasil, China,
Índia, África do Sul, e ou Indonésia ou México. A experiência demonstra que
pequenos grupos informais estão mais próximos de se entenderam sobre ações
concretas do que grandes órgãos institucionalizados que acabam dominados pela
lerdeza burocrática e desentendimentos políticos.
6. Novas
perspectivas para novas realidades?
O que deve ser feito? O
maior problema nessa modalidade organizacional de se ter um G20 diminuído seria
o de como adquirir a legitimidade implícita ao ato de falar para toda a
comunidade mundial partindo de um fórum de apenas 13 países. Para resolver essa limitação se necessitaria
de um grau de confiança política entre os líderes desses 13 países, definindo
um terreno de entendimentos recíprocos entre eles que teria de ser compatível
com a função de representação mais ampla que eles pretenderiam assumir em nome
de toda a comunidade de nações.
Encontrar
terrenos comuns é uma tarefa dura de ser alcançada no estado atual das relações
internacionais, caracterizada, como já se sublinhou, por uma guerra fria
econômica típica das fases de transição. Parece ser bastante difícil de se
lograr uma coordenação perfeita das agendas dos grandes países avançados e das
economias emergentes e, mais ainda, entre eles todos e os demais membros das
organizações internacionais que eles pretenderiam “substituir”. O mundo não é,
simplesmente, tão globalizado como se requereria para alcançar esse tipo de
interação. Disparidades de interesses, diferenças entre níveis de
desenvolvimento, desequilíbrios entre os países, vários fatores se combinam
para tornar praticamente impossível um exercício de coordenação desse tipo.
Uma proposta mais modesta
poderia ser se obter uma interação mais frequente – uma vez ao ano – entre os
líderes desse novo G13. Sherpas especialmente designados, encontrando-se duas
vezes ao ano, poderiam ser mobiliados para discutir questões comerciais,
assuntos ambientais, a proteção dos direitos humanos em países apresentando
conflitos, missões de peace-keeping
das Nações Unidas e outros temas do gênero, dotados de mandatos específicos de
seus líderes políticos. Mas não se deve esperar pela ONU para organizar esse
tipo de agenda. Já é difícil implementar qualquer coisa através da ONU, um
órgão muito burocrático e passavelmente caótico. Melhor realizar a coordenação
de agendas através das três mais importantes agências para a globalização
contemporânea: o FMI, o Banco Mundial e a OMC.
A
tarefa principal dos “novos sherpas” seria a de assegurar a coordenação econômica
internacional em torno dos temas mais relevantes para a comunidade global. Uma
sugestão possível seria tentar estabelecer um “global new deal”, um novo pacto
mundial, intercambiando uma proteção extensiva aos investimentos e à riqueza
proprietária (patentes e coisas do gênero), assim como outras condições
apropriadas para o desenvolvimento da atividade produtiva no plano
microeconômico, do lado dos países em desenvolvimento (ou recebedores de IDE), contra
práticas de licenciamento extensivo e investimentos efetivos e liberalização
comercial da parte dos países ricos e dos investidores privados. Esse tipo de
pacto, ao ampliar os direitos proprietários para os ricos, poderia resultar no
fortalecimento dos fluxos de investimentos financeiros e de comércio para os
pobres, dando um grande impulso à globalização.
A
assistência tradicional ao desenvolvimento, por ineficiente, deveria ser
substituída, essencialmente, por um novo foco nas melhorias educacionais
graduais, ou seja, um extenso programa para a qualificação de recursos humanos.
A assistência, enquanto tal, deveria ser
as limitada à implementação de um programa consistente de erradicação da
maior parte das doenças infecciosas nos países africanos e em vários outras
nações em desenvolvimento. A maior razão para a persistência da pobreza nesses
países não é exatamente a falta de recursos, mas a ausência de governança e sua
não-integração à economia mundial através de vínculos comerciais.
Considerando
que questões de governança democrática e de proteção dos direitos humanos podem
ser um desafio para países como a China, ou mesmo, talvez, para a Rússia, o
alvo principal da agenda de um novo G13 poderia ser a adoção de altos padrões
de governança pública na acepção técnica desta expressão. Na atual fase de
guerra fria econômica pode ser precoce a tentativa de se fazer da governança democrática e do respeito pelos
direitos humanos o critério decisivo para a cooperação bilateral ou
multilateral. Mas estes devem ser os fins últimos de qualquer tipo governança
global.
Em
última instância, a agenda de Fukuyama permanece atual e absolutamente
necessária. Remeto, a propósito, ao meu artigo: “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?” (Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p.
8-17; link: http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/05/v11n1a03.pdf). Esse programa não tem
nada a ver com o fim da história, e sim com o fim dos regimes autoritários e
fechados economicamente. Esse fim não será imposto de fora para dentro, mas as
democracias de mercado, se são coerentes com seus princípios e valores, devem
ter democracia e direitos humanos como critérios distintivos em suas respectivas
políticas externas. Ou seja, tudo o que não foi feito pela diplomacia
lulopetista a partir de 2013.
7. Quais
implicações para o Brasil em termos de defesa e segurança?
Não tenho nenhuma ilusão
de que minha visão – relativamente benigna, digamos assim – acerca dos
desenvolvimentos atuais e futuros da interdependência global seja partilhada
pelos responsáveis pela segurança e defesa do país, ou por aqueles que são
supostos representar sua diplomacia, agora ou no futuro imediato. Os
fundamentos de minha visão do mundo, e da política externa brasileira, são bem
diferentes das que exibem, respectivamente, soldados e diplomatas, os dois
atores por excelência, segundo Raymond Aron, das relações internacionais dos
grandes estados da contemporaneidade, ou de todas as épocas, para ser preciso.
Considero que a visão de ambos, soldados e diplomatas brasileiros, carece de
realismo, os primeiros por excesso de zelo defensivo, os segundos por carência
de espírito ofensivo, embora não consiga, neste momento, explicar de maneira
conveniente os fundamentos desta minha visão, ou de porque considero as
posturas de ambas categorias essencialmente utópicas e desconectadas das
realidades do mundo. Eu o farei no momento oportuno, mas neste momento ofereço
apenas algumas alusões a estas diferenças de visão do mundo.
O Brasil costuma dizer,
pela voz autorizada de seus diplomatas, que sua projeção internacional se dá
como um “Estado de Direito”, ou seja, ele não pretende, e talvez não possa, se
projetar como um “Estado de poder”, que é o que fazem normalmente as grandes
potências. O refúgio no Direito, e na invocação sempre lembrada, e repetida, no
multilateralismo podem ser a expressão dessa incapacidade material, que é
simplesmente a demonstração unilateralista, e arrogante, de poder, a que o
Brasil recorreria, em determinadas circunstâncias, se outras fossem as
características básicas de sua ordem interna. Não conheço Estados que, podendo
se projetar através do poder, escolham se recolher no multilateralismo e no
Direito internacional, enquanto princípios organizadores de sua expressão
própria. Ou talvez existam, como por exemplo Canadá, Alemanha e Japão,
atualmente, mas temos de reconhecer que esses Estados, com exceção do Canadá
(por circunstâncias específicas à sua história), já tentaram, mas falharam, se
impor pela projeção de poder. Foram contidos por uma coalizão ou por poderes
mais poderosos, digamos assim.
Os diplomatas se
refugiam no universo confortável do multilateralismo contemporâneo, que tem
discurso e regras próprias, num tranquilo distanciamento em relação às duras
realidades do interior do Brasil, um país que, se não é um Failed State, no sentido que se costuma atribuir a esse conceito, é
pelo menos um Failing State, no
sentido em que ele falha terrivelmente em assegurar uma vida digna à maioria de
seus cidadãos (ou seriam súditos do Estado). O Brasil se constituiu como Estado
antes de se instituir como nação, e assim continua até hoje, com agravantes. O
Estado tudo absorve, tudo determina, tudo regula (menos a si próprio, como
dizia Roberto Campos) e tudo proíbe, falhando terrivelmente em conceder aquilo
que pode ser considerado mínimo em suas obrigações estatais: um Estado de
direito (ainda estamos aquém da Magna Carta, mais de 800 anos depois), a
segurança nos contratos, a segurança individual contra ameaças à vida e à
propriedade, uma infraestrutura razoável, enfim, a liberdade de ir e vir, a
liberdade de empreender, para que possamos criar nosso próprio bem-estar e
prosperidade. O Estado brasileiro não é apenas patético em sua sanha
reguladora, ele é sumamente ridículo. É este Estado que nós, diplomatas, somos
chamados a defender nos cenáculos do multilateralismo contemporâneo.
Os soldados, por sua
vez, projetam sobre si mesmos, e sobre o Estado brasileiro uma missão universal
de defesa da soberania brasileira, supostamente ameaçada por não se sabe bem
quais ameaças externas, que vai muito além da sua própria capacidade de defesa
efetiva, e que vai, também, muito além das próprias necessidades do país. Eles
o fazem por dever de ofício, e por imaginarem que estão oferecendo a melhor
defesa que o dinheiro (da nação) pode comprar. O problema é que esse dinheiro
não é, nem nunca será, suficiente para o que eles, soldados, imaginam ser
necessário; pior, talvez, esse dinheiro, de toda forma, é excedentário ao que é,
ou seria, realmente necessário para a defesa e a segurança do país, ou passa à
margem, ao lado, longe daquilo que seria realmente adequado a essa defesa e
segurança, soberanamente indiferente ao que seria conveniente do ponto de vista
da melhor relação custo-benefício imaginável.
Sou suspeito para dizer,
por não ser especialista nem em defesa, nem em segurança, sendo apenas um
modesto observador de realidades econômicas e sociais, antes até de ser um
suposto especialista em relações internacionais. Mas a minha modesta impressão
é a de que nem a diplomacia, nem a defesa do país estão adaptados aos
requerimentos de modernização da sociedade brasileira, requerimentos estes que
estão sendo permanentemente obstaculizados, sabotados, impedidos pela
existência de um Estado disfuncional, de corporações de ofício autocentradas e
autistas, por uma realidade que um jurista inventivo poderia chamar de
patrimonialismo weberiano, uma espécie de estamento burocrático largamente
disseminado por todos os poros do Estado, servindo a si mesmo e a seus
interesses através, por meio desse Estado disfuncional. O Brasil, hoje, é uma
nação acorrentada a um ogro famélico, que é esse Estado.
Não vou elaborar mais a esse
respeito, sob risco de ser confirmado em uma (auto?) designação de “anarco-diplomata”,
o que já seria uma contradição nos termos, pois um servidor do Estado não
poderia ser, teoricamente, contra esse mesmo Estado. Pois eu sou,
tranquilamente, contra o atual Estado brasileiro, uma monstruosidade burocrática
que consome imensos recursos da nação, devolvendo muito pouca coisa em troca, a
não ser dispensando proibições, regras, interdições, e obrigações impositivas,
fiscais e para-fiscais, que tornam a vida do empreendedor, e do trabalhador um
inferno pior que o primeiro círculo de Dante. Fica aqui uma condenação em regra
desse Estado, que pode parecer injusta, despropositada, inadequada,
inconveniente e irrealista, mas creio que
esse
tipo de acusação
é próprio das corporações de ofício
na defesa de sua própria razão burocrática, que se agrega à razão de Estado, em
muitos casos contrária aos interesses da cidadania.
Vou elaborar a respeito,
e retornarei para me justificar.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de abril de 2017