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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 10 de janeiro de 2010

1659) Mini-tratado das reticencias

Um texto retaliatório, se me permitem a expressão, se é que existe retaliação apenas pela via das palavras (mas não conheço outra forma, sinto muito).
Digo isto a propósito de um gaiato, evidentemente anônimo (todo mundo que tem vergonha, medo ou qualquer outra incapacidade estrutural escolhe ser anônimo, já reparei), escreveu isto, a propósito do meu post anterior, sobre a Arte da Escrita (e enfatizei: "bem, nem tanto...), posto que ele se enraiveceu pelo meu uso de reticências.

Anônimo disse...
Isso vindo de um cara que não consegue escrever um texto sem usar reticências.
Amigo, já viu alguém que escreve bem ficar usando reticências?
Sábado, Janeiro 09, 2010 8:24:00 PM


Minha resposta, retaliatória, e tenho certeza de que ele vai ler até o fim, é este...

Mini-tratado das reticências...
(em defesa de uma inutilidade necessária…)

Paulo Roberto de Almeida

Pouca gente dotada de uma certa familiaridade com a palavra escrita consegue atribuir real importância às reticências, inclusive este cidadão que aqui escreve. Quero falar das reticências stricto sensu, isto é, os famosos três pontinhos ao final de alguma frase ou expressão da linguagem diária (elas parecem ser menos usadas nos textos ditos “sérios”, nos quais a necessária precisão “científica” deixa pouco espaço para as dúvidas ou indecisões que são (e estão) inevitavelmente associados aos três pontinhos). No mais das vezes, elas passam despercebidas, quando não são solenemente ignoradas e deixadas num espaço menor das figuras de linguagem. Os cientistas, francamente, parecem considerá-las uma total inutilidade no processo de elaboração do seu discurso “realista”.
No entanto, as reticências são fundamentais, sobretudo naqueles casos – agora lato sensu – de duplo sentido, nos muitos subentendidos das conversas vagas, nas promessas indefinidas, nas situações pouco claras, nas esperanças falsamente criadas, nas aberturas ao contraditório, nos convites a “algo mais”, enfim, em todas as circunstâncias nas quais a precisão e o cuidado com o verdadeiro não figuram entre as prioridades do autor do discurso ou de seu eventual interlocutor. Não é apenas no teatro ou na literatura que elas aparecem, pois eu, que sou dado a escritos sociológicos, encontro amplo espaço para reticências nas minhas elocubrações pretensamente acadêmicas. Nem preciso lembrar seu amplo uso nas estatísticas oficiais, com tabelas cheias de três pontinhos para dados inexistentes ou incompletos (sobretudo naquelas áreas chamadas, apropriadamente, de “terras incógnitas”, geralmente referidas na expressão em latim).
Minha intenção é fazer aqui uma defesa circunspecta das reticências (daí o título de “mini-tratado”), além de ressaltar-lhes a importância discursiva, como a própria essência do discurso humano. Eu, pessoalmente, gosto de reticências, sobretudo pela liberdade que elas permitem, mas entendo perfeitamente os que as abominam e querem vê-las extirpadas da face da terra (ou pelo menos da superfície do papel, atualmente, mais bem da tela do computador…).

Voilà, acabo de usar reticências pela primeira vez depois de muitas frases e dois parágrafos inteiros sem necessidade de empregá-las. Isto é uma prova, justamente, de que as reticências são úteis e necessárias e por mais que queiramos evitá-las. Pois eu falava daqueles que detestam reticências e são a favor das situações totalmente definidas, do correto discurso tipo “pão, pão, queijo, queijo”, mas que, em algum momento, também tropeçam com alguma reticência que se imiscuiu no discurso aparentemente correto e totalmente claro.
Admito, preliminarmente, que as reticências parecem incompatíveis com a lógica formal, aquela que deriva uma consequência necessária de duas afirmações anteriores, tipo “todo homem é mortal, Sócrates é um homem, logo… etc., etc.”. Mas, mesmo aqui, como acaba de constatar o preclaro leitor, fui levado a usar reticências, pois eu não precisava terminar a frase, por uma dedução lógica do imediatamente precedente.

Eu poderia, nesta minha defesa pouco reticente das reticências, empregar uma derivação do famoso moto cartesiano: “penso, logo sou reticente…”, mas não pretendo abusar do meu direito a ser reticente, nem da paciência do leitor. Prefiro ater-me a um discurso coerente, ainda que algo impressionista, sobre a importância das reticências na atividade argumentativa e até na organização da vida diária. Serei breve, como convém a um “mini-tratado”, marcado por algumas reticências terminológicas, vários duplos-sentidos e outras tantas dúvidas conceituais.

Admito, antes de mais nada, que as reticências passam quase despercebidas nos manuais de estilo e mesmo nos livros de gramática. Meu dicionário Aurélio, por exemplo, na introdução relativa às instruções da Academia Brasileira de Letras (de 1943) para a organização do vocabulário ortográfico da língua portuguesa, passa solenemente por cima, quando não à côté, desses simpáticos sinais, objeto de meu tratado, ignorando-os por completo. Com efeito, na parte relativa aos sinais de pontuação, a douta Academia, zelosa guardiã da boa expressão e da correção de linguagem, registra apenas e tão somente as aspas, os parênteses, o travessão e o ponto final, assim, não mais do que isso. Mas o MEC foi vigilante, e na portaria nº 36, de 28 de janeiro de 1959, registrou na Nomenclatura Gramatical Brasileira os seguintes sinais de pontuação: aspas, asterisco, colchetes, dois-pontos, parágrafo, parênteses, ponto-de-exclamação, ponto-de-interrogação, ponto-e-vírgula, ponto-final, reticências, travessão, vírgula.

Voilà, aí estão nossas simpáticas reticências, cuja definição “científica”, constante do mesmo dicionário Aurélio, apresenta-se como a seguir: “[Pl. de reticência.] S. f. pl. Sinal de pontuação: série de três ou mais pontos que, num texto, indicam interrupção do pensamento (por ficar, em regra, facilmente subentendido o que não foi dito), ou omissão intencional de coisa que se devia ou podia dizer, mas apenas se sugere, ou que, em certos casos, indica insinuação, segunda intenção, emoção. [Sin.: pontos de reticência, pontos de suspensão e (fam.) pontinhos. Cf. reticencias, do v. reticenciar.]” (p. 1229, da 15ª impressão da 1ª edição da Nova Fronteira, sem data).
Pois eu acabo de ficar sabendo da existência do verbo reticenciar, que passarei a utilizar agora, em toda a extensão do que me for permitido pelos bons costumes e reais necessidades de expressão. Trata-se de um verbo transitivo direto, que tem o significado, justamente, de colocar reticências em algo ou exprimir de modo reticente, incompleto, como em: “A testemunha reticenciou os fatos”. Mas, não pretendo reticenciar meu mini-tratado sobre as reticências.

Dito isto, retenho da definição aureliana sobretudo a última parte, pois que a interrupção de pensamento é tão evidente que nem precisaria ser explicada. A última parte refere-se à omissão intencional, que pode querer dizer insinuação, segunda intenção ou emoção. Aqui estão a essência, o caráter fundamental, o âmago e a alma profunda, se ouso dizer, das reticências, que parecem ter sido trazidas ao mundo para acomodar todas as situações ambíguas e os propósitos não declarados.
Aliás, o singular da palavra em questão já trazia essas “más intenções” inscritas em sua definição original. O substantivo vem do latim reticentia, que quer dizer “silêncio obstinado”. O enunciado remete a uma “omissão intencional de uma coisa que se devia ou podia dizer”, o que nos confirma o caráter de subterfúgio do conceito em questão. E o que é subterfúgio?: segundo o mesmo dicionário, trata-se de “ardil empregado para se esquivar a dificuldades; pretexto, evasiva”. Pois todos nós, na vida diária, nas atividades literárias, no jogo da política (sobretudo) e nas coisas do amor (aqui parece fundamental) necessitamos, em algum momento, de utilizarmo-nos de algum subterfúgio. Para evitar confrontar o interlocutor com alguma mensagem muito direta, fazemos apelo a essas figuras de linguagem pouco claras e a esses conceitos ambíguos que brotam, justamente, da complexidade natural do ser humano e do mundo que o cerca (estou sendo muito antropocêntrico, talvez, mas é que os animais, por exemplo, não precisam de reticências, pois eles costumam ir direto ao assunto, sobretudo os predadores carnívoros).

O recurso aos três pontinhos é por vezes absolutamente necessário para evitar algum conflito maior, e parece estranho que as reticências sejam tão pouco usadas no vacabulário diplomático, na letra dos tratados, nos discursos oficiais (justamente os que mais necessitariam de alguma “ambiguidade construtiva”). Não sei se existe espaço para o uso de reticências no curso de “linguagem diplomática” do Itamaraty, mas deveria haver, para acomodar todas essas situações difíceis nas negociações internacionais: parece evidente que as conferências terminariam mais cedo se todos pudessem ir para casa sobraçando o seu exemplar de algum tratado, cheio de pontos suspensivos…
O único problema (aparente) das reticências é que elas não aparecem de modo claro na linguagem oral, só naqueles “balõezinhos” acima da cabeça das pessoas nos desenhos de revistas ou diretamente nos textos escritos. Na linguagem coloquial elas são imperfeitamente traduzidas nas hesitações da expressão, nas frases não acabadas, nas terminações muito lentas, que se arrastam ao longo de um sorriso por vezes embaraçoso. Vamos deixar, justamente, um espaço aberto à criatividade e à imaginação humanas, que não podem ficar só na lógica binária dos programas de computador ou na rigidez das fórmulas matemáticas que pretendem encerrar o mundo numa única expressão: E=mc2.
O mundo não é feito só de cartesianismos, muito menos de fórmulas einsteinianas ou newtonianas totalmente abrangentes, que funcionam no estrito limite dos fenômenos identificados pelas forças conhecidas da natureza. Existem outras forças que ainda não foram devidamente mapeadas pela ciência moderna (ou antiga, ou medieval, ou de todos os tempos), a começar, obviamente, pelo amor. Pois eu pergunto: o que seria do amor sem as reticências? O que seria dos namorados se eles precisassem dizer tudo de forma clara, absolutamente sem ambiguidades, sem essas “sugestões construtivas”, sem essas omissões convenientes, sem os subentendidos de linguagem? Certamente haveria muito mais brigas, e as taxas de separação (e de divórcio) seriam infinitamente superiores…

Tomemos, por exemplo, o caso de Penélope, interminavelmente a fiar e a tecer a sua tela, ela mesma uma permanente reticência, pois que desfeita a cada noite para evitar o confronto indesejado com os pretendentes ao trono de Ulisses. O que mais ela poderia fazer na ausência do seu amado, ele mesmo preso nas reticências dos troianos, que hesitaram um pouco antes de arrastar para dentro da fortaleza o cavalo de madeira que ele tinha sugerido aos gregos? O próprio herói não ficou quase retido nas reticências dos montros marinhos, nos encantos reticentes e nas promessas enganosas das lindas sereias? Se Penélope não fosse reticente, Ulisses ainda teria de enfrentar uma nova odisséia para garantir o seu lugar original no comando da ilha de Ítaca. Poderíamos, assim, dizer que a situação de Ulisses foi salva pelo uso das reticências…
Assim, mesmo concordando em que o discurso “científico” precisa livrar-se de toda e qualquer ambiguidade explicativa, sou franca e resolutamente a favor das reticências e de seu uso da forma mais ampla possível nas circunstâncias cambiantes que são as da vida humana. Reticências nos ajudam, nos confortam, nos salvam de situações embaraçosas. Elas, sobretudo, nos permitem construir relações que podem frutificar de modo amplamente satisfatório mas que só sobreviveriam, em face de adversidades e dos muitos imponderáveis da vida humana, caso a flexibilidade por elas permitida seja efetivamente empregada para estender os limites do entendimento até esses situações limites de acomodação de contrários. A vida é contraditória e cheia de surpresas: não podemos tolher as possibilidades infinitas do nosso itinerário futuro com frases cortantes que encerram apenas as limitações do presente.

As reticências significam, essencialmente, liberdade de escolha. Nisso elas estão inteiramente de acordo com a “economia” do nosso modo de ser, sobretudo nas situações intensamente relacionais. Vivam as reticências…

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de novembro de 2004

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Não gostaria de repetir, segundo o ditado popular, mas vou fazê-lo:
"Conheceu, papudo?"
Fique com minhas reticências, e passe a usá-las...
Não cobrarei copyright por isso...

sábado, 9 de janeiro de 2010

1658) A arte da escrita (bem, nem tanto...)

O texto que segue abaixo foi escrito mais de dois anos atrás, mas permaneceu relativamente obscuro, posto que foi publicado uma única vez no Observatório da Imprensa. Creio que o escrevi depois de tropeçar, não numa pedra, mas em vários blocos graníticos de ignorância redacional manifesta, esculpidos (se ouso dizer) em algumas dissertações ou teses acadêmicas. Creio que voltava de uma banca no Rio de Janeiro: um sacrifício de viagem para um grande desprazer intelectual, não apenas quanto à substância do trabalho, mas igualmente quanto à sua forma, ou seja, a escrita.
Daí escrevi o texto prometendo a mim mesmo nunca mais aceitar participar de uma banca se a redação do trabalho em questão me parecesse deficiente. Uma decisão difícil, pois sempre quem convida é um professor amigo, que foi também o que "orientou" (provavelmente mal) o trabalho em questão.
Enfim, se ainda não revisei na prática a minha política de participação em bancas, pelo menos posso deixar aqui o desabafo...
Paulo Roberto de Almeida (9.01.2010)

Por que é difícil encontrar quem saiba escrever
Paulo Roberto de Almeida
Observatório da Imprensa - 05/06/2007

O texto a seguir, sobre a obscuridade de certos escritos que encontramos nas páginas literárias de jornais e revistas, foi inspirado pela seguinte frase de Stefan Zweig, em correspondência particular, frase que "pesquei" na fabulosa biografia desse autor escrita por Alberto Dines:

"As pessoas que fazem ou falam literatura são totalmente incompreensíveis, parece-me mais um defeito da natureza do que uma virtude, mas talvez a arte tenha sido sempre condicionada por tais deficiências."
[Stefan Zweig, carta a Friderike Maria von Winterniz (ex-Zweig), em 7/12/1940, citado por Alberto Dines, Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (3ª ed. ampliada; Rio de Janeiro: Rocco, 2004), p. 326.]

Stefan Zweig referia-se, obviamente, aos escritores como ele, romancistas ou literatos em geral, homens de letras, no sentido amplo, cuja prosa lhe parecia pertencer a um universo de referências escondidas, de significados obscuros, cuja compreensão talvez só estivesse ao alcance de outros membros da République des Lettres – que ele evitava freqüentar seja por comodismo ou timidez, seja por medo de entrar em polêmica a respeito de suas próprias convicções literárias ou a propósito do seu estilo de escrita.

Ele queria ser compreendido e amado pelo grande público e por isso buscava a concisão literária, a correção na forma, a perfeição na linguagem, a simplicidade no discurso, para que seu argumento atingisse o maior número possível de leitores. Sem deixar de ser profundo, e de fazer apelo à sua vasta cultura humanista, ele pretendia ser um escritor popular, o que requeria, obviamente, um cuidado especial com a linguagem escrita, de maneira a aproximá-la do cidadão comum, do leitor médio, do público cultivado mas não pretensioso, que refugava os maneirismos e preciosismos de linguagem de muitos dos seus colegas de pluma.

Erros primários [o intertítulo é do Observatório da Imprensa]
De minha parte, entendo que a frase de Zweig aplica-se ainda com maior acuidade e rigor ao trabalho dos filósofos, dos sociólogos, dos cientistas sociais em geral, cujo objeto de análise e de reflexões se volta para os campos mais ou menos subjetivos da organização social, das motivações políticas, das políticas econômicas; em síntese, dos assuntos humanos. Tenho encontrado, em muitos trabalhos de colegas, grandes doses de prolixidade na escrita, um desejo inconfessado de parecer sofisticado pelo rebuscamento inútil da linguagem, pela profusão nos conceitos e pela adjetivação exagerada das análises. Parece que eles acabaram de fazer um curso completo de redação obscura com um desses filósofos franceses adeptos do desconstrucionismo verbal, êmulos de Jacques Derrida e de Jean Baudrillard.

Isso pelo lado bom. Pelo lado ruim, o que mais tenho encontrado, na verdade, é a simples redação deficiente, uma linguagem caótica e rebarbativa, que por sua vez revela um pensamento desorganizado, uma confusão de idéias que passa longe do que se convencionou chamar de brain storming. Pelo lado catastrófico, então, cada vez mais deparo-me com a miséria da escrita, com uma linguagem estropiada por incorreções gramaticais, impropriedades estilísticas, quando não barbaridades ortográficas de tal monta que seriam capazes de fazer fundir um desses corretores automáticos de computador que detectam todos os erros de digitação. Mas, mesmo depois de o perpetrador em questão ter aplicado o seu corretor ortográfico informático e eliminado todos os erros de digitação, ainda sobram frases incompreensíveis, expressões sem sentido, reflexos de uma linguagem tortuosa e torturada que seria capaz de confundir o mais paciente revisor de estilo pago para fazer essa tarefa.

A pobreza da linguagem escrita no Brasil – já nem mais falo da linguagem coloquial, irrecorrivelmente contaminada pelo dialeto televisivo das novelas e programas de auditório – tem progredido a olhos vistos, acompanhando a rápida deterioração da educação no país. Acredito que não haja mais espaço, atualmente, para aqueles programas ao vivo voltados para testar o conhecimento de concorrentes sobre fatos gerais da história ou em destreza na língua escrita, que premiavam verdadeiras enciclopédias ambulantes, dicionários vivos da língua pátria. Tudo isso é passado, eu sei, mas será que não se consegue, ao menos, ter pessoas que consigam escrever ao menos num Português normal, desprovido de erros primários e de barbarismos estilísticos?

Deterioração generalizada [o intertítulo é do Observatório da Imprensa]
Não estou falando de profissionais "normais", mas de aspirantes a um título universitário de pós-graduação, que constitui a minha "clientela" mais freqüente. Tenho encontrado cada vez mais, nessas dissertações para as quais sou convidado para a banca julgadora, um tamanho volume de atentados à linguagem que penso seriamente em desistir de aceitar o convite, por mais que o título ou o tema possam me atrair. Vou pedir para ver o trabalho primeiro, antes de me decidir se aceito ou não participar. Não quero compactuar, nem que seja indiretamente, com as barbaridades lingüísticas e os atentados à boa escrita.

Não se trata de arrogância intelectual ou elitismo lingüístico, mas uma simples questão de coerência. Uma linguagem confusa, quando não incorreta, revela, antes de tudo, confusão nas idéias. Assim sendo, ao menor sinal de impropriedade redacional pode-se estar seguro de que a qualidade intrínseca do trabalho tampouco será superior ao estilo de redação. Como não pretendo deixar nem autor nem orientador constrangidos na hora da avaliação pública do trabalho, vou desistir preventivamente de participar. Acho que é o melhor que eu tenho a fazer nesta fase de deterioração generalizada da educação no Brasil.

Fica, portanto, dado o aviso. Antes de me convidar, favor procederem à revisão do Português (e revisem as idéias também).

[Texto também reproduzido no Blog do Galeno: por um Brasil que lê mais: http://www.blogdogaleno.com.br/texto_ler.php?id=587&secao=25, que foi onde eu acabei reencontrando um ensaio praticamente esquecido.]

1657) O Itamaraty e o decreto do governo Lula sobre '"direitos humanos"

Dois avisos prévios:
1) Este post pode ser lido em conexão com dois outros posts anteriores, 1654 e 1656, que tratam, de maneira mais abrangente daquilo que já foi chamado, por um jornalista conhecido, de "estrovenga", isto é, o Decreto relativo ao terceiro plano nacional de "direitos humanos", de fato uma coisa estranha, bizarra e naturalmente aberta às mais fundadas desconfianças da cidadania, em função do seu caráter celerado e objetivamente deletério do ponto de vista dos verdadeiros direitos humanos e da democracia.
2) Coloquei direitos humanos entre aspas no título pois a relação entre o objeto e a fonte justifica plenamente o seu uso, tantas são as contradições entre um e outro...

Quem desejar conhecer a integridade desse decreto bizarro, pode clicar aqui.

Mas, este post tem por objetivo apenas uma compilação muito simples, sobre:

Relações entre o Itamaraty e o Decreto do Governo Lula sobre "direitos humanos"

O decreto atualiza, se é o caso de se dizer, as diretrizes nacionais relativas aos direitos humanos, tanto em sua parte de definição de conceitos, como em sua parte operacional. Ele tinha sido promulgado pela primeira vez no governo FHC, e portanto correspondia a um desejo sincero de fazer com que a sociedade brasileira se encaminhasse gradativamente em direção ao cumprimento pleno de ações públicas numa das áreas mais lamentáveis do nosso cenário interno.
Apenas ocorre que no governo atual ele foi "remodelado", digamos assim, para cumprir outros objetivos, que são aqueles velhos conhecidos da esquerda autoritária e antidemocrática, tentando legitimar movimentos criminosos -- como esse partido neobolchevique que responde pelo nome de MST -- e criminalizar torturadores do passado -- das FFAA e das forças de segurança -- sem mencionar os crimes cometidos por aqueles que hoje assinam várias partes desse decreto esquizofrênico.

Em todo caso, o objetivo deste post é apenas o de ver, linearmente, o que interessa ao Itamaraty nesse decreto do governo Lula, destacando tão simplesmente as passagens que atribuem alguma responsabilidade ao MRE.
Não pretendo fazer agora uma análise desses trechos, tanto porque eles são aborrecidamente burocráticos.
Creio que a única parte inovadora em relação às versões anteriores do PNDH é esta aqui:

"Aprofundar a agenda Sul-Sul de cooperação bilateral em Direitos Humanos que contemple prioritariamente os países lusófonos do continente africano, o Timor-Leste, Caribe e a América Latina."

A agenda Sul-Sul é, como se sabe, uma das diretrizes da política externa neste governo, mas para não dizer "nunca antes neste país", cabe relembrar que ela já fazia parte, implicitamente, da política anterior, que sempre foi algo terceiro-mundista. Apenas que isso não aparecia de forma tão explícita como agora.
Pergunto-me, mesmo, se os países expressamente contemplados nesse decreto, a saber, os países lusófonos do continente africano e o Timor-Leste, em especial, e o Caribe e a América Latina, de uma forma geral, foram avisados que eles são objeto de uma "discriminação positiva" -- algo equivalente a uma "ação afirmativa", aí sim, "nunca antes neste país" -- na política externa de DH do governo Lula, e se eles se sentem confortáveis com essa menção expressa num decreto que, afinal de contas, diz respeito apenas e tão somente ao governo brasileiro.
Pode ser que isso seja um exemplo da política de "não indiferença", agora proclamada pelo governo brasileiro, mas se isso é feito de forma unilateral, poderia, talvez, ser considerado uma forma de ingerência nos assuntos internos de outros países (posto que eles sempre podem argumentar, como faz o governo brasileiro em situações similares, que o assunto diz respeito exclusivamente à sua jurisdição nacional).
Sem mais delongas, vejamos o que o decreto tem a dizer sobre o MRE...
Paulo Roberto de Almeida (9.-1.2010)

DECRETO Nº 7.037, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2009 – DOU DE 21/12/2009
Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3 e dá outras providências.


Objetivo estratégico I:
Promoção dos Direitos Humanos como princípios orientadores das políticas públicas e das relações internacionais.
Ações programáticas:
a) (…)
b) Propor e articular o reconhecimento do status constitucional de instrumentos internacionais de Direitos Humanos novos ou já existentes ainda não ratificados.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça; Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República
c) Construir e aprofundar agenda de cooperação multilateral em Direitos Humanos que contemple prioritariamente o Haiti, os países lusófonos do continente africano e o Timor-Leste.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores
d) Aprofundar a agenda Sul-Sul de cooperação bilateral em Direitos Humanos que contemple prioritariamente os países lusófonos do continente africano, o Timor-Leste, Caribe e a América Latina.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores

Objetivo estratégico II:
Fortalecimento dos instrumentos de interação democrática para a promoção dos Direitos Humanos.
Ações programáticas:
a) (…)
b) Estimular e reconhecer pessoas e entidades com destaque na luta pelos Direitos Humanos na sociedade brasileira e internacional, com a concessão de premiação, bolsas e outros incentivos, na forma da legislação aplicável.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores

Objetivo estratégico II:
Monitoramento dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de Direitos Humanos.
Ações programáticas:
a) Elaborar relatório anual sobre a situação dos Direitos Humanos no Brasil, em diálogo participativo com a sociedade civil.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores
b) Elaborar relatórios periódicos para os órgãos de tratados da ONU, no prazo por eles estabelecidos, com base em fluxo de informações com órgãos do governo federal e com unidades da Federação.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores
c) Elaborar relatório de acompanhamento das relações entre o Brasil e o sistema ONU que contenha, entre outras, as seguintes informações:
· Recomendações advindas de relatores especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU;
· Recomendações advindas dos comitês de tratados do Mecanismo de Revisão Periódica;
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores
d) Definir e institucionalizar fluxo de informações, com responsáveis em cada órgão do governo federal e unidades da Federação, referentes aos relatórios internacionais de Direitos Humanos e às recomendações dos relatores especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU e dos comitês de tratados.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores
e) Definir e institucionalizar fluxo de informações, com responsáveis em cada órgão do governo federal, referentes aos relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores
f) Criar banco de dados público sobre todas as recomendações dos sistemas ONU e OEA feitas ao Brasil, contendo as medidas adotadas pelos diversos órgãos públicos para seu cumprimento.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores

Objetivo estratégico I:
Proteger e garantir os direitos de crianças e adolescentes por meio da consolidação das diretrizes nacionais do ECA, da Política Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU.
Ações programáticas:
a) (…)
b) (…)
c) Elaborar e implantar sistema de coordenação da política dos direitos da criança e do adolescente em todos os níveis de governo, para atender às recomendações do Comitê sobre Direitos da Criança, dos relatores especiais e do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores

Objetivo estratégico III:
Proteger e defender os direitos de crianças e adolescentes com maior vulnerabilidade.
Ações programáticas:
(...)
j) Fomentar a adoção legal, por meio de campanhas educativas, em consonância com o ECA e com acordos internacionais.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores

Objetivo estratégico III:
Consolidação de política nacional visando à erradicação da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Ações programáticas:
a) Elaborar projeto de lei visando a instituir o Mecanismo Preventivo Nacional, sistema de inspeção aos locais de detenção para o monitoramento regular e periódico dos centros de privação de liberdade, nos termos do protocolo facultativo à convenção da ONU contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Relações Exteriores;


Nada mais tendo a declarar, considero encerrado este post...

1656) Brasil: a caminho da ditadura? (2)

O assunto é muito importante para merecer apenas uma postagem. Como não li o decreto, ainda, tenho de me basear em matérias de jornalistas, mas sei avaliar o conteúdo de cada uma, e fazer meu próprio julgamento.

NÃO SE MATA A DEMOCRACIA EM UM DIA: O PT SABE QUE SE TRATA DE UM PROCESSO LENTO
Reinaldo Azevedo, 08/01/10 05:42

Nenhum país dorme democracia e acorda ditadura; em nenhum lugar do mundo, o sol se põe na plena vigência do estado democrático e de direito e se levanta para iluminar um regime autoritário. A construção da miséria institucional e legal é sempre lenta e demanda um esforço continuado e dedicado tanto dos candidatos a ditador como dos culpados úteis que lhes prestam serviços - são “culpados úteis”, sim; não há inocentes entre protagonistas e omissos.

Aquele que viola a democracia é culpado de violá-la; e aquele que se cala, cúmplice, é culpado dessa cumplicidade silenciosa. Por que isso?

Mesmo trabalhando num ritmo menos acelerado do que de hábito - o blog volta à sua rotina na segunda próxima -, encontrei um tempinho para ler aquela estrovenga que ficou conhecida como “o decreto dos direitos humanos”. Fiz, com o pé na areia, o que, lamento dizer, boa parte da imprensa não fez com os calcanhares nas redações. Já disse aqui dia desses e repito: os jornais podem acusar a Internet o quanto quiserem por sua marcha rumo à irrelevância. Mas nada será tão definidor de seu destino quanto a escolha pela… irrelevância!

Esqueceram de ler o decreto. E, porque o texto foi ignorado, alguns tontos saíram a defendê-lo em suas colunas. Fixaram-se apenas na criação da “Comissão da Verdade”. E a mistura de ignorância histórica com a herança da esquerda botocuda resulta num dos pecados bem conhecidos da estupidez: a preguiça. No caso, preguiça de pensar. Imersos numa enorme confusão filosófica e jurídica, ignoram que mesmo os melhores princípios obedecem a códigos estabelecidos - estabelecidos, é bom lembrar, num regime plenamente democrático. Moral e intelectualmente, comportam-se como crianças tolas e assustadas, que fazem pipi nas calças diante do temor de que a crítica ao tal decreto venha a ser confundida com “defesa da tortura”. O fenômeno, admito, não é só brasileiro. Vive-se a era da patrulha das minorias organizadas, que tolhem o pensamento com a força de um tribunal inquisitorial. Richard Lindzen, por exemplo, professor de meteorologia do Massachusetts Institute of Technology (nada menos do que o lendário MIT), faz picadinho de algumas teses do aquecimento global e explica o silêncio de colegas que comungam de suas teses: medo - e, claro!, risco de perder verbas para pesquisa. Há um post sobre ele aqui.

Boa parte das pessoas - no jornalismo, então, nem se diga! - prefere perder a vergonha a perder o conforto da companhia, a sensação de pertencer a um grupo ou a uma corporação. Por isso há tanta mesmice no jornalismo. Adiante.

Os bestalhões saíram a defender um decreto que tinha na criação da tal comissão o seu aspecto menos deletério, embora igualmente absurdo. Ocorre que, entre outras barbaridades, o mesmo texto que contempla aquela aberração também extingue, na prática, o direito de propriedade e institui a censura sob o pretexto de defender os direitos humanos. Vale dizer: alguns “patrões da mídia” (como gostam de dizer a esquerda e muitos vigaristas que participaram da Confecom) estão pagando o salário de solertes companheiros que lhes põem uma corda no pescoço - e no pescoço do regime democrático. Em muitos casos, com efeito, trata-se de covardia; em outros, de ação partidária, deliberada: estão cumprindo uma tarefa.

Alguns “juristas petralhas” (como se não houvesse nisso um clamoroso oximoro…) resolveram lembrar que a decisão será do Congresso etc e tal. Não tentem me ensinar o que eu mesmo escrevi no primeiro texto de ontem: “Muito dirão que quase tudo o que há naquela estrovenga depende de projeto de lei e que será o Congresso a dar a palavra final. E daí? O texto não se torna constitucional por isso. Ademais, dados os métodos de cooptação dessa gente, isso não significa uma garantia, mas um risco adicional.”

Petralhas e até alguns inocentes acusaram: “Você está exagerando na interpretação do decreto”. Não estou. O governo é que exagera na empulhação. E volto, então, ao início dessa conversa. Não se mata a democracia do dia para a noite. Seu último suspiro é apenas o ponto extremo de uma longa trajetória. Se é um regime de liberdade o que queremos, pautado pelos códigos legais que nos fazem também um estado de direito, então o decreto de Lula há de ser alvo do nosso repúdio. E ele tem de ser expresso agora, não depois, antes que se multiplique em projetos de lei num Congresso que já não morre de amores pela imprensa.

A Confederação Nacional de Agricultura, felizmente, reagiu ontem com firmeza. Numa entrevista, a presidente da entidade, senadora Kátia Abreu (DEM-TO), não poderia ter sido mais exata: “Quando o governo apresenta um documento de intenções dificultando e obstruindo a urgência em reintegrar posse e concessão de liminares, de certa forma, está apoiando os movimentos criminosos que invadem terras, e isso nós não podemos permitir” (no Jornal Nacional, aqui).

Ditosos produtores rurais que têm uma entidade atenta a seus direitos - notando que o decreto ameaça quaisquer propriedades, também as urbanas. Já a imprensa pisa nas próprias liberdades distraída.

É que os esbirros do petismo que defendem a criação da ”Comissão da Verdade” estão tão imbuídos do espírito humanista que não se importam nem mesmo em recorrer à mentira para fazer o que entendem ser “justiça”.

*
Leiam ainda:
- DECRETO GOLPISTA DE LULA USA DIREITOS HUMANOS PARA TENTAR CENSURAR A IMPRENSA E QUER MOVIMENTOS SOCIAIS SUBSTITUINDO O CONGRESSO

- O SUPOSTO DECRETO DOS DIREITOS HUMANOS PREGA UM GOLPE NA JUSTIÇA E EXTINGUE A PROPRIEDADE PRIVADA NO CAMPO E NAS CIDADES. ESTÁ NO TEXTO. BASTA LER!!!

1655) Rodada Doha: suficiente para combater a crise?

Celso Amorim: É preciso concluir a rodada de Doha para combater crise mundial
Boletim da Liderança do PT na Câmera dos Deputados, 8.01/2010

O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, fez um chamado para conquistar um acordo que permita fechar a rodada de Doha para a liberalização do comércio mundial, porque, em sua opinião, isso contribuiria para combater a crise.

"É preciso concluir a Rodada de Doha", assinalou Amorim, após lembrar que as negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) estiveram próximas do acordo e que este é um dos pontos que não se resolveram com sucesso na mobilização internacional frente à crise econômica.

O ministro brasileiro, que participou em Paris de uma reunião intitulada "Novo mundo, novo capitalismo", concordou com a afirmação do presidente francês Nicolas Sarkozy, que afirmou que a reunião de Copenhague "não foi um fracasso total" na medida em que "há uma orientação em que todos os envolvidos devem seguir".

No discurso, Sarkozy também pediu uma decisão sobre a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) e insistiu que não é possível continuar com a situação atual em que a América Latina e a África não têm representação nessa instância de forma permanente.

Amorim destacou que o G20 — que reúne os países ricos e os principais "emergentes" — foi o instrumento de ação internacional diante da crise e, por enquanto, "é uma instância necessária de mediação". Mas especificou que não pode ser a nova estrutura de gestão na escala mundial porque não é representativa, como não o era no passado o G-8.

Com relação a isso, Amorim reivindicou uma reforma "das instituições formais", e se mostrou satisfeito com o início do trabalho para mudar a organização do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). O chefe da diplomacia brasileira disse que "a crise mostrou a emergência dos países em desenvolvimento" e pôs em evidência que o Brasil deve estar presente na gestão dos assuntos mundiais.

Amorim explicou que o Brasil resistiu melhor à crise que as grandes potências ocidentais e atribuiu isso, entre outras coisas, às políticas sociais, que contribuíram para alimentar a demanda interna, e ao comércio exterior brasileiro "bastante equilibrado". Amorim considerou, por último, que a crise fez emergir "o ceticismo frente à capacidade do mercado para oferecer soluções a tudo".

1654) Brasil: a caminho da ditadura? (1)

A pergunta foi feita pelo jornalista gaúcho Políbio Braga, de cuja coluna diária retiro o que vai abaixo:

Decreto de Lula (Vanucchi-Tarso) instaura a ditadura imediada no Brasil
Políbio Braga, 08.01.2010

Este é o decreto (leia a íntegra a seguir) assinado por Lula em Copenhague e que fez com que os chefes militares e o ministro Nelson Jobim se demitissem, sendo impedidos pelo próprio Lula, sob a promessa de que revisaria tudo. Lula alegou não ter lido direito o que assinou. Sobre este caso, impõem-se duas questões não respondidas:

1) por que levar a Copenhague o decreto, se no Brasil o presidente era José Alencar.
2) O que fará Lula com Paulo Vanucchi e Tarso Genro, que enganaram o presidente, segundo ele mesmo, já que não o informaram corretamente ?

O decreto tem conteúdo claramente autoritário, viés ditatorial, e é totalmente inconstitucional e ilegal. Trata-se de uma peça de arbítrio puro. Usando terminologia cândida, obliquamente escudada na defesa dos direitos humanos, o decreto propicia a instauração de uma ditadura comunista no Brasil.

É só ler o que está escrito. Não há outra constatação possível.

A seguir, vai artigo do jornal "O Globo" de hoje, assinado por José Casado, que faz exatamente esta denúncia.
Eis um pequeno rol de diktakts que o decreto manda o governo fazer:

1) Adotar iniciativas legislativas diretas como plebiscito, referendos, veto popular.
2) Regulamentar a taxação de grandes fortunas.
3) Mudar regras de cumprimento de mandados de reintegração de posse em invasões agrárias.
4) Estimular debate sobre revisão da Lei de Anistia.
5) Mudar regra constitucional sobre outorga e renovação de concessão de rádio e TV.

CLIQUE AQUI para ler a íntegra do decreto assinado por Lula.
CLIQUE AQUI para ler o artigo de José Casado.

Transcrito aqui abaixo:

DECRETO TRATA DESDE REFORMA AGRÁRIA ATÉ TAXAÇÃO DE FORTUNAS
José Casado
O Globo, Sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O último ano de mandato do presidente Lula começa com um novo rol de promessas de iniciativas governamentais, sob o guarda-chuva de um "Programa Nacional de Direitos Humanos". Resumidas em 23 mil palavras, elas ocupam 73 páginas de um decreto assinado no final de dezembro.
Pelo calendário constitucional, restam 11 meses de mandato ao presidente. Mas para cumprir apenas o que está previsto nesse decreto seria preciso, no mínimo, um novo mandato. E um novo governo, com novos aliados dispostos a confrontar boa parte das forças políticas que sustentaram o governo Lula nos últimos 84 meses.
Sob o pretexto da criação de um programa governamental dos direitos humanos, Lula alinhou uma miríade de promessas para este ano eleitoral: da regulação de hortas comunitárias à revisão na Lei de Anistia; da taxação de grandes fortunas às mudanças nas regras dos planos de saúde; da legalização do casamento homossexual à fiscalização de pesquisas de biotecnologia e nanotecnologia.

Governo sugere 27 novas leis
O decreto estabelece para os próximos 11 meses a elaboração de pelo menos 27 novas leis. E cria mais de dez mil novas instâncias burocráticas no setor público (entre ouvidorias, observatórios, órgãos "especializados e regionalizados do sistema de justiça, de segurança e de defensoria pública", "centros de formação", bancos de dados, comitês e conselhos federais, estaduais e municipais). Em paralelo, programa para este ano eleitoral duas dezenas de campanhas publicitárias nacionais (entre elas, uma sobre "informação às crianças e adolescentes sobre seus direitos" e outra sobre "direito ao voto e participação política de homens e mulheres").
O plano foi coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com aval da Casa Civil, e recebeu contribuições de 17 ministérios. Na essência, tem propostas semelhantes às "diretrizes" sancionadas pelo Partido dos Trabalhadores para o programa de governo do então candidato Lula, no início da campanha eleitoral de 2002. Seis meses depois, o candidato revogou-as com uma informal "Carta aos Brasileiros", na qual se comprometia, principalmente, a manter o status quo na economia.
Agora, pela primeira vez em três décadas, Lula não será candidato. Na reta final do seu mandato, o presidente assinou um decreto determinando o engajamento do governo em iniciativas para dar à Presidência da República meios de exercer o poder à margem do Congresso, via "plebiscitos, referendos, leis de iniciativa popular e de veto popular".

Taxação de fortunas volta a ser proposta
O decreto tem um pouco de tudo e até mesmo propostas de senso comum, como a edição de legislação reprimindo castigos físicos em crianças. Como plano governamental tem, também, todos os ingredientes necessários para apimentar a campanha presidencial.
Quem adotá-lo poderá subir no palanque eleitoral dizendo-se a favor da taxação das grandes fortunas; da revisão da Lei da Anistia; da flexibilização das regras para reintegração de posse de propriedades invadidas; de mudanças no regime de concessão e outorga de licenças para rádios e televisões; da fiscalização de "projetos implementados pelas empresas transnacionais", e, até da "fiscalização" dosimpactos da biotecnologia e da nanotecnologia na vida cotidiana.
Caso seja adotado por um candidato governista, este poderia ter alguma dificuldade em explicar porque nos últimos 84 meses nada disso foi posto em prática. Mas algumas das propostas de ação contidas nesse decreto presidencial podem até acabar emulando uma boa agenda de debate eleitoral. É o caso da revisão das regras para planos de saúde, da descriminalização do aborto e do direito ao casamento gay, entre outros.
A abrangência do programa de direitos humanos sancionado pelo presidente contrasta com o modesto desempenho dos projetos da área executados pela Secretaria de Direitos Humanos. Em 2009, por exemplo, a secretaria mostrou-se mais ativa em propaganda do que em ações de proteção aos idosos. De acordo com dados do sistema de contas governamentais, gastou R$8,9 milhões em publicidade, ou seja, dez vezes mais do que no Programa Nacional de Acessibilidade, voltado aos idosos e pessoas com deficiência física.
As 73 páginas do decreto, disponível na página da Presidência da República na internet, requerem de qualquer leitor um pouco mais do que o exercício da paciência: o texto árido corre entre autoelogios e construções extremamente tortuosas, como "a valorização da pessoa humana como sujeito central do processo de desenvolvimento, enfrentando o atual quadro de injustiça ambiental". Mas sempre "orientado pela transversalidade" - escreveram os autores-, com foco na "intersetorialidade, ação comunitária, intergeracionalidade e diversidade".

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

1653) Integrations en Amerique du Sud - Sorbonne


Um livro do qual participei com um capítulo sobre a experiência histórica dos esquemas de integração na América do Sul e sober a Alca.

Intégrations en Amérique du Sud
Christian GIRAULT (éd.)
(Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2009; 282 pages; ISBN: 978-2-87854-473-2; Prix: 23 €)

Entre l'État Nation et le monde globalisé, la "Grande Région" est devenue un maillon essentiel des relations internationales. La Région Amérique du Sud, longtemps absente de la scène internationale, commence à apparaître comme un ensemble géopolitique relativement autonome par rapport à la Puissance du Nord et comme un partenaire stratégique possible de l'Europe. Ses ressources considérables (en eau, en biodiversité, en territoires agricoles, en produits miniers et en énergie) et les avantages d'une situation pacifiée dans une zone dénucléarisée en font une Région potentiellement riche et porteuse d'avenir. Après plusieurs décennies d'expériences inabouties, la création de l'Union Sud - Américaine (UNASUR - UNASUL) en 2008 montre que l'intégration régionale peut redémarrer sur des bases solides. C'est à ces processus d'intégration et à l'émergence de cette nouvelle Région qu'est consacré cet ouvrage collectif, fruit d'une coopération pluridisciplinaire (droit, économie, science politique, géographie) et internationale (France, Brésil, Chili, Colombie).

Sommaire: http://psn.univ-paris3.fr/Regards_economiques/Catalogue_general/Liste_des_ouvrages/documents/som_INTEGRATIONS_AMERIQUE_SUD.pdf

1652) Brasil Já Vai À Guerra - Juca Chaves

Pura distração...

Brasil Já Vai a Guerra
Juca Chaves

Brasil já vai a guerra, comprou um porta-aviões
um viva pra inglaterra de oitenta e dois bilhões
ahhhh! mas que ladrões...

Comenta o zé povinho,
governo varonil,
coitado coitadinho,
do Banco do Brasil
há há, quase faliu.

A classe proletária
na certa comeria
com a verba gasta diária
em tal quinquilharia
sem serventia...

Alguns bons idiotas,
aplaudem a medida,
e o povo sem comida,
escuta as tais lorotas
dos patriotas.

Porém há uma peninha
de quem é o porta avião
é meu diz a Marinha,
é meu diz a Aviação
ahhhh! revolução!

Brasil, terra adorada
comprou um porta aviões
oitenta e dois bilhões
Brasil, oh pátria amada,
que palhaçada.

1651) Ainda os caças da FAB: quadratura do circulo


Arte/Folha
Aeronáutica entrega relatório final sobre caças a Jobim
MÁRCIO FALCÃO
GABRIELA GUERREIRO
da Folha Online, em Brasília
08/01/2010 - 12h17

Pressionado pela alta cúpula do governo, o Comando da Aeronáutica entregou ao ministro Nelson Jobim (Defesa) o relatório final com a avaliação técnica das três aeronaves de combate que participam da licitação para a compra de 36 caças para a renovação da frota da FAB (Força Aérea Brasileira). A Aeronáutica mantém o material ainda sob sigilo. O parecer tem 390 páginas.

O governo brasileiro tem preferência pelo caça francês Rafale, da empresa Dassault. A colunista Eliane Cantanhêde, da Folha, antecipou nesta semana que o relatório da Aeronáutica apontaria o Gripen NG, da sueca Saab, como o mais bem avaliado, seguido do F-18 Super Hornet, da norte-americana Boeing, e do Rafale, em terceiro lugar.

Segundo reportagem da Folha publicada hoje, Jobim levará ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um relatório próprio sobre o assunto e poderá rever o critério de pontuação que pôs em primeiro o caça sueco Gripen NG.

A Aeronáutica manteve ranking antecipado pela Folha na última terça-feira que traz em último lugar o caça francês Rafale, preferido do Planalto. "É importante ver se a pontuação bate com a posição da gente, que é baseada na Estratégia Nacional de Defesa e prioriza a transferência de tecnologia", disse Jobim.

De acordo com a reportagem, o ministro e Lula defendem negócio com a França porque o país é "parceiro estratégico", com o qual há acordo militar. Jobim, porém, disse que analisará o relatório da Aeronáutica antes de levar ao presidente sua conclusão. Os 36 caças custarão até R$ 10 bilhões.

A Folha mostrou ainda que, em Paris, em evento com a presença do chanceler Celso Amorim, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, defendeu reforma no Conselho de Segurança da ONU e elogiou o Brasil.

Amorim voltou a falar sobre os caças e disse que "o barato, às vezes, sai caro".

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1650) O seu, o meu, o nosso dinheiro, para industriais pobretoes...

Existe uma categoria de novos pobres, que sao amigos de velhos pobres e novos ricos: todos eles têm direito a dinheiro farto, generoso, praticamente gratuito por parte do governo. Nunca tive dúvidas de que isso iria acontecer. Posso desenterrar trabalhos meus de 2002 que afirmavam exatamente isso: o governo da reforma e dos desamparados vai dar dinheiro a quem já é rico...
Paulo Roberto de Almeida (7.01.2010)

OS GOVERNOS MAIS "POPULARES" E "DESENVOLVIMENTISTAS" VIRAM AMIGOS DO CAPITAL, BANCADO ORA PELO TESOURO, VIA BNDES
Coluna - Vinicius Torres Freire
Folha de S. Paulo, 07/01/2010

Ano novo, subsídio eterno

DESDE O ANO passado causa desconcerto o governo federal emprestar dinheiro a empresas, via BNDES. Em 2009, o Tesouro emprestou R$ 100 bilhões ao banco, que liberou R$ 137,3 bilhões em financiamentos, 49% mais do que em 2008. Em 2010, o banco terá mais R$ 80 bilhões do Tesouro. A taxa de juro real de algumas linhas é quase zero. O dinheiro custa, no mínimo, 4% reais ao ano para o governo, que faz dívida para levantar esses fundos. Trata-se de verba quase orçamentária que não é discutida no Orçamento, pelo Congresso.
O comentário vem a propósito do anúncio do primeiro empréstimo grande do BNDES no ano, R$ 1,2 bilhão para a Mercedes-Benz renovar fábricas. Não se trata de crucificar a empresa. O negócio é legal, e dezenas de outras grandes firmas pegam dinheiro no banco. No mesmo dia da aprovação do dinheiro para a Mercedes saiu um crédito para o porto de Sepetiba, da LLX, que vai exportar minério da MMX. No ano passado, a tele Oi tomou R$ 4,4 bilhões do BNDES, dinheiro que, se disse, não era para financiar a fusão com a Brasil Telecom, o que tanto faz, pois o conjunto das operações de financiamento da empresa foi barateado, não importa o escaninho de onde tenham saído os fundos.
Houve casos menos conspícuos, mas também de grossa fortuna. A América Latina Logística levou crédito de R$ 2,15 bilhões para cuidar de suas ferrovias (a ALL nasceu na privatização de parte da Rede Ferroviária Federal). A espanhola OHL, que venceu o leilão de privatização de estradas federais, como a Fernão Dias, tomou R$ 756 milhões. A Concessão do Metrô do Rio, R$ 423 milhões. A Guararapes (Lojas Riachuelo e têxteis), R$ 342 milhões. A Comgás, R$ 669 milhões. Para a Gerdau foi aberto um limite de crédito de R$ 1,5 bilhão. A indústria química e petroquímica, no conjunto, tomou R$ 21 bilhões, R$ 555 milhões para a mega Braskem, da Odebrecht. Montadoras e autopeças tomaram R$ 5,7 bilhões. E por aí vai. Ou seja, não se trata de empresas mirradas, sem acesso ao mercado mundial -algumas são múltis enormes.
Sim, 2008 foi ano de crise, que seria bem pior sem o BNDES e outros estatais. De resto, o banco executa o que existe de política industrial, vinculando financiamentos à compra de insumos de fornecedores nacionais, por exemplo, o que por vezes é boa coisa (mas nem sempre). De resto, o BNDES é uma das raras, quando não a única, fonte de crédito para empresas de software e de bio e nanotecnologia, por exemplo.
Mas o grosso da atuação do banco é a criação de grandes conglomerados e múltis brasileiras. A par disso, o governo Lula monta desde 2009, de modo não muito intencional, uma estratégia para aumentar a competitividade das empresas brasileiras. O faz via isenções de impostos, o que dá alguma proteção às empresas na guerra do comércio global, agressiva e bancada por Estados.
Em suma, os governos mais "desenvolvimentistas" e "populares" do Brasil acabam, pois, se tornando grandes amigos do capital. Por vias tortas, isso por vezes é útil e, indiretamente, de interesse geral. Mas o grande público não tem sido consultado sobre esse seu interesse nem sobre as prioridades decididas pelo governo, à margem do Congresso.

1649) Sobre decisoes politicas e ferramentas operacionais

Os jornais, todos os jornais, estão abordando com abundância de comentários, mais do que análises isentas, a questão da

Escolha dos caças para a Aeronáutica: decisão política ou técnica?

Eu não sou um especialista em questões estratégicas ou militares, menos ainda em aviões de guerra: nunca vi um de perto, apenas em fotos e nesses filmes de Hollywood.
Mas acho que tenho bom senso o suficiente para dar o meu modesto 'pitaco' num 'debate' (aliás, não acredito que haja um, sequer travestido) que está resvalando para a esquizofrenia e a insanidade pura e simples.
Depois da revelação (certamente indevida, mas bem vinda de um ponto de vista cidadão) do relatório da FAB sobre a escolha do caça sueco como o melhor para a FAB e para a defesa do Brasil (e portanto para o Brasil, também), pressurosos sabujos do presidente, desconfiados que o grande chefe já tinha se decidido pelo caça francês, sairam pela imprensa para dizer que a escolha do Brasil (sic) não seria técnica, mas política, ou que o que estava envolvido na questão era algo muito maior do que a simples escolha do melhor caça, mas uma "relação estratégica" com a França (seja lá o que isso queira dizer...). Essas pessoas abusam da nossa inteligência e algumas pensam mesmo que somos todos idiotas.
Alguns jornalistas (que só podem ser idiotas) não cansam de repetir que a escolha da FAB foi pelos caças suecos, mas que a escolha é do presidente, deixando portanto subentendido que este pode tudo, como numa monarquia absoluta.

Bem, volto a dizer que não sou especialista em nada disso, mas não deixo de ter cá comigo minhas "impressões" de leigo e elas são as seguintes:

Suponhamos que eu queira fazer a reforma da minha casa, mexendo em móveis e assoalhos, janelas e cortinas. Eu posso tomar uma decisão política de contratar uma grande firma de arquitetos e de decoração que faça absolutamente tudo, pagando um pacote global (vai sair caro, mas não terei de me ocupar de nada), ou posso tomar a decisão política de contratar diversos trabalhadores especializados nos serviços previstos -- marceneiro, pintor, decorador, etc -- e discutir com eles o que desejo, exatamente que se faça.
Trata-se de uma decisão política, exclusivamente minha, pois afinal o dinheiro é meu: ou pago e esqueço, para não me chatear com obras, ou me envolvo em cada detalhe, pagando mas escolhendo exatamente o que quero (e aprendendo no caminho).

Ainda que eu escolha esse segundo caminho -- que é, figuradamente, o que a FAB acaba de fazer, em 30 mil páginas, diga-se de passagem -- eu NÃO TENHO O DIREITO de dizer ao marceneiro que tipo de ferramenta ele vai usar para reformar os meus móveis: formão, entalhadeira, broca de furar, serrote, pregos ou parafusos...
Simplesmente não tenho o direito pois que NÃO SOU COMPETENTE para fazê-lo, ou porque, simplesmente, isso cabe a ele, pois é ele quem vai manipular essas ferramentas; ele sabe, muito melhor do que eu, quais as ferramentas de que necessita para fazer o seu trabalho especializado.

Pois bem: os aviões são as ferramentas dos militares, dos aeronautas de guerra, mais precisamente.
Acredito que nem eu, nem qualquer jornalista idiota, nem o presidente da República tem o direito de dizer aos militares da Força Aérea qual a melhor ferramenta de que eles necessitam para cumprir seu mandato constitucional de defender o Brasil.

O dinheiro é do Tesouro, eu sei, e portanto de todos nós (e não do governo, como se diz por aí), mas não temos o direito de dizer aos militares que eles precisam usar esta ferramenta, e não aquela, para atender nosso pedido de defesa nacional.
Essa missão cabe a eles, exclusivamente a eles, e nenhum sabujo do poder poderá desmentir esta realidade.

Esta é apenas uma opinião pessoal.

Paulo Roberto de Almeida (7.01.2010)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

1648) Juíza de Santa Rita (PB) diz que juiz é um ser superior

Bem, talvez até alguns sejam superiores a outros, em tamanho, em conhecimento, mas certamente não no sentido que lhe quis emprestar essa juiza, e certamente não ela...
Um retrato de como anda (ou não) a nossa magistratura.
Paulo Roberto de Almeida

Juíza de Santa Rita-PB diz que juiz é um ser superior

Repercute nacionalmente a declaração da Juíza do Trabalho Adriana Sette da Rocha Raposo, para quem o juiz "é um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material".

Leia na íntegra:

PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - 13° REGIÃO
Única Vara do Trabalho de Santa Rita-PB

ATA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO
PROCESSO Nº 01718. 2007.027.13.00-6

Aos 21 dias do mês de SETEMBRO do ano dois mil e sete, às 09:39 horas, estando aberta a sessão da Única Vara do Trabalho de Santa Rita, na sua respectiva sede, na Rua Vírginio Veloso Borges, S/N, Alto da Cosibra, Santa Rita/PB, com a presença da Sra. Juíza do Trabalho Titular, ADRIANA SETTE DA ROCHA RAPOSO, foram apregoados os litigantes:

Reclamante: LUIZ FRANCISCO DA SILVA
Reclamado: USINA SÃO JOÃO

Instalada a audiência e relatado o processo, a Juíza Titular proferiu a seguinte sentença:

LUIZ FRANCISCO DA SILVA, qualificado nos autos, propõe ação trabalhista em face de USINA SÃO JOÃO, igualmente qualificado nos autos, afirmando ter trabalhado para o reclamado, postulando os títulos elencados às fls. 04/12.
Junta procuração e documentos. Notificado o reclamado, veio a juízo e não conciliou. Fixado valor ao feito. Defesa às fls. 23/27 contestando o postulado. Junta documentos. Houve os depoimentos do reclamante e da reclamada. Dispensada a produção de provas pelo Juiz. Encerrada a instrução. Os litigantes aduziram razões finais remissivas e não conciliaram. Eis o relato.

DECIDE-SE:

FUNDAMENTAÇÃO
1. DA LIBERDADE DE ENTENDIMENTO DO JUIZ
No vigente diploma processual civil, temos normas que atribui ao juiz amplo papel na condução e decisão, dispondo poder o julgador dirigir "o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas", "dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica" (art. 852-D) e adotar "em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum" (art. 852-I, §1º). Talvez o ponto mais delicado do tema esteja na avaliação da prova, o que envolve os princípios da unidade e persuasão racional e sua relação com o princípio protetivo. O princípio da unidade diz que, embora produzida através de diversos meios, a prova deve ser analisada como um todo e o princípio da persuasão racional relaciona se com a liberdade de convicção do Juiz, mas obriga-o a fundamentar a sua decisão.

A liberdade de decisão e a consciência interior situam o juiz dentro do mundo, em um lugar especial que o converte em um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material.

A autonomia de que goza, quanto à formação de seu pensamento e de suas decisões, lhe confere, ademais, uma dignidade especialíssima. Ele é alguém em frente aos demais e em frente à natureza; é, portanto, um sujeito capaz, por si mesmo, de perceber, julgar e resolver acerca de si em relação com tudo o que o rodeia.
Pode chegar à autoformação de sua própria vida e, de modo apreciável, pode influir, por sua conduta, nos acontecimentos que lhe são exteriores. Nenhuma coerção de fora pode alcançar sua interioridade com bastante força para violar esse reduto íntimo e inviolável que reside dentro dele. Destarte, com a liberdade e a proporcional responsabilidade que é conferida ao Magistrado pelo Direito posto, passa esse Juízo a fundamentar o seu julgado.

2. DA PRESCRIÇÃO
Em seu depoimento pessoal confessou o suplicante que pediu para sair do reclamado em 1982 e que depois não mais trabalhou porque ficou sem condições de labutar. A presente ação foi proposta em 22/08/2007. O art. 7o, inciso XXIX da nossa Carta Política prescreve:
Art. 7º - XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 28, de 25/05/2000) Por conseguinte, face à confissão do suplicante, depoimento pessoal, temos como verdade que a relação entre os litigantes foi rompida em 1982. Em conseqüência, considerando o lapso temporal superior a dois anos, entre o dito rompimento do contrato entre os litigantes e a propositura da presente ação, acolhemos a prescrição bienal aduzida pela defesa, para julgar improcedentes os pleitos de salário mensal, repouso semanal remunerado, domingos e feriados, registro/baixa da CTPS, aviso prévio, horas extras, diferenças salariais, salário família, salário in natura, saldo de salários, 13º salário, indenização acidentária, FGTS + 40%, FGTS e art 10, penalidades, descanso semanal remunerado sobre horas extras, PIS, INSS, imposto de renda, indenizações referidas às fls. 10 e multa do Art. 467 da CLT.

3. DA JUSTIÇA GRATUITA
No que pese o entendimento deste Juízo no tocante à Justiça Gratuita, publicado na Revista do Tribunal - Ano I, no. 03 - Biênio 94/95 - TRT - 13a. Região, fls. 43/45, face ao pronunciamento unânime do Egrégio Tribunal deste Regional, referente à matéria idêntica nos autos do Processo Nº AI-107/97, publicado no Diário da Justiça deste Estado em 27/11/97, adota-se o princípio da celeridade processual, para deferir a Justiça Gratuita postulada e consequentemente dispensar o demandante das custas processuais.

DISPOSITIVO
Ante o exposto, resolve a Juíza Titular da Única Vara do Trabalho de Santa Rita-PB julgar IMPROCEDENTES os termos dos pedidos formulados por LUIZ FRANCISCO DA SILVA em face de USINA SÃO JOÃO Se a tabela acima não for publicada na internet, encontra-se disponível nos autos do respectivo processo.
Ciente os litigantes. Súmula 197 do TST. Encerrou-se a audiência. E, para constar, foi lavrada a presente ata que, na forma da lei, vai devidamente assinada:

Adriana Sette da Rocha Raposo
Juíza Titular

1647) Balanco da decada e previsoes imprevidentes

Agora o texto completo, publicado:

“A Primeira Década do Século 21: um retrospecto e algumas previsões imprevisíveis”
Revisão dos dez anos transcorridos desde 2000 e algumas questões pendentes para a próxima década.
Publicado Espaço Acadêmico (ano 9, n. 104, janeiro 2010, p. 27-37;
link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9117/5140).

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

1646) Fórum Social Mundial: antecipando as conclusões

Fórum Social Mundial: antecipando as conclusões
Paulo Roberto de Almeida

Como acontece todo ano, os alternativos da antiglobalização estarão reunidos neste final do mês de janeiro para protestar contra a globalização assimétrica e proclamar que um “outro mundo é possível”. Eu também acho, mas a verdade é que eles nunca apresentam o roteiro detalhado desse outro mundo esperado, se contentando com slogans redutores – geralmente equivocados – contra a globalização, essa mesma força indomável que torna mais eficiente a interação entre essas tribos e permite que suas mensagens – equivocadas, como sempre – alcancem, em questão de minutos, todos os cantos do planeta. Em todo caso, eles já se consideram tão importantes que já nem mais se dão ao trabalho de protestar contra o outro Fórum Mundial, o capitalista de Davos, como ocorria todo ano naquela estação suíça de esqui: os capitalistas agradecem serem deixados em paz e prometem refletir sobre as propostas do fórum alternativo, se é que alguma será feita.
Como também acontece todo ano, eu fico esperando para ver se alguma ideia nova e interessante – Ok, ok, também podem ser ideias velhas e desinteressantes, mas que sejam pelo menos racionais e exequíveis – vai emergir desse jamboree anual de antiglobalizadores e iluminar as nossas políticas públicas tão carentes de racionalidade e sentido de justiça. Como não confio, porém, que algo de novo vá surgir de onde nunca veio nada de inteligente, resolvi não esperar pela conclusão do encontro de 2010, e me proponho, sem cobrar copyright dos antiglobalizadores, antecipar suas conclusões conclusivas (se é verdade que algo do gênero corre o risco de nos surpreender).
Pois, vejamos o que vai resultar de mais um animado encontro dos alternativos:

1) A globalização capitalista produz miséria, desemprego, desigualdade e retrocessos sociais no mundo, devendo ser substituída por globalização solidária, na qual a economia não vise unicamente o lucro dos grandes monopólios multinacionais, mas promova o bem-estar de todos os cidadãos;
2) A crise financeira é uma prova de que a economia capitalista só produz desastres, servindo para beneficiar um punhado de banqueiros gananciosos, que além de tudo se apropriam do dinheiro público para distribuir gordos bônus entre esses privilegiados;
3) As políticas econômicas promovidas pelo G7 – e agora pelo G20 também – não tem servido para recolocar a economia mundial no caminho do crescimento e da distribuição de riqueza, posto que elas se caracterizam por uma adesão acrítica e incondicional às políticas neoliberais e às famosas regras do “consenso de Washington”, que só aprofundam a crise e a miséria das massas trabalhadoras;
4) A despeito das promessas de mudança no país mais poderoso do planeta, as mesmas políticas imperialistas continuam a ser praticadas, e governos que tentam escapar do jugo do capitalismo monopolista vêm sendo sabotados em seus intuitos de mudar a orientação das políticas econômicas no sentido da distribuição e da igualdade;
5) As políticas liberais de livre comércio e de liberalização dos mercados de capitais, promovidas pela OMC, pelo FMI e pelo Banco Mundial, só beneficiam os mais ricos, ao mesmo tempo em que aprofunda as desigualdades no planeta; os povos têm direito de lutar por uma agricultura sustentável, socialmente justa, que contemple os objetivos da segurança alimentar, contra as ameaças dos transgênicos e da agricultura capitalista;
6) Os grandes monopólios multinacionais se opõem à justiça ecológica, e pretendem continuar com plena liberdade para poluir a Terra e esgotar seus recursos naturais;
7) O racismo, a discriminação contra a mulher, a opressão dos povos periféricos, as violações dos direitos humanos e o próprio terrorismo fundamentalista são o resultado da globalização assimétrica e de um processo histórico marcado pela ocupação imperialista, que insiste em preservar a sua dominação, inclusive mediante o terrorismo de Estado;
8) Devemos lutar por um “outro mundo possível” e pela imposição de uma taxa sobre as transações financeiras internacionais para apoiar projetos de desenvolvimento nos países mais pobres, em especial os da África.

Com algumas variantes, estas são as minhas apostas para as “conclusões” mais prováveis do próximo encontro do Fórum Social Mundial.
Alguém quer apostar comigo?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5.01.2010.

1645) Meu balanço da década que passou...

Balanço da primeira década do século 21: um retrospecto pessoal
Por Paulo Roberto de Almeida
Via Política, 2.01.2010

Uma avaliação livre e confessional do que foi mais importante nos últimos dez anos.

Introdução (que deveria ser breve) sobre métodos e intenções

Vamos aproveitar esta oportunidade da passagem de uma década completa para elaborar uma avaliação em torno do que de mais importante se passou nos primeiros dez anos do século 21, que também são os primeiros do novo milênio. Com efeito, períodos ‘redondos’ – e uma década tem essa característica – se prestam bastante bem a esse tipo de balanço retrospectivo, ou seja, uma avaliação do que ocorreu – ou do que fizemos no período transcorrido.

Dez anos permitem ultrapassar a brevidade relativa do calendário anual e são mais ‘administráveis’, na nossa perspectiva de vida, do que uma geração ou duas (25 ou 50 anos). Estes últimos dez anos oferecem inclusive a vantagem de serem os primeiros de um novo século, e este foi, justamente, o título de um dos meus livros: Os Primeiros Anos do Século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo Paz e Terra, 2002), uma releitura aroniana do cenário mundial no contexto da globalização. Eles constituem, assim, uma referência cronológica simbólica para avaliar (e especular sobre) a próxima centúria, com essa vantagem adicional, justamente, de terem iniciado um novo milênio.

Eis o que me proponho oferecer neste pequeno texto recapitulativo: um breve retrospecto do quê representaram os últimos dez anos para o Brasil e para o mundo. A seleção de fatos políticos, de eventos econômicos e de processos sociais aqui efetuada é puramente subjetiva, refletindo minhas escolhas pessoais quanto às situações de fato e aos cenários estratégicos já ocorridos nos últimos dez anos. No plano ‘confessional’ faço questão de registrar minha posição de cidadão livre de toda e qualquer afiliação política ou partidária (a distinção pode ser importante), de qualquer vinculação religiosa (aliás, sou completamente ‘irreligioso’) e, sobretudo, minha total independência em relação ao Estado, a despeito mesmo de minha condição de servidor federal de uma das carreiras supostamente mais reputadas por sua ‘servidão’ aos interesses do Estado: a diplomacia.

Na verdade, considero-me livre de qualquer tipo de obrigação adesista a qualquer governo que seja, sendo perfeitamente ‘anarquista’ no plano político-profissional e um promotor consciente dos direitos dos cidadãos contra os interesses do Estado, tanto no plano nacional (não sou, como se pode deduzir, um exemplo de ‘patriota’) como no internacional (gostaria de ser um cidadão do mundo, o que, helàs, ainda não é possível).

O bug que deveria ser um bang e um mini-crash financeiro
Começamos a década por um blefe, ou talvez uma paranóia, tão irracional quanto ridícula: a ameaça de colapso informático – e, por extensão, de diversos serviços públicos – por causa de um suposto “bug do milênio”, que teria a propriedade (segundo os catastrofistas de ocasião) de paralisar todos os sistemas eletrônicos a partir da incapacidade dos antigos programas operacionais de acomodar a passagem do calendário. Eu estava nos EUA quando o velho milênio chegava ao seu final e posso testemunhar como nunca antes naquele país – talvez desde as centúrias de Nostradamus – se assistiu a tamanha paranóia coletiva com relação ao colapso de about almost everything: colocados em dúvida pelos próprios meios de comunicação, os americanos começaram a estocar montanhas de alimentos, garrafões de água, lanternas e baterias, num ritmo jamais igualado desde a passagem do ano 1000 (quando provavelmente a maioria da população sequer tinha consciência de que o fim do mundo se aproximava).

Claro, os americanos foram poupados da catástrofe anunciada do bug do milênio – por lá chamado de Y2K – mas eles não conseguiram escapar da primeira crise econômica do século, a das empresas ‘ponto.com’, por incidir sobre as ações das novas companhias da sociedade da informação. Com efeito, os índices Dow (a 11.723 pontos) e Nasdaq (a 5.049, este medindo o desempenho de empresas de comunicação) tinham chegado a níveis inéditos de valorização: era a ‘exuberância irracional’ do guru do Federal Reserve, o inescrutável Alan Greenspan. Daí eles só poderiam cair, a despeito de que alguns economistas reputados afirmassem que a economia capitalista poderia ter chegado num estágio em que ela, finalmente, teria se tornado imune a ciclos e, portanto, às suas crises regulares.

Bastou a hipótese da estabilidade do capitalismo ser aventada para que a realidade de suas flutuações crônicas caísse na cabeça de seus promotores, com toda a sua carga de irracionalidade periódica: no espaço de uma semana, no final do ano, as ações das “.com” despencaram de alturas olímpicas para patamares mais terrestres (algumas foram direto para o primeiro círculo do inferno). Bilionários como Warren Buffet e Bill Gates ficaram, repentinamente, alguns bilhões de dólares mais pobres –nada de muito dramático para eles – mas, antes da queda fatal, especuladores sortudos e jovens investidores que tinha sido remunerados com stock options na constituição dessas ‘inexpressivas’ companhias (no começo dos anos 1990) já tinham encaixado suas fortunas a partir da venda de ações no auge da bolha acionária. Sempre é assim: os inexperientes e ambiciosos acabam fazendo a felicidade de alguns poucos espertos, em todo caso pessoas dotadas de faro apurado para saber sair da ciranda no timing exato da maior valorização, posto que bolhas são tão regulares quanto implacáveis.

No Brasil, nesse mesmo momento, o PSDB começou a perder a possibilidade de um terceiro mandato, a partir de crises especificamente brasileiras. Entre a desvalorização e a flutuação do real, em 1999, e o apagão elétrico de 2001, com racionamento, o ano 2000 foi relativamente ‘feliz’ do ponto de vista econômico: crescimento do PIB e pagamento antecipado do dinheiro colocado à disposição pelo FMI depois da crise de confiança de 1998. Mas logo em seguida começou a degringolada argentina: o regime de conversibilidade (de fato rigidez) cambial começou a fazer água no inicio de 2001, sem que se pudesse antecipar a derrocada espetacular no final desse ano, o que levou o Brasil a fazer o seu segundo pacote preventivo com o FMI, por um valor ‘modesto’ de US$ 15 bilhões (comparativamente aos US$ 41,5 bi de 1998 e aos US$ 30 bi de 2002).

O cowboy religioso e o sindicalista de esquerda
No final de 2000, um ‘perfeito idiota americano’ ganhava na Corte Suprema o direito de não serem recontados os votos das eleições fraudadas da Flórida e, com isso, acedia ao comando da mais poderosa nação do planeta (o que certamente não prenunciava nada de bom para a década que começava). Seu desempenho inicialmente medíocre e potencialmente controverso na liderança do Império foi, paradoxalmente, ‘salvo’ de um registro histórico inexpressivo pelos ataques terroristas a New York e a Washington, em setembro de 2001, o que lhe deu um realce nas relações internacionais que ele jamais teria por mérito próprio ou capacidade de liderança. De certa forma, ao atacar o coração do Império, Osama Bin Laden deu algum sentido ao governo de Bush, que de outra forma seria medíocre.

O ataque – devidamente autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU – ao quartel general da Al Qaeda, abrigado pelo governo talibã do Afeganistão – recebeu a aprovação quase unânime da comunidade internacional, da mesma ONU que não tinha conseguido impedir a destruição assassina das estátuas gigantes dos Budas de Bamian, um ano antes. Mas George W. conseguiu converter todo esse apoio em rejeição também quase unânime ao prolongar sua ofensiva contra o terrorismo internacional num ataque desautorizado pelo CSNU contra o regime – certamente celerado e criminoso – de Saddam Hussein, no Iraque, já no início de 2003, numa das iniciativas mais mal calculadas pelos ‘falcões’ do Pentágono.

Nessa altura, o Brasil já tinha passado pela mais importante mudança política desde o início da República, ao eleger um líder supostamente de esquerda e teoricamente representante da classe trabalhadora como seu presidente (na quarta tentativa). Não foi sem custos para o país, pelo menos durante o processo eleitoral: o risco Brasil subiu às alturas, junto com o dólar, ao mesmo tempo em que despencavam nos mercados financeiros globais os valores negociados dos títulos da dívida externa brasileira. Nem tudo foi apenas especulação dos garotos de Wall Street, embora algo possa ser creditado à ‘ação maldosa’ dos mercados financeiros, et pour cause: o PT – um típico partido esquerdista latino-americano – prometia em seu programa de ação calote nas dívidas externa e interna, rejeição dos acordos com o FMI e mudança completa nas regras do jogo, segundo uma política econômica claramente esquizofrênica.

Obviamente, as lideranças mais esclarecidas – ou mais oportunistas – do partido já tinham prometido, na ‘Carta ao Povo Brasileiro’ (junho de 2002), respeitar todos os contratos internacionais e as obrigações externas do Brasil, mudança bem recebida pelos banqueiros e burgueses em geral (que apoiaram entusiasticamente o novo aliado do capital). Eu já tinha incorporado essa vitória em vários capítulos pré-eleitorais de meu livro A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Codex, 2003), no qual eu anunciava a conversão não reconhecida, de fato clandestina, do nouveau régime ao neoliberalismo.

“Nunca antes neste país”: refazendo a história com a herança alheia...
O resto, pode-se dizer que é História: o presidente eleito e empossado teve o bom senso de preservar em sua integridade todos os elementos da política econômica anterior – metas de inflação, flutuação cambial, superávits primários – e de acolher nos gabinetes ministeriais vários quadros técnicos comprometidos com o que os petistas chamavam desdenhosamente de “neoliberalismo”, rejeitando, em conseqüência, a esquizofrenia econômica contida nas recomendações dos seus próprios ‘economistas’. Foi a coisa mais sensata que poderia ter acontecido ao Brasil: mesmo sem acreditar muito na política econômica ‘neoliberal’, o presidente garantiu as bases de seu sucesso político ulterior, junto com a preservação da estabilidade econômica. Bem, isso se chama, simplesmente, instinto de sobrevivência, ou seja, sensibilidade política e bom senso econômico. Ele deve ter desconfiado que a aplicação das receitas econômicas surrealistas dos seus conselheiros petistas ameaçaria diretamente suas chances eleitorais ou simplesmente não seria economicamente sustentável, e agiu em conseqüência.

Claro, houve tropeços políticos e muitos, alguns deles desastrosos, que quase precipitaram um final precoce do nouveau régime: alguns deles começaram ainda cedo, com as patifarias e negociatas promovidas por lugares tenentes dos novos chefes do poder, o que foi desastroso para a imagem pública do partido que estava comemorando 25 aninhos de vida. Um erro de cálculo quanto à extensão da base de apoio do governo no Congresso conduziu ao uso mal administrado do recurso mais habitual dos responsáveis do Executivo que se julgam onipotentes: a compra, no varejo e no atacado, de parlamentares, e até de bancadas inteiras, negociados como se fossem escravos em hasta pública (mas num leilão a portas fechadas). Deu no que deu: o Richelieu todo poderoso que se julgava ao abrigo de retaliações comezinhas, arrogante como um candidato a Stalin tropical (ainda bem que sem Gulag), foi posto a nu por um desses trânsfugas de negociatas mal conduzidas, decerto descontente com o preço pago ou contrariado em seu amor próprio de chefe de bancada). Não só caiu toda a cúpula bichada do partido hegemônico, mas também houve ameaças ao próprio chefe da tribo, que salvou-se por incompetência da oposição ou por ter alegado uma inocência tão canhestra que nem seus mais próximos acreditavam.

Mas, o chamado ‘escândalo do mensalão petista’ foi apenas o primeiro de uma sucessão de episódios lamentáveis envolvendo a reputação de um Congresso cada vez mais emporcalhado pelo desfilar contínuo de comportamentos escabrosos no plano da moralidade pública, e totalmente irresponsável quanto ao bom uso dos recursos públicos, estes, aliás, devidamente saqueados pela sanha arrivista de legiões de militantes do partido no poder. No início ainda existia alguma tentativa de justificar as patifarias cometidas, a pretexto da inacreditável alegação de que “sempre se fez assim” ou, então, na base do “sou, mas quem não é?”. No acumular de episódios cada vez mais constrangedores para a reputação do partido outrora ‘ético’ – apenas para fins de imagem externa, obviamente – foram se esvaindo as justificativas mais esfarrapadas, ao ponto de sequer haver a tentativa ulterior de aparentar inocência, impondo-se apenas a atitude generalizada de obstruir no plano executivo e bloquear no âmbito congressual qualquer investigação mais séria. Como já se tinha disseminado o habito de comprar a preço de ouro bancadas inteiras, nunca faltou maioria para votar o que fosse conveniente, mesmo com o apoio incômodo de antigos representantes reacionários e corruptos.

A situação do Congresso brasileiro, e das instituições públicas em geral, se deteriorou tanto que não cabe aqui fazer qualquer balanço valorativo, valendo apenas aplicar-se a frase conhecida: “não há qualquer risco de melhorar” (pelo menos nos próximos dez anos, inclusive com base numa justiça leniente ou talvez até corrupta). Em outros países, a representação parlamentar não é certamente isenta de sua cota de medíocres, aventureiros e corruptos, mas é certo que, em países mais sérios, os maiores desviantes acabam sendo levados às barras dos tribunais e às grades das cadeias por um tempo razoável, o que parece jamais ter ocorrido no Brasil.

O Brasil surfando na onda do crescimento mundial
Qualquer que tenha sido o grau de moralidade dos sistemas políticos around the world, o fato é que o mundo embarcou, desde 2002, numa das fases de mais intenso crescimento econômico já registradas na história contemporânea, com valorização inédita de todas as matérias primas, forte expansão do comércio internacional e intensa especulação com todos os tipos de instrumentos financeiros, processo que cobraria o seu preço no final da década. O Brasil surfou alegremente nessa onda de crescimento econômico global, com expansão das exportações (mais pelo lado dos preços do que dos volumes), estímulo à demanda interna (com crescimento da oferta de crédito) e aumento da massa salarial e das rendas de transferência (pensões e assistência social).

O governo não contrariou em demasia as regras dos mercados – tampouco as do setor financeiro ou o regime cambial – o que deve ter descontentado sobremaneira seus velhos aliados e apoiadores, promotores da antiga política econômica esquizofrênica. Esta, que tinha (ainda tem) muitos defensores no governo pretendia controlar os fluxos de capitais, efetuar manipulações cambiais, reduzir substancialmente o superávit primário e lograr mais flexibilidade creditícia (mesmo sob risco de atiçar a inflação). Nem tudo foi perfeito, porém: a irresponsabilidade econômica do governo – alinhando-se com isso aos que propugnavam a expansão supostamente keynesiana dos gastos públicos – consistiu essencialmente em permitir, e promover ativamente, o crescimento desmesurado da carga fiscal, da qual apenas uma pequena parte foi dedicada a gastos sociais, a maior parte indo para banqueiros amigos do poder e para industriais amigos dos subsídios públicos dispensados pelos bancos do poder. Antecipando sobre minhas previsões, pode-se dizer que esta será a herança maldita a ser deixada pelo atual governo a seu sucessor, qualquer que seja ele: uma bomba-relógio fiscal a ser penosamente desativada, sob risco de explodir.

Os grandes temas dos anos 2000, no plano mundial, foram essencialmente estes: o recrudescimento e ampliação dos ataques terroristas – em países tão diferentes quanto EUA, Inglaterra, Espanha, Paquistão, Indonésia, Rússia, Jordânia, Filipinas, Turquia, Índia e, obviamente, Israel – fenômeno equiparado por alguns analistas a uma “quarta guerra mundial” (sendo que a terceira teria sido a Guerra Fria, vencida pelo capitalismo de mercado); a ascensão irresistível da China enquanto grande economia manufatureira e, potencialmente, grande potência mundial; a proliferação nuclear, com alguns casos intratáveis como os da Coréia do Norte e do Irã; a disseminação extraordinária da internet e dos meios de comunicação de massa, com fenômenos comerciais de sucesso como o iPod e o iPhone e alguns exemplos de “almoços grátis” no capitalismo, como os blogs e outros canais instantâneos de comunicação; o aquecimento global, que pode ser considerado uma nova modalidade de “malthusianismo” da nossa era, substituindo-se a antiga preocupação com o crescimento geométrico da população – processo ainda em curso em certas regiões e países – pela ameaça da destruição irremediável do nosso estilo de vida em função da alegada ação humana deletéria sobre o meio ambiente.

A década termina por onde começou: com crise financeira e guerra...
Para os Estados Unidos, a década foi dominada pela infeliz decisão bushiana de invasão do Iraque, a pretexto de que o afastamento do ditador abriria uma era de democratização regional e de eliminação das fontes de terrorismo mundial (já que a alegação de posse de armas de destruição em massa nunca foi acolhida pelos órgãos da ONU). A ilusão da onipotência militar, e o esquecimento das lições do Vietnã, levaram a situações de nítido constrangimento imperial – como o tratamento duro reservado aos prisioneiros em Abu Ghraib ou Guantánamo – e a impasses persistentes no terreno, o que inclui a missão ainda não terminada no Afeganistão, um atoleiro literal. A despeito da continuidade dessas aventuras militares, o presidente Obama foi contemplado com o prêmio Nobel da Paz em 2009, provavelmente em função de suas promessas de operar a retração do unilateralismo arrogante do presidente anterior e de recolocar a ação securitária dos EUA nos quadros do multilateralismo onusiano.

A década terminou com uma repetição da crise de 1929, desta vez a partir de uma bolha imobiliária convertida em implosão financeira, permitida pela suspensão, nos anos 1990, das restrições financeiras criadas nos anos 1930 para evitar o excesso de alavancagem. O fato é que a crise econômica iniciada na sequência da quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008, inverteu os anos de crescimento inédito do PIB mundial – em níveis nunca antes alcançados – e a valorização extraordinária dos preços de todas as commodities (o que beneficiou amplamente a economia brasileira), mas fez avançar também as bases institucionais da coordenação econômica mundial, com uma quase eclipse do G7 e a emergência do G20, um grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento representando quase 85% do PIB mundial.

As hostes keynesianas e regulacionistas usaram a crise como uma evidência contundente do mau funcionamento dos mercados financeiros deixados livres e soltos, mas o fato é que foram as ações dos governos – inclusive a longa e inacreditável permissividade do Federal Reserve, ao manter os juros artificialmente baixos em 2% entre 2002 e 2005 – que permitiram as oportunidades para o setor privado explorar os nichos de crescimento para o financiamento privado, que por sua vez criaram as bolhas que começaram a se desfazer ainda em 2007. O Brasil também usou e abusou de medidas anticíclicas de estímulo fiscal, num keynesianismo de fachada que entusiasmou seus apoiadores em certos setores do governo, mas este – sobretudo do lado do Banco Central – não foi tão longe a ponto de abolir o sistema de flutuação cambial ou de impor restrições indevidas aos fluxos de capitais, a não ser a imposição inócua de uma taxa de 2% sobre capitais estrangeiros aplicados em instrumentos financeiros (os especuladores nacionais ficaram, no entanto, livres de fazê-lo).

[vôo Beijing-Paris: 6.12.2009; vôo Paris-São Paulo: 9.12.2009; Brasília: 19.12.2009]
2/1/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor
http://diplomatizzando.blogspot.com/
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais e diplomata de carreira.
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1644) Um balanço otimista dos ultimos dez anos....

Economic View
Fruitful Decade for Many in the World

TYLER COWEN
The New York Times, January 2, 2010

IT may not feel that way right now, but the last 10 years may go down in world history as a big success. That idea may be hard to accept in the United States. After all, it was the decade of 9/11, the wars in Iraq and Afghanistan, and the financial crisis, all dramatic and painful events. But in economic terms, at least, the decade was a remarkably good one for many people around the globe.

The raging economic growth rates of China and India are well known, though their rise is part of a broader trend in the economic development of poorer countries. Ideals of prosperity, freedom and the rule of law have probably never been more resonant globally than they’ve been over the last 10 years, even if practice often falls short. And for all of the anticapitalistic rhetoric that has emerged from the financial crisis, national leaders around the world are embracing the commercialization of their economies.

Putting aside the United States, which ranks third, the four most populous countries are China, India, Indonesia and Brazil, accounting for more than 40 percent of the world’s people. And all four have made great strides. Indonesia had solid economic growth during the entire decade, mostly in the 5 to 6 percent annual range. That came after its very turbulent 1990s, marked by a disastrous financial crisis and plummeting standards of living.

Brazil also had a consistently good decade, with growth at times exceeding 5 percent a year. There is lots of talk that the country has finally turned the corner, and, within its borders, there is major worry that its currency is too strong — a problem that many other countries would envy.

Elsewhere in South America, Colombia and Peru have made enormous progress and Chile is on the verge of becoming a “developed” country; it will soon be joining the Organization for Economic Cooperation and Development.

To be sure, in Africa, there is still enormous misery. Nonetheless, overall standards of living rose in a wide variety of countries there, with economic growth for the continent as a whole at more than 5 percent in most years. Many basic essentials, like water, sanitation, electricity and especially telephones, are more commonly available.

One lesson from all of this is that steady economic growth is an underreported news story — and to our own detriment. As human beings, we are prone to focus on very dramatic, visible events, such as confrontations with political enemies or the personal qualities of leaders, whether good or bad. We turn information about politics and economics into stories of good guys versus bad guys and identify progress with the triumph of the good guys. In the process, it’s easy to neglect the underlying forces that improve life in small, hard-to-observe ways, culminating in important changes.

In a given year, an extra percentage point of economic growth may not seem to matter much. But, over time, the difference between annual growth of 1 percent and 2 percent determines whether you can double your standard of living every 35 years or every 70 years. At 5 percent annual economic growth, living standards double about every 14 years.

Nonetheless, despite the positive news in much of the world, it’s questionable whether the decade as a whole has been good for Americans, economically speaking. Median wages have not risen much, if at all, and the costs of the financial crisis and irresponsible fiscal policies have become increasingly obvious. Those facts support a pessimistic interpretation.

Still, most economic models suggest that the fundamental source of growth is new ideas, which enable us to produce more from a given set of resources. To the extent that the rest of the world becomes wealthier, there’s more innovation, as my colleague and co-blogger Alex Tabarrok, professor of economics at George Mason University, argued recently. China, for instance, is moving toward the research frontier in areas such as solar power, scientific instruments, engineering and nanoscience, all of which can benefit the United States. Unlike the situation of just a few decades ago, a genius born in Mumbai now stands a good chance of becoming a notable scientist, whether at home or abroad.

It might be pleasant to boast that America is — or should be — a world leader in every area, but the practical reality is that if some other country solves the problem of green energy, so much the better for us.

The subtler point is that a wealthier China, India, Brazil and Indonesia will lead to more customers for new innovations, thereby producing greater rewards for successful entrepreneurs, no matter where they live. There are so many improvements in cellphones these days because there are so many cellphone customers in so many countries.

TO put it bluntly, if the United States takes one step back and the rest of the world takes two steps forward, even in purely selfish terms we should consider accepting the trade-off, if only for the longer run. Most of us gain from the wealth and creativity of other countries, even if we can’t always feel like the top dog.

When asked what he thought of the French Revolution, Zhou Enlai, the premier of China from 1949 until his death in 1976, reportedly replied, “It is too soon to tell.”

That is also a fair response to the last 10 years, and it will be for some time to come. The point remains that if we look beneath the surface just a bit, the picture is a good deal rosier than we might otherwise think.

Tyler Cowen is a professor of economics at George Mason University

1643) Política externa brasileira: uma matéria a favor (2)

Este post pode ser lido em conexão com o meu post 1585, que já trazia uma outra matéria do mesmo jornalista, também a favor da atual política externa.
Diga-se de passagem, que a maior parte das críticas consideram que o alegado anti-americanismo da diplomacia brasileira atual é o aspecto menos importante do problema.

Só para contrariar II
Brasil - Sergio Leo
Valor Econômico, 04/01/2010

Em um dos encontros reservados entre autoridades brasileiras e americanas no ano passado, o assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, tentou explicar ao secretário de Estado Adjunto dos EUA para o Hemisfério Ocidental, Arturo Valenzuela, a razão da abstenção do Brasil nas votações das Nações Unidas que condenaram o Irã por seus esquivos movimentos na área nuclear e pelo desrespeito aos direitos humanos. O Brasil não apoiou o Irã, absteve-se, para não brecar a aproximação com o país e para reforçar as pressões em favor dos direitos humanos e contra o uso bélico da energia nuclear, argumentou o brasileiro.

Valenzuela, segundo relato levado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, comentou não ter pensado nessa justificativa para o comportamento do Brasil nas Nações Unidas, que intrigou parceiros internacionais do Brasil. Poucas semanas antes, o presidente dos EUA havia se dado ao trabalho de, em uma carta a Lula, explicar as razões pelas quais os EUA não consideram conveniente a aproximação com o Irã, entre outras divergências com o governo brasileiro. Garcia havia falado em "frustração" com Obama, mas, em seguida, o governo brasileiro mudou de tom, e o próprio Garcia adotou tom otimista

Também em encontro recente, o presidente Lula deu explicações parecidas ao presidente francês, Nicholas Sarkozy, argumentando estar se esforçando para trazer o Irã às boas práticas da comunidade internacional. Sarkozy agradeceu a explicação e comentou que a França já teve essa ilusão, desfeita pelos próprios iranianos.

Os episódios com Valenzuela e Sarkozy podem servir de exemplo de ingenuidade e megalomania da política externa brasileira, ao sonhar com sucesso onde grandes potências, com muito mais recursos de poder, só tiveram frustrações. As duas conversas podem servir para outra constatação, porém. A de que os movimentos diplomáticos de Lula e seus assessores na área (Marco Aurélio Garcia e o embaixador Celso Amorim) têm razões muito mais complexas e merecedoras de debate do que a classificação rasteira de "antiamericanismo" , aposta por alguns críticos ideológicos da política externa gestada em Brasília. Aliás, também servem para mostrar a inutilidade, para fins práticos, do rótulo de "ideológica" costumeiramente aplicado sobre a mesma política externa.

Que há ideologia na política exterior, não há dúvida, sempre houve e haverá. Como o nome diz, é uma política, não uma técnica, como querem fazer crer alguns críticos e políticos. Já a etiqueta de "antiamericana" parece colar com dificuldade em uma prática diplomática que exibe com orgulho os laços firmados com os mandatários dos Estados Unidos, que preza a troca constante de impressões com a Casa Branca e o Departamento de Estado, e que mantém um relacionamento cada vez mais intenso em áreas como diplomacia, comércio e defesa.

Quem quer saber o que, de fato, é política externa condicionada por um tom antiamericano e uma agressiva postura ideológica, deveria imaginar se, entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as autoridades dos EUA poderia haver diálogo como o travado entre Brasília e Washington. Claro, Brasil e EUA têm divergências - e o próprio Valenzuela, em sua passagem pelo Brasil, esforçou-se heroicamente para minimizá-las, lembrando até que os EUA também se veem de vez em quando às turras com o Canadá.

Evidentemente, uma conversa com autoridades encarregadas da política externa sobre os EUA tem chances consideráveis de incluir referências críticas à ação dos EUA no continente. Mas não é uma invenção brasileira a agressiva ação americana de apoio a regimes antidemocráticos no passado recente da região. E foi o próprio Obama, não algum ideólogo do Planalto, quem, em discurso de campanha para a comunidade cubana em Miami, em 2008, questionou os Estados Unidos pelos anos de "políticas fracassadas" e pressões "por reformas de cima para baixo" na América Latina.

O marco da impressão de antiamericanismo colada à política externa foi a atuação do Itamaraty nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas. Na discussão da Alca, na prática, a visão estratégica do governo Lula se assemelhava à do governo Fernando Henrique Cardoso, contrária às exigências americanas em matéria de patentes, investimentos e serviços, e cética em relação a ganhos substanciais na redução das barreiras comerciais importantes, ao aço, ao etanol, ao suco de laranja brasileiros.

Os dois governos diferenciaram- se em relação à tática. Com FHC havia a ideia de seguir com as negociações e recusar o acordo se não conviesse ao Brasil. Com Lula, o ministro Celso Amorim (que chegou a ser cogitado para chanceler pelo candidato derrotado, José Serra), calejado pela experiência como negociador da Rodada Uruguai na Organização Mundial do Comércio, impôs de cara uma definição imediata sobre temas espinhosos - e a negociação naufragou. É bem verdade que os negociadores escalados por Amorim já apontavam para o naufrágio.

Há, hoje, um esforço genuíno em Brasília de aproximação com os EUA. Além do diálogo político, como resultado do fórum de altos empresários (criado ainda no governo Bush e de parcos resultados até agora), já se admite no governo brasileiro avançar na negociação de um acordo contra a bitributação, velha reivindicação empresarial. A ameaça de retaliar os EUA contra os subsídios americanos ilegais ao algodão tem sido administrada com moderação, sem arroubos retóricos. Abriram-se importantes centros de distribuição da Agência de Promoção de Exportações para colocação de produtos brasileiros no mercado - já que, mais que tratados de livre comércio, o que faz falta para ingressar no mercado americano é de ações de promoção de exportação.

Há erros e fiascos na política externa brasileira. Mas o saldo geral é claramente positivo, embora essa avaliação possa ser posta em questão, desde que em um debate sério, sem as mistificações sustentadas por argumentos simplórios como os do "antiamericanismo do Itamaraty" e o da "ideologização da política externa". Que este ano eleitoral permita esse debate sério é um desejo da coluna para 2010.

Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras