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domingo, 19 de julho de 2020

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade


Consultor Juridico, 19 de julho de 2020
É preciso estudar os autores brasileiros. Euclides da Cunha (1866-1909) revela-nos a violência cometida contra os sertanejos do interior da Bahia (Canudos, mais especialmente), a par da desolação dos seringueiros e da Amazônia. Euclides da Cunha é uma figura contraditória. Estudioso meticuloso e dedicado, trabalhador incansável, hipocondríaco, republicano que se irritou com a república, positivista que refutou Floriano Peixoto, pai carinhoso nas cartas, marido traído que foi assassinado pelo amante da esposa, em horrível duelo, no qual o amante agiu inegavelmente em legítima defesa. Uma vida marcada pela tragédia e pelo heroísmo. Nada singular. Euclides é a história em forma de denúncia da brutalidade.
Euclides foi salvo, por um triz, da pena de enforcamento, prevista no Código Militar, que poderia lhe ser aplicada após o comentadíssimo episódio do sabre. Conta-se que os cadetes da Escola Militar pretendiam deixar a caserna para saudar o republicano Lopes Trovão, que passava pelo Rio de Janeiro. O Império vivia seus últimos momentos, e era latente um confronto entre os militares e o Imperador. O general comandante da escola proibiu a saída dos alunos, sob o pretexto de que o Ministro da Guerra faria uma inspeção na tropa. À hora em que estavam formados para a revista o cadete Euclides (então com 22 anos) adiantou-se, tentou quebrar o sabre, jogando-o aos pés do Ministro. Foi detido, e por intervenção de seu pai junto ao Imperador teve a pena comutada para afastamento do Exército. Escapou da forca. Entrou para a história. Júlio de Mesquita, dono e editor da Província de São Paulo (hoje o Estadão) interessou-se pelo rapaz, que passou a assinar uma coluna de política nesse importante jornal. Era o ano de 1888. Começa o trilema que marcará a vida de Euclides: exército, política e literatura, em forma de jornalismo.
Alguns anos depois do episódio do sabre, em carta dirigida a seu sogro, General Sólon Ribeiro, datada de 12 de agosto de 1897, Euclides relatou que fora convidado para estudar a região de Canudos, na Bahia. Traçaria os pontos principais da campanha. Confirma que havia aceitado. Dizia que o assunto era importante, e que “estava em jogo a felicidade geral da República”. Já em Canudos, em carta ao advogado Reinaldo Porchat, seu amigo, relatava que no sertão da guerra a vida era insípida e lúgubre, e que a distração consistia em “assistir à chegada de feridos, assistir à partida das tropas”. As informações que Euclides colheu no interior da Bahia constituem a base do livro “Os Sertões”; a primeira edição é de 1902. As edições posteriores, revistas pelo autor ainda em vida, revelam uma guinada na forma de escrever. Euclides abrasileirou sua escrita, adotando prosódia e ortoépica que distintas das formas castiças de Portugal, que tanto conhecia. Abandonou as ênclises.
Há no Brasil uma fortíssima linha de pesquisa em torno de Euclides da Cunha, sobressaindo-se Walnice Nogueira Galvão, a quem, entre outros importantes trabalhos, se deve a publicação das cartas de Euclides (ao lado de Oswaldo Galloti), bem como dos autos do processo referente a seu trágico fim. Há também a inestimável obra biográfica de autoria de Roberto Ventura, precocemente falecido, em acidente de automóvel. Toda a inteligência brasileira já opinou sobre Euclides: Miguel Reale, Gilberto Freyre, Fernando Henrique Cardoso, José Guilherme Merquior. À época de Euclides, há José Veríssimo e Araripe Júnior. Brito Broca também deixou passagens memoráveis sobre Euclides.
Euclides da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, em Cantagalo, no Rio de Janeiro. Estudou engenharia, formando-se na Escola Militar, na Praia Vermelha, na cidade do Rio de Janeiro, depois de readmitido ao Exército, já na era republicana. Era o mais avançado centro de estudos que havia no Brasil. Pontificavam as ideias positivistas e cientificistas. Euclides foi aluno de Benjamin Constant. Bem além das ciências exatas, estudava-se com profundidade a filosofia, com foco no inglês Herbert Spencer e na concepção de que os mais aptos triunfam. Também foi preponderante a influência de Charles Darwin. Euclides estudou Auguste Comte, e só não foi um positivista mais extremado provavelmente porque resistia aos fundamentos quase religiosos dessa escola. A concepção de herói em Thomas Carlyle também influenciou Euclides, na visão de mundo e no estilo.
“Os Sertões” é vigorosa denúncia às atrocidades cometidas contra uma população esquecida do interior brasileiro. Vale como uma primeira tomada de consciência para com um problema complexo na construção da identidade nacional. O problema persiste, ainda que sob outras perspectivas. Euclides é cartesiano. O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Euclides é ambicioso, escreve sobre vários assuntos: geologia, botânica, sociologia, antropologia, política, mineralogia, hidrologia, frenologia, história. Especialistas apontam que há muitos erros e premissas mal fundamentadas.
“Os Sertões” tem muitos méritos, especialmente, na medida em que Euclides provoca olhares sobre uma gente explorada. O livro foi um sucesso. A primeira edição esgotou-se rapidamente. O estilo de Euclides é difícil. Abundam adjetivos, superlativos e oximoros. Tem-se a figura do “pleonasmo euclidiano”. Barroco, e ao mesmo tempo esforçado para o alcance de uma precisão científica, há muito leitor que desiste logo no primeiro capítulo. Vale uma leitura que principie com a descrição do nativo, que Euclides define como o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório.
Euclides denunciou a campanha de Canudos, que definiu como um crime, “na significação integral da palavra”. É um libelo contra a campanha militar, uma acusação direta contra o governo. Euclides já não estava no Exército. Denunciou os soldados como “mercenários inconscientes”. Segundo Euclides, os agressores viviam pacificamente à beira do Atlântico, nos parâmetros de princípios civilizados elaborados na Europa, bem armados pela indústria alemã.
“Os Sertões” principia com uma “nota preliminar”. Euclides observa que o livro foi escrito “nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante”. A maior parte foi redigida em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde trabalhava como engenheiro. Pretende apresentar um estudo sobre as “sub-raças sertanejas”. A visão de Euclides é presa ao paradigma dominante da época. E nem poderia ser de outra forma. Somos filhos e produtos de nosso tempo. Não se pode julgá-lo sem o benefício do retrospecto. Predominava um determinismo que vinculava o homem ao meio. É o que justifica, metodologicamente, a descrição inicial da região inóspita, onde os fatos ocorreram.
Euclides recria o ambiente. A descrição da seca é assustadora. Logo no início do livro Euclides trata de um “higrômetro inesperado e bizarro”. Descreve um soldado morto, cujo corpo a seca manteve intacto, como se fosse uma múmia. Cito: “braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho (...)”. O autor imagina a morte e a sorte (falta de) do soldado mumificado: “sucumbira corpo a corpo com um adversário possante”; não fora percebido, e por isso não fora enterrado com os demais mortos. Estava intacto; murchara apenas: “braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sois ardentes, para os lugares claros, para as estrelas fulgurantes”. Cena de horror: “mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sobra daquela árvore benfazeja”. Com aquela estranha e inesperada imagem, Euclides enfatizava a secura extrema dos ares. Por perto, ainda, havia cavalos mortos, semelhantes às “espécies empalhadas, de museus”. As lufadas moviam as crinas dos cavalos tombados.
A descrição do homem, ainda que hoje saibamos imprecisa e cheia de generalizações, é uma peça especial de literatura e de antropologia. É o perfeito relato de um paradigma. Euclides trata da complexidade do problema etnológico no Brasil. Faz digressões em torno do vulto do jagunço. Explicita a corporatura do sertanejo. Expõe a figura de Antonio Conselheiro, disserta sobre os habitantes de Canudos.
Para Euclides, a gênese das raças mestiças no Brasil era um problema a desvendar. Duvidava que pudéssemos um dia ter uma unidade de raça. Duvidava de que poderia haver um tipo antropológico brasileiro. Acreditava na hipótese do autoctonismo, isto é, o nativo brasileiro não era o resultado de uma migração que se perdia nos tempos. Assim, afirmava que “os selvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes das velhas raças autóctones da terra”. Euclides contrastava o interior com o litoral. Entendia que “estávamos condenados à civilização”. Acrescentava que “ou progredimos, ou desaparecemos”. Ao contrário de Gilberto Freyre, Euclides dedicou apenas três linhas ao português.
Elogia Nina Rodrigues, então na moda, a quem reverenciava como um “investigador tenaz”. Euclides era um darwinista convicto; a seleção natural, escreveu, “mais que quaisquer outras, se faz pelo uso intensivo da ferocidade e da força”. Nesse sentido, darwinista, percebia o mestiço como um intruso, perdido na “concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva”.
Euclides entendia o mestiço como portador de um desequilíbrio nervoso incurável. O mestiço seria, na visão de Euclides, um desequilibrado. A mestiçagem, prossegue Euclides, um retrocesso. Era obcecado com concepções eugênicas de raça superior, que matizavam o paradigma da época, escrevendo que “todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro é uma herança”. Aproximava o mestiço do mulato, raça dominada, “(...) a besta de carga adstrita aos trabalhos sem folga”.
Na leitura dos Sertões, percebe-se, no entanto, que Euclides vai se afeiçoando ao mestiço, em quem descobre um injustiçado ser humano que a política convencional satanizou, com apoio da imprensa, num dos maiores crimes de preconceito vividos na história do Brasil. Euclides era o tipo de homem que somente retrocedia quando o passo para frente fosse o suicídio. Tratarei, nas próximas intervenções, das cartas de Euclides, da guerra de Canudos, das impressões que Euclides colheu na Amazônia, e dos autos do processo de seu trágico fim. É preciso, mais do que nunca, estudarmos os autores brasileiros.


 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.


Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2020, 8h00

Sobre a Guerra Fria Econômica Trump-China - Paulo Almeida

Sobre a atual Guerra Fria Econômica (e tecnológica) de Trump contra a China, que alguns querem EUA vs. China, quando não deveria ser...

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: informação; finalidade: destinação]


Trump reforça sua ofensiva contra a China, com propósitos eleitorais, mas as medidas vão redundar em grave prejuízo para os EUA e para as empresas e consumidores americanos, como já amplamente demonstrado pelas salvaguardas abusivas e ilegais dos três anos passados.
A China consentiu com um acordo de compensações apresentado como uma vitória (tática) americana, quando é uma patente derrota estratégica.
Os EUA já entram derrotados nessa disputa, pois assumem uma postura claramente defensiva e de retaguarda.
Já perderam, agora e no futuro previsível.
Essa derrota se deve inteiramente à estupidez de Trump e de seus assessores imediatos.
Não há como não ficar estupefato com a passividade das classes dominantes, da complacência do establishment, da miopia dos supostos wisest and brightest, que não conseguem ver como os EUA estão cavando sua própria cova, ao rejeitar a necessária e lógica complementaridade entre as duas grandes economias.
Os EUA se isolam, recuam para uma fatal introversão, e ainda fazem pressão sobre parceiros dubitativos para que estes os sigam na burrice. Fazem chantagem em torno do caso da Huawei, mentem como já mentiram no caso do Iraque, e pretendem ser líderes a partir dessa postura defensiva e chantagista. Vão perder.
Parece incrível, mas os impérios mais poderosos podem ruir pela incompetência e estupidez de imperadores ineptos; os impérios romano e otomano são uma prova de que isso pode ocorrer pela má qualidade de suas elites. A Argentina e o próprio Império do Meio constituem provas adicionais da possível derrocada.
A China já venceu porque possui a estratégia correta, a da abertura para a globalização, a do livre comércio e a dos mercados abertos, com o Estado fazendo o seu papel na infraestrutura, no ambiente de negócios, no mercado de capitais, nos acordos internacionais.
A decadência da Grã-Bretanha pré-Thatcher deveria fornecer um claro exemplo sobre o quê NÃO fazer, mas parece que não aprenderam nada.
Quanto ao Brasil, não precisamos ir muito longe, pois temos aqui ao lado uma prova viva de como afundar um país.
O Brasil atual, com seu dirigentes estúpidos e subservientes a Trump — mais até do que aos EUA — pode ser o próximo exemplo de uma decadência made at home, autofabricada.
Que tristeza constatar isso...


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de julho de 2020

sábado, 18 de julho de 2020

Livros publicados nos anos recentes - Paulo Roberto de Almeida

Uma imagem sintética dos livros principais (com algumas lacunas), dos livros publicados nos anos recentes, com remessa aos dados básicos e a imagens individuais neste link:



Tribunal Penal Internacional para Bolsonaro? Não - Entrevista juíza Sylvia Steiner (Antagonista)

ENTREVISTA com a jurista Sylvia Steiner, ex-Juíza do Tribunal Penal Internacional 

Política desastrosa de Bolsonaro na pandemia não configura crime contra a humanidade, diz ex-juíza do Tribunal Penal Internacional

O globalismo e seus descontentes - Paulo Roberto de Almeida


O globalismo e seus descontentes: notas de um contrarianista – Paulo Roberto de Almeida



O artigo a seguir é uma participação especial de Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia e licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles


  1. Fixando os termos do debate: a contracorrente do pensamento único
Todo processo social, todo movimento econômico, toda tendência política, sendo o produto da ação consciente ou inconsciente, deliberada ou involuntária, de indivíduos, de grupos humanos ou de qualquer entidade organizada burocraticamente, despertam naturalmente a reação adversa dos mesmos entes ou personagens, quando os processos, movimentos ou tendências contrariam benefícios consolidados, situações estabelecidas, ganhos reais ou esperados ou quaisquer outras vantagens e privilégios existentes ex ante ou simultaneamente à percepção de uma ruptura do status quo. Trata-se de fenômeno secular, senão milenar, ou seja, forças sociais emergentes provocam, inevitavelmente, sua cota de descontentes, os seus frustrados, os seus órfãos, os seus perdedores.
A revolução industrial produziu o seu quinhão de luddistas, os revoltados contra a modernização da tecelagem, com alguma destruição de teares mecânicos até que se conseguisse empregar os anacrônicos dos teares manuais nas fábricas movidas a caldeiras a vapor. A lâmpada elétrica deixou quase todos os fabricantes de velas sem crescimento da demanda e, logo, sem clientes de qualquer tipo. O automóvel aposentou cavalos, estrebarias, recolhedores de esterco nas cidades e vários outros servidores cavalares. O computador desempregou antigas datilógrafas e operadores de máquinas de calcular, presentes antigamente em quase todas as corporações e escritórios de governo. Vários outros exemplos poderiam ser citados, aliás indefinidamente.
Não foi diferente com a globalização, embora ela seja um fenômeno mais do que antiquíssimo, propriamente existente desde a pré-história, como já revelado no livro de Nayan Chanda: Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007). Mas, após décadas de alternativas antimercado, sob o socialismo real, a nova onda da globalização trouxe consigo certo número de perdedores, como resultado da nova divisão internacional do trabalho e da deslocalização de empresas e investimentos. Ela criou os descontentes da globalização, como já tinha alertado muitos anos atrás o economista indiano Jagdish Bhagwati: In Defense of Globalization (New York: Oxford University Press, 2004; edição brasileira: Em Defesa da Globalização: como a globalização está ajudando ricos e pobres; Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2004).
Com o globalismo, ocorre o mesmo: assim como a expansão das economias de mercado, supostamente capitalistas (mas não se deve confundir as duas coisas, como poderia lembrar o historiador Fernand Braudel), produziu a sua cota de altermundialistas, mais conhecidos como antiglobalizadores, o monstro metafísico do globalismo também produziu o seu pequeno grupo de antiglobalistas, como é natural existir em qualquer fenômeno social, como já adiantado no primeiro parágrafo. Os antiglobalistas são, assim como os luddistas da globalização, seres deslocados pelo multilateralismo contemporâneo, aspirando defender antigas concepções de tempos passados, o nacionalismo estreito do período pré-onusiano, o bilateralismo estrito dos antigos acordos de comércio e navegação, e que pretendem, parafraseando Marx, fazer rodar para trás a roda da História.
Os conceitos e argumentos acima já balizam o espírito sob o qual foi redigida esta nota sobre os inimigos do globalismo, que eu considero um exército brancaleônico de templários, que estaria mais à vontade no terreno mitológico dos unicórnios e das sereias, ou seja, seres bizarros que pretendem se contrapor às correntes de vento ou às marés dos oceanos. Não tenho nenhuma hesitação em revelar desde já meu julgamento sobre esse patético ajuntamento de novos cruzados, depois de já ter enfrentado as hostes mais caóticas de antiglobalizadores, como exemplificado em meu livro Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011), pela simples razão que eu mesmo estou acostumado a nadar contra a corrente. A caução preliminar a ser introduzida aqui é a identificação de qual globalismo se está falando: a versão “paranoica” é a que se vai discutir aqui, se é que ela tem condições de persistir em um mundo aparentemente entregue a uma marcha irrefreável de conquistas científicas. Quanto ao globalismo “normal”, é propriamente patético constatar que se pretenda lutar, num ambiente diplomático, contra a essência fundamental do trabalho dos diplomatas, o ambiente natural de nosso ganha-pão diário.
  1. Nota pessoal do ponto de vista de quem pratica ativamente o ceticismo sadio
Independentemente do tema, assunto, questão ou problema que se apresente em face de minhas aventuras intelectuais aleatórias, sou um praticante ativo, desde a adolescência pelo menos, daquela atitude que foi, pela primeira vez, sintetizada, por um professor de arqueologia ao grupo de estudantes de ginásio que o visitava na USP, pelo conceito de “ceticismo sadio”. Ele explicava a postura como sendo feita de indagações sucessivas ao objeto em exame, ou seja, questionamentos, perguntas, exame acurado das origens e dos fundamentos do problema com o qual se confronta um pesquisador qualquer, o que até parecia inadequado para um “arqueólogo”, sempre pautado pelas evidências da geologia, paleontologia e outras vertentes das ciências naturais. Nunca esqueci a lição, e sempre a cultivei, inclusive instruído desde muitos anos antes pelas leituras de Monteiro Lobato, pois resolvi ater-me à modesta racionalidade desta regra básica no trabalho intelectual: apresentado a qualquer proposição, tese ou argumento no terreno das ciências sociais aplicadas e das humanidades, busque os fundamentos, anote as evidências empíricas, questione os dados, aprofunde a pesquisa antes de aderir a qualquer proposta ou opinião que se lhe apresente, por mais “racionais” ou “evidentes” que possam parecer essas proposições oferecidas para o seu “consumo”.
Devo, entretanto, alertar que a minha atitude cética em face de questões que me são apresentadas não é doentia, ou sistematicamente aplicada a todos os problemas em análise; ela apenas se manifesta de forma racional (pelo menos espero) e de forma compatível com os dados da questão em exame. Continuei aprofundando e refinando o meu “ceticismo sadio” ao longo de toda uma vida dedicada aos estudos e pesquisas nos meus campos de interesse intelectual, que vão de uma ponta a outra das ciências humanas e sociais (inclusive ciências naturais, paleontologia, biologia e outras áreas afins ou vinculadas). Pois foi armado da mesma atitude cética que fui apresentado, não muito tempo atrás, ao tal de antiglobalismo, um movimento para o qual minha atenção foi despertada no contexto de uma diatribe involuntária mantida com o autoproclamado “filósofo” Olavo de Carvalho, a quem eu comecei a chamar de “sofista da Virgínia”, quando eu sequer desconfiava que existisse qualquer tipo de problema com a sua suposta base conceitual, o globalismo, que sempre considerei como uma espécie de equivalente ao processo bem mais conhecido da globalização (termo que os franceses rejeitam, por anglofobia visceral, preferindo o conceito de mundialização, e o seu contrário, o altermundialismo). Vou relatar brevemente como foi essa confrontação, antes de voltar a tratar do globalismo e do antiglobalismo.
No segundo semestre de 2017 – tendo já concedido uma entrevista individual, um ano antes, sobre política externa e economia do Brasil a um novo grupo de mídia – fui solicitado pelo mesmo grupo, Brasil Paralelo, a conceder uma nova entrevista, via hangout, para um programa especial, desta vez sobre o processo de globalização e o conceito de globalismo. Concordei, uma vez que costumo atender essas demandas de caráter didático, colocando minhas pesquisas acadêmicas e minha experiência de vida a serviço de um círculo maior de interessados, e para tal preparei algumas notas, seguindo um roteiro feito pelos organizadores. Essas notas sumárias – “Globalismo e globalização: os bastidores do mundo”, disponíveis no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/12/globalizacao-e-globalismo-como.html) – foram divulgadas no próprio dia da “entrevista”, que afinal revelou-se um “diálogo” com aquele a quem passei a chamar de “Rasputin de subúrbio”: Academia.edu (link: https://www.academia.edu/39178804/Globalismo_e_globalizacao_os_bastidores_do_mundo). No seguimento do “diálogo”, o dito sofista entendeu ser seu dever ofender-me sob diversos epítetos, no que foi seguido por uma horda de seguidores fanáticos, com aqueles impropérios escatológicos que também se tornaram doravante marca registrada do próprio guru da seita, e por ele aplicados a diversos militares do governo Bolsonaro.
Num sentido inverso ao de Buffon, meu “debate” involuntário com Olavo de Carvalho demonstrou como o “estilo faz o homem”, uma vez que ele ocupou-se de me ofender em seus canais próprios, sempre endossado pelos fundamentalistas de uma nova crença: o fantasma do globalismo, como registrei em nova postagem no Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/01/olavo-de-carvalho-o-estilo-faz-o-homem.html). Já enfastiado por esse entrevero surrealista e inútil, dei por encerrado esse exercício desprovido de qualquer charme e interesse num “dossiê” por meio do qual disponibilizei o conjunto dos materiais relativos ao assunto, disposto a não mais voltar ao tema: “Dossiê Globalismo: Brasil Paralelo e seu seguimento”, Academia.edu (http://www.academia.edu/35667769/Dossi%C3%AA_Globalismo_Brasil_Paralelo_e_seu_seguimento). Mas, admito, o assunto é tão aborrecido que não merece atenção.
  1. Globalização real e globalismo surreal: da física à metafísica
Venho agora ao objeto principal deste texto: o globalismo e os “anti”. Não creio ser necessário discutir qualquer aspecto real – inclusive porque ele não existe – do chamado “globalismo”, em vários trabalhos considerado um sinônimo virtual do processo de globalização, este sim abundantemente mapeado na literatura acadêmica e jornalística. Na verdade, o globalismo é geralmente considerado nas diatribes dos “anti” como um tipo particular de globalização, aquela produzida sorrateiramente nas fímbrias da governança global e que se destina, na concepção dessa tribo, a retirar soberania dos Estados nacionais e atribuir toda a potestade a uma “ordem global” dotada de características similares aos grandes organismos multilaterais da atualidade, dentre eles a ONU. Não é possível discutir aqui o tema da globalização, mas permito-me uma referência a um pequeno texto meu, no qual faço uma distinção entre a globalização real, de nível “micro”, e sua vertente “macro”: “Globalização micro e macro: o que é isso?” (blog Diplomatizzandohttp://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/01/globalizacao-economica-e-globalizacao.html).
A primeira forma, de caráter individual ou empresarial, considero a verdadeira globalização: impessoal, irrefreável, não administrada por qualquer poder ou Estado organizado, já que correspondendo justamente ao que Adam Smith chamou de “mão invisível”, o trabalho empreendido pelos agentes econômicos diretos visando objetivos privados absolutamente egoístas, mas não coordenados entre si. A segunda forma não deveria, normalmente, corresponder ao conceito de globalização, uma vez que comporta a ação de Estados e de organismos internacionais com vistas a ordenar e controlar esse processo, não administrável por nenhuma força identificada com um objetivo predeterminado, embora se acredite que ele possa ser objeto de normas e regulamentos instituídos por burocratas nacionais ou internacionais; ou seja, se poderia classificar a forma “macro” da globalização como um esforço de antiglobalização, ou pelo menos de contenção, esforços de controle, por parte de “planejadores sociais” dos efeitos mais evidentes – alguns nefastos para certas categorias sociais – desse processo irrefreável.
Vejamos agora o conceito de “globalismo”, que é praticamente, como já dito, um sinônimo de globalização. Contudo, aos olhos de certos adeptos das teorias da conspiração, ele assume um sentido ideológico, uma vez que costuma despertar reações de cunho soberanista ou nacionalista, que é aquilo que eu costumo chamar de “metafísica do antiglobalismo”. Tanto a esquerda quanto a direita alimentaram suas versões respectivas do antiglobalismo. Na visão da esquerda, mais identificada com os franceses de um conhecido movimento anti ou altermundialista, a globalização (ou mundialização) só trouxe desgraças ao mundo: pobreza, desigualdade social, destruição da natureza e dos recursos da biodiversidade, discriminação racial e de gênero, reforço dos “poderes do grande capital” contra os interesses dos trabalhadores (argumento mais utilizado nas denúncias dos sindicatos de países avançados contra a “deslocalização”, ou seja, os investimentos diretos em países periféricos, de baixos salários), enfim um conjunto de efeitos negativos que precisam ser ativamente combatidos pelos movimentos sociais.
 Estes de fato tentaram, durante vários anos, nas manifestações ruidosas dos anos 1990 e 2000, contra as reuniões das organizações de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), contra as rodadas de negociações do GATT e contra a própria OMC, contra as reuniões do G7, G8, G20 e todas as cúpulas supostamente identificadas com o “capitalismo global”, como as reuniões empresariais anuais do World Economic Forum (em Davos, na Suíça), mas também nos inúmeros convescotes ruidosos reunidos sob a égide do Fórum Social Mundial (um contraponto ao Fórum de Davos), realizados durante vários anos em capitais teoricamente identificadas com suas teses “progressistas” e “por um outro mundo possível”; Porto Alegre (durante muitos anos dominada por governos do PT), Caracas durante a presidência de Hugo Chávez, e outras capitais “alternativas” serviram de cenário para esses convescotes barulhentos, mas pouco efetivos, tanto no plano doutrinal, quanto no que se refere a recomendações práticas para governos.
Como as piores desgraças da globalização não se manifestaram de forma tão evidente quanto o pretendido pelos adeptos do altermundialismo – e como, ao contrário, diversos países da periferia, especialmente na Ásia Pacífico, progrediram de modo espetacular, arrancando milhões de pessoas de uma miséria ancestral para levá-las a uma situação de pobreza aceitável, e até de moderada prosperidade –, esse movimento foi perdendo força, de modo que o antiglobalismo de esquerda deixou de ter aquele charme muito pouco discreto que ele exibia nos anos 1990 e 2000, para se prolongar apenas em pequenos núcleos de irredutíveis anticapitalistas, mais evidentes na academia do que nos movimentos políticos reais.
O que mais contribuiu para provar o fracasso prático dos antiglobalizadores – objeto de muitos artigos meus e até de um livro já referido Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização, reunindo o essencial do que escrevi sobre eles – e a consequente progressiva perda de influência desses “anti” de esquerda nos tempos mais recentes? Algo muito evidente: o mundo deixou de ser caracterizado pela “Grande Divergência” – o processo de aumento das disparidades de renda entre países avançados e economias periféricas, grosso modo entre a segunda revolução industrial e os anos 1980 do século XX – para adentrar no que parece ser uma “Convergência Parcial”, pelo menos envolvendo aqueles países e regiões que se inseriram de modo mais assertivo no processo de globalização capitalista. A diminuição das desigualdades entre os países não impediu, porém, um aumento (temporário?) das desigualdades dentro dos países, o que abriu uma janela de oportunidade para um economista socialista (francês, of course) que pretendeu navegar sobre glórias passadas de Karl Marx: o magnum opus de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, opera um mau diagnóstico sobre as origens da nova concentração de renda (considerada em sua forma unicamente financeira) e prescrições ainda piores para a superação dessa desigualdade, pela taxação dos ricos obviamente.
Estudos econométricos de um outro economista, o catalão Xavier Sala-i-Martin, professor na Columbia University, demonstraram amplamente que a desigualdade – evidente em diversos indicadores de distribuição de renda, especialmente no coeficiente de Gini – diminuiu sensivelmente a partir da terceira “onda” da globalização a partir dos anos 1980, que corresponde aproximadamente à volta da China à divisão mundial do trabalho com as reformas de Deng Xiaoping, seguida pouco depois por igual adesão por parte da Índia aos princípios mais elementares da economia de mercado, da qual ela tinha se afastado desde seu entusiasmo pelo planejamento estatal ainda nos anos 1950. A implosão final da União Soviética, em 1991, e a transição de praticamente todos os países socialistas ao velho e duro capitalismo de modo mais ou menos rápido terminou por encerrar o culto beato que mantinham acadêmicos e sindicalistas ao estatismo e à “soberania econômica nacional”, inclusive porque a volta à prosperidade de alguns desses países congelados na estagnação socialista foi real e espetacular (sobretudo na Europa).
Na América Latina, sempre alimentada por velhas teorias e doutrinas ditas “desenvolvimentistas” com muita influência nas academias e, portanto, entre as elites econômicas igualmente, os resultados foram bastante contraditórios, inclusive porque o fracasso da “década perdida” (a crise da dívida externa nos anos 1980) não foi seguido por reformas realmente profundas na maior parte dos países. Poucos dentre eles aderiram ao novo “cânone” liberal, supostamente simbolizado nas regras do “Consenso de Washington”, de modo que a conversão a economias livres de mercado foi apenas parcial – em parte no México, moderadamente na Colômbia, mais decisivamente no Chile, e tardiamente no Peru –, ao passo que grandes economias, como Argentina, Brasil e também a Venezuela, experimentaram um pouco de “neoliberalismo”, mas tornaram a recorrer às velhas receitas do estatismo e do populismo econômico, mais uma vez guiadas por demagogos de esquerda (os Kirchner, na Argentina; Lula, no Brasil; Hugo Chávez na Venezuela). De forma não surpreendente, aqueles quatro países da franja do Pacífico se engajaram mais resolutamente na globalização, e passaram a experimentar taxas de crescimento mais robustas, ao passo que os demais estagnavam, quando não recuavam no caminho da prosperidade e da inserção na economia global.
  1. Do lado da direita: todo globalismo será castigado, mesmo sem doutrina
Tudo indica, portanto, que o antiglobalismo de esquerda perdeu relevância, mantendo-se apenas em poucos nichos acadêmicos, eventualmente influentes em alguns movimentos políticos e sociais, mas desprovidos de maiores evidências capazes de sustentar uma nova escalada ascensional ao poder, como talvez tenha sido o caso localmente em certos países. Abriu-se então uma janela de oportunidade para o antiglobalismo de direita, de certa forma alimentado pelo efeitos da globalização em países avançados, nos quais as velhas indústrias da segunda revolução industrial deixaram de representar parte relevante do PIB, para abrir espaço às novas economias de serviço, apoiadas bem mais no oferecimento de bens intangíveis do que na produção de manufaturados (que foi deslocada para os países periféricos, ou “emergentes”, em grande parte na Ásia).
Ao mesmo tempo, o fracasso econômico de algumas grandes regiões, assoladas por guerras civis, como na África e no Oriente Médio, ou pelo velho populismo como na América Latina, realimentou novos fluxos migratórios, alguns espetaculares, como resultado de guerras prolongadas e afundamento econômico em Estados falidos. O fato desses novos imigrantes acudirem aos borbotões e de forma frequentemente ilegal às portas de países avançados da Europa e da América do Norte despertou – ao lado de alguns ataques espetaculares de terroristas islâmicos no próprio coração dessas velhas metrópoles coloniais, ou imperialistas – como seria de se esperar, reações xenófobas, e até racistas, por parte das populações brancas, cristãs, e relativamente afluentes nesses países. O fato de que a ONU e suas agências especializadas tendem a assumir uma postura política tendencialmente favorável ao fenômeno migratório, e pragmaticamente assistencialista no tocante ao acolhimento de refugiados econômicos e de catástrofes humanitárias, também contribuiu para a formação de uma reação negativa, por parte das populações dos países “assediados”, o que alimentou o crescimento e o reforço político de partidos e movimentos de direita, excludentes por definição, nacionalistas em sua essência, e manifestamente “antiglobalistas” no que tange à expansão contínua do multilateralismo ao longo dos primeiros setenta anos da ONU e seus órgãos assessórios.
Não existe uma “doutrina” unificada do antiglobalismo, pela simples razão de que as situações nacionais são substancialmente diversas, tanto em termos de “pressões” advindas de fluxos migratórios “não-cristãos”, quanto como resultado de trajetórias políticas nacionais bastante diferentes entre si, mesmo numa Europa supostamente “comunitária”, exibindo algumas políticas comuns de “segurança” ou de política externa, como o “espaço Schengen”, por exemplo, compreendendo, em teoria, 26 dos 28 países membros da União Europeia. Nos Estados Unidos, já pressionados por algumas dezenas de milhões de imigrantes ilegais, a maior parte latino-americanos, a situação política também se modificou sensivelmente a partir da eleição de Donald Trump, e sua assunção à presidência em janeiro de 2017; deliberadamente contrário às políticas de imigração já relativamente restritivas da administração anterior, o novo presidente começou uma ofensiva anti-imigratória simbolizada na construção de um muro na fronteira com o México, até o momento ainda não materializado por inteiro.
No plano mais global das ideias políticas é certo que o multilateralismo, em vigor durante mais de meio século sob a égide da ONU, e dos grandes empreendimentos comunitários ao estilo da EU, encontram-se temporariamente sob os ataques dos novos movimentos de direita, com seus diversos componentes políticos, étnicos, religiosos e culturais, que assumiram algum poder em diversos desses países “assediados”, com a perspectiva de que alguma associação mais flexível entre esses diversos movimentos se manifeste de forma mais ruidosa no plano político-eleitoral, sobretudo na Europa. Os casos mais evidentes se referem à Itália, à Hungria e à Polônia, não por acaso sob a vigilância das instâncias comunitárias que examinam atentamente a evolução de suas políticas nacionais nos terrenos da democracia política, das liberdades de expressão e do respeito aos direitos humanos. Talvez também não por acaso são os países escolhidos como novos “aliados políticos” do novo governo brasileiro, assumidamente de direita e partidário de uma pouco explicada adesão a valores “judaico-cristãos” que estavam, pelo menos aparentemente, esquecidos nas últimas décadas em nosso país.
  1. Teorias conspiratórias sobre o globalismo: déjà vu, all over again
Mais até que no âmbito das políticas nacionais em matéria educacional ou de direitos humanos – que praticamente não existem ou são suficientemente confusas para desafiar qualquer interpretação a respeito –, é no âmbito da política externa que se tem manifestado a mais espetacular inversão de tendências das últimas décadas, ou, mais exatamente, desde sempre, ao se ter evidências fáticas, ainda que igualmente confusas, sobre o antiglobalismo notório da nova administração diplomática brasileira. Ela está a cargo de um funcionário pouco experiente no exercício de funções de alta chefia, muito devotado às ideias da “nova direita” europeia – na verdade, de extrema direita –, e especialmente submisso aos eflúvios antiglobalistas expelidos pelo já referido “sofista da Virgínia”, que não possui nenhum discurso articulado sobre o fenômeno.
Ainda que Olavo de Carvalho não possua nenhum estudo academicamente respeitável sobre o pretenso fenômeno do globalismo, não há dúvida de que ele está na origem da formação de um pequeno grupo de discípulos, organizados em forma de seita antiglobalista, seguidores de suas diatribes – na verdade, reproduzindo tendências já presentes na nova direita americana – contra a globalização e o suposto globalismo. De fato, sem produzir qualquer conhecimento original, na completa ausência de pesquisas baseadas em fontes credíveis, ele vocaliza suspeitas há muito disseminadas em certos meios esotéricos, e as transmite a seus “discípulos” propensos a acreditar na ação obscura de determinados grupos supostamente influentes na sociedade. Completamente desprovidos de fundamentação empírica, reproduzindo verdadeiros absurdos do ponto de vista da história econômica, os poucos escritos e afirmações esparsas de Olavo de Carvalho a propósito desse globalismo fantasmagórico não apresenta nenhum dos requerimentos básicos para eventual submissão a algum journal peer-reviewed.
Sua reação epidérmica, próxima da indigência subintelectual, se parece muito com as teorias conspiratórias de alguns grupos, eventualmente conectados em rede, já detectados em algumas obras de especialistas acadêmicos, dentre eles o historiador escocês (radicado nos EUA), Niall Ferguson, em especial em um livro recente: The Square and the Tower: Networks and Power, from the Freemasons to Facebook(Londres: Penguin Books, 2018), aqui transcrito:
A suspeita cresce [entre os deslocados do mercado de trabalho] de que o mundo é controlado por redes poderosas e exclusivas: os banqueiros, o Establishment, o Sistema, os Judeus, os Maçons, os Illuminati. Quase tudo o que se escreve nessa linha é lixo. Mas seria improvável que as teorias da conspiração fossem tão persistentes se redes desse tipo não existissem.
O problema com os teóricos da conspiração é que, como deslocados ressentidos, eles invariavelmente não compreendem e deformam os meios pelos quais as redes operam. Em especial, eles tendem a acreditar que redes de elites controlam, disfarçadamente, mas facilmente, as estruturas formais de poder. Minha pesquisa – assim como minha experiência – sugere que esse não é o caso. Ao contrário, redes informais frequentemente exibem uma relação altamente ambivalente com respeito às instituições estabelecidas, e em muitos casos mesmo uma relação hostil. (tradução livre do prefácio: “O historiador em rede”)
Mas, o historiador britânico também alerta logo em seguida: “Frequentemente, grandes mudanças na história são o resultado de grupos informalmente organizados de pessoas, parcamente documentados.” Ele também indica, imediatamente, dois nos quais é formalmente envolvido, o World Economic Forum e encontros do grupo Bilderberg, este último frequentemente citado nas diatribes antiglobalistas de Olavo de Carvalho. A despeito de pertencer a muitos outros grupos e redes, na Grã-Bretanha e nos EUA, Niall Ferguson confessa candidamente que não tem “quase nenhum poder” (idem). No entanto, alguns dos exemplos examinados em seu livro chegaram a ter essa ilusão de conseguir mudar o mundo, começando, no século XVIII, pela Illuminatenorden, a Ordem dos Iluminados, na qual circularam intelectuais como Goethe e Herder. Seu fundador a chamava de Liga dos Perfeitabilistas – Bund der Perfektibilisten –, cujo objetivo era assegurar a “vitória da virtude e da sabedoria sobre a estupidez e a malícia” (Cap. 1: “The Mystery of the Illuminati”). Alcançando os Estados Unidos depois da revolução francesa, os Illuminati podem ter estado na origem do “estilo paranoico na política americana”, segundo o historiador Richard Hofstader; eles também teriam tido um papel na fundação da John Birch Society, a mais anticomunista das associações políticas americanas, assim como certa influência na obra do maior conservador cristão do país, Pat Robertson, autor do livro New World Order (1991), uma das possíveis bases do pensamento antiglobalista de Olavo de Carvalho.
Em meu debate involuntário com Olavo de Carvalho fui “presenteado” com a descrição completa do “alto comando” que, segundo essa teoria conspiratória, manda soberanamente nos destinos do mundo, já tendo colocado na teia do globalismo as mais influentes associações e os mais ricos magnatas cooptados para esse projeto sinistro. Ele me citou os Bilderbergers, os Rockefellers e os Rothschilds, além da Fabian Society e uma cesta inteira de think tanks e ONGs, todos eles engajados na consolidação da Ordem Global, inclusive por meio da ONU. Niall Ferguson resume de forma magnífica essa “teoria da conspiração” numa das passagens mais representativas de seu livro – sobre as redes que circulam em volta do poder –, ilustrando aliás seus parágrafos sobre a coalizão dos Illuminati contemporâneos com um quadro apropriado, que já reproduzimos abaixo, seguido de seu texto-síntese sobre a “conspiração para dominar o mundo”:
Um painel bastante representativo descreve os Illuminati como uma ‘elite super rica do Poder com a ambição de criar uma sociedade escrava’:
Os Illuminati possuem todos os bancos internacionais, as companhias de petróleo, as mais poderosas empresas da indústria e do comércio, eles se infiltram na política e na educação e eles dominam quase todos os governos – ou pelo menos controlam-nos. Eles possuem até mesmo Hollywood e a indústria da música… [O]s Illuminati comandam também a indústria do comércio de drogas… Os principais candidatos à Presidência são cuidadosamente escolhidos dentre as linhas ocultas de sangue de treze famílias de Illuminati… O maior objetivo é o de criar um Governo Único Mundial, com seus membros no topo para dominar o mundo na direção da escravidão e da ditadura… Eles querem criar uma ‘ameaça externa’, uma falsa Invasão Extraterrestre [a fake Alien Invasion], de forma a que os países deste mundo se declarem dispostos a se unir num Único.
A versão padrão da teoria da conspiração vincula aos Illuminati a família Rothschild, a Távola Redonda, o Grupo Bilderberg e a Comissão Trilateral – sem esquecer o administrador de fundos de risco, doador político e filantropista George Soros. (Cp. 1 de FERGUSON, ““The Mystery of the Illuminati”, in: The Square and the Tower, p. 3)
  1. A contrafação dos neoilluminati no Brasil: globalismo, climatismo, marxismo
Aqueles dispostos a assistir à “entrevista-diálogo” que mantive com Olavo de Carvalho em dezembro de 2017 ouvirão de sua própria voz as mesmas referências a esse sinistro projeto conspiratório globalista, com o desfilar nominativo daqueles mesmos personagens suspeitos de financiar dezenas de organizações – inclusive várias de esquerda, uma vez que se sabe que Soros é um “homem de esquerda” – com a meta de instaurar um governo mundial. O representante en titredo antiglobalismo no Brasil se exerce com toda a sua arrogância autosapiente neste vídeo gravado pela equipe do Brasil Paralelo, disponível no Canal YouTube (link: https://youtu.be/6Q_Amtnq34g).
Segundo os neoilluminati e seus representantes no Brasil qualquer projeto que tenda a retirar poderes dos Estados soberanos para colocá-los nas mãos de burocratas não eleitos está irremediavelmente contaminado pela ideia globalista, e deve, portanto, ser rejeitado in limine.  Encontra-se nessa situação, obviamente, o projeto comunitário da União Europeia, aliás desde sua origem no Tratado de Paris (1951) e nos tratados de Roma de 1957 e todas as suas derivações posteriores, até o de Maastricht, que criou a União Europeia em 1993, e que inclusive tentou instituir uma espécie de “governo central”, com presidente e constituição escrita. Para ser fiel a esse credo soberanista, os novos responsáveis pela política externa do Brasil deveriam, presumivelmente, recusar não só o acordo de liberalização comercial Mercosul-União Europeia, como o próprio princípio do Mercosul, cujo tratado constitutivo – assinado em Assunção, em 1991 – prevê o coroamento do atual processo de consolidação da união aduaneira por meio de um mercado comum, como no precedente europeu de 1957. O nome oficial do bloco, aliás, é “Mercado Comum do Sul”, aparentemente uma insustentável renúncia de soberania, na visão dos antiglobalistas.
O fato de que todo e qualquer tratado internacional, seja ele bilateral, regional ou multilateral, implique necessariamente uma renúncia de soberania por parte dos Estados signatários – no sentido em que eles concordam em fazer e deixar de fazer certas coisas de comum acordo, se comprometendo, portanto, a não aplicar medidas unilaterais nas áreas cobertas pelo tratado – deveria fazer com que os antiglobalistas convictos recusem a essência mesma da diplomacia, que é justamente a arte de estabelecer convivência e cooperação entre Estados, num exercício de autolimitação de seus poderes soberanos. O extremo nacionalismo, como já observado em algumas trajetórias históricas, termina por resultar na autarquia, isto é, a tentativa de se libertar de qualquer dependência com respeito a fornecedores estrangeiros, amigos ou inimigos. Exemplos conhecidos na era moderna compreendem a União Soviética – “socialismo num só país” –, a economia nazista na Alemanha sob Hitler e o próprio Brasil, em diversos períodos sob dominação militar (na era Vargas e sob a ditadura militar, 1964-85), quando também se praticou uma espécie de “stalinismo industrial”, com indústrias verticalmente integradas e basicamente dedicadas a se abastecer e a fornecer produtos para o mercado interno.
Os principais inimigos dos antiglobalistas brasileiros são, sem qualquer ordem predeterminada, os adeptos do marxismo cultural, do aquecimento global (chamado de climatismo), do comercialismo (ou seja, o comércio sem alma), do multilateralismo, do universalismo e, evidentemente, do globalismo. Todos eles passaram a ser combatidos, em nome da pureza na adesão ao novo credo oficial, muito próximo das mesmas posturas já exibidas pela nova direita europeia e pelo presidente Trump, objeto dos maiores elogios do novo chanceler ao ser considerado o “salvador do Ocidente”, em especial em sua vertente “judaico-cristã”. Ao lado dessas ameaças, persistem diversos outros equívocos teorizados especialmente para o caso do Itamaraty pelo encarregado da diplomacia bolsonarista: o nominalismo, o tematismo, o isolamento do Itamaraty da sociedade brasileira e das demais políticas públicas, e uma suposta indiferença dos diplomatas no tocante aos valores profundos do povo brasileiro, que seria conservador por excelência e, ipso facto, partidário de todas essas posturas quase que naturalmente.
Trata-se de uma agenda demolidora, stricto et lato sensi, pois para colocar o Itamaraty no mesmo diapasão que vigorou no Império até a gestão do Barão do Rio Branco – uma vez que todo o período posterior, até o governo Bolsonaro, é considerado um desvio em relação aos verdadeiros valores da sociedade brasileira –, é preciso desmantelar, literalmente, os padrões culturais e ideológicos seguidos durante esse largo período intermediário, quando a política externa e a diplomacia distanciaram-se da real identidade do povo brasileiro, praticando o terceiro-mundismo, o antiamericanismo e o antiocidentalismo.
Suprema ironia: todo esse combate contra as más ideias – de fato, a destruição da inteligência no Itamaraty – tem como justificativa a luta contra as ideologias. Soit!
Paulo Roberto de Almeida
2019