Reflexões sobre a transição no Brasil: um partido das
reformas
Paulo Roberto de Almeida
1. Introdução:
liberdade, igualdade, civilidade
Em outubro de 1789, muito
pouco tempo depois, portanto, da queda da Bastilha, Edmund Burke deu início às
suas “Reflexões sobre a Revolução na França” (“e sobre as discussões em certas
sociedades de Londres relativas a esse evento”) sob a forma de uma carta que
tencionava despachar a um “jovem cavalheiro em Paris”, que havia solicitado sua
opinião sobre aqueles acontecimentos que, “desde então e continuamente,
capturaram a atenção de todos os homens”. A resposta foi mantida sob reserva
devido a “prudential considerations”. Imediatamente depois Burke deu início a
uma discussão ampla sobre o tema, que ele terminou na primavera seguinte, tendo
o resultado sido publicado em Londres, por J. Dodsley, em Pall-Mall, em “M.DCC.XC”,
isto é, 1790 (como leio no texto das “coleções online do século XVIII” da
Universidade de Oxford).
Nessa carta, aludindo retoricamente
a dois clubes de cavalheiros londrinos, a “Constitutional Society” e a
“Revolution Society”, Burke faz uma distinção bastante nítida entre aquilo que
se poderia designar por “partido constitucional” – que seria algo equivalente
ao sistema político inglês depois da Revolução Gloriosa de um século antes – e
um “partido da revolução”, que seria justamente representado pelo espírito da
Assembleia Nacional nos quadros da Revolução francesa. Burke primeiro
cumprimenta os franceses pelo “espírito da liberdade em ação”, mas ele imediatamente
suspende os seus cumprimentos com base num raciocínio bastante sensato:
I
must be tolerably sure, before I venture publicly to congratulate men upon a
blessing, that they have really received one. Flattery corrupts both the
receiver and the giver; and adulation is not of more service to the people than
to kings. I should therefore suspend my congratulations on the new liberty of
France, until I was informed how it had been combined with government; with
public force; with the discipline and obedience of armies; with the collection
of an effective and well-distributed revenue; with morality and religion; with
the solidity of property; with peace and order; with civil and social manners.
All these (in their way) are good things too; and, without them, liberty is not
a benefit whilst it lasts, and is not likely to continue long. The effects of
liberty to individuals is, that they may do what they please: We ought to see
what it will please them to do, before we risque [sic] congratulations, which
may be soon turned into complaints. Prudence would dictate this in the case of
separate insulated private men; but liberty, when men act in bodies, is power. Considerate people before they
declare themselves will observe the use which is made of power; and particularly of so trying a thing as new power, in new persons, of whose principles, tempers, and dispositions, they
have little or no experience, and in situations where those who appear the most
stirring in the scene may possibly not be the real movers. (Burke, 1790, p. 7-8
of the “Eighteenth Century Collections Online”, University of Oxford; original
emphasis)
Burke, que reconhece,
pouco adiante (p. 9), que “tomadas em conjunto todas as circunstâncias, a Revolução
francesa é a mais impressionante [das crises] que aconteceram no mundo até aqui.”
Mas ele sempre contrasta o exercício da liberdade com a garantia da legalidade
do exercício do poder e do respeito aos “direitos do homem”, um conceito que já
estava então bastante assentado no constitucionalismo inglês, desde a Magna
Carta, e que estava sendo introduzido no direito e na política da França. E,
como revelado pelo trecho acima transcrito de sua carta dirigida a um “jovem cavalheiro
francês”, ele combinava o exercício da liberdade à existência de um governo
legítimo, à segurança pública, à disciplina e obediência nos exércitos, à
arrecadação e à boa distribuição das rendas auferidas pelo Estado, à moralidade
e religião, à solidez da propriedade, à paz e ordem e, finalmente, às maneiras
civis e sociais, ou seja, o bom comportamento dos indivíduos em sociedade.
À maneira de Burke, mas
sem pretender absolutamente comparar-me a ele, vou também alinhar algumas
reflexões sobre o atual momento de transição no Brasil, que alguns chamam de “golpe”,
que eles pretendem transformar em revolução, mas que para outros consiste num
processo de ajuste e de reformas, após uma deterioração sensível da situação
econômica e das contas públicas, quase tão relevante quanto aquela ocorrida
pouco antes da Revolução francesa. Pretendo permanecer no espírito da Sociedade
Constitucional, mas levarei em conta a ação do “clube revolucionário”, suas
ações, sua filosofia e seus propósitos divisionistas, tentando oferecer algumas
luzes para a atuação dos homens de bem em meio ao caos e à fragmentação atual
da política brasileira.
As notas a seguir podem
ser lidas na sequência deste trabalho, “Lições da história, de 1961 a 2017: da
necessidade de reformas no Brasil” (30/06/2017), sobre a crise política criada
com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, a título de reflexão retrospectiva
sobre a atual crise brasileira, disponível em meu blog Diplomatizzando (https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/07/nas-origens-da-crise-divisao-estrutural.html) e preliminar a um esforço de elaboração de propostas
de reformas. Elas também oferecem continuidade a trabalho imediatamente
anterior, no qual eu já refletia sobre o estado relativo de anomia política no
Brasil, perguntando se o Brasil já era um “Estado falido”, mas constatando, ao
mesmo tempo, que seu sistema político já podia ser considerado como
completamente falido: “Brazil as a Failing State (or, is it already a
Failed State?)” (12/06/2017,
igualmente disponível no blog Diplomatizzando
http://diplomatizzando.blogspot.pt/2017/06/brasil-existe-uma-crise-da-democracia.html).
2. A
dominação hegemônica da esquerda: incontornável?
O Brasil aparece hoje
como uma sociedade dividida, embora muito dessa divisão seja alimentada
artificialmente, calculadamente pelos inimigos da liberdade, que se apresentam como pretensos defensores da igualdade, dois conceitos que estão no
coração da Revolução francesa e que constituem o objeto das reflexões de Burke
e de mais de dois séculos de debates contínuos sobre o papel do Estado, sobre a
organização do sistema político, sobre as prioridades na determinação das
políticas públicas, ou seja, aquilo que o filósofo conservador britânico chamava
de exercício do poder. Essa divisão ocorre em meio à maior crise econômica –
que se desdobrou em grave crise política e que explica, mais do que os atos de
corrupção, o ato do impeachment, em maio-agosto de 2016 – jamais enfrentada
pelo Brasil (quase 10% a menos no PIB entre 2015 e 2016), o que deveria
supostamente suscitar alguma unidade de propósitos entre as principais forças
políticas na difícil missão de resgatar o país da recessão e levá-lo novamente
ao caminho do crescimento.
Tal união, no entanto,
não ocorreu, por uma razão muito simples: a sociedade, especialmente em sua
fração “pensante” – ou seja, aquela porção que influencia a opinião pública e que
determina parte dos comportamentos, não sociais, mas dos movimentos ditos
“sociais”, entre os quais se situa o sindicalismo – já se encontrava dividida
por décadas de “hegemonia cultural” da esquerda, basicamente representada pelo
assim chamado “gramscismo acadêmico”, que conforma o padrão usual de referência
intelectual para a quase totalidade dos movimentos de esquerda no Brasil. Há
muito tempo existe uma preeminência desse tipo de pensamento político – para
não dizer ideologia – nos meios típicos de influência social relevante no
Brasil. Não é difícil citar as esferas usualmente afetadas: todo o aparelho
educacional (a partir das universidades para todo o sistema), na rede sindical
(em praticamente todos os níveis e nas diferentes centrais existentes), na
mídia (na qual, em sua maioria, os jornalistas são esquerdistas mesmo sem o
saber, resultado de uma deformação curricular até inconsciente), nos meios
culturais e supostamente “intelectuais” (onde, até por força do politicamente
correto, o progressismo de tipo esquerdista predomina amplamente), no ambiente
político, de modo geral (já que não existem partidos de “direita” e quase todos
dizem defender “causas sociais”) e até em certas categorias profissionais
supostamente identificadas com os mercados (engenheiros, por exemplo) ou a
defesa da legalidade (os bacharéis em direito são especialmente “vítimas” desse
tipo de contaminação).
Não seria exagerado
dizer que o “universo mental” ordinário, no Brasil, se confunde com esse
espectro cultural do pensamento de esquerda, isto é, socialmente progressista,
distributivista, igualitário, ainda que a maioria da população se defina ao
longo de valores conservadores para a maior parte dos costumes correntes. A
questão é que são aqueles meios identificados com o pensamento progressista que
fornecem os ativistas de base – militantes de partidos de esquerda; voluntários
de movimentos ditos “sociais”; jornalistas que “trabalham” as informações e
análises; sindicalistas que fazem de sua atividade um meio de vida, antes que
uma atividade-meio; professores com teses pré-concebidas, absorvidas de
acadêmicos gramscianos; funcionários públicos e agentes de entidades oficiais
que estão comprometidos antes com a “justiça social” do que com a legalidade
dos atos – que sustentam, direta e indiretamente, a predominância dessas ideias
identificadas com a hegemonia cultural da esquerda.
A própria acumulação de
fatos, evidências e processos que comprovam o envolvimento direto de grande
parte da esquerda “oficial” – ademais de outros agentes políticos de todo o
espectro ideológico – com a onda avassaladora de corrupção que passou a
percorrer praticamente todas as instâncias públicas, as maiores estatais e até
grandes empresas privadas, não parece ter abalado o apoio de que dispõem esses
meios desde o início das investigações identificadas com a chamada Operação
Lava Jato, a despeito de algumas poucas desvinculações tópicas de
personalidades progressistas.
3. O
que fazer?; as tarefas do partido da reforma
Uma situação de
hegemonia cultural só poderia ser aparentemente vencida por um outro tipo de
hegemonia cultural, mas esse é um caminho longo, eivado de dúvidas quanto à
eficácia desse tipo de estratégia, povoado de incertezas quanto à temporalidade
dessa substituição e, de toda forma, a “contra-hegemonia” não dispõe, e não
disporá no futuro previsível, do conjunto de aparelhos civis, paraestatais ou
diretamente estatais, que permitiram à esquerda estabelecer e manter seu
predomínio cultural e político ao longo das últimas décadas. Quais seriam,
então, os caminhos para o início de uma inversão das tendências observadas até
aqui no campo da mobilização política de apoios sociais em prol de outras
políticas mais identificadas com a liberdade dos mercados?
Pessoalmente não creio
que uma ação no mesmo plano conceitual dos resultados atualmente exibidos pela
hegemonia cultural da esquerda consiga ter sucesso nos próximos anos, pela
ausência, por parte do “partido da reforma”, de meios, mecanismos e
instrumentos similares ou funcionalmente equivalentes aos detidos atualmente
pelos “hegemônicos”, de maneira a ocorrer uma substituição de hegemonias. Uma
estratégia de “combate de ideias”, em torno de conceitos abstratos, do tipo
defender o liberalismo ou o conservadorismo, ou um “partido de direita”, enquanto
alternativas melhores, ou desejáveis, como eixos de ação política, não parece
suscetível de conquistar apoios ou influências significativas na sociedade.
Menos ainda terá sucesso qualquer projeto no sentido de esperar alguma ação por
parte das FFAA, ainda que fosse por meio dessa figura totalmente contraditória
designada pela nome esquizofrênico de “intervenção militar constitucional”. O
que resta, então, às forças da reforma?
Justamente esquecer
qualquer debate no plano das ideias “liberais”, de “direita” ou de inspiração
“conservadora”, conceitos que não possuem qualquer chance de se impor no plano
das referências sociais para fins de influência política. O debate precisa se dar
ao nível de questões práticas, concretas, vinculadas à vida cotidiana dos
cidadãos, e suas preocupações mais prosaicas. Mesmo que esse fosse o terreno de
jogo, e não é, o partido da reforma não tem condições de levar um “combate”
nesses termos, e por razões muito simples: em primeiro lugar, não existem
liberais no Brasil, ou são poucos; os conservadores são ainda em menor número,
e os que se acreditam pertencer a um ou outro campo, parecem (ou são)
totalmente desprovidos de formação teórica numa ou noutra vertente, já que
ideias das vertentes respectivas não são discutidas, aprendidas, transmitidas
nas instituições de ensino superior, ou em qualquer outro nível de estudo.
Em segundo lugar, os que
se classificam sob esses rótulos, ou até mesmo os de “direita”, se apressam em
agregar algum conteúdo ou adjetivo “social” ao epíteto principal, para não
incorrerem em qualquer acusação de “insensibilidade” em relação aos graves
problemas sociais que existem objetivamente no Brasil. O antigo Partido da
Frente Liberal se apressava em agregar o conceito de “liberalismo social” às
suas propostas de políticas públicas, e mais tarde abandonou completamente o
adjetivo, talvez por pressentir que não encontrava receptividade eleitoral (o
que se explica, justamente, pela campanha viciosa da esquerda contra qualquer
ideia de liberalismo como opção política aceitável no plano eleitoral ou no das
definições de políticas). Não existem perspectivas de mudanças repentinas nessa
frente, o que pressupõe que tais conceitos, abstrata ou concretamente, não
gozarão de ampla aceitação e legitimidade política em prazos razoáveis. O
Brasil ainda é um país no qual o conceito de igualdade prevalece
arrasadoramente contra o da liberdade.
A mensagem, ou as
mensagens que devem ser defendidas incessantemente pelo partido da reforma, a
ser apresentado sob essa designação, são justamente as de que o Brasil é um
país entrevado, bloqueado, cerceado e empobrecido pelo conservadorismo das
ideias de esquerda, que são de fato anacrônicas, desadaptadas ao mundo moderno,
contraditórias com os requerimentos da globalização, e de que propostas
reformistas, de ampliação das franquias democráticas no campo das atividades
econômicas são, de fato, progressistas e avançadas. Não será uma tarefa fácil,
pois isso implica, justamente, sair do terreno das ideias abstratas, dos
conceitos políticos gerais, e penetrar na formulação de propostas pragmáticas,
que atendam aos interesses da população, de forma clara, direta, empiricamente
comprovada.
A população provavelmente
não quer ouvir, ou se ouvir não vai entender, que o liberalismo econômico, se
implantado, vai ser bom para o Brasil, ou que, na outra vertente, o
conservadorismo é melhor que o “progressismo” para resolver os problemas que
ela enfrenta, concretamente. A população gostaria de ouvir propostas práticas sobre
como sua vida pode ser melhorada ou facilitada por meio de explicações claras,
diretas, contendo medidas podendo ser implementadas de modo transparente. Tal
objetivo implica um estudo detido e fundamentado de cada um dos grandes
problemas concretos da população brasileira, geralmente a nível microeconômico
(mas que necessitam ter, igualmente, alguma sustentação macro, ou seja, fiscal,
monetário, creditício).
O que liberais,
conservadores, pessoas de “direita” precisam fazer, no Brasil, é arregaçar as
mangas, abrir livros, relatórios, consultar especialistas, reunir técnicos e
começar a preparar propostas simples para os grandes problemas do países. Não
existem, obviamente, respostas simples a problemas complexos, mas existem modos
de explicar à população como as propostas esquerdistas, socialistas,
distributivistas e intervencionistas são nefastas e, na verdade, agravam os
problemas, em lugar de resolvê-los. É preciso quantificar os custos efetivos,
orçamentários e de oportunidade, das políticas atualmente em curso no Brasil,
em todos os terrenos práticos de atividade.
Um começo de ativismo,
nesse terreno, seria partir de mapeamentos já feitos, que indicam, aliás, onde
estão os problemas existentes, e quais seriam as possíveis soluções aos
obstáculos atuais. Um dos melhores “mapas da realidade” disponíveis no mercado
é o relatório anual do Banco Mundial “Fazendo Negócios” (Doing Business), que tem indicadores precisos sobre cada uma das
etapas burocráticas que infernizam a vida dos empreendedores no Brasil, nas
dimensões nacional e comparada. Uma equipe dedicada ao estudo desse relatório
do Banco Mundial, fazendo um detalhamento das distorções mais aberrantes
atualmente em curso, poderia produzir propostas de políticas nos terrenos mais
relevantes da atividade empresarial, aquela suscetível de produzir emprego e
criar renda para milhões de trabalhadores.
Uma concentração nesse
tipo de exercício traria mais frutos, a curto e a médio prazo, do que milhões de
horas-aulas dedicadas ao enriquecimento cultural dos eleitores mediante aulas
teóricas sobre os benefícios do liberalismo ou do conservadorismo para ouvintes
preocupados com problemas da vida diária. Os conservadores, na verdade, são
aqueles que se opõem às reformas, e estes são os esquerdistas e em primeiro
lugar, mas também, e amplamente, os políticos tradicionais. Liberais, ou
pessoas se apresentando como tais, já partem com o ônus original da
desconfiança, quando não com a acusação (equivocada mas “credível”) de “inimigo
dos pobres” ou “amigo dos ricos”, o que pode ser mortal. Uma ação política
eficaz não pode ficar na defensiva, e sim partir para a ofensiva, teórica e
praticamente.
Sou por um “partido das
reformas”, progressista, inovador, ousado, voltado para soluções práticas e
desprovido de qualquer rebuscamento intelectual ou de deformações conceituais
inúteis para 99% dos eleitores. Num momento de transição como o que o Brasil
atravessa atualmente, liberais, conservadores, pessoas de “direita” (se
existem, de fato) não podem perder o seu tempo em propaganda abstrata ou
discussões principistas em torno das grandes ideias que dizem defender,
inclusive porque elas não serão bem recebidas pelo eleitor médio, que é
desprovido completamente de educação política, quando não de educação
simplesmente. Mas não basta proclamar-se a favor de reformas, também tomadas
genericamente: seria preciso ter um cadernos de sugestões e de debates sobre
cada uma das reformas focadas em resultados práticos, com exposição concreta
sobre as maneiras de implementá-las. Edmund Burke pode até fornecer belas
ideias sobre a superioridade do constitucionalismo civil sobre o igualitarismo
violento, mas isso não basta: é preciso descer ao terreno da práxis, como já
disse um filósofo...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3141:
23 de julho de 2017.