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sábado, 1 de janeiro de 2011

Bem, agora resta saber como vai ser...

Há várias Dilmas em Dilma, resta saber qual vai governar
Ricardo Setti
Blog no site da Revista Veja, 31 de outubro de 2010

Quem marcou o número 13 na eleição de hoje para presidente da República votou numa caixa preta

Não é porque o grosso do eleitorado da candidata Dilma Vana Rousseff pouco ou nada saiba da Dilminha da Rua Major Lopes, em Belo Horizonte, filha de classe média alta que estudava no colégio de freiras Sion, não desgrudava das amigas Ieiê, Auxiliadora, Sandra e Catarina, tinha um flertezinho aqui e acolá com o Múcio ou com o Sérgio Werneck, que ensaiava dançar o twist à tarde para não fazer feio à noite, que, a despeito de sua aparência hoje hierática e sisuda, era alegre e extrovertida, nunca levava chá de cadeira e tinha pai severo, o dr. Pedro Rousseff, desses de não deixar ir às festas ou ao cinema sem o irmão Igor, um ano mais velho, hoje empresário em Belo Horizonte.

Da Dilminha filha da dona Dilma Maria que desde cedo, como até hoje, gostava de colocar apelido nos outros, não perdia o sundae de banana split das Lojas Americanas da Rua São Paulo nem deixava de assistir, longe dos olhos dos pais, às corridas de kart que os garotos mais velhos promoviam na Avenida Nossa Senhora do Carmo. Que viajou pela primeira vez para a Europa com a turma do Colégio Dorothéa e uma freira, a Madre Porto, tomando conta das jovens.

Não é também porque seus eleitores ignorem que aquela casa acolhedora com a grande varanda na frente tinha três empregadas domésticas, abrigava um piano e recebia regularmente uma professora de francês para ensinar às três crianças ─ Dilminha, o irmão e a caçula Zana, que um dia morreu dormindo, aos 16 anos, provavelmente de um ataque cardíaco. Ou que a jovem Dilma lia tudo, mais ainda que os demais em uma turma de universitários que liam muito, que gosta de Drummond, Fernando Pessoa e Mário Quintana, que conhece a obra de Sófocles e o mundo das artes plásticas a ponto de discorrer longamente sobre a obra de pintores de que pouca gente ouviu falar.

Nem tampouco que se questione a adesão aos valores da democracia da ex-militante da luta armada Dilma Rousseff , 62 anos, ex-presa política, torturada e condenada a seis anos de cadeia, dos quais cumpriu 28 meses, até o final de 1972, no hoje extinto Presídio Tiradentes, em São Paulo, beneficiada por decisão do Superior Tribunal Militar. Isso nem o mais ferrenho de seus críticos faz.

Tendo na juventude bebido fartamente na literatura marxista, mas não apenas, há pelo menos 35 anos a primeira mulher próxima de assumir o mais alto cargo público no país passou a participar da vida política dentro das regras do jogo, quando começou a frequentar o Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes), mantido pelo velho MDB gaúcho do então deputado (e hoje senador) Pedro Simon em Porto Alegre. Entre os palestrantes que o Iepes recebia na época estava um sociólogo e professor cassado chamado Fernando Henrique Cardoso.

COMO VAI LIDAR COM O CONGRESSO, O PMDB, AS DIFERENTES ALAS DO PT?
Não que a Dilma falte experiência na administração pública. Depois de um período de recuperação da cadeia na casa da mãe, em Belo Horizonte, de ter-se mudado para Porto Alegre e passado no vestibular para a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Dilma foi contratada em 1975 como estagiária remunerada da Fundação de Economia e Estatística (FEE), órgão da secretaria estadual de Planejamento. De lá para cá, todo o seu trabalho e toda a sua experiência se deram sob as asas do estado.

O que constitui um enigma é saber como as várias Dilmas existentes na presidente Dilma Rousseff irão governar o Brasil ─ e se a falta de experiência política no jogo duro que é o exercício do poder maior, e os 35 anos encerrada apenas em cargos públicos, sem o oxigênio da vida real lá fora, permitirão que ela o faça com êxito.

Como ela se sairá nas constantes e obrigatórias negociações com o Congresso? Como ela vai lidar com seus parceiros do PMDB de seu vice Michel Temer, aglomerado de políticos fisiológicos, de insaciável gula por cargos públicos e sempre de olho nas vantagens que eles podem proporcionar? Como vai administrar a selva de alas que é o PT ─ ela, que com uma década de partido é tida como “novata” e nunca se alinhou a qualquer das correntes petistas? Até que ponto vai interferir nos esforços mantidos desde há tempos por seu antecessor José Dirceu para ter influência em seu governo e, especificamente, afastar do núcleo de poder o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci? E o relacionamento com o empresariado? E a política externa?

O MARIDO QUE SEQUESTROU UM AVIÃO
É grande a lista de perguntas. São poucas as respostas, e elas precisam ser escarafunchadas na trajetória de Dilma até aqui e em depoimentos de quem a conhece.

Não será por falta de formação que ela deixará de tocar o barco ─ aliás, Lula está aí para mostrar que formação, embora extremamente desejável, deixou de ser quesito para levar à frente o governo “deste país”. De toda maneira, a ex-chefe da Casa Civil da Presidência percorreu longo trajeto de estudos: o Colégio Sion, em seguida a então prestigiosa Escola Estadual Central, pública, e logo dois anos na Faculdade de Ciências Econômicas (FACE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Parou ao ser expulsa por suas ausências e pela militância política, primeiro na minúscula Política Operária (Polop), grupúsculo delirante cuja ala pró-luta armada acabou prevalecendo e se transformando, com participação dela, no Comando de Libertação Nacional (Colina), pomposo título para uma organização com algumas dezenas de jovens militantes. A essa altura, fugindo da repressão da ditadura em Belo Horizonte, vivia na clandestinidade no Rio com o primeiro marido, o militante de esquerda e àquela altura ex-preso político Cláudio Galeno Linhares, com quem se casara em 1966, aos 19 anos.

Seis anos mais velho que Dilma, Galeno ─ que em 1970 seria um dos seqüestradores de um jato Caravelle da extinta Cruzeiro do Sul em Montevidéu desviado para Cuba ─ acentuara as idéias políticas que a namorada já abrigava. E a inclinação pela luta armada se reforçara com a leitura entusiástica que os dois compartilharam do livro Revolução na Revolução, do então intelectual marxista francês Régis Debray, celebrizado por haver sido preso na Bolívia, onde tentou participar da frustrada guerrilha do argentino-cubano Ernesto “Che” Guevara.

Ficha de Dilma Rousseff nos arquivos militares

OS ANOS DE CADEIA E A FORMAÇÃO EM ECONOMIA
Eventuais planos de estudos formais, para Dilma, adiaram-se com sua prisão pelo antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo, em janeiro de 1970, quando passara a integrar as fileiras da organização armada clandestina VAR-Palmares (união do Colina com a Vanguarda Popular Revolucionária do ex-capitão Carlos Lamarca). À prisão se seguiram as torturas nas dependências da famigerada Operação Bandeirantes (Oban), por ironia localizadas no bairro do Paraíso ─ choques elétricos na “cadeira do dragão”, choques nas mãos, pés, coxas, seios e cabeça, palmatória e pau-de-arara ─ e a condenação à pena de prisão no Presídio Tiradentes.

Dilma aproveitou a longa estada na cadeia para ler como nunca, inclusive quase toda a gigantesca obra de Dostoiévski, mas só voltaria aos estudos em 1973, em Porto Alegre, num cursinho pré-vestibular para economia. Nesse meio tempo, se separara de Galeno, de quem é amiga até hoje, e se unira ao advogado gaúcho Carlos Franklin Paixão de Araújo, dirigente da chamada “Dissidência” do Partido Comunista no Rio Grande do Sul, que conhecera no Rio, num período em que atuava na logística do Colina, transportando armas, munição e dinheiro.

Passou na UFRGS, formou-se economista em 1977, aos 30 anos de idade e já mãe da filha Paula, que teve com Carlos Araújo. Mudou-se para São Paulo a fim de cursar mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A sogra lhe dava uma mão financeira. Mas não terminou nem elaborou a obrigatória dissertação final.

Dez anos depois, começou um doutorado na mesma Unicamp, também deixado seis anos depois, em 2004, porque suas tarefas como ministra das Minas e Energia do primeiro governo Lula não lhe davam tempo. As duas titulações inexistentes figuraram durante longos meses no site da Casa Civil da Presidência da República, provocando críticas, embora provavelmente a mancada se deva a um funcionário subalterno.

“CAPACIDADE DE APRENDER E DE APREENDER”
Além de oito, nove anos de estudos centrados em Economia, Dilma, por sua natureza de pessoa reconhecidamente dedicada e pertinaz, aprendeu muito no desempenho no serviço público. “A Dilma sempre foi uma pessoa muito aplicada, obstinada, lia muito, tinha capacidade de análise e percepção muito aguda”, disse ao site de VEJA o amigo de juventude Fernando Pimentel, ex-prefeito petista de Belo Horizonte e um dos coordenadores de sua campanha.

“Ela tem uma capacidade extraordinária de aprender e de apreender”, relatou um colega de ministério que continua no governo Lula. Funcionária “caxias” da FEE, onde começou estagiária, perdeu o emprego por razões políticas mas voltou poucos meses depois ao cargo por iniciativa de um governador da Arena, o partido do regime militar ─ Sinval Guazzelli, que mais tarde se transferiria para o PMDB.

A FEE, por sua própria natureza, permitiu-lhe familiarizar-se em detalhes com a economia gaúcha, enquanto exercitava a atividade política no PDT, partido de cuja fundação pelo ex-governador Leonel Brizola participou, ao lado do marido, Carlos ─ mais tarde eleito três vezes consecutivas deputado estadual. Por causa do PDT deixou a FEE para trabalhar como assessora da bancada do partido na Assembléia Legislativa.

Uma coisa leva à outra e, misturando sua formação técnica com a influência política do marido deputado, surge o convite para um primeiro cargo de real importância: em 1985, o recém-eleito prefeito Alceu Collares (PDT) a chama para ocupar a Secretaria Municipal da Fazenda. Collares, futuro governador gaúcho (1991-1995), chegara à Prefeitura no primeiro pleito livre para a escolha de prefeitos das capitais ─ até então nomeados pelos governadores, por decisão da ditadura ─ desde 1964.

A HORA DE DEIXAR O PDT DE BRIZOLA
Quem acha que a sua própria foi a primeira campanha eleitoral de Dilma não leva em conta o fato de que ela renunciou à Secretaria para participar em tempo integral da primeira tentativa do marido de eleger-se prefeito de Porto Alegre, em 1988, contra Olívio Dutra (PT). Olívio ganhou de Carlos Araújo, e Dilma, após um ano e pouco como diretora-geral da Câmara Municipal de Porto Alegre, acabaria resgatada para a FEE quando Collares assumiu o Palácio Piratini, em janeiro de 1991 ─ desta vez, o governador a colocou na presidência do órgão.

No final de 1993, Collares convocou-a para a Secretaria Estadual de Energia, Minas e Comunicações. Ficou até o final do governo, 1º de janeiro de 1995, praticando imersão numa área em que se tornaria especialista.

Voltaria à mesma Secretaria no começo de 1999, quando Olívio Dutra, ex-adversário do marido na disputa municipal de 1988, venceu as eleições para o governo do estado com apoio do PDT de Brizola. Entre a saída e o regresso à Secretaria, a presidenciável retornara à FEE para editar a revista da fundação, na qual publicou artigos sobre sua nova área de especialização, a energia.

A aliança de Brizola com o PT não resistiria à disputa pela Prefeitura de Porto Alegre, em 2000. Os dois lados não conseguiram indicar um candidato comum, e acabaram partindo para o pleito cada um com o seu: de novo Collares, pelo PDT, e o então ex-deputado, ex-vice-prefeito e ex-prefeito Tarso Genro , do PT. Chegara, para Dilma, a hora de romper com o PDT: ela defendeu a continuidade da aliança dos dois partidos de esquerda, não concordou com a candidatura de Collares, resolveu permanecer como secretária do governador Olívio Dutra e, em seguida, filiou-se ao PT. Por isso acabou incluída no grupo que Brizola acusou de ter-se “vendido por um prato de lentilhas”.

“SAI A MADONNA, ENTRA A MANDONA”
O ano de 2000 coincidiria com o fim de casamento entre Dilma e Carlos Araújo. Eles haviam se separado cinco anos antes, quando Carlos alimentou um caso extra-conjugal do qual resultou um filho. Dilma despachou-o de casa, mas voltaram às boas mais tarde antes de colocarem um ponto final na relação. Contudo, mantêm-se amigos e se visitam ainda hoje. Araújo deu grande apoio à ex-mulher durante o tratamento para combater o câncer no sistema linfático surgido em março do ano passado.

Não se sabe praticamente nada da vida sentimental de Dilma a partir daí, exceto um possível namoro, aparentemente encerrado, com um engenheiro gaúcho, Luiz Becker, com quem trabalhou na Secretaria Estadual de Energia. A ex-ministra é reservadíssima e defende com tenacidade a vida pessoal.

─ Ela virou avó agora, e eu nem sabia que ela tinha uma filha ─ contou ao site de VEJA um ex-político amigo do presidente Lula que conhece Dilma há anos.

Reservada e fechada na vida pessoal ─ pouca gente sabe que a mãe e uma tia solteira moram com ela em Brasília ─, Dilma não costuma ser discreta quando se trata de reclamar do que considera errado no trabalho. Muitos consideram que a forma de expressar seu grau de exigência e sua impaciência para com colaboradores, mesmo de primeiro grau de importância, será um grande problema para uma Dilma presidente.

“Ela é muito brava”, comenta esse amigo do presidente Lula, que lembra:

─ A melhor frase sobre Dilma a esse respeito foi a do governador Sérgio Cabral, do Rio, logo após o Carnaval, quando a Madonna foi embora do Rio e o Lula anunciou a Dilma como candidata: “Vai-se a Madonna e chega a mandona”.

BRONCAS, CHORO, “MENTIROSA?”
Um ex-presidente de estatal durante o primeiro mandato de Lula assíduo ao Palácio do Planalto conta que “cansou” de ver auxiliares e assessores chorando ao deixar a sala da então ministra da Casa Civil depois de levar reprimendas terríveis. Um ministro colega de Dilma presenciou uma bronca em altos brados no presidente da Petrobrás, Sérgio Gabrielli, diante de dezenas de outros membros do governo.

Um amigo do economista Damien Fiocca lembra-se de que quando o atual presidente da Nossa Caixa, integrada ao Banco do Brasil, era vice-presidente do BNDES (2006-2007) e ousou comentar um “não é bem assim” durante exposição da ministra, ouviu a resposta, aos gritos:

─ Você está me chamando de mentirosa?

Fiocca pôs panos quentes, mas ela insistiu:

─ Está, sim!

Durante a conferência sobre mudanças climáticas em Copenhague, em dezembro do ano passado, a então ministra, membro da delegação brasileira, dirigiu-se aos berros diante de professores universitários, cientistas e funcionários a um assessor que expressou sua opinião nos seguintes termos:

─ O senhor cale a boca, porque essa conversa é de nível político.

Em apresentações que lhe eram feitas como chefe da Casa Civil, sua insatisfação com dados incompletos ou conclusões feitas sem a suficiente base se manifestava ─ nunca com uso de palavrões, prática tão comum no governo Lula, a começar pelo próprio presidente ─ com frases como:

─ Mas isso é de uma incompetência absurda!

Ou, então:

─ Essa apresentação é ridícula!

Com uma terceira possibilidade:

─ Você deveria ter vergonha de apresentar isso!

“METÓDICA, ORGANIZADA, SEVERA, RÍGIDA”
O amigo Fernando Pimentel, ex-prefeito de Belo Horizonte, comenta:

─ A Dilma lapidou seu senso de disciplina, de organização. Ela é uma pessoa muito metódica, organizada, severa, rígida com prazos resultados e metas.

Pimentel considera essa característica uma herança dos tempos da luta armada.

─ Ela não transige com falhas ou erros, e isso acho que tem a ver com nossa militância, porque na clandestinidade qualquer falha podia levar à prisão ou até à morte de companheiros”.

“Dizem que ela é dura”, comenta o ex-colega de ministério. “Mas a verdade é que um ministro precisa ser duro, cobrar. Tem muita gente ruim, pouco qualificada em Brasília. Poucos sabem fazer uma apresentação digna desse nome, por exemplo”. O fato, atesta esse ministro, é que com Dilma na Casa Civil “tudo no meu Ministério passou a andar, não tinha mais essa história de ‘ah, isso está parado na Casa Civil’”.

Nem todos os ex-colegas de Dilma no governo compartilham dessa visão. Um deles concorda em que um ponto forte de Dilma é o domínio dos temas de que trata. “Se o presidente pede para estudar um assunto, ela passa o fim de semana mergulhado nele e volta sabendo o que precisa”, diz. “Ela conhece os assuntos do governo como muito pouca gente no Brasil, lida muito bem com dados”.

“INTELIGÊNCIA EMOCIONAL PÉSSIMA”
Isso, contudo, é pouco, na opinião dessa fonte. “O problema da Dilma é que ela não motiva, não há ‘dilmistas’ dentro do governo, ninguém se empolga com ela”. E acrescenta: “A inteligência emocional dela é péssima. Não vejo em Dilma condições de amarrar acordos, liderar um time, coordenar uma equipe como presidente. Falta-lhe liderança natural. Temo que ela fique na mão do PT, ou do PMDB ou então do Lula”.

Para esse observador muito bem informado, “seu estilo de gerenciamento pode funcionar para coordenar ministros, mas não é bom para um presidente”. Ele aponta também o que, em sua visão, seriam “o micro-management e o detalhismo” de Dilma, que “desgastam o que é bom nela”.

QUESTÕES DEIXADAS NO AR
A despeito de seu detalhismo, e mesmo que seus adeptos apregoem tratar-se de uma servidora pública que nunca se envolveu em corrupção, Dilma deixou no ar certas questões, sérias, que os eleitores mereciam haver conhecido melhor.

A ex-ministra, por exemplo, viu acrescida uma nódoa a seu currículo com a recente revelação dos escândalos de tráfico de influência na Casa Civil, que comandou até abril passado e que deixou nas mãos de sua secretária-executiva, Erenice Guerra. A chusma de parentes de Erenice encastelada em cargos públicos, ora em investigação pela Polícia Federal, lá estava quando Dilma era ministra, da mesma forma que já atuava, vendendo facilidades, o filho lobista de Erenice, Israel Guerra.

Nada existe sobre o envolvimento de Dilma em irregularidades, mas inevitavelmente se aplica a ela, no caso, a velha norma: se Dilma sabia de algo e nada fez, foi no mínimo omissa, e na pior das hipóteses, conivente; se não sabia de algo em curso em seu quintal, é sinal de incompetência.

Outro caso relaciona-se com a notória família Sarney. Em agosto do ano passado, a ex-secretária da Receita Federal Lina Vieira contou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo ter sido chamada ao Palácio do Planalto para uma audiência com Dilma, à época chefe da Casa Civil. A ministra teria pedido a ela que “agilizasse” investigações em curso na Receita sobre a família do senador e presidente do Senado José Sarney (PMDB-AP). Como isso não ocorreu, ela foi demitida do cargo. Dilma não somente negou o pedido como assegurou que sequer houve o encontro com Lina Vieira. Até hoje não se sabe o que ocorreu na verdade.

E há, naturalmente, o célebre caso do dossiê que pretendia atingir o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a falecida ex-primeira dama Ruth Cardoso e alguns assessores próximos de FHC. As coisas se passaram no começo de 2008 quando, para tentar calar a oposição e a barulheira que fazia na CPI dos Cartões Corporativos ─ sobre gastos excessivos e não transparentes de integrantes do governo com esse tipo de cartão de crédito ─, a Casa Civil teria produzido e divulgado o dossiê com as despesas de FHC, a mulher e assessores.

Dilma negou a existência do dossê. O que havia, asseverou, era a montagem de “um banco de dados” formal organizado a pedido do Tribunal de Contas da União. A Polícia Federal entrou na história e, após investigações, revelou que efetivamente o dossiê havia sido produzido na Casa Civil e vazado por assessor de Dilma para o gabinete de um senador da oposição. O assessor assumiu a culpa e, formalmente, deixou o emprego “a pedido”. Posteriormente, Dilma telefonou a Ruth Cardoso. Amigos da ex-primeira-dama dizem que ela “foi dura” com a ministra na conversa.

“NEM TODO EMPRESÁRIO É LADRÃO”
A questão do que se baixou debaixo dos panos da Casa Civil e a de presença ou não de carisma, capacidade de liderar e forma de trabalho, sem dúvida, são importantes quando se indaga que tipo de presidente seria Dilma, ou que tipo de governo faria. E, naturalmente, há outras. Talvez tão importante quanto esta é como Dilma vê o papel do Estado, do capitalismo, motor de riqueza e crescimento no mundo, e seus representantes, os empresários.

Nesse aspecto, é perfeitamente possível dizer que a ex-ministra passou por uma grande transformação ─ e, a despeito de ainda manter uma considerável ternura pelo Estado, no caminho da modernidade. Talvez a semente disso tudo estivesse na sua família: o pai, o imigrante búlgaro Pétar Russév, que mudou o nome para Pedro Rousseff, advogado de formação, era um empreendedor: realizou muitas obras para a siderúrgica Mannesmann e ao morrer, em 1962, quando a filha tinha 17 anos, deixou dinheiro no banco e 15 imóveis.

O ex-diretor de um grande banco se lembra da brutal dificuldade que encontrou para conseguir uma importante audiência com Dilma ainda quando ministra das Minas e Energia (2003-2005). “E era assunto de interesse do governo”, lembra. O banco integrava uma operação que canalizaria centenas de milhões de dólares para um grande empreendimento da administração Lula, que precisava ser exposto à ministra. Os pedidos de audiência, entretanto, batiam numa parede.

Foi preciso acionar contatos no Planalto para flexibilizar a agenda de Dilma. “A ministra tinha uma certa ojeriza a empresas”, lembra hoje o ex-diretor. “Isso é até compreensível: durante muito tempo, o PT só governou municípios, e seus quadros mantiveram contato com empresários que, justa ou injustamente, têm má fama, como os da área de limpeza urbana e de transporte coletivo”.

O fato é que Dilma se surpreendeu com o que viu e ouviu durante a audiência, ficou interessada e espichou para mais de uma hora uma conversa programada para menos de 30 minutos.

A ida para a Casa Civil e a incumbência recebida de Lula de coordenar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – por mais que haja críticas ao programa, por muitos apontado como mera “prateleira” de projetos dispersos, em boa parte baseados em recursos privados que ainda não existem ─ puseram a ministra em contato com várias áreas muito dinâmicas da economia e do empresariado e aceleraram seu processo de mudança.

Pulando de assuntos tão diversos que vão da produção de etanol e a construção do trem-bala São Paulo-Rio ao processo de transferência de tecnologia estrangeira para a exploração do pré-sal, a ministra incorporou a seu dia-a-dia a convivência com gigantes do empresariado brasileiro e dirigentes de imensas multinacionais. “Ela passou a ter uma visão muito diferente da que tinha ─ enxergou no empresariado eficiência, modernidade, viu que nem todo empresário é ladrão”, atesta o ex-colega de ministério.

Dilma, por exemplo, ficou perplexa ao perceber que o ambicioso programa Minha Casa, Minha Vida, com que Lula pretendia forrar o país de habitações para pessoas de renda modesta, estava totalmente nas mãos da Caixa Econômica Federal e mal conseguiria atingir 200 mil residências, em vez de 1 milhão, como queria o governo. Além disso, como cabia à CEF o seguro contra o calote nos pagamentos, o programa incluía dispositivos draconianos: um cidadão de 60 anos de idade ou mais pagaria a título de seguro um terço do valor das prestações. A Caixa engordava sua carteira seguradora e empurrava com a barriga a meta do governo.

“O Lula ficou uma fera”, conta uma testemunha do caso. Dilma apressou-se a convocar empresários do setor para discutir e reformular a política habitacional. O resultado é que, das mil empresas inscritas para participar do programa, passou-se a nove mil, e entidades poderosas como a Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib). O programa, relatam empresários, passou a ser tocado a grande velocidade.

Os contatos com dirigentes da iniciativa privada levaram a ministra até a adotar, para a gestão do PAC, princípios e fundamentos do modelo de controle de projetos desenvolvido por uma instituição privada com interesses e investimentos em diferentes áreas da economia.

Essa Dilma polida pelo pragmatismo atuou, obviamente, nos fundamentos de sua campanha à Presidência. Apoiada por Lula, ela decepou uma série de barbaridades do projeto de governo do PT, coordenado pelo inefável professor Marco Aurélio Garcia, um dos responsáveis pela política externa errática, esquerdóide e esquizofrênica da administração Lula. Ficaram de fora itens defendendo maior controle estatal da economia, arranhando a liberdade de expressão ou propondo controle governamental sobre canais de TV por assinatura. Entraram temas como a defesa da preservação da estabilidade econômica e um elogio explícito à atuação dos bancos brasileiros na grande crise financeira que explodiu em 2008.

UM RETRATO DO PRAGMATISMO
VEJA captou o retrato desse pragmatismo em reportagem publicada em fevereiro, de autoria dos jornalistas Otávio Cabral e Gustavo Ribeiro. Ali se listavam seis grandes projetos do governo a respeito dos quais a ministra utilizava uma retórica à esquerda, simpática ao petismo, e na prática adotava soluções mais adequadas ao país ─ em todos os casos, menos um, fazendo a balança pender para sensível participação da iniciativa privada.

A lista:

1. GÁS
O que Dilma dizia: em discursos, defendeu o fortalecimento da Petrobrás e seus interesses comerciais, por considerar a empresa indutora do desenvolvimento.

O que Dilma fez: para evitar apagões, obrigou em 2007 a Petrobrás a priorizar o fornecimento de gás a termoelétricas (privadas), em detrimento de outros clientes. A medida deu prejuízo à Petrobrás e levou o diretor da área de gás da empresa, Ildo Sauer, opositor de Dilma, à demissão.

Resultado: com as termoelétricas com abastecimento garantido, reduziram-se os riscos de apagão, mas as indústrias do Sudeste que adotaram o gás como matriz energética sofreram prejuízos.

2. FERROVIA TRANSNORDESTINA
O que Dilma dizia: querendo inaugurar ainda em 2010 a ferrovia que cortará o Nordeste, chegou a ameaçar o empresário responsável pelo projeto, Benjamin Steinbruch, de tomar a obra para o governo.

O que Dilma fez: determinou um aumento de 500 milhões de reais de investimentos do BNDES na ferrovia e que o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste reduzisse as exigências feitas a Steinbruch para novos empréstimos.

Resultado: antes paradas, as obras foram retomadas, o que permitirá a inauguração de um dos trechos da estrada no ano que vem.

3. ENERGIA
O que Dilma disse: em 2003, declarava-se favorável ao aumento da participação estatal na distribuição de energia, setor privatizado pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). As tarifas, segundo ela, deveriam ser atreladas aos custos das empresas, e não aos índices de preços, como previam os contratos de concessão.

O que Dilma fez: aprovou um marco regulatório que reduziu a presença do estado no setor. Com pouca interferência estatal, o mercado livre de energia – em poucas palavras, a possibilidade que passou a existir de consumidores até uma certa quantidade não adquirirem energia da concessionária local, mas procurar outros fornecedores ─ viu sua participação na cadeia de energia crescer de apenas 7% para 27%.

Resultado: aprovado pelos empresários e pelos partidos de oposição, o novo marco regulatório estimulou investimentos privados na construção de usinas hidrelétricas, termoelétricas e de energia eólica.

4. TRANSGÊNICOS
O que Dilma disse: apoiava o projeto de governo de Lula que prometia impedir o plantio de grãos transgênicos no Brasil e se alinhava com os ambientalistas mais extremados.

O que Dilma fez: garantiu, em 2008, a aprovação do plantio de grãos transgênicos no país. Depois, enquadrou os ministros que se rebelaram e até ameaçaram recorrer à Justiça contra a medida.

Resultado: a medida permitiu que as lavouras brasileiras se equiparassem em competitividade às dos países mais avançados na área. A então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, pediu demissão. Mais tarde, deixou o PT e este ano candidatou-se à Presidência pelo PV.

5. RODOVIAS
O que Dilma disse: pregava o fortalecimento do papel do estado e das estatais como promotores de desenvolvimento.

O que Dilma fez: em 2007, liderou dentro do governo a concessão à iniciativa privada de rodovias como a Fernão Dias (São Paulo-Belo Horizonte) e a Régis Bittencourt (São Paulo-Sul do país). Optou pelo modelo no qual vence o leilão quem oferece o pedágio mais barato, e não quem paga mais pela concessão.

Resultado: as novas concessionárias estão em processo de modernização das estradas e cobram pedágios inferiores aos das vencedoras dos leilões realizados no governo FHC. A abertura à iniciativa privada, louvável, resultou porém, devido ao critério do pedágio mais barato como item fundamental das concorrências, a estradas de qualidade discutível.

6. PRÉ-SAL
O que Dilma disse: não se pronunciou publicamente, mas integrou a comissão que elaborou as novas regras do setor, em 2008. O projeto previa a participação de empresas privadas e estatais na exploração do petróleo da camada submarina do pré-sal.

O que Dilma fez: em 2009, em recaída estatista, defendeu maior controle estatal na exploração das reservas. De acordo com a proposta apresentada ao Congresso e aprovada, a Petrobrás passou a ser a única operadora das reservas. Criou-se uma nova estatal, a Petro-Sal, encarregada de gerir os recursos e coordenar a exploração dos recursos.

Resultados: ainda é pequeno. A exploração começou em julho, em uma plataforma no litoral do Espírito Santo, a uma média de 20 mil barris por dia.

UMA QUESTÃO MORAL: CAMPANHA ERIGIDA SOBRE UMA MENTIRA
Tudo isso considerado, vemos que a ex-ministra tem aspectos positivos, tem aspectos negativos. Deixa explicações incompletas sobre problemas ocorridos durante sua gestão na Casa Civil. Falta-lhe experiência política. Além de jamais haver sido antes provada nas urnas, está a anos-luz do carisma de Lula e longe do preparo intelectual e da capacidade política de Fernando Henrique.
Muito bem. Isto posto, há ainda uma questão a levantar ─ que, neste texto, será a última.
É uma relevante questão moral.

Uma mulher que os amigos consideram “íntegra”, colegas de ministério “transparente” e interlocutores vários “verdadeira” já defendeu, em público e em mais de uma ocasião, o uso da mentira como recurso extremo ─ para salvar companheiros de clandestinidade da prisão, por exemplo, quando lutava para instalar um regime “revolucionário” totalitário no país.

Trata-se de uma questão complexa, que, nesses termos e nessa situação extrema, pode ser discutida interminavelmente.

O problema é que Dilma aceitou, incorporou e repetiu ao longo da campanha um outro tipo de mentira, grande e grave ─ uma enorme mentira forjada por Lula e martelada milhares de vezes perante o povo brasileiro como verdade inquestionável: a de que tudo começou em 2003, com o governo do PT, e que antes dele, especialmente nos oito anos anteriores, nada se fez, nada se transformou, nada foi tornado melhor, nada se construiu, exceto uma “herança maldita” que coube ao homem simples do povo que chegou ao Planalto administrar e transformar em glória.

Nenhum país decente se constrói em cima de uma mentira sobre a própria História. Se não se desfizer deste fardo, um dia Dilma será destruída por ele.

Ufa!: so falta UM dia...

Depois o silêncio...
É o que muita gente espera...
A conferir...

:) (:
ou
#*@+&!!

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

RBPI, hora da saudade (5): resenha-artigo de livros sobre Mercosul (1997)

Artigo original:

Revista Brasileira de Política Internacional
Print version ISSN 0034-7329
Rev. bras. polít. int. vol.40 no.1 Brasília Jan./June 1997
doi: 10.1590/S0034-73291997000100013

INFORMAÇÃO
RESENHAS
A marcha da integração no Mercosul: vivace ma non troppo
Paulo Roberto de Almeida


BALZE, Felipe A. M. de la (comp.). Argentina y Brasil: enfrentando el Siglo XXI. s.l. [Buenos Aires]: Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales-Asociación de Bancos de la República Argentina, 1995, 487 p.

ZYLBERSTAIN, Hélio; RODRIGUES, Iram Jácome; CASTRO, Maria Silvia Portella de; VIGEVANI, Tullo (orgs). Processos de integração regional e sociedade: o sindicalismo na Argentina, Brasil, México e Venezuela. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, 381 p.

PABST, Haroldo. MERCOSUL: direito da integração. Rio de Janeiro: Forense, 1997, 278 p.

PEREIRA, Ana Cristina Paulo. MERCOSUL: o novo quadro jurídico das relações comerciais na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1997, 208 p.

BRANCO, Luizella Giardino B. Sistema de Solução de Controvérsia no MERCOSUL: perspectivas para a construção de um modelo institucional permanente. São Paulo: Editora LTr, 1997, 180 p.

VENTURA, Deisy de Freitas Lima: A ordem jurídica do MERCOSUL. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, 168 p.

MERCOSUL: acordos e protocolos na área jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, 153 p.

A produção acadêmica e a literatura especializada sobre os processos de integração regional na América Latina e, em especial, sobre o Mercosul e o processo Brasil-Argentina, parecem finalmente estar encontrando, no Brasil, uma "velocidade de cruzeiro". As obras que são discutidas a seguir tratam todas dos desafios jurídicos, político-institucionais e econômicos da construção da integração regional, demonstrando que, se a sua marcha econômico-comercial adota o estilo andante-veloce, o ritmo jurídico-institucional conhece, por motivos diversos, um certo compasso de espera. Se os teóricos e "juristas" da integração impacientam-se com a "resistência anticomunitária" dos burocratas governamentais, os empresários, agricultores e sindicatos operários manifestam visível preocupação com uma certa "pressa livre-cambista" que vigoraria sobretudo no vizinho do Prata.

É precisamente da Argentina que nos vem o primeiro dos livros compulsados neste artigo-resenha, aliás o único da meia dúzia de obras aqui discutidas, confirmando plenamente a fama de boa qualidade analítica dos estudos publicados na outra margem do Prata. Ele foi organizado por Felipe de la Balze para o CARI, o Conselho Argentino de Relações Internacionais.

Na parte da "política", comparece em primeiro lugar Torcuato Di Tella, o grande sociólogo, irmão do atual chanceler do Presidente Menem, com uma análise do sistema político brasileiro na perspectiva argentina. Como tal, ele não apresenta maiores novidades para um leitor brasileiro, não fosse sua leitura relativamente exaustiva do itinerário político do Brasil desde a era Vargas, na verdade desde 1808 e com especial ênfase a partir do tenentismo, esse peronismo avant la lettre que presidiu à modernização do país a partir dos anos 30. Mais interessante é sua análise do posicionamento das principais forças políticas do Brasil – partidos, empresários, sindicatos – em face dos grandes problemas de política econômica ou das opções colocadas aos setores econômicos (aço, automóveis, bens de capital, indústrias diversas) que, pelo seu natural dinamismo, apresentam importante impacto no processo de integração conduzido com a Argentina desde meados dos anos 80 (baseado, no primeiro período, em acordos setoriais, precisamente).

O historiador Jorge Hugo Herrera Vegas apresenta um estudo comparativo notávelmente sintético sobre as políticas externas da Argentina e do Brasil, nas quais ele identifica, desde as origens coloniais, "divergências e convergências", isto é, pontos de dissenso e de aproximação nas posturas bilaterais, multilaterais e com terceiros países, vale dizer, com os Estados Unidos, a ponta do triângulo inevitável na política pendular mantida por um e outro país em diferentes épocas de uma história sempre complexa, mas raramente conflitiva a ponto de precipitar guerras ao estilo França-Alemanha. Ainda assim, a releitura do contencioso bilateral em torno do aproveitamento dos recursos hídricos do Paraná, nos anos 70, segundo a perspectiva argentina é bastante instrutiva, da mesma forma como a busca das "origens" do processo de integração. Para Vegas, a história paralela das duas políticas exteriores demonstra que os dois países, Brasil e a Argentina, "nacen con polaridades geográficas e históricas opuestas y van convergiendo progresivamente hasta sellar una unidad de destino en el Tratado de Asunción"; mais importante, ele também afirma que o debate, crucial durante a fase de transição, sobre a alternativa Mercosul ou NAFTA pode ser considerado como "superado" na Argentina.

Encerra essa parte da "política" um curto estudo "geopolítico" de Vicente Gonzalo Massot sobre a evolução dos dois países, de um "equilíbrio de inimizades à cooperação bilateral", no qual são examinadas as muitas incompreensões, de parte e outra, mantidas por diplomatas e militares dos dois lados do Prata sobre as intenções respectivas de seus governos sobre o sentido geral da projeção estratégica de cada um e com respeito a armamentos, inclusive o nuclear. Trata-se de um itinerário ainda não concluído que deveria levar, segundo o autor, à desejada "defesa cooperativa".

A parte de "economia" tem início por extenso trabalho de Elvio Baldinelli sobre o comércio bilateral, no qual, além de uma análise dos fluxos, se discute também o problema das paridades cambiais e o dos incentivos fiscais e creditícios, os principais pontos remanescentes de assimetria nas políticas macroeconômicas dos dois países. Para a primeira questão se sugere a adoção de um sistema de "banda de flutuações" a partir da paridade real das duas moedas e, para a segunda, a incorporação plena de todas as normas da Rodada Uruguai sobre a matéria. O estudo seguinte, a cargo de Roberto Bouzas, traça um panorama completo das políticas nacionais em matéria de investimento estrangeiro, assinalando as divergências (e restrições ao tratamento nacional) ainda existentes nos regimes respectivos e seus efeitos sobre os fluxos internos e externos nessa área, sumarizando também os movimentos de negócios que foram registrados reciprocamente no decorrer do processo de integração. Adalberto Rodrigues Giavarini opera uma brilhante análise comparada dos setores financeiros respectivos, ambos emergentes de uma história pregressa de inflação descontrolada e adaptando-se duramente aos requisitos de uma economia estabilizada. Finaliza a parte econômica um estudo de Eduardo Fasulino sobre as políticas de concorrência nos dois países, setor de crescente significação na medida em que o aprofundamento da integração torna cruciais os aspectos regulatórios e macroestruturais que enquadram a competição entre empresas da região na busca de maior acesso a mercados e de condições equitáveis de concorrência.

O capítulo mais importante do livro é contudo o primeiro, no qual Felipe de la Balze discorre sobre os desafios que a Argentina enfrenta nesta passagem de milênio para assegurar uma taxa adequada de crescimento econômico, criar um sistema institucional legítimo e inserir-se exitosamente na economia e na política mundiais. Em sua opinião a estratégia de seu país deveria desenvolver-se em duas etapas: consolidar o processo de integração econômica e de cooperação política com o Brasil e, simultaneamente, aprofundar o acercamento bilateral com os Estados Unidos, tanto nos temas estratégicos como nos econômicos. Sua análise nos parece pecar aqui por um certo voluntarismo, pois ele vislumbra a possibilidade de um acordo de cooperação militar entre os países do Mercosul e a OTAN, ao mesmo tempo em que se desenvolveria uma rede de relações privilegiadas com o NAFTA e com a União Européia.

O organizador desse importante livro apresenta em seu capítulo os cinco desafios do processo atual de integração: aprofundamento do Mercosul, reforço das alianças regionais e extra-regionais (ALADI, NAFTA e UE), coordenação macroeconômica, coordenação das políticas de comércio exterior e de promoção comercial e, finalmente, o da institucionalização, no qual se descarta a tese da supranacionalidade, mas se recomenda fortemente um Tribunal de Justiça supranacional, independente e imparcial. A "estratégia central" de seu cenário para o século XXI está fortemente baseada numa aliança privilegiada com os Estados Unidos e numa "convergência" com o Primeiro Mundo, como se tal tipo de política unilateral pudesse produzir respostas cooperativas e promessas efetivas de incorporação no centro de poder em nível mundial.

Os textos recolhidos no volume da Paz e Terra sobre os processos de integração regional e o sindicalismo em países da América Latina resultaram de seminário organizado cooperativamente em 1995 pelo Instituto de Estudos Avançados da USP e pela Associação Brasileira de Estudos do Trabalho. Os autores (da Argentina, Brasil, México e Venezuela) se posicionam nitidamente numa postura contrária ao neoliberalismo aparentemente dominante nas esferas governamentais desses países e tendem a colocar em termos realistas os desafios colocados às centrais sindicais em face do que é chamado de "transição liberal-modernizadora" no continente.

Diversos fatores levaram todos os movimentos sindicais nos países considerados a verdadeiras encruzilhadas, tendo eles próprios de operar uma reconversão dos métodos de ação e um ajuste adaptativos às novas regras do jogo: não só mudam os parâmetros pelos quais se definiam a autonomia e a iniciativa sindicais (supondo-se que elas existissem em países como México e Argentina) como o próprio conceito de poder coletivo de barganha das centrais nacionais. Hoje há uma maior informalização das relações trabalhistas e uma precariedade acentuada nas condições de emprego. O sindicalismo é de certa forma preservado naqueles países, como o Brasil, onde ele pode participar de conselhos ou estruturas consultivas de tipo corporativo (câmaras setoriais), o que significa que sua manutenção se dá pela participação cada vez maior no sistema político. Iram Rodrigues e Hélio Zylberstain, num texto sobre o Brasil, chamam esse tipo de interação de "cooperação conflitiva", ao passo que as clientelas do setor público preservam grupos políticos radicais, identificados com a esquerda socialista.

Tullo Vigevani e João Paulo Veiga focalizam o que eles chamam de "dilema sindical no Mercosul": internacionalismo ou protecionismo, mostrando as estratégias inovadoras adotadas pelas centrais da subregião, com intensa participação nos grupos de trabalho e nos debates sobre diretrizes de políticas setoriais e macroeconômicas, num contexto em que uma "Carta Social" muito abrangente e ambiciosa revela-se uma utopia.

Num brilhante texto sobre a dimensão política do Mercosul, Monica Hirst identifica os atores de primeiro e de segundo plano do processo integracionista – mercocratas, empresários e líderes políticos por um lado, partidos, pequenos empresários e sindicatos por outro – e discute os principais temas de politização desse processo: relações com o NAFTA, política industrial ou liberalização, temas sociais, possibilidade de cooperação política e, sobretudo a questão da institucionalidade: intergovernamental como preferem os governos, ou supranacional como recomendam alguns teóricos.

A questão da definição de estruturas políticas e decisionais exclusivamente intergovernamentais ou moderadamente supranacionais encontra-se presente, com maior ou menor grau de detalhe, nos demais livros aqui analisados. O catarinense Haroldo Pabst, em utilíssimo manual que deve ser recomendado a todo estudante em direito econômico e comercial, enfoca o tema sob o prisma da uniformização jurídica do espaço integracionista, partindo dos métodos recomendados pelo Unidroit para examinar com mais ênfase as experiências da União Européia e do Mercosul.

Essa uniformização jurídica pode ser feita tanto pela via do direito internacional público como pela via do direito comunitário, opção retida no caso da Europa, ao passo que o Mercosul se vale ainda da primeira. O livro de Pabst é uma espécie de plaidoyer por essa uniformização, ressaltando que a construção do mercado comum a torna indispensável. Da mesma forma, diz ele, quando esse mercado comum for uma realidade, "a harmonização jurídica mais ampla e a instituição de órgãos supranacionais, inclusive do Tribunal de Justiça do Mercosul, serão inevitáveis".

Muitos juristas, mesmo sem preconizar diretamente a criação de órgãos supranacionais, apontam a necessidade da construção jurisprudencial comunitária, ou pelo menos comum, em matéria de liberalização de mercados e de direito da concorrência, como por exemplo Werter Faria. Pabst reconhece que a harmonização do Mercosul por via de órgãos supranacionais definitivos está distante, mas insiste em que essa harmonização se dê agora, no momento da construção do mercado comum, no que ele tem perfeitamente razão: "Os mecanismos para o início imediato da harmonização existem e não há justificativa plausível para postergá-la". O livro, respondendo à dificuldade que têm muitos estudantes de encontrar os textos "fundacionais" da integração européia e na região, traz um anexo documental com os tratados de Roma e de Assunção, os protocolos de Brasília e de Ouro Preto, bem como diversos outros instrumentos de cooperação em matéria jurisdicional entre os países do Mercosul.

O livro de Ana Cristina Pereira recolhe a primeira parte de sua tese de doutoramento na Universidade de Paris-I, sobre o novo quadro jurídico das relações comerciais na América Latina, enfocando mais particularmente as bases jurídicas e as regras de funcionamento do Mercosul. Trata-se de estudo minucioso dos diversos instrumentos da integração regional à luz do sistema multilateral regido pelo GATT e pelo direito dos tratados, tal como regulado pela Convenção de Viena de 1969.

A autora examina questões de grande relevância na construção de uma ordem jurídica no Mercosul, como a da aplicabilidade das decisões adotadas pelos órgãos intergovernamentais no âmbito interno dos Estados Partes, o sistema de solução de controvésias e a do próprio sistema de decisões previsto no Tratado de Assunção e no Protocolo de Ouro Preto. Ela também se dedica a uma análise das regras de funcionamento do Mercosul, em especial no que tange ao comércio de mercadorias, à livre circulação no território dos países membros e ao estabelecimento da união aduaneira. São igualmente enfocadas as regras sobre práticas comerciais restritivas e as políticas nacionais de apoio às exportações e subvenções à produção. A obra constitui uma boa aproximação à problemática integracionista no contexto mais vasto do sistema multilateral de comércio, adminstrado desde janeiro de 1995 pela Organização Mundial do Comércio.

Mais específico é o estudo de Luizella Giardino Branco, sobre o sistema de solução de controvérsias no Mercosul que, como seu subtítulo indica, pretende oferecer uma contribuição para a construção de um modelo institucional permanente. Resultado de uma tese de mestrado sob a orientação competente da Professora Nádia de Araujo, o trabalho faz um estudo comparado dos mecanismos de resolução de conflitos já existentes e em funcionamento na União Européia, no Pacto Andino e no NAFTA, para discutir o modelo do Mercosul numa perspectiva evolutiva, isto é, apontando tendencialmente para a constituição de um Tribunal supranacional. Essa opção não é meramente retórica ou derivada de uma preferência teórica pelo modelo de integração supostamente mais avançado, mas resulta de um cuidadoso estudo comparado e empírico das vantagens e deficiências de cada um dos sistemas de solução de controvésias selecionados no livro, vale dizer, as mais importantes experiências atualmente disponíveis no "supermercado" dos processos integracionistas.

Para a autora, a esfera jurídica é a "única que pode garantir a continuidade a longo prazo da integração, porque não se esgota com a instauração desta, mas ao contrário, acompanha o processo de desenvolvimento". Daí sua reafirmação da essencialidade de um sistema jurídico adequado e da instituição de um Tribunal Supranacional: este "representaria não só a efetiva vontade política dos países em assegurar esse processo, como também concorreria para formar a harmonia e o respeito ao cumprimento do direito comunitário, requisito fundamental para preservar o laço associativo dos Estados-membros". Este brilhante trabalho de uma jovem jurista, que merece mais ampla divulgação, vem precisamente reforçar o bloco daqueles que, ainda que reconhecendo o caráter prematuro de instituições supranacionais no Mercosul, advogam pela criação de uma corte arbitral ou de um tribunal permanente de justiça no âmbito do Cone Sul.

O livro de Deisy de Freitas Ventura, outra jovem pesquisadora, desta vez do Rio Grande do Sul, vai direto à questão mais importante, do ponto de vista dos juristas, no processo de construção do Mercosul: deve-se passar sem delongas à etapa do direito comunitário, erigindo uma ordem jurídica que se superponha às soberanias nacionais, ou caberia, ao contrário, como fazem de fato os governos dos países membros, avançar gradualmente, cuidadosamente, de molde a evitar rupturas políticas e econômicas muito graves no ainda frágil edifício integracionista ou fissuras institucionais irremediáveis se se decidisse por estender em demasia a viga mestra de sua sustentação jurídica?

A resposta da autora, nesta obra que também resulta de uma tese de mestrado, não deixa dúvidas quanto ao caminho por ela escolhido. Com efeito, A ordem jurídica do MERCOSUL é, antes de mais nada, uma vibrante defesa de uma normatividade jurídica plenamente eficaz no Mercosul, contra a inércia "soberanista" dos Estados Partes. Trata-se, como já antevisto em várias outras obras de juristas e acadêmicos universitários, de uma demanda recorrente em livros e artigos de caráter jurídico-institucional, algo como um plaidoyer pro domo sua no estabelecimento oportuno da institucionalidade supranacional? O trabalho de Deisy Ventura está muito bem construído, apresenta sólida fundamentação teórica e discute os problemas pertinentes da atual fase de constituição de um edifício integracionista no Cone Sul. A autora começa por se perguntar se há uma ordem jurídica no Mercosul; para apresentar sua resposta ela começa por examinar as fontes do direito no "bloco integracionista", para depois deter-se no exame de cada uma das constituições dos Estados Partes do Tratado de Assunção, para evidenciar o caráter restritivo de algumas disposições. A resposta à questão seria positiva caso se admita a interação das ordens jurídicas nacionais com os propósitos do instrumento constitutivo do futuro mercado comum, no pressuposto de que as decisões dos órgãos autônomos do Mercosul são ou possam ser integrados automaticamente no ordenamento interno de cada um dos Estados. Tal não parece ser entretanto o caso, daí a constatação de uma lacuna de ordem jurídica, na acepção do direito comunitário, o que parece bastante evidente a qualquer observador um pouco mais informado.

O Mercosul é certamente híbrido do ponto de vista institucional e não há porque pensar que o modelo comunitário europeu constitui o nec plus ultra dos padrões aceitáveis de construção de um mercado comum. A lógica do Mercosul é a do menor custo possível, político ou social, para não dizer econômico, daí a própria economia feita pelos países membros em número de mercocratas e outros gêneros de tecnocratas. Os juristas não se reconhecerão nessa descrição, podendo mesmo argumentar que a ordem legal é absolutamente indispensável ao bom funcionamento de todo e qualquer empreendimento integracionista. Talvez, mas então o Mercosul se faz pelo método do ensaio e erro, da empiria consagrada em norma.

A segunda grande questão levantada no trabalho de Deisy Ventura refere-se à possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul. Aqui a resposta parece ter vindo ao mesmo tempo que a pergunta, pois se toma como óbvio o conceito oriundo do direito comunitário europeu, isto é, uma ordem autônoma e hierarquizada. Em outros termos, o Mercosul deveria ou precisaria aproximar-se do modelo europeu para receber uma espécie de label comunitário, uma certificação de origem supranacional. Contra essa perspectiva são levantados vários óbices estruturais e sobretudo políticos nos países membros. A despeito de uma aceitação de princípio por parte das elites desses países dos pressupostos da construção comunitária – ou seja, a cessão de soberania, a delegação ou transferência de poderes, a limitação da vontade soberana do Estado – a internacionalização efetiva de suas economias respectivas ou uma ativa e assumida interdependência entre os países membros do Mercosul parece ainda distante. O problema aqui parece ser mais de ordem prática do que teórica: os economistas, que são os que de fato comandam o processo de integração, pelo menos em seus aspectos práticos, não têm o mesmo culto à noção de soberania – seja contra ou a favor – em que parecem deleitar-se os juristas. Não se trata de uma questão em relação à qual se possa ser contra ou a favor ou de uma noção para ser encaminhada ou resolvida por um tratado jurídico de qualquer tipo: a soberania não faz parte dos cálculos de PIB ou dos equilíbrios de balança comercial e não se sujeita à coordenação de políticas macroeconômicas, daí sua irrelevância prática para a condução efetiva do processo integracionista. Ela é, sim, exercida diariamente, na fixação da taxa de câmbio – que pode até ser declarada estável – ou na determinação do nível de proteção efetiva em situações de baixa intensidade integracionista, que é justamente aquela na qual vivem os países do Mercosul ou pelo menos o maior deles.

A autora acredita que "a vontade política e não o conceito de soberania são determinantes da opção pelo modelo supranacional" e que o Brasil, mesmo apresentando uma grande "influência externa em toda a condução de sua política econômica", foi o "grande responsável pela compleição intergovernamental da estrutura orgânica mercosuliana".

Dito isto, este resenhista pretende deixar claro que não defende uma posição "soberanista" estrita no processo de construção, necessariamente progressivo e gradual, do Mercosul. A soberania, como no velho mote sobre o patriotismo, costuma ser o apanágio dos que se atêm à forma em detrimento do conteúdo, à letra em lugar do espírito da lei; sua afirmação, em caráter peremptório ou irredentista, é geralmente conservadora, podendo mesmo sua defesa exclusivista e principista ser francamente reacionária no confronto com as necessidades inadiáveis de promoção do desenvolvimento econômico e social e do bem-estar dos povos da região. O que, sim, deve ser considerado na aferição qualitativa de um empreendimento tendencialmente supranacional como é o caso do Mercosul é em que medida uma renúncia parcial e crescente à soberania por parte dos Estados Partes acrescentaria "valor" ao edifício integracionista e, por via dele, ao bem-estar dos povos integrantes do processo, isto é, como e sob quais condições especificamente uma cessão consentida de soberania contribuiria substantivamente para lograr índices mais elevados de desenvolvimento econômico e social.

A última questão analisada no libro de Deisy Ventura refere-se à eficácia jurídica no âmbito do Mercosul, terreno no qual a boa técnica jurídica nos incita a concordar com as pertinentes observações da autora. Que as instituições nacionais sejam as boas guardiãs das normas de direito no quadro do Mercosul parece repugnar ao jurista cioso da enforceability dos atos constitutivos do processo de integração. Quem guarda o guarda?, seria o caso de se perguntar, numa analogia tão latina quanto brasileira. As deficiências da ordem jurídica do Mercosul nesse particular são reais, o que nos faz concordar com a autora no sentido em que esse componente (a baixa eficácia dos fatos jurídicos gerados pelas regras do Mercosul) "determina a instabilidade e a insegurança destas relações jurídicas, atributos que se multiplicarão com o aprofundamento do processo integracionista".

O livro de Deisy Ventura é utilmente complementado, em dois anexos, pelo texto do Protocolo de Ouro Preto e por dispositivos selecionados (relativos aos temas internacionais e integracionistas) das mais importantes constituições européias, o que se constitui em valioso auxílio documental aos estudantes universitários brasileiros.

Com vistas, justamente, a municiar estudantes e pesquisadores com o conhecimento adequado dos principais instrumentos jurídicos existentes no âmbito do Mercosul, o Ministério da Justiça (por meio de sua assessoria internacional, sob a responsabilidade do diplomata Roberto Furian Ardenghy), o Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria (coordenado pelo competente Professor Ricardo Seitenfus) e a Livraria do Advogado do Porto Alegre vêm oferecer a coletânea dos textos dos acordos e protocolos firmados na área jurídica pelos Estados Partes do Tratado de Assunção: os nove instrumentos publicados na íntegra vêm acompanhados de seu respectivo índice alfabético-remissivo, o que facilita a consulta aos diversos elementos constitutivos dos atos de cooperação jurídica estabelecidos no âmbito da reunião de ministros da justiça do Mercosul. Esse foro se ocupa de importantes questões jurídicas e administrativas, cobrindo desde o estudo da consolidação de um direito comunitário até problemas eminentemente práticos como o tráfico de menores e a lavagem de dinheiro.

Os sete livros aqui examinados contribuem, de diversos modos, para o aprofundamento de um debate que se tornou inadiável no Mercosul: o do reforço de sua institucionalidade com vistas a enfrentar os desafios que são colocados de contínuo aos Estados membros, sobretudo no âmbito hemisférico (ALCA) e na esfera multilateral (OMC). Eles oferecem algumas armas teóricas, vários argumentos jurídicos de excelente qualidade técnica e uma boa visão comparativa sobre como o Mercosul pode continuar sua marcha segura em direção do almejado mercado comum, talvez não sem os atropelos políticos, sociais ou econômicos da globalização, mas pelo menos segundo um processo ditado exclusivamente pela conveniência dos interesses de seus povos respectivos.

Esta resenha-artigo em pdf.

RBPI, hora da saudade (4): um artigo sobre propriedade intelectual (1997)

Retomando a série de artigos que publiquei na RBPI, de 1997 em diante:
[Nota: Esta resenha-artigo foi publicada com cortes em relação ao original.]

Revista Brasileira de Política Internacional
Print version ISSN 0034-7329
Rev. bras. polít. int. vol.40 no.1 Brasília Jan./June 1997
doi: 10.1590/S0034-73291997000100011

INFORMAÇÃO
RESENHAS
Propriedade intelectual e política externa: o Brasil no contexto internacional
Paulo Roberto de Almeida


Vigevani, Tullo. O Contencioso Brasil x Estados Unidos da Informática: uma análise sobre formulação da política exterior. São Paulo: Alfa-Omega, Editora da Universidade de São Paulo, 1995, 349 p.

Varella, Marcelo Dias. Propriedade intelectual de setores emergentes: biotecnologia, fármacos e informática. São Paulo: Atlas, 1996, 255 p.

O objetivo do livro de Tullo Vigevani está colocado claramente pelo autor em sua introdução: estudar uma questão de grande relevância intrínseca para a inserção econômica internacional do Brasil – a disputa "informática", na verdade uma disputa de poder, entre o Brasil e os Estados Unidos – e refletir sobre pontos fundamentais para as relações internacionais contemporâneas. Buscou o autor, com muita proficiência, "ampliar a compreensão de como são tomadas as decisões no Brasil no que se refere à política exterior". Devo confessar, como acadêmico em tempo parcial e diplomata em tempo integral, que sempre me interroguei sobre a validade propriamente científica, a coerência argumentativa e a legitimidade heurística dos estudos tipicamente acadêmicos sobre mecanismos de tomada de decisão em política internacional e na política externa brasileira em particular. Os pesquisadores universitários geralmente partem de um modelo teórico e de um esquema conceitual muito bem construídos, passam a entrevistar diplomatas e outros atores relevantes numa análise de caso bem delimitado e terminam por tirar conclusões sobre a "eficácia weberiana" de seu tipo-ideal de processo decisório, no caso aplicado a um exemplo concreto das relações políticas entre as nações.

Os resultados costumam ser insatisfatórios ou frustrantes, seja porque o pesquisador parte de um modelo de racionalidade ideal de conduta diplomática que não costuma encontrar-se na realidade, seja porque os próprios atores racionalizam a posteriori sua atuação no caso, de molde a justificar os resultados alcançados, "que só poderiam ser" aqueles efetivamente obtidos. Como diriam os franceses, CQFD, ou seja, eis o que era preciso demonstrar. Não é o caso, devo logo adiantar, deste precioso estudo sobre mecanismos de decisão aplicados ao caso do contencioso informático entre o Brasil e seu principal parceiro ocidental, o império norte-americano da informática.

Trata-se, em primeiro lugar, de uma descrição absolutamente fiel de todos os aspectos envolvidos no famoso contencioso bilateral: política nacional de informática, presença norte-americana no mercado brasileiro e internacional, decisões do governo brasileiro, negociações diplomáticas em várias fases, implicações econômicas, políticas e diplomáticas do setor, enfim, o universo completo dos elementos em jogo, l'enjeu, como ainda diriam os franceses; assiste-se, em segundo lugar, a uma riquíssima discussão sobre as virtudes e limitações da política externa nacional in motion, isto é, tal como construída e defendida no próprio processo de sua constituição por responsáveis governamentais, dirigentes políticos, líderes empresariais e, of course, pelos próprios diplomatas do Itamaraty, atores relevantes neste case study.

O resultado é propriamente brilhante: Tullo Vigevani soube captar com rara acuidade para um "observador externo" – mas talvez um espectador politicamente motivado, o que em nada diminui sua objetividade acadêmica e sua imparcialidade de julgamento – todos os matizes de uma difícil questão que contaminou durante a segunda metade dos anos 80 as relações políticas e mesmo econômicas entre os dois maiores países do hemisfério ocidental. O problema transcedeu a esfera propriamente bilateral pois que, nessa época, ambos os países eram atores relevantes durante a primeira fase, já bastante complicada politicamente por força das ambiguidades da Declaração de Punta del Este, das negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai. A esse título, a "estória" do contencioso contida neste livro vale pelo que ele de fato é: um registro histórico meritório sobre uma queda de braço diplomático – que prestou-se, diga-se de passagem, a muitas bravatas ideológicas e posturas desafiadoras da parte de certos atores nos dois países – e uma interpretação "acadêmica" (no bom sentido da palavra) verdadeiramente inovadora das condicionantes internas e externas que atuam na política internacional do Brasil. Nesta segunda vertente, a obra vai além de "um" estudo do "caso" da informática para penetrar no próprio modo de funcionamento da diplomacia brasileira e, por que não?, do próprio Estado enquanto burocracia organizada (no caso brasileiro, com as ressalvas conhecidas ao confuso processo pós-1985 de desmantelamento do período militar e de inauguração de uma nova fase política nacional).

Precisamente por isso, o livro é talvez mais útil do ponto de vista metodológico do que propriamente enquanto racconto storico – o que de toda forma ele o faz, de maneira excelente – sobre um "banal" incidente diplomático que figurará como parágrafo marginal nos livros de história das relações diplomáticas do Brasil (e sequer entrará nos records da história diplomática do império). Como evidencia o Embaixador Rubens Ricupero na apresentação da contracapa, Tullo Vigevani ilumina as causas internas e externas do caso exemplar da informática e demonstra a "dificuldade de consolidar uma política num contexto internacional conturbado, quando as bases de sustentação dessa política vão se debilitando, sem surgir qualquer outra alternativa". No caso em espécie, a conceituação de "política" acima mencionada pode referir-se tanto à interna como à externa, já que o Brasil vivia então um período excepcional de transição entre o velho modelo substitutivo de desenvolvimento industrial e tecnológico e um novo, ainda não totalmente configurado (aspecto híbrido representado precisamente pela política nacional de informática), entre um Estado dirigista herdado do recente passado militar e um novo Estado (neo-populista?, social-democrático?, pretensamente reformista?, modestamente amorfo?), entre uma política externa razoavelmente consensual e inovativamente catalogada até então (pragmatismo responsável, diplomacia ecumênica) e uma fase de incertezas na forma e na substância da atuação internacional do País.

Como diz ainda Vigevani, "as eventuais fortunas da política externa se assemelham em grande medida às sortes da política em geral", concluindo, de forma lúcida, que a "exigüidade dos espaços democráticos institucionais [para a discussão ampla de problemas relevantes de política interna e externa como o da informática] talvez seja uma das razões da dificuldade em definir estratégias, partindo de um reconhecimento bem fundamentado das relações de poder efetivamente existente". Essa dificuldade, diz ainda nosso autor, "foi claramente detectada na reconstrução histórica do contencioso". Nesse sentido, o contencioso informático é exemplar, uma vez que ele evidencia a falta, "na sociedade e no Estado brasileiros, de um acompanhamento sistemático das relações internacionais".

O livro de Tullo Vigevani vem precisamente suprir uma dessas lacunas, ao contribuir significativamente para uma discussão fundamentada das questões nele enfocadas nos meios acadêmicos, empresariais e governamentais. Como tal, ele deveria ser adotado como leitura "obrigatória" no ensino de história diplomática, de política exterior ou de relações internacionais nos cenáculos universitários e na própria academia diplomática oficial. Sua contribuição para o estudo "prático" dessas disciplinas, assim como para uma teoria, vera e própria, das "relações internacionais do Brasil", é tanto mais relevante que a análise do caso informático é enfeixado e precedido por cinco capítulos dedicados ao exame e discussão das teorias históricas e políticas sobre relações internacionais contemporâneas. É aqui, entre outras passagens, onde Tullo Vigevani revela o melhor de seu "renascentismo" intelectual, discutindo desde Hobbes, Rousseau e Kant até Morgenthau, Aron, Kehoane, Rosecrance, Gilpin e Kennedy. Um livro para ser não apenas lido e anotado, mas saboreado e desfrutado com prazer por todos aqueles que se interessam por política externa e relações internacionais e por políticas públicas em geral.

A excelente obra de Marcelo Dias Varella, jovem pesquisador em Direito da Universidade de Viçosa, atualmente fazendo mestrado em Relações Internacionais em Santa Catarina, traça um panorama completo da proteção à propriedade intelectual nos setores de ponta da inventividade humana – biotecnologia, químico-farmacêutica e software – e insere o sistema de proteção à tecnologia patentária do Brasil no quadro internacional. O livro está dividido em quatro partes bem caracterizadas: uma introdução histórico-filosófica sobre a proteção à tecnologia proprietária e a evolução do sistema no Brasil, o patenteamento de processos e produtos da biotecnologia (inclusive os direitos do melhorista de cultivares e a questão dos microorganismos), uma terceira parte sobre produtos e processos da indústria farmacêutica e, finalmente a proteção intelectual de softwares; completam o volume três anexos sobre a legislação aplicável nos setores de biotecnologia e de informática e a convenção sobre diversidade biológica, ratificada pelo Brasil em 1995. A simples menção dessa cobertura temática diversificada numa área tão complexa como a propriedade intelectual de novas tecnologias dá uma idéia da riqueza do empreendimento de Varella e de sua pertinência política e econômica para um debate de alto nível sobre esses temas no Brasil, numa área ainda sujeita a preocupações alarmistas da opinião pública (com a chamada "manipulação dos seres vivos", por exemplo) ou a impulsos românticos, muitas vezes irracionais econômica e socialmente, de ecologistas e "amigos" muito pouco científicos da Natureza.

Muito embora grande parte da discussão levada a cabo na obra também se refira ao contexto internacional e às pressões suportadas pelo Brasil de meados dos anos 80 a princípios dos 90, deve-se ler esse precioso livro pelos seus méritos próprios e não como uma espécie de suporte intelectual a um combate "antiimperialista" ou de resistência aos interesses "oligopólicos" dos grandes conglomerados químico-farmacêuticos do Primeiro Mundo. A principal virtude do livro é, assim, dar um esteio intelectual e doutrinário, para não dizer científico, a uma correta compreensão da problemática social e econômica e do impacto tecnológico e propriamente político da proteção proprietária nos setores emergentes, permitindo ademais uma informação de boa qualidade sobre a natureza jurídico-econômica da nova legislação que foi introduzida recentemente no Brasil nesses campos (o Código da Propriedade Industrial de 1996, a lei de cultivares recém adotada e os debates continuados sobre a proteção de softwares).

Como diz o próprio autor, os setores selecionados para análise, biotecnologia, indústria farmacêutica e informática, são os que "constituem células fundamentais do tecido econômico, político e social e (...) qualquer transformação por que passem, provocarão profundas modificações na própria sociedade". Ele procurou, assim, abordar os pontos "que geraram maiores dúvidas e controvérsias, tanto no Brasil, como em âmbito internacional", esperando com isso "desmitificar tão propalado tema, que tem importante significado para o desenvolvimento nacional". Deve-se reconhecer que Varella cumpriu inteiramente o prometido em sua introdução e seu livro pode desde já ser considerado como único no gênero no Brasil, não apenas porque escapa dos modelos no gênero (os habituais "comentários à lei brasileira de propriedade intelectual"), como também porque combina a análise desses diversos temas da tecnologia proprietária em setores emergentes com a precisão do jurista e a base técnica do cientista especializado.

Com efeito, a obra em nada se parece aos áridos comentários dos advogados especialistas em propriedade intelectual (que frequentemente nada mais fazem senão a exegese para o leigo do "juridiquês" inscrito nos textos legais), preferindo Varella discutir exaustivamente o contexto histórico-político e o quadro econômico-internacional no qual foi elaborado o sistema legal da propriedade intelectual, nos planos nacional e multilateral. O grande público brasileiro, geralmente dominado pelas informações jornalísticas sobre a "riqueza biológica" da floresta amazônica ou por um certo confusionismo "progressista" entre patenteamento farmacêutico e "soberania nacional", não tem idéia da complexidade do debate internacional nessas áreas, do intenso trabalho dos acadêmicos e peritos de organizações intergovernamentais e das acirradas negociações diplomáticas em foros como a Organização Mundial da Propriedade Intelectual e o GATT-OMC.

O texto de Varella é meridianamente claro, tanto do ponto de vista técnico, como político-jurídico. Na primeira seção substantiva, por exemplo, ele se propõe "expor como se realiza a proteção intelectual de seres vivos, em destaque para plantas e organismos. Também objetivamos traçar os principais impactos das modalidades de proteção sobre o cenário econômico do desenvolvimento de novas pesquisas, sobre o meio ambiente e sobre a sociedade como um todo. No entanto, não poderíamos cumprir esta tarefa sem apresentar ao leitor os elementos necessários para a compreensão da realidade internacional da Biotecnologia". Esse mesmo método simples, objetivo e completo de introdução à discussão dos problemas da área se repete em cada uma das partes sobre os demais setores selecionados, como forma de introduzir sua contribuição verdadeiramente original: uma discussão cerrada das modalidades jurídicas das formas de proteção intelectual sobre plantas, fármacos e programas de computador, terminando com a descrição da legislação em vigor no Brasil e mesmo aquela que ainda estava em elaboração no momento da redação do texto (lei de cultivares, por exemplo).

Trata-se, sem dúvida alguma, da melhor introdução disponível no Brasil sobre os desafios atuais e futuros à sua inserção soberana no processo de globalização econômica, mais do que nunca dominado pela excelência da pesquisa e desenvolvimento nos setores emergentes. O cenário focalizado por Varella é ainda aquele no qual o Brasil procurava resistir – no GATT, na OMPI, no plano bilateral – às tendências cada vez mais restritivas de apropriação proprietária no campo das novas tecnologias: essa fase histórica correspondeu ao período inicial da Rodada Uruguai, marcado pela resistência defensiva do Brasil e da Índia às demandas "protecionistas" das grandes empresas multinacionais, quando paralelamente os Estados Unidos adotavam ilegalmente sanções unilaterais e retaliações econômico-comerciais contra o Brasil por sua atitude intransigente nessas áreas (recusa do patenteamento farmacêutico e biotecnológico, delonga na adoção de uma legislação sobre o software, discriminação nacionalista na área da informática, política industrial de reserva de mercado etc). Em 1990, afirma o autor, "o governo brasileiro cedeu e colocou como prioridade a formação de uma nova legislação tocante à propriedade intelectual. Nesta nova norma, pretendia-se abranger principalmente os reclames da indústria farmacêutica internacional e da indústria biotecnológica, que teve forte ascensão nos últimos anos".

Pode-se concordar basicamente com esse tipo de interpretação, muito embora devam ser ainda considerados certos aspectos atinentes à própria inserção econômica internacional do Brasil e sua capacitação tecnológica nacional. Tem-se hoje como assente, por exemplo, que os anos (ou décadas) de não patenteamento farmacêutico ou de reserva de mercado da informática não foram especialmente beneficiosos em termos de acumulação de know-how ou de grandes investimentos em P&D laboratorial e industrial em química fina e em sistemas informáticos (hard e soft). O País formou, por certo, muitos engenheiros especializados em "tecnologia da informação", mas nunca conseguiu ter uma fábrica de circuitos integrados, da mesma forma como ele multiplicou fábricas de vitaminas e de remédios genéricos, copiando muitos produtos não protegidos (et pour cause), sem ter logrado desenvolver, por razões compreensíveis, tecnologia própria em processos farmacêuticos. Um militante da causa nacionalista certamente continua se posicionando contra o patenteamento farmacêutico, mas a postura dos pesquisadore acadêmicos é provavelmente mais matizada, não sendo de surpreender que uma maioria deles se coloque resolutamente a favor da proteção patentária (inclusive por óbvios motivos de apropriação de "rendas monopólicas").

O País como um todo, por sua vez, precisa fazer uma espécie de trade-off entre a proteção à tecnologia proprietária embutida numa legislação mais severa – e o pagamento de royalties que daí decorre – e a atração de novos investimentos, praticamente inevitáveis num país de grande mercado como é o Brasil. Sabe-se que a indústria farmacêutica é particularmente sensível à variável do patenteamento, em todos os países e circunstâncias econômicas, mas as decisões empresariais de investimento são mais adotadas por considerações típicas de mercado (dimensão, controle de preços, compras governamentais) do que especificamente pela disponibilidade da patente. Ainda assim, o quadro jurídico da proteção patentária é ele mesmo indutor de novos investimentos (sobretudo intelectuais) nos setores emergentes, podendo aqui assistir-se ao rápido desenvolvimento de novas indústrias em áreas promissoras (isto é, rentáveis) do conhecimento, inclusive para jovens pesquisadores ou "venture" capitalistas nacionais.

O livro de Marcelo Dias Varella vem contribuir, como o de Tullo Vigevani, para a "internalização" de relevantes questões internacionais – que constituem também questões centrais de nossa política nacional nas áreas industrial e tecnológica – e para a discussão bem informada, por parte do público interessado, de problemas cruciais da inserção econômica externa e das relações internacionais do Brasil. Que eles possam figurar sem demora nas listas de leituras obrigatórias dos cursos especializados e nas bibliografias de todos os estudiosos dos temas aqui discutidos.

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RBPI, hora da saudade (3): meu artigo sobre temas economicos no nro. especial de 40 anos (1998)

Transcrevo abaixo meu artigo de resenha dos materiais de caráter econômico publicados na RBPI, de 1958 até 1997. Creio que serve como guia para a análise das relações econômicas internacionais do Brasil nesse período.

Revista Brasileira de Política Internacional
Print version ISSN 0034-7329
Rev. bras. polít. int. vol.41 no.spe Brasília 1998
doi: 10.1590/S0034-73291998000300006

ARTIGOS DE RESENHA
Economia internacional e desenvolvimento econômico: a RBPI na vanguarda do pensamento brasileiro
Paulo Roberto de Almeida

Editor Adjunto da RBPI

A despeito do foco primordial inscrito em seu título, que poderia supostamente restringi-la aos temas vinculados à politologia acadêmica e à diplomacia profissional, a Revista Brasileira de Política Internacional tratou intensamente, durante toda a sua existência, de questões econômicas, com forte ênfase, como seria óbvio, nos problemas de economia internacional em geral, dando ainda grande atenção — como também seria natural, em razão de um certo "determinismo" geográfico — aos diversos aspectos vinculados aos processos de desenvolvimento econômico e tecnológico do Brasil, em especial em sua interação com discussões e negociações internacionais em curso nos foros econômicos multilaterais e regionais.

Essa preocupação transparece, aliás, desde seu número inaugural, em março de 1958, no qual o jurista e político Hermes Lima fazia uma apresentação da Conferência Econômica Interamericana, realizada em agosto e setembro de 1957 em Buenos Aires, enquanto a seção de documentos trazia os textos das resoluções aprovadas. Ela continuou de forma reiterada e persistente durante toda a sua existência, no Rio de Janeiro e em Brasília, como se pode comprovar em seu número 1997/2, publicado quando da preparação deste volume comemorativo, pois que seu Editor, Amado Luiz Cervo, comparece com um artigo sobre a experiência histórica da política de comércio exterior e o desenvolvimento brasileiro, ao passo que este autor, Editor-Adjunto da RBPI, apresenta um ensaio, também de caráter histórico, sobre a evolução de longo prazo do multilateralismo econômico e o envolvimento internacional do Brasil, entre 1815 e 1997.

Tal constância é reveladora não só da importância que os temas econômicos sempre assumiram na definição da política editorial da revista, voltada precipuamente para a inserção internacional do Brasil, vale dizer de sua incorporação à economia mundial e de seu papel protagônico nos processos de integração regional, como também confirma uma característica básica da política exterior do Brasil desde o início da era Vargas, ou pelo menos nos últimos 40 ou 50 anos, que é também o horizonte histórico de existência da revista: a de que esse política se apresenta, fundamentalmente, como uma diplomacia do desenvolvimento e é, indiscutivelmente, na busca incessante do desenvolvimento econômico e social que pode e deve ser encontrada a chave mestra da atuação da política externa governamental durante todo esse largo período.

A RBPI pode, assim, orgulhar-se de ter não apenas refletido esse itinerário "existencial" da moderna diplomacia brasileira — através de seus inúmeros artigos informativos e analíticos sobre questões diversas relativas à economia internacional e ao desenvolvimento e da publicação dos mais relevantes documentos divulgados nessas áreas — como também, e isto deve ser ressaltado, contribuído de maneira substantiva para os esforços de reflexão e de análise em torno dos caminhos abertos ao desenvolvimento brasileiro, tal como visto em ensaios, comentários e notas críticas elaborados por diplomatas e economistas profissionais que foram seus colaboradores ao longo desses 40 anos. Assim, não há um só grande tema relativo à inserção externa e ao desenvolvimento econômico do Brasil — comércio, finanças, investimentos, modernização tecnológica, política nuclear, mar territorial, recursos naturais, produtos de base, industrialização, informática, patentes, integração regional, cooperação técnica, recursos humanos e, last but not least, globalização — que não tenha merecido não só um, mas vários artigos, resenhas, notas, documentos, todos voltados para a informação de qualidade e a análise crítica de sua importância para o Brasil e sua política exterior.

Uma consulta, mesmo perfunctória, aos sumários compilados no final deste volume confirma a afirmação peremptória que acabo de fazer. Os comentários alinhados a seguir visam tão somente destacar contribuições de relevo em algumas rubricas de relativo impacto para a inserção econômica internacional do Brasil.

Cooperação econômica interamericana
O número inaugural contém, como se disse, pequena nota de Hermes Lima com comentários à conferência econômica de Buenos Aires, em 1957. Os países latino-americanos vinham insistindo em sua realização desde o final dos anos 40, iludidos com a idéia de que os Estados Unidos poderiam reproduzir em seu favor um segundo "Plano Marshall". Mas, já em Bogotá, em 1948, o próprio Marshall recusava tal iniciativa, insistindo por medidas que abrissem as possibilidades de investimentos diretos da parte de capitais privados, ao passo que os latino-americanos manifestavam sua preferência por capitais públicos. As divergências continuaram nos dez anos seguintes e, em Buenos Aires, não se logrou aprovar uma "Carta Econômica Americana", mas tão simplesmente uma "Declaração", com vagas declarações de intenção e algumas resoluções tendentes a incrementar as atividades de cooperação técnica no âmbito da OEA.

Os resultados foram, como se sabe, mitigados, mas uma explosão de descontentamento e de manifestações populares na região contra o "imperialismo yankee", representado na figura do vice de Eisenhower, Richard Nixon, deu a Juscelino Kubitscheck a oportunidade de propor um vasto programa de cooperação econômica interamericana, como forma de promover o desenvolvimento latino-americano e aproximar ainda mais as duas partes desiguais do hemisfério. Tratou-se, como se sabe, da Operação Pan-Americana, a primeira proposta brasileira, no campo da política externa, verdadeiramente multilateralista. Recebida com frieza pelos Estados Unidos, que esperavam ser consultados antes de o Governo brasileiro enviar notas e propostas de reuniões aos demais governos, ela não chegou de fato a prosperar, mas deu origem a outras iniciativas de caráter político ou econômico, como mais adiante a "Aliança para o Progresso" e, em caráter mais imediato, o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

O processo, bastante difícil, de criação do BID está enfocado em artigo de Cleantho Leite no nº 6 (junho de 1959) da RBPI, no qual aquele que seria um dos futuros diretores da instituição financeira interamericana traça o quadro de negociações desde seus primórdios — de fato desde a Primeira Conferência Internacional Americana, de 1889-1890 — até os momentos decisivos que acompanharam o desenrolar da própria OPA, caracterizada pelo Governo brasileiro não como "uma ação delimitada no tempo, com objetivos a serem atingidos no curto prazo, mas uma reorientação da política continental", não "um simples programa, mas toda uma política". A RBPI sempre realizou extensa cobertura das atividades do BID, criado na mesma época em que se afirmava a revista e onde trabalhou Cleantho de Paiva Leite, que seria, durante longos anos à frente, o diretor do IBRI e o responsável editorial — e financiador generoso — desta revista, enquanto ela foi publicada no Rio de Janeiro.

Curiosamente, no início, a postura do Governo brasileiro a esse projeto basicamente impulsionado pelo Chile era, como informa Cleantho, então diretor do BNDE, "de excessiva cautela e de frio realismo". Embora vários círculos governamentais fossem simpáticos à idéia — com exceção do ortodoxo Ministro da Fazenda Eugenio Gudin, em 1955 —, o Brasil via poucos motivos de otimismo para a concretização da idéia, uma vez que o país que seria seu principal acionista se colocava frontalmente contra a iniciativa, continuando os Estados Unidos a alegar que os fluxos de capitais privados e os recursos oficiais do BIRD e do Eximbank poderiam prover a região do financiamento necessário ao seu desenvolvimento. A incorporação do projeto no âmbito da OPA, en julho de 1958, obrigou no entanto a uma tomada de posição oficial por parte de todos os governos da região, o que conduziu, no devido momento, a uma redefinição radical da postura norte-americana. Depois de inúmeras reuniões, certamente muito calor e alguma luz, o BID emerge ao cabo de uma conferência de três meses em Washington, no primeiro semestre de 1959.

Cleantho, que foi o chefe da delegação brasileira à conferência constitutiva, concluía seu artigo dizendo que "Depois de tantos anos de esperanças frustradas, os países da América Latina iniciarão uma grande experiência no campo da finança internacional". A ação da nova instituição não permitiu, de fato, mudar o cenário socio-econômico da região, tanto quanto o desejavam os homens de governo e seus técnicos, mas não se pode tampouco dizer que a história operacional do banco tenha sido uma coleção de insucessos, muito pelo contrário. Mas, no momento de sua criação o clima era efetivamente de muitas esperanças, sobretudo numa outra vertente da cooperação que também recebeu toda a atenção da RBPI, o da integração regional.

Quanto à "Aliança para o Progresso", ela foi discutida na conferência econômica interamericana realizada no Uruguai, em agosto de 1961, da qual resultou uma "Carta de Punta del Este", assinada por todos os países membros da OEA, à exceção de Cuba, ali presente na pessoa de Ernesto Che Guevara, então presidente do Banco Nacional de Cuba. Como informa a resenha publicada no nº 15 da RBPI (setembro de 1961), o Governo brasileiro atuou no sentido de "conseguir uma reaproximação entre os Estados Unidos (...) e a República do Cuba". A reunião promoveu igualmente a idéia da integração econômica na região, da qual a zona de livre comércio recém proclamada seria o primeiro passo.

Integração econômica, multilateral e sub-regional
São inúmeras as contribuições publicadas na revista sobre o tema da integração. Já no segundo número (junho de 1958) aparecia um artigo pioneiro de Garrido Torres sobre as etapas iniciais do processo de integração na América Latina, significativamente intitulado "Por que um mercado regional latino-americano?". Não se tratava apenas de informação: era, por assim dizer, a própria História in the making, o que sempre distinguiu sobremaneira esta revista. O tema da integração foi, aliás, um dos mais recorrentes em toda a sua existência, cumprindo ela o papel de registrar e analisar os processos em curso de intensificação da cooperação econômica regional. Depois da criação da ALALC — devidamente documentada pela RBPI (vide texto do Tratado de Montevidéu no nº 10, junho de 1960) —, diplomatas com envolvimento direto nas negociações, como Henrique Valle e Mozart Gurgel Valente, publicam análises críticas sobre os primeiros passos da ALALC, sobre as características, condições e limites do processo de integração regional, bem como sobre as próprias relações internacionais da América Latina.

O primeiro, em artigo intitulado "O Brasil e a ALALC" (nº 21, março de 1963), consoante o conhecido pragmatismo do Brasil, já alertava realisticamente para uma redução apenas gradual das tarifas alfandegárias intra-zona, mas enfatizava a urgente necessidade de coordenação política de molde a reforçar o poder de barganha da América Latina no cenário internacional. O mesmo diplomata, então Diretor Executivo do IBRI — e nessa qualidade editor da RBPI — retomava o assunto em 1963, no artigo "ALALC: realizações e perspectivas" (nº 23), registrando as dificuldades do processo e apoiando a idéia de criação de um mecanismo de consulta entre os chanceleres, com vistas a dar respaldo política à entidade. Um dos principais complicadores à unificação do espaço econômico no continente era obviamente o fato de se ter adotado uma perspectiva uniformemente multilateralista, englobando países de níveis diferentes de desenvolvimento num mesmo processo de liberalização. Daí a razão de o pragmático Brasil e os demais países do Cone Sul terem manifestado interesse, no início, por uma arquitetura mais restrita geograficamente, baseada num esquema de simples preferências tarifárias, o que, no entanto (antes da aceitação em 1979 da cláusula de habilitação), não era permitido pelo GATT). Essa dificuldade era no entanto menos importante do que as características estruturais das economias latino-americanas — sua histórica excentricidade, por exemplo — ou do que dificuldades mais prosaicas, como a ausência quase completa de ligações físicas entre os países ou a falta de financiamento às exportações locais, que tinham de ser saldadas em dólar e a curto prazo.

O próprio ministro da Fazenda, em 1964, Francisco de San Tiago Dantas empenhou-se por obter, junto ao BID, uma linha de crédito para financiar as exportações intra-zona, como ele relatou em palestra de janeiro de 1964 a empresários paulistas, devidamente registrada na RBPI: "A ALALC e o neo-subdesenvolvimento" (nº 27, setembro 1964). O problema só seria parcialmente resolvido, como se sabe, mediante o estabelecimento de um sistema de clearing regional, ao qual tinha se oposto o FMI, por motivos de defesa da conversibilidade plena e de multilateralização dos pagamentos, mas cujos argumentos foram derrotados por Raul Prebisch, que inspirou-se na experiência da União Européia de Pagamentos. De fato, com o funcionamento do CCR, a partir de 1965 — que, instituindo um mecanismo de créditos recíprocos, permitiu aos países uma poupança substancial de seus parcos recursos em divisas —, o comércio intrarregional começa a apresentar cifras crescentes de valor e volume, até que as crises do petróleo nos anos 70 e, sobretudo, a da dívida externa, na década seguinte, provocam verdadeira hecatombe nas cifras de intercâmbio recíproco.

A ALALC, sem ter logrado alcançar o objetivo do livre comércio no prazo inicialmente fixado (1972), foi substituída, depois de nova prorrogação, pela ALADI, em 1980. A RBPI continuou a cobrir os percalços desse processo, que foi, de certa forma, subregionalizado pelas iniciativas de grupos ou parcerias estratégicas desenhadas no continente ao longo do período. O primeiro exemplo foi o Grupo Andino — hoje Comunidade Andina —, constituído em 1969 como subgrupo dentro da ALALC; o segundo, já em meados da década de 80, foi obviamente o processo Brasil-Argentina, que se desdobrou, no início dos anos 90, no projeto Mercosul, incorporando ainda o Paraguai e o Uruguai.

Uma reflexão sobre as dificuldades — distância entre o discurso e a prática — do processo multilateral regional de integração foi oferecida em artigo do primeiro titular da Secretaria Executiva da ALALC, Romulo de Almeida (XXX, 117-118, 1987/1), no qual ele reconhece que a viabilização da integração dependeria de um consenso em torno de regras de liberalização comercial de aplicação automática. A automaticidade do desarme tarifário foi assegurada no processo Brasil-Argentina, cujas primeiras etapas foram enfocadas em artigo (no mesmo número) de Hélio Jaguaribe, pioneiro dos estudos de integração e ativo promotor do processo bilateral.

A perspectiva analítica, nesse e em vários outros trabalhos sobre a integração regional, é mais político-diplomática — como se espera de um veículo com esse nome — do que propriamente econômica, mas esta particularidade sempre foi uma das "vantagens comparativas" da RBPI: pensar politicamente os grandes temas do desenvolvimento econômico brasileiro. Mais adiante, em 1991 e 1992, o Emb. Rubens Barbosa, então representante do Brasil na ALADI e logo em seguida encarregado dos temas econômicos e de integração no Itamaraty, publicou artigos sobre a experiência da ALADI e os primeiros momentos do Mercosul. Em seu período de Brasília, igualmente, a revista continuou a divulgar inúmeros estudos e análises sobre os processos de integração na região, inclusive a partir de uma perspectiva sindical, como evidenciado nos sumários dos números recentes.

Finalmente, a revista também refletiu as diversas iniciativas tomadas no âmbito regional para impulsar os esforços de coordenação e de cooperação política e econômica entre os países da América Latina. Sem pretender a um levantamento completo desse material — uma vez que ele compreenderia os diferentes esquemas integracionistas e as organizações hemisféricas, regionais e subregionais, vale mencionar a matéria de João Paulo de Almeida Magalhães, uma vez que ela trata de um dos foros de coordenação que se considerou, em seu início, que ele poderia desempenhar, para a América Latina, o mesmo papel que, para os países desenvolvidos, desempenha a OCDE: "O SELA e a cooperação entre os países latino-americanos" (XXVIII, 111-112, 1985/2).

Capitais e investimentos estrangeiros: tradicionais obsessões brasileiras
Uma das grandes questões do relacionamento econômico externo do Brasil, ainda antes do início da publicação da RBPI, era o tratamento a ser concedido aos fluxos de capital estrangeiro em geral e o regime aplicado aos investimentos diretos em particular. Essas questões sempre foram motivo de fortes controvérsias na opinião pública em geral e no Parlamento em especial, sobretudo depois que, em seu segundo governo, Vargas acusou demagogicamente o capital estrangeiro de "provocar uma sangria" nas contas da Nação, sem sequer considerar a parte de responsabilidade da taxa cambial irrealista ou aspectos defasados da legislação pertinente.

A presença do capital estrangeiro nos anos 50 e começo dos 60 não era, provavelmente, mais importante do que atualmente, mas ela era mais visível, talvez, depois de décadas de fechamento externo por causa da crise do entre-guerras e da própria guerra mundial. Até a criação das grandes empresas estatais em áreas consideradas estratégicas, muitos serviços públicos, em especial na oferta de energia e nas comunicações, por exemplo, eram oferecidos por empresas estrangeiras, situação que vinha praticamente desde o Império. Algumas delas, como o "polvo" da Light ou as telefônicas, detinham um verdadeiro monopólio sobre a oferta, auferindo desse fato altos lucros decorrentes dessa exploração em condições privilegiadas, como alegavam os nacionalistas.

A situação de desconforto e mesmo de tensão agravou-se em 1959, quando da nacionalização — ou "estadualização" — da concessionária de energia elétrica Bond and Share, pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Esse movimento foi seguido pela expropriação e estatização de outras empresas estrangeiras em vários estados — como a Companhia Telefônica "Brasileira", por exemplo — e a emergência subsequente de um contencioso com os Estados Unidos a propósito dos valores de indenização. A RBPI não esteve ausente do debate sobre as condições da nacionalização e o pagamento de compensações aos proprietários estrangeiros, como se pode comprovar pelo artigo de Barbosa Lima Sobrinho, "O Brasil e a encampação de concessionárias estrangeiras" (V, nº 18, 1962), que tomava resolutamente partido por um escrutínio detalhado de todas as operações e contabilidade dessas concessionárias, antes de fixar-se seu preço de aquisição pelo Estado. Esse debate foi intenso, atravessando mesmo a mudança de regime em março de 1964: em 1965, a revista dedica dois números inteiros (30 e 31/32) à compra das concessionárias estrangeiras — entre elas a American and Foreign Power — pelo Governo brasileiro, publicando os relatórios das comissões parlamentares de inquérito, as notas trocadas entre os governos dos Estados Unidos e do Brasil, inúmeros discursos de ministros (antes e depois do golpe militar) e pronunciamentos de parlamentares.

Logo adiante, a questão do capital estrangeiro volta novamente ao primeiro plano da atualidade política, quando se discute, precisamente, um acordo bilateral de garantia de investimentos — ou seja, de proteção contra expropriações abusivas — entre o Brasil e os Estados Unidos: a RBPI publica novamente, em 1966, dois números completos (33/34 e 35/36) sobre as negociações, o teor do acordo e sua difícil aprovação, depois de "ululantes" debates parlamentares. O tema continuaria sensível, pois já em 1977, em seu vigésimo aniversário, a RBPI dedicaria novo número especial (77/80) à CPI das multinacionais e do capital estrangeiro, que agitou o Congresso em plena "distensão política" do Governo Geisel, sendo talvez um dos motivos indiretos de seu fechamento e da cassação de parlamentares da oposição, em abril daquele ano.

No período recente, a palavra chave vinculada aos fluxos de capitais estrangeiros — e que continua a despertar reações diversas na comunidade acadêmica brasileira — é a da "globalização", sobretudo em sua vertente financeira. A RBPI também vem dando a essa questão a devida atenção, como atestam diversos artigos já publicados na sua série de Brasília, assim como ela sempre cobriu com razoável intensidade, no passado, os principais eventos e processos nessa área, como comprovado na próxima seção deste artigo de resenha.

Finanças, dívida externa e foros de coordenação econômica
Com efeito, outro aspecto intimamente ligado ao dos capitais de risco, é o do fluxo dos capitais de empréstimo — e sua contrapartida sob a forma de amortizações e juros —, que sempre integrou o planejamento das contas públicas no Brasil, tanto por necessidades orçamentárias, como para fins de investimento produtivo. Foi tradicional, durante todo o Império, a dependência da — isto é, o endividamento junto à — casa bancária Rothschild, agente oficial do Tesouro brasileiro na Europa, então o world's banker. Os capitais privados passaram a ser complementados, no século XX, por créditos concedidos por agências públicas — como o Eximbank americano — e, depois da Segunda Guerra, por instituições financeiras multilaterais.

Esses fluxos financeiros de "cooperação ao desenvolvimento", alguns deles verdadeiramente concessionais, também atendiam interesses dos países doadores, sendo objeto de programas bilaterais ou multilaterais de "assistência técnica", como revelado em interessante artigo de Georges Landau: "Política internacional e assistência técnica" (II, 6, junho de 1959). A descolonização, em 1960, coincidiu, não por acaso, com a instituição de um braço altamente concessional do Banco Mundial, a Associação Internacional de Desenvolvimento (ver artigo de Cleantho Leite, III, 10, junho de 1960).

O Brasil, como a maioria dos países em desenvolvimento, complementava sua escassa poupança interna com recursos externos, a ponto de tornar-se inadimplente em algumas raras ocasiões. Pode-se mesmo argumentar que, tendo solicitado a renegociação de créditos bilaterais na segunda metade dos anos 50, o País está na origem da constituição do Clube de Paris, foro informal dos governos credores para a renegociação de créditos oficiais, que começou a funcionar de maneira efetiva em princípios dos anos 60. Também em Paris, nessa mesma ocasião, passou a funcionar, em estreita vinculação com a AID, o Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento, foro de coordenação dos países doadores, logo colocado no âmbito da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE), que acabava de ser reorganizada a partir da antiga OECE (exclusivamente européia). Dois dos instrumentos essenciais exigidos como requisitos de acesso a novos países candidatos — normalmente economias capitalistas desenvolvidas, mas algumas nem tanto, como Portugal e Turquia — eram, ademais da plena adesão ao próprio Convênio constitutivo — cujo texto em português foi publicado no nº 15, de setembro de 1961 —, os Códigos de liberalização das operações invisíveis (transações correntes) e de movimentos de capitais, várias vezes aperfeiçoados desde então, sendo que este último constitui a base do Acordo Multilateral sobre Investimentos (MAI/OCDE), atualmente em processo de negociação no foro parisiense com a participação do Brasil.

A OCDE era, então, a mais jovem das organizações multilaterais criadas no pós-guerra para administrar, de forma consensual, a nova ordem econômica caracterizada pela interdependência mundial e pela afirmação do multilateralismo, processo iniciado em Bretton Woods em 1944. O tripé organizacional concebido na pequena cidade do New Hampshire deveria contar, ademais das entidades dedicadas aos problemas monetário e financeiro — FMI e BIRD, respectivamente —, uma organização voltada especificamente para o comércio, efetivamente criada na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego (1948), mas que jamais viu a luz do dia por insuficiência de ratificações (e também por inúmeras contradições internas da Carta de Havana). Em seu lugar, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), de 1947, teve de se desempenhar sozinho, continuando "provisoriamente" em vigor até sua substituição pelo GATT-94 e sua incorporação na nova Organização Mundial do Comércio que começou a funcionar em janeiro de 1995.

Todas essas organizações estão voltadas para a liberalização das trocas e dos pagamentos internacionais. Mas, o fato é que o mundo do século XIX era bem mais liberal do que o do século XX, como encarregou-se de lembrar o Professor José Maria Gouveia Vieira em artigo sobre "A Economia Internacional no século XX" (VI, 22, junho de 1963). "Acaso somos menos inclinados", perguntava ele ao constatar como tinham sido suprimidas as liberdades das transações comerciais, dos capitais e dos investimentos, "a expandir as relações comerciais internacionais que nossos antepassados? Cumpre que voltemos às práticas do passado? Ou os controles devem ser mantidos e até mesmo aprimorados?" De fato esses controles permaneceram em vigor em algumas economias capitalistas avançadas, na maior parte dos países em desenvolvimento e em todas as economias socialistas até que as grandes transformações econômicas dos anos 80 e princípios dos 90 liquidaram praticamente com estas últimas e começaram a incorporar vários dos segundos à economia de mercado "interdependente" dominada pelas economias avançadas. Trata-se de uma volta ao laissez-faire do século XIX, de um retorno ao velho mundo de desigualdades estruturais "naturais"?

Uma consulta aos sumários da RBPI demonstra como ela soube acompanhar essa evolução internacional, mesmo em aspectos ignorados pela maior parte dos pesquisadores atuais. Ainda no terreno financeiro, por exemplo, poucos se lembrarão, hoje, que o Rio de Janeiro abrigou, em 1967, uma reunião conjunta das instituições de Bretton Woods (RBPI X, 39/40, setembro/dezembro de 1967), quando teve início o processo de criação de um novo instrumento de liquidez internacional, os Direitos Especiais de Saque do FMI, que ainda hoje permanece como um padrão de referência na gestão dos desequilíbrios temporários de balanças de pagamentos (cuja composição deverá no entanto ser revista em função da criação do euro). O mundo vivia então — a despeito da criação dos "General Arrangements to Borrow" em 1961, com a participação de dez países — uma fase de inquietações quanto ao baixo nível das reservas internacionais.

Ao abrir as reuniões diria o Presidente Costa e Silva: "Conquanto houvesse o sistema monetário internacional funcionado com grande eficiência no pós-guerra, existe hoje a convicção de haver chegado o instante em que o nível de reservas internacionais não mais pode ser o resultado imprevisto das contingências da produção do ouro, tampouco de deliberações fortuitas ou de medidas aleatórias, mas deve ser objeto de decisão consciente, tal como ocorrerá no curso desta Reunião, transcorridos 23 anos dos trabalhos iniciados em Bretton Woods". O Diretor-Gerente do FMI, Pierre-Paul Schweitzer, confirmou a introdução do que seria a primeira emenda ao Convênio constitutivo do Fundo, autorizando a criação dos DES, proporcionais às cotas dos países membros, enquanto que o Ministro brasileiro da Fazenda, Delfim Netto, saudou a introdução dos novos ativos de reserva, mas reclamou uma melhoria dos processos de ajustamento dos balanços de pagamentos: ele achava que a responsabilidade pela aplicação de políticas corretivas deveria recair "tanto sobre os países deficitários quanto sobre os superavitários". Ele também sugeria que o Fundo aproveitasse a oportunidade da reforma para considerar "sua provável contribuição para apoiar os movimentos de integração econômica regional", refletindo talvez a preocupação da ALALC com o financiamento dos fluxos intrarregionais de comércio e com a sustentação dos meios de pagamentos (o que na Europa tinha sido feito, recorde-se, com o apoio financeiro norte-americano na criação da União Européia de Pagamentos, numa fase de inconversibilidade das moedas nacionais e de "penúria de dólares", aliás problemas constantes na América Latina).

Na mesma ocasião, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos confirmava que o "compromisso norte-americano de conversão do dólar em ouro, a US$35, continua firme. Isto tem sido e continuará a ser um fator central no sistema monetário". Mas ele também advertia que "o crescimento da reserva no futuro não pode repousar, como no passado, nos déficits de pagamentos dos Estados Unidos". Quatro anos depois, como se sabe, os EUA, confrontados a déficits crescentes e sem dispor da quantidade de ouro necessária para honrar o compromisso de 1944, rompiam unilateralmente o contrato de Bretton Woods e precipitavam o mundo no "não-sistema financeiro internacional", mediante o regime de paridades flutuantes que exigiu uma segunda emenda no Convênio do FMI.

Esse mesmo número duplo de setembro de 1967 trouxe — como homenagem por seu falecimento prematuro — importante artigo de caráter didático do Embaixador Otávio Dias Carneiro sobre "Estruturas econômicas nacionais e relações internacionais". Esse texto, produzido em 1958 para conferências e aulas no Instituto Rio Branco e na Escola Superior de Guerra, mantinha a maior parte de seus conceitos e análises — sobre o GATT, o FMI, o multilateralismo, a integração e o planejamento econômico — e suas conclusões — sobre a racionalidade econômica do "internacionalismo" e a justificativa "sociológica" do nacionalismo econômico e do planejamento — plenamente válidos quase dez anos depois. Dias Carneiro foi uma presença constante nos primeiros anos da RBPI, como poderá ser comprovado na próxima seção deste artigo-resenha.

Relações econômicas internacionais, produtos de base
Durante a gestão do historiador José Honório Rodrigues à frente do IBRI e da RBPI, em meados dos anos 60, foram publicados sucessivos números temáticos — experiência editorial que certamente valeria a pena repetir nesta fase de Brasília — sobre as relações econômicas internacionais em geral, em especial sobre a UNCTAD, sobre os produtos de base ou sobre a política nuclear brasileira, este tema objeto de vários artigos subsequentes em diversos números. José Honório continuou a prática de seus antecessores de convidar diplomatas economistas como Otávio Dias Carneiro — um dos primeiros "gattianos" da história do Itamaraty — a escrever extensa e intensamente sobre comércio internacional e desenvolvimento e sobre os problemas específicos dos países exportadores de produtos de base, como então se classificava o Brasil. Citem-se os seguintes artigos: "Organização econômica nacional e economia internacional" (II, 8, 1959), "O comércio internacional de produtos de base" (V, 19, 1962 e VI, 23, 1963) e "Problemas de comércio internacional de produtos de base" (VII, 25, 1964).

Ele também convidou os "unctadianos" do Itamaraty — Georges Álvares Maciel, por exemplo — a exporem nas páginas da revista seus argumentos sobre o desenvolvimentismo e estes os fizeram defendendo posições que alinhavam o Brasil com as teses desafiadoras de Raul Prebisch, que foi o primeiro Secretário-Geral daquele foro onusiano. Ademais do número especialmente dedicado à primeira "Conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento" (vide Nota liminar" de José Honório Rodrigues em VII, 27, 1964) e da intervenção do próprio Raul Prebisch nessa ocasião ("Significado da UNCTAD", VII, 29, 1965), vale a pena mencionar (e pesquisar) as seguintes matérias:

XI, 43-44, 1968: "A posição do Brasil na II UNCTAD" (MRE);
XIII, 49-50, 1970: "Política brasileira de comércio exterior", Mário Gibson Barbosa;
XIII, 51-52, 1970: "Mercado internacional de produtos de base", Ronaldo Costa;
XV, 57-58, 1972: "III UNCTAD: uma avaliação", Gilberto C. Paranhos Velloso; Discurso do Chefe interino da delegação brasileira, Emb. Georges Alvares Maciel;
XVI, 61-62, 1973: "Participação dos países em desenvolvimento no comércio internacional", Ronaldo Costa;
XVI, 63-64, 1973: "Transferência de tecnologia", Álvaro Gurgel de Alencar.

José Honório tinha atuado intensamente como "publicista" em política externa durante a fase "nacionalista" e "desenvolvimentista" do Brasil. Pouco depois do início de sua gestão na revista e no IBRI, afirmava-se em toda a sua pujança no País a "ideologia industrial", já no contexto do regime militar que, embora modificando de maneira fundamental os dados da equação institucional, retomou, sem maiores restrições "ideológicas", o ciclo desenvolvimentista inaugurado pelo nacionalismo de Vargas e continuado, com uma certa abertura externa, por Kubitschek. A RBPI, nascida em plena era de afirmação da "política externa independente", adaptou-se, tant bien que mal, às novas circunstâncias políticas, passando a publicar matérias de interesse declaradamente "nacionalista", como foi o caso, por exemplo, de inúmeros artigos em defesa da Amazônia, num momento em que — já então, como a provar que a História se repete — ela parecia ameaçada de "internacionalização" em virtude de grandes projetos de desenvolvimento territorial e de infra-estrutura física, como os propostos "grandes lagos amazônicos" de Herman Kahn e Robert Panero, do Hudson Institute. Exemplo dessa postura é o artigo de Arthur Cezar Ferreira Reis, "Porque a Amazônia deve ser brasileira" (XI, 41-42, 1968), que, com vários outros nesse número especial, faz a defesa das teses "soberanistas" brasileiras que sempre encantaram políticos, militares e diplomatas, para não dizer os militantes de esquerda de modo geral.

Uma visão prospectiva e de certa forma futurística sobre as tendências econômicas fundamentais — ou pelo menos consideradas como tais — do desenvolvimento brasileiro tampouco esteve ausente das páginas da RBPI, muito embora o jogo fosse aqui bem mais arriscado. Assim, tentando justificar, em 1974, a absoluta necessidade de implementar-se uma abrangente política nuclear brasileira — cobrindo portanto todas as etapas do ciclo atômico — Eduardo Pinto afirmava, em seu artigo "Brasil: os difíceis caminhos da energia nuclear" (XVII, nºs 65-68), que não apenas ela era a "energia do futuro", mas também que não havia alternativas a essa modalidade de geração energética, pois que "no ano 2000 todas as fontes de combustíveis fósseis [estariam] esgotadas". Mais do que simples futurologia, se tratava obviamente de uma legitimação econômica para a política nuclear conduzida pelo regime militar, cujas previsões exageradas sobre a demanda energética no Brasil sustentaram um dos mais ambiciosos programas de desenvolvimento industrial e tecnológico do ciclo nuclear de que se tem notícia no mundo.

Nos anos 70 avultam os temas do mar territorial, da política nuclear, do meio ambiente — Conferência de Estocolmo, onde se distinguiu um "diplomata-economista" dos mais respeitados, Miguel Osório —, do petróleo — vários artigos seminais de Amaury Porto de Oliveira, como por exemplo "Natureza política do preço do petróleo" (XXII, 85-88, 1979) ou, mais tarde, "A mercantilização (temporária) do mercado internacional de petróleo" (XXVIII, 111-112, 1985/2) —, ao lado de outros mais tradicionais como os produtos de base e o comércio internacional. Já nos anos 80, paralelamente aos esforços brasileiros para lograr plena autonomia na área de informática e impulsar um programa espacial, ganham preeminência os temas relativos à transferência de tecnologia, como se pode constatar nos artigos de Oscar Lorenzo Fernandes: "O desenvolvimento tecnológico do Brasil e a cooperação internacional" (XXXI, 123-124, 1988/2) e no do então chefe da área econômica do Itamaraty, Celso Amorim, "Perspectivas da cooperação internacional" (idem).

Mas, os anos 80 são também marcados, de fato dominados, pela crise da dívida externa e pelo esforço agônico em torno de uma "nova ordem econômica internacional". Encontramos na RBPI contribuições de economistas e diplomatas que deixaram sua marca e ainda hoje influenciam a política econômica externa do Brasil, como Mário Henrique Simonsen, Pedro Malan ("Sistema econômico internacional: lições da história" XXV, 97-100, 1982), Paulo Nogueira Batista ("A dívida externa dos Estados", XXIX, 113-114, 1986/1) e vários outros como Paulo Tarso Flecha de Lima e Rubens Ricupero. Este último, atual Secretário-Geral da UNCTAD, teve publicadas na revista algumas de suas reflexões elaboradas na época em que exercia o cargo de representante brasileiro junto ao GATT e demais organizações em Genebra, como por exemplo: "O Brasil e o mundo no século XXI" (XXIX, 115-116, 1986/2) e "O Brasil e o futuro do comércio internacional" (XXXI, 121-122, 1988/1).

O ciclo do Rio de Janeiro se conclui com contribuições de diplomatas ainda na ativa, como Celso Amorim abordando a difícil questão da autonomia tecnológica ("Quem tem medo de Stefan Zweig?, ou os caminhos da autonomia tecnológica", XXXV, 137-138, 1992/1) ou Rubens Antonio Barbosa em torno da integração regional e o Mercosul, ao lado de outros já aposentados, como Geraldo Holanda Cavalcanti ou Luiz Augusto Souto Maior — este ainda ativo na fase atual —, nos quais a análise político-econômica se combina com uma visão própria da diplomacia brasileira. Outros, infelizmente já desaparecidos, deixaram entretanto uma marca indelével na diplomacia econômica do Brasil, como foi o caso do Emb. Paulo Nogueira Batista, do qual pode ser selecionada, no campo econômico, uma contribuição da fase na qual ele exercia o cargo de representante brasileiro na ONU: "Mudanças estruturais e desequilíbrio na economia mundial: suas implicações na cooperação econômica internacional" (XXXII, 127-128, 1989/2).

A "economia política" do desenvolvimento brasileiro
A etapa de Brasília, finalmente, está ainda muito próxima de nós para ser julgada com isenção, inclusive porque vários dos que poderiam ser aqui apontados são seus colaboradores habituais. Seria de toda forma impossível resumir aqui toda a riqueza fatual, a densidade analítica e a importância documental, para fins de pesquisa histórica, da RBPI enquanto instrumento "veiculador" e "debatedor" das principais questões — se não todas — que interessam ao desenvolvimento do Brasil e sua inserção econômica internacional, cabendo tão somente remeter ao índice remissivo — in fine — de seus primeiros quarenta anos. Nele pode ser verificado, ainda que de forma não linear, um verdadeiro racconto storico sobre a "economia política" do desenvolvimento desde o final dos anos 50.

A seleção aqui operada, talvez pouco representativa do conjunto de temas aqui evocados ou da reflexão original conduzida nestas páginas entre 1958 e 1992, não pretende, nem sequer poderia, prestar justiça a essa diversidade e multiplicidade de contribuições de valor feitas ao longo de quatro décadas de reflexão crítica sobre os caminhos do desenvolvimento brasileiro. Que ela possa, ao menos, oferecer uma pequena amostra da importância da RBPI para a identificação e o mapeamento de suas principais tendências e problemas numa perspectiva propriamente histórica e internacional.

A economia, como diria Marx, é a chave da vida social. Ela também é um dos principais sustentáculos, em mais de um sentido, da vida exemplar da Revista Brasileira de Política Internacional. Que os leitores contemporâneos possam usufruir, como seus predecessores das últimas quatro décadas, das "vantagens comparativas" oferecidas no campo econômico pela RBPI e obtenham, agora e no futuro, significativos "ganhos de bem estar intelectual" com a consulta aos números pregressos e a leitura atenta das incontáveis páginas que encerram muito da história do desenvolvimento brasileiro.

Muitos outros veículos editoriais, novos ou velhos, permitem acompanhar, hoje em dia, o "estado da arte" em matéria de relações econômicas internacionais do Brasil, a começar por uma companheira velha de meio século como é a Conjuntura Econômica. Da mesma forma, com a capacitação institucional e projeção internacional de outras agências públicas que tratam da economia brasileira (inclusive como sua responsabilidade primária), com a extraordinária expansão da Internet e de outros meios eletrônicos de recuperação e de disseminação da informação, pode-se afirmar que as relações econômicas externas do Brasil estão atualmente muito bem mapeadas, documentadas e analisadas em um número elevado de suportes físicos, das mais diversas tendências políticas e econômicas. Pode-se afirmar, contudo, sem margem de erro, que seria impossível escrever-se a história da diplomacia econômica brasileira do último meio século sem uma consulta cuidadosa às páginas da Revista Brasileira de Política Internacional. A esperança formulada por este Editor Adjunto, é a de que, ao completar-se o primeiro centenário da revista, no ainda longínquo ano de 2058, tal tipo de afirmação continue tão verdadeira quanto hoje.

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