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terça-feira, 10 de agosto de 2021

Euclides e a diplomacia - Luis Claudio Villafañe e João Daniel (Clipping)

 

Luís Cláudio Villafañe terminou recentemente a nova biografia do escritor e jornalista Euclides da Cunha.

👉 Com tantas novas descobertas, o diplomata irá bater um papo com o professor João Daniel sobre as relações de Euclides com o Itamaraty.

Luís Cláudio Villafañe é historiador e diplomata. Pós-graduado em Ciência Política na New York University e Doutor em História pela Universidade de Brasília. Autor de mais de uma dezena de livros sobre história da política externa brasileira e temas afins, entre os quais as biografias “Juca Paranhos: o barão do Rio Branco” e “Euclides da Cunha: uma biografia”. Como diplomata, serviu em Nova York, Cidade do México, Washington, Montevidéu, Quito e Lisboa e hoje é Embaixador do Brasil na Nicarágua.


Tema: "Euclides da Cunha & o Itamaraty"
Data e horário: Quinta-feira (12) às 19h

domingo, 4 de julho de 2021

Euclides da Cunha: uma nova biografia por Luis Claudio Villafañe: entrevista (Estadão), resenhas

Livro detalha o trabalho de Euclides da Cunha em expedição na Amazônia


 Biógrafo mostra que jornalista e escritor tinha saber enciclopédico, mas sua obra apresentava problemas científicos graves

Ubiratan Brasil, O Estado de S.Paulo 

03 de julho de 2021 | 05h00 

Consagrado pela publicação de Os Sertões (1902), o escritor e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909) acreditava que alcançaria voos mais altos com À Margem da História, trabalho sobre sua viagem à Amazônia que seria mais inovador que o texto sobre a ação militar em Canudos. “Ainda que de forma embrionária, o livro traz uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros”, observa o diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, autor de Euclides da Cunha: Uma Biografia (Todavia), alentada pesquisa que revela passagens pouco conhecidas sobre o escritor. 

Como ser enviado, em 1904, na expedição fluvial amazônica como primeiro comissário, a fim de trabalhar na demarcação do território brasileiro do atual Estado do Acre, que estava em disputa com o Peru. Publicado postumamente em 1909, À Margem da História esboça, segundo Villafañe, o desenvolvimento intelectual de Euclides – ali, ele trata da escravização e matança de indígenas promovidas pelos portugueses, além de denunciar o esquema em que a escravidão por dívida adotado pelos senhores da borracha.

A viagem, autorizada pelo Barão do Rio Branco, teve grande importância na resolução da questão fronteiriça, fato pouco informado entre os historiadores. Villafañe, atual embaixador brasileiro na Nicarágua, detalha ainda a mudança de pensamento de Euclides durante a cobertura da batalha de Canudos (que o autor trata por Belo Monte, nome do arraial), quando foi o jornalista enviado pelo Estadão: de sertanejos empenhados na restauração da monarquia (como pregava o governo federal), os jagunços foram, na verdade, vítimas. Sobre o livro, Villafañe respondeu, por e-mail, as seguintes questões. 

Escritores de respeito reconheciam os problemas de Os Sertões, especialmente a influência do positivismo de Auguste Comte e do evolucionismo de Herbert Spencer, algo realmente racista. Mas apesar disso, a força da linguagem e da própria história que ele conta ainda está muito viva. 

Uma das chaves para a boa recepção de Os Sertões foi, como o próprio Euclides disse, que o livro representaria “o consórcio da ciência e da arte”. O Brasil tornara a escravidão ilegal havia pouco mais do que uma década, a República buscava se afirmar como a superação do passado. Havia, enfim, uma grande ânsia de modernização e a ideia de apoiar a literatura na ciência estava na ordem do dia. Euclides mostrou no livro, e na atividade jornalística, um saber enciclopédico. Discorria com grande desassombro desde a geografia do interior da Bahia ao imperialismo britânico no Tibete. O preço da vastidão desse saber era pago em lacunas assombrosas, graves erros científicos e uma tremenda superficialidade em vários temas. A ciência de Os Sertões foi sendo progressivamente desmentida desde o início, ainda que em alguns campos – como na descrição histórica de Belo Monte (Canudos) e da gente de Antônio Conselheiro – tenha seguido influente por muitas décadas. A força literária e as qualidades estéticas do texto, contudo, seguem vigentes. Como todo clássico, a cada geração, Os Sertões é relido de forma diferente, mas se tornou uma narrativa já atemporal, cuja beleza segue inalterada e que continua a emocionar e trazer lições a seus leitores. 

O conhecimento científico de Euclides é muito contestado. Ele era realmente habilitado para emitir tais conceitos?

Euclides era engenheiro e, naturalmente, possuía uma cultura científica bastante boa para a época. Em todo caso, às vezes, exibiu uma assombrosa falta de modéstia sobre seu verdadeiro domínio da ciência de seu tempo, mesmo daquela que chegava ao Brasil. A pretensão de dominar campos tão diversos como geologia, geografia, botânica, climatologia, antropologia, sociologia e história, para começar, era desde logo muito pouco factível. Já em 1903, ele foi acusado de nefelibatismo científico e Os Sertões apresentado como um “modelo de ciência popular”. De lá para cá, esse diagnóstico tem sido recorrentemente confirmado e hoje admite-se que as bases científicas do livro estão totalmente defasadas. 

Euclides desenvolve diferentes aspectos de Antônio Conselheiro – o que provocou essa multiplicidade de visão?

A ideia de que a visão inicial de Euclides – de que o movimento de Antônio Conselheiro era uma revolta antirrepublicana e que deveria ser esmagada – mudou quando ele chegou a Belo Monte e se defrontou com os horrores da frente de batalha é uma mistificação. O jornalista apoiou a ação do Exército até o fim. Entre o fim da guerra, em 1897, e em 1902, quando publicou Os Sertões, a ideia de que Belo Monte pudesse ter sido uma ameaça já estava descartada e a campanha militar já fora denunciada como um crime por muitos autores. Euclides como escritor, na verdade, apenas se conformou com uma visão que já estava bem consolidada em 1902. 

Se o material acumulado sobre a Amazônia foi mais consistente que o de 'Os Sertões', por que 'À Margem da História' não repercutiu como se esperava?

É uma pergunta muito interessante. Na verdade, À Margem da História já trazia, ainda que de forma embrionária, uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros. E, quando o livro saiu, em 1909, Euclides já era um escritor consagrado cujo nome então repercutia ainda mais com todo o escândalo que se armou pelas circunstâncias de sua morte. A grande diferença, me parece, é que – ao contrário dos sertanejos de Antônio Conselheiro, já falecidos quando se publicou Os Sertões – era claramente possível fazer algo, ou muito, para melhorar a vida dos seringueiros. A borracha era então o segundo produto mais importante da pauta de exportações brasileiras e gerava uma riqueza considerável. Objetivamente, contudo, não interessava aos donos das plantações, aos comerciantes, aos exportadores e às elites da Amazônia e do Rio de Janeiro mudar o assombroso esquema de exploração dos trabalhadores nos seringais, submetidos a uma virtual escravidão. 

Euclides foi realmente um importante assessor do Barão do Rio Branco?

Este é um lado bastante desconhecido de Euclides. Além da missão ao Rio Purus, que durou de fins de 1904 aos últimos dias de 1905, o escritor trabalhou no Itamaraty de 1906 até sua morte, em 1909. Ou seja, há um longo período pouco estudado, uma lacuna que a biografia que escrevi procura preencher, ainda que parcialmente. Conto boas histórias sobre a relação entre Euclides e Rio Branco e sua atuação no Itamaraty. Além do levantamento do Purus e de preparar os mapas que orientaram as negociações diplomáticas com o Peru e com o Uruguai, Euclides serviu de assessor e algumas vezes de porta-voz das ideias e interesses do Barão junto à imprensa e ao público. 

Seu trabalho na comissão Brasil-Peru terá sido o mais importante na carreira de Euclides?

Não apenas com o trabalho na Comissão Brasileira-Peruana de Reconhecimento do Rio Purus, mas pelos diversos serviços prestados, Euclides foi uma peça importante na negociação de limites entre o Brasil e o Peru, que resultou na incorporação de mais de 400 mil quilômetros quadrados ao território brasileiro, incluídos aí dois terços da superfície do Acre – que, ao contrário do que geralmente se acredita, não passou definitivamente ao controle brasileiro com o Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 com a Bolívia. Ainda que a ponte sobre o Rio Pardo que Euclides reergueu siga de pé e continue a servir, já há mais de um século, aos habitantes e visitantes de São José do Rio Pardo, se pode arguir que a pouco conhecida atuação de Euclides no Itamaraty e, em especial, na questão de limites com o Peru, seja seu maior legado fora da esfera literária.

Euclides assumiu os filhos que a esposa Ana teve com Dilermando de Assis, mas tentou matá-lo para manter sua reputação e acabou morto: como foi isso?

A relação conjugal de Euclides e Ana foi marcada desde o início por um grande distanciamento emocional e físico e fortes diferenças de temperamento. Depois do início do relacionamento de Ana com Dilermando, em fins de 1905, o casamento entrou em crise quase permanente até o trágico desenlace, em agosto de 1909. Já em meados de 1906, Euclides soube que era traído, quando do nascimento de Mauro. No ano seguinte, nasceu o segundo filho de Ana e Dilermando, cuja paternidade Euclides também assumiu mesmo sabendo que não era o pai. A separação traria danos de reputação para Euclides, mas muito maiores para Ana, que ainda assim buscou que Euclides aceitasse essa via. Ele resistiu para preservar sua reputação e prolongou a farsa que se tornara aquele casamento falido. O ponto de ruptura se deu no momento em que Ana decidiu abandonar o lar. Assim, as aparências de um casamento funcional seriam inevitavelmente desmascaradas e sua complacência com a já longa relação de Ana com um jovem quase da idade dos filhos revelada. Como em muitas outras pendências da vida pessoal, Euclides não teve determinação para buscar uma solução sensata para a situação conjugal, que foi se arrastando e se agravando ao longo dos anos. Afinal, o escritor acabou optando por se tornar um assassino e um feminicida – de forma absurda – como solução para minorar o dano à sua reputação. Acabou morrendo na tentativa.


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Valor Econômico, 3-4/07/2021, Caderno de Fim de Semana



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Revista Plural





domingo, 26 de julho de 2020

Arnaldo Godoy "liquida" o Conselheiro, na sua segunda postagem sobre Canudos

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a Troia de taipa dos jagunços


Em 1883 um pensador alemão dissertou sobre as diferenças nos métodos utilizados nas ciências naturais e nas ciências do espírito. Para esse pensador, William Dilthey (1833-1911), as ciências naturais são causais, centradas nas categorias dos antecedentes, enquanto que a história, que é uma ciência do espírito, seria compreensiva, focada na apreensão dos vários significados da ação humana. Euclides da Cunha, de algum modo, desafiou essa linha divisória. Era sobretudo um cético. Mas era também um cientista que escrevia com arte. E era um artista que escrevia com base na ciência ou, melhor, no que reputava científico.
Em carta a José Veríssimo, datada de 1902, Euclides defendia-se de uma crítica feita aos Sertões, observando que “o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências”. Euclides agregou à formação de engenheiro uma densa formação literária. Formalmente, segundo o sempre lembrado Roberto Ventura, Euclides estudou álgebra, geometria analítica, cálculo diferencial e integral, física experimental, química, desenho topográfico, tática, estratégia, história militar, fortificações, noções de balística, direito militar, desenho e análise da Constituição do Império. Não se pode exagerar a aderência de Euclides aos esquisitos do positivismo1. Euclides, em carta ao pai, criticou Benjamin Constant, um dos grandes nomes do positivismo entre nós, a quem então reputou como seu “antigo ídolo”. A carta é de 14 de junho de 1890. Euclides distanciou-se do positivismo que conheceu no Exército.
A leitura dos vários textos de Euclides (“Os Sertões”, “À margem a História”, “Contrastes e Confrontos”) revela a inexistência de fronteiras epistemológicas nesse importante autor nacional. Euclides pretendia-se múltiplo, transdisciplinar. Era criminólogo, sociólogo, antropólogo, historiador, historiador militar, botânico, jornalista, geólogo, a par, naturalmente, de estilista incomparável. Segundo Walnice Nogueira Galvão, na minha opinião a mais abalizada intérprete de Euclides da Cunha, o escritor sabia “quase tudo pela rama, coisas que tinha aprendido nos bancos escolares da Escola Militar e que costumava citar de ouvido, deturpando-as”. Essa a razão pela qual há muita informação inconsistente nas seções mais científicas desse grande livro.
Uma tentativa de estação em alguns desses atributos de Euclides é o tema da presente intervenção. É preciso estudar os autores brasileiros. Comecemos com o criminólogo. Canudos, escreveu Euclides, “era o homizio de famigerados facínoras”. A lei era o arbítrio do chefe, Antonio Conselheiro. A justiça era o conjunto de suas “decisões irrevogáveis”. Na cadeia, que os sertanejos chamavam de “poeira”, “viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas”. O homicídio, naquele interior que assustou Euclides, o delito religioso (falta às rezas) era objeto de maior reprimenda do delito maior, em todas as culturas, isto é, o homicídio: uma constatação criminológica vazada sob a forma de ironia.
De acordo com o narrador dos Sertões a justiça no reduto do conselheiro era “inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados”. Buscava-se a punição de uma certa delinquência, especialíssima, pelo que em Canudos ocorria “uma inversão completa do conceito de crime”. Proibia-se o alcoolismo, que o preciosismo semântico de Euclides denominava de “dipsomania”. As penas para quem usasse da aguardente eram severas: “ai daquele que rompesse o interdito imposto”.
Euclides era também um sociólogo, provocação de Antonio Candido, em conferência na semana euclidiana, já no distante ano de 1947. Segundo Antonio Candido, “para Euclides, a população sertaneja é um bloco étnico e cultural; uma sociedade insulada em cujo corpo não se processou a divisão intensa do trabalho social, diferenciador e enriquecedor”. Euclides pormenorizou a organização de Canudos, “o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito”. Era a “urbs monstruosa, de barro”, a “civitas sinistra do erro”, um povoado novo, que em algumas semanas já era um lugar velho, um punhado de ruínas.
Na descrição de Euclides em Canudos não se distinguiam as ruas. Havia becos estreitíssimos, “mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso”. Descreveu um desconforto permanente, uma pobreza repugnante, “traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça”. Adiantando-se na apresentação de um tipo próximo ao Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, Euclides tratava de “cômodos exíguos” nos quais havia “trastes raros e grosseiros: um bando tosco, dois ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes (...) era toda a mobília”.
Euclides apresentava uma população que “jugulada pelo seu prestígio” contava com “todas as condições de estádio social inferior”. Era o mundo de um sertanejo simples que “transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto”. Não havia apego à propriedade, vingando uma “forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos; apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas”.
Euclides também se revela um antropólogo. É o que lemos na descrição pormenorizada que fez de Antonio Conselheiro, na segunda parte de seu livro sobre a campanha de Canudos. O Conselheiro, segundo Euclides, somente poderia ser entendido no contexto psicológico da sociedade que o criou. Era um psicótico, perdido na turba dos neuróticos vulgares. Para Euclides, o Conselheiro não apresentava necessariamente uma moléstia grave, era o aspecto de um mal social gravíssimo. Em excerto de efeito, observava que o Conselheiro foi para a história do mesmo modo que poderia ter ido para um hospício.
O Conselheiro representava um misticismo feroz e extravagante, calcado em crenças ingênuas, em um fetichismo bárbaro, em aberrações de católicos fanáticos, em “tendências compulsivas de raças inferiores”, bem como na indisciplina geral da vida sertaneja. Para Euclides, “a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida em sociedade”. O autor dos Sertões acreditava que o Conselheiro era documento vivo de atavismo; era “uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie”. Entendia que o Conselheiro receberia diferentes análises de um médico e de um antropólogo: para o médico seria um caso de delírio sistematizado, para o antropólogo um “fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização”. O Conselheiro, segundo Euclides, entendia-se como protagonista-delegado de uma vontade dos céus, com função de apontar os pecados e prescrever o caminho para a salvação.
O Conselheiro, prossegue Euclides, significava-se em uma zona indefinida. Estava no limbo que separa facínoras de heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, gênios e degenerados. O Conselheiro fora traído pela esposa, circunstância peculiar que o ligava a Euclides, como se sabe da tragédia que levou o escritor à morte prematura. A mulher do Conselheiro havia fugido com um policial, que supostamente a raptara. A mulher de Euclides, Ana, apaixonara-se por um jovem militar, Dilermando de Assis. Comentarei o caso em intervenção próxima futura, sob um prisma jurídico, e não passional. Não me sinto autorizado a perscrutar a intimidade sentimental das pessoas, vivas ou mortas. E nem tenho interesse.
Euclides descreve a trajetória do Conselheiro, sua origem no ambiente de famílias inimigas (Macieis e Araújos), um mundo de tocaias, emboscadas, vingança, amor e ódio. A descrição do Conselheiro é a que toca nosso imaginário nacional: “cabelos crescidos até os ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos”. Era um homem estranho, que andou muito tempo sem rumo certo. Euclides conta que o Conselheiro era indiferente à vida e aos perigos, alimentava-se “mal e ocasionalmente, “dormindo ao relento e à beira dos caminhos, numa penitência desnuda e rude”. Vivia de esmolas, mas não aceitava excessos. Um homem sofrido, que “anestesiara-se com a própria dor”. Carregava a indiferença superior de um estoico.
Euclides mostrou-se também como um constitucionalista. Analisou a relação dos canudenses com a República, no contexto do tema então espinhoso do casamento civil. A Constituição de 1891 era uma transposição de algum modo descarada dos arranjos institucionais norte-americanos, e que sabemos hoje predicada na influência de Rui Barbosa. Adiantou-se na teoria da transposição, de grande prestígio nos estudos de direito constitucional comparado.
Em “À margem da história”, ao comentar em excurso histórico a Constituição de 1824, Euclides observou que “uma constituição, sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumuladas no revolver das ideias e dos costumes, é sempre um passo para o futuro garantido pela energia conservadora do passado”. O legislador constitucional de 1824, segundo Euclides, elaborava um trabalho todo subjetivo, um “capricho de minoria erudita discorrendo dedutivamente sobre alguns preceitos abstratos, alheia ao modo de ser da maioria”. Tratava-se de um “projeto constitucional, quase abortício ou temporão, precipitado nas votações atropeladas, ou tangidas pelos ultrarradicais”. O projeto não avançou. Sabemos que D. Pedro I interveio e que da intervenção resultou o texto constitucional de 1824. Trata-se de um bem concebido texto político, para os limites conceituais da época, sobressaindo-se a possibilidade de alteração constitucional por legislação ordinária, se o objeto da reforma não fosse matéria substancialmente constitucional. Já se dividia empiricamente o texto constitucional temas formais e materiais.
Euclides, talvez mais do que tudo, foi também um historiador militar, como assinalado, entre outros, por Umberto Peregrino2. As descrições das batalhas são precisas (acredita-se) e isentas de qualquer forma de sectarismo. No entanto, ao fim da empreitada, percebe-se a revolta de Euclides para com o massacre que se desatava. O fecho dos Sertões é antológico: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
Euclides era um cético. Com o socorro de Sérgio Milliet posso me lembrar, a propósito de Euclides, que o ceticismo não exclui a paixão, que a dúvida não quer dizer incapacidade de amar, porque quanto maior o amor, maior pode ser a dúvida. O ceticismo, especialmente em Euclides, era um método de trabalho, muito mais do que uma filosofia. É o que percebo no estudo descritivo e compreensivo da Troia de taipa dos jagunços.

1 Devo essa expressão “esquisitos do positivismo”, bem como o alerta da posição de Euclides em relação aos positivistas a Bruno de Cerqueira, historiador, filólogo, etimólogo e antropólogo que vive em Brasília, atualmente trabalhando na Funai. Bruno é autor de várias obras que tratam da monarquia no Brasil, um dos campos de sua vasta erudição.
2 Devo essa percepção a Roberto Rosas, cultíssimo advogado militante em Brasília, que foi Ministro do TSE, historiador do direito, e que gentilmente me encaminhou textos raríssimos sobre Euclides da Cunha, com especial referência ao próprio Umberto Peregrino e a estudos sobre a passagem de Euclides no Itamaraty, redigido por Renato Almeida.
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 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2020, 8h00

domingo, 19 de julho de 2020

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade


Consultor Juridico, 19 de julho de 2020
É preciso estudar os autores brasileiros. Euclides da Cunha (1866-1909) revela-nos a violência cometida contra os sertanejos do interior da Bahia (Canudos, mais especialmente), a par da desolação dos seringueiros e da Amazônia. Euclides da Cunha é uma figura contraditória. Estudioso meticuloso e dedicado, trabalhador incansável, hipocondríaco, republicano que se irritou com a república, positivista que refutou Floriano Peixoto, pai carinhoso nas cartas, marido traído que foi assassinado pelo amante da esposa, em horrível duelo, no qual o amante agiu inegavelmente em legítima defesa. Uma vida marcada pela tragédia e pelo heroísmo. Nada singular. Euclides é a história em forma de denúncia da brutalidade.
Euclides foi salvo, por um triz, da pena de enforcamento, prevista no Código Militar, que poderia lhe ser aplicada após o comentadíssimo episódio do sabre. Conta-se que os cadetes da Escola Militar pretendiam deixar a caserna para saudar o republicano Lopes Trovão, que passava pelo Rio de Janeiro. O Império vivia seus últimos momentos, e era latente um confronto entre os militares e o Imperador. O general comandante da escola proibiu a saída dos alunos, sob o pretexto de que o Ministro da Guerra faria uma inspeção na tropa. À hora em que estavam formados para a revista o cadete Euclides (então com 22 anos) adiantou-se, tentou quebrar o sabre, jogando-o aos pés do Ministro. Foi detido, e por intervenção de seu pai junto ao Imperador teve a pena comutada para afastamento do Exército. Escapou da forca. Entrou para a história. Júlio de Mesquita, dono e editor da Província de São Paulo (hoje o Estadão) interessou-se pelo rapaz, que passou a assinar uma coluna de política nesse importante jornal. Era o ano de 1888. Começa o trilema que marcará a vida de Euclides: exército, política e literatura, em forma de jornalismo.
Alguns anos depois do episódio do sabre, em carta dirigida a seu sogro, General Sólon Ribeiro, datada de 12 de agosto de 1897, Euclides relatou que fora convidado para estudar a região de Canudos, na Bahia. Traçaria os pontos principais da campanha. Confirma que havia aceitado. Dizia que o assunto era importante, e que “estava em jogo a felicidade geral da República”. Já em Canudos, em carta ao advogado Reinaldo Porchat, seu amigo, relatava que no sertão da guerra a vida era insípida e lúgubre, e que a distração consistia em “assistir à chegada de feridos, assistir à partida das tropas”. As informações que Euclides colheu no interior da Bahia constituem a base do livro “Os Sertões”; a primeira edição é de 1902. As edições posteriores, revistas pelo autor ainda em vida, revelam uma guinada na forma de escrever. Euclides abrasileirou sua escrita, adotando prosódia e ortoépica que distintas das formas castiças de Portugal, que tanto conhecia. Abandonou as ênclises.
Há no Brasil uma fortíssima linha de pesquisa em torno de Euclides da Cunha, sobressaindo-se Walnice Nogueira Galvão, a quem, entre outros importantes trabalhos, se deve a publicação das cartas de Euclides (ao lado de Oswaldo Galloti), bem como dos autos do processo referente a seu trágico fim. Há também a inestimável obra biográfica de autoria de Roberto Ventura, precocemente falecido, em acidente de automóvel. Toda a inteligência brasileira já opinou sobre Euclides: Miguel Reale, Gilberto Freyre, Fernando Henrique Cardoso, José Guilherme Merquior. À época de Euclides, há José Veríssimo e Araripe Júnior. Brito Broca também deixou passagens memoráveis sobre Euclides.
Euclides da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, em Cantagalo, no Rio de Janeiro. Estudou engenharia, formando-se na Escola Militar, na Praia Vermelha, na cidade do Rio de Janeiro, depois de readmitido ao Exército, já na era republicana. Era o mais avançado centro de estudos que havia no Brasil. Pontificavam as ideias positivistas e cientificistas. Euclides foi aluno de Benjamin Constant. Bem além das ciências exatas, estudava-se com profundidade a filosofia, com foco no inglês Herbert Spencer e na concepção de que os mais aptos triunfam. Também foi preponderante a influência de Charles Darwin. Euclides estudou Auguste Comte, e só não foi um positivista mais extremado provavelmente porque resistia aos fundamentos quase religiosos dessa escola. A concepção de herói em Thomas Carlyle também influenciou Euclides, na visão de mundo e no estilo.
“Os Sertões” é vigorosa denúncia às atrocidades cometidas contra uma população esquecida do interior brasileiro. Vale como uma primeira tomada de consciência para com um problema complexo na construção da identidade nacional. O problema persiste, ainda que sob outras perspectivas. Euclides é cartesiano. O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Euclides é ambicioso, escreve sobre vários assuntos: geologia, botânica, sociologia, antropologia, política, mineralogia, hidrologia, frenologia, história. Especialistas apontam que há muitos erros e premissas mal fundamentadas.
“Os Sertões” tem muitos méritos, especialmente, na medida em que Euclides provoca olhares sobre uma gente explorada. O livro foi um sucesso. A primeira edição esgotou-se rapidamente. O estilo de Euclides é difícil. Abundam adjetivos, superlativos e oximoros. Tem-se a figura do “pleonasmo euclidiano”. Barroco, e ao mesmo tempo esforçado para o alcance de uma precisão científica, há muito leitor que desiste logo no primeiro capítulo. Vale uma leitura que principie com a descrição do nativo, que Euclides define como o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório.
Euclides denunciou a campanha de Canudos, que definiu como um crime, “na significação integral da palavra”. É um libelo contra a campanha militar, uma acusação direta contra o governo. Euclides já não estava no Exército. Denunciou os soldados como “mercenários inconscientes”. Segundo Euclides, os agressores viviam pacificamente à beira do Atlântico, nos parâmetros de princípios civilizados elaborados na Europa, bem armados pela indústria alemã.
“Os Sertões” principia com uma “nota preliminar”. Euclides observa que o livro foi escrito “nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante”. A maior parte foi redigida em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde trabalhava como engenheiro. Pretende apresentar um estudo sobre as “sub-raças sertanejas”. A visão de Euclides é presa ao paradigma dominante da época. E nem poderia ser de outra forma. Somos filhos e produtos de nosso tempo. Não se pode julgá-lo sem o benefício do retrospecto. Predominava um determinismo que vinculava o homem ao meio. É o que justifica, metodologicamente, a descrição inicial da região inóspita, onde os fatos ocorreram.
Euclides recria o ambiente. A descrição da seca é assustadora. Logo no início do livro Euclides trata de um “higrômetro inesperado e bizarro”. Descreve um soldado morto, cujo corpo a seca manteve intacto, como se fosse uma múmia. Cito: “braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho (...)”. O autor imagina a morte e a sorte (falta de) do soldado mumificado: “sucumbira corpo a corpo com um adversário possante”; não fora percebido, e por isso não fora enterrado com os demais mortos. Estava intacto; murchara apenas: “braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sois ardentes, para os lugares claros, para as estrelas fulgurantes”. Cena de horror: “mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sobra daquela árvore benfazeja”. Com aquela estranha e inesperada imagem, Euclides enfatizava a secura extrema dos ares. Por perto, ainda, havia cavalos mortos, semelhantes às “espécies empalhadas, de museus”. As lufadas moviam as crinas dos cavalos tombados.
A descrição do homem, ainda que hoje saibamos imprecisa e cheia de generalizações, é uma peça especial de literatura e de antropologia. É o perfeito relato de um paradigma. Euclides trata da complexidade do problema etnológico no Brasil. Faz digressões em torno do vulto do jagunço. Explicita a corporatura do sertanejo. Expõe a figura de Antonio Conselheiro, disserta sobre os habitantes de Canudos.
Para Euclides, a gênese das raças mestiças no Brasil era um problema a desvendar. Duvidava que pudéssemos um dia ter uma unidade de raça. Duvidava de que poderia haver um tipo antropológico brasileiro. Acreditava na hipótese do autoctonismo, isto é, o nativo brasileiro não era o resultado de uma migração que se perdia nos tempos. Assim, afirmava que “os selvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes das velhas raças autóctones da terra”. Euclides contrastava o interior com o litoral. Entendia que “estávamos condenados à civilização”. Acrescentava que “ou progredimos, ou desaparecemos”. Ao contrário de Gilberto Freyre, Euclides dedicou apenas três linhas ao português.
Elogia Nina Rodrigues, então na moda, a quem reverenciava como um “investigador tenaz”. Euclides era um darwinista convicto; a seleção natural, escreveu, “mais que quaisquer outras, se faz pelo uso intensivo da ferocidade e da força”. Nesse sentido, darwinista, percebia o mestiço como um intruso, perdido na “concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva”.
Euclides entendia o mestiço como portador de um desequilíbrio nervoso incurável. O mestiço seria, na visão de Euclides, um desequilibrado. A mestiçagem, prossegue Euclides, um retrocesso. Era obcecado com concepções eugênicas de raça superior, que matizavam o paradigma da época, escrevendo que “todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro é uma herança”. Aproximava o mestiço do mulato, raça dominada, “(...) a besta de carga adstrita aos trabalhos sem folga”.
Na leitura dos Sertões, percebe-se, no entanto, que Euclides vai se afeiçoando ao mestiço, em quem descobre um injustiçado ser humano que a política convencional satanizou, com apoio da imprensa, num dos maiores crimes de preconceito vividos na história do Brasil. Euclides era o tipo de homem que somente retrocedia quando o passo para frente fosse o suicídio. Tratarei, nas próximas intervenções, das cartas de Euclides, da guerra de Canudos, das impressões que Euclides colheu na Amazônia, e dos autos do processo de seu trágico fim. É preciso, mais do que nunca, estudarmos os autores brasileiros.


 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.


Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2020, 8h00

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Euclides da Cunha publica seu magnum opus em 1/12/1902

Euclides da Cunha lança 'Os Sertões'

Opinião e Notícia, 1/12/2019
Euclides da Cunha lança ‘Os Sertões’
Livro 'Os Sertões', de Euclides da Cunha (Foto: Wikimedia)
No dia 1° de dezembro de 1902, Euclides da Cunha lançava um dos livros mais famosos da literatura brasileira: “Os Sertões”.  O livro fala sobre a Guerra de Canudos, no interior da Bahia. Como o autor acompanhou a batalha como correspondente do jornal O Estado de S.Paulo, o livro é uma mistura de relato jornalístico, histórico e de literatura.
Dividido em três partes, o autor discorre primeiro sobre a natureza do local. Na parte intitulada “A Terra”, Euclides da Cunha fala sobre o drama da seca. “O Homem” é a segunda parte da obra, no qual o autor faz uma análise da psicologia do sertanejo e de seus costumes. Como a maioria na sua época, ele acreditava que existia uma “raça superior”, e considerava que o sertanejo estava na parte inferior desta hierarquia. Já na última parte, chamada de “A Luta”, o autor fala sobre a guerra em si, que dizimou a população da cidade homônima.
“Para mim, foi uma das grandes experiências da minha vida de leitor. Foi realmente o encontro com um livro muito importante, com uma experiência fundamental. Um deslumbramento, realmente, um dos grandes livros que já se escreveram na América Latina”, afirmou o consagrado escritor peruano Mario Vargas Llosa.
A Guerra de Canudos é considerada uma das principais batalhas no Brasil entre a queda da monarquia e a instalação do regime republicano. A comunidade, chamada Canudos, foi consolidada por Antônio Conselheiro. Ele defendia que os homens deveriam se livrar das opressões e injustiças que lhes eram impostas, buscando superar os problemas de acordo com os valores religiosos cristãos. Por meio deste discurso, o líder atraiu muitos sertanejos que se identificavam com sua mensagem.
Canudos, nome dado à comunidade por seus opositores, se tornou uma ameaça ao interesse dos poderosos. A Igreja atacava a comunidade alegando que os seguidores de Conselheiro eram apegados à heresia e à depravação. Os políticos e senhores de terra, por sua vez, diziam que Antônio Conselheiro era monarquista e liderava um movimento que almejava derrubar o governo republicano, instalado em 1889.
A comunidade acabou sendo alvo das tropas republicanas. Apesar de Canudos conseguir resistir a quatro investidas militares, na última expedição, a população apta para o combate foi massacrada.