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domingo, 2 de fevereiro de 2014

Reflexão sobre a felicidade a partir de coisas simples... - Paulo Roberto de Almeida

Reflexão sobre a felicidade a partir de coisas simples...

Paulo Roberto de Almeida

“Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”
Cora Coralina, poeta de Goiás (1889-1985)

Tomei conhecimento tardiamente da frase acima de Cora Coralina e, quando dela me “apossei”, constatei que outros milhares de leitores, um tribo imensa de curiosos, professores e candidatos a poetas já a tinham incorporado em centenas de outras citações, provavelmente esparsas e incompletas. O Google “devolveu” 107 mil resultados para uma busca com essas palavras entre aspas, o que descontando as inúmeras repetições consolida, ainda assim, vasto repositório de citações de uma frase simples e no entanto imensamente poética e cativante.
Creio, como muitos outros antes de mim, que a felicidade pode estar justamente nesse ato de ensino-aprendizado, que de fato me parece uma dupla atividade, nos dois sentidos captados pela poeta de Goiás velho. Sempre aprendemos algo tentando ensinar alguma coisa a outras pessoas, pois a própria atividade docente constitui um aprendizado constante. Eu pelo menos estou sempre lendo algo para melhorar minhas aulas, trazendo novos materiais em classe, enviando artigos aos alunos, esforçando-me para que eles consigam superar o volume forçosamente limitado daquilo que é humanamente possível transmitir em sala de aula.
Eu me permitiria acrescentar à singela constatação da poeta goiana uma outra fonte de felicidade, que aliás está implícita no seu sentido do ensino: o hábito da leitura. Aproveito para transcrever uma outra frase, de um escritor e dramaturgo conhecido, autor reputado popular, ainda que personalidade sabidamente complicada:
“Eu não tenho o hábito da leitura. Eu tenho a paixão da leitura. O livro sempre foi para mim uma fonte de encantamento. Eu leio com prazer e com alegria”. Ariano Suassuna.
Creio poder dizer que eu não tenho apenas a paixão da leitura. Talvez minha atitude esteja mais próxima da obsessão, da compulsão, um verdadeiro delirium tremens na fixação do texto escrito, qualquer que seja ele, do mais simples ao mais elaborado. Quando digo obsessão, não pretendo de forma alguma referir-me a algo doentio, fora de controle, pois sou absolutamente calmo e controlado em minhas visitas a livrarias e bibliotecas: contemplo com calma cada lombada ou capa e apenas ocasionalmente retiro um livro para consultar seu interior. Não me deixo dominar pelos livros e de forma alguma sou um bibliófilo ou mesmo um colecionador de livros. Na verdade, não consigo me enquadrar em nenhuma categoria dessas que supostamente compõem o mundo dos amantes de livros.
Para começar, não tenho nenhum respeito pelos livros, nenhuma devoção especial, nenhum cuidado em manuseá-los ou guardá-los (muito mal, por sinal, pois acabo me perdendo na selva de livros que constitui minha caótica biblioteca, se é que ela merece mesmo esse título). Os livros, para mim, são objetos de uso, de consumo, de manuseio indiferente, eles só valem pelo seu conteúdo, como instrumentos de aquisição de um saber, que este sim, eu reputo indispensável a uma vida merecedora de ser vivida.
Não hesitaria um só instante em trocar todos os meus livros por versões eletrônicas, se e quando esse formato se revelar mais cômodo e mais interessante ao manuseio e leitura. Não hesito em sacrificar um livro se devo lê-lo em condições inadequadas, pois o que vale é o que podemos capturar em seu interior, não sua aparência externa ou sua conservação impecável. Ou seja, não sou um colecionador de livros, sou um “colhedor” de leituras, um agricultor da página impressa, um cultivador do texto editado, eventualmente também um semeador de conhecimento a partir dessas leituras contínuas.
De fato, o que me permite ser professor, resenhista de livros (tudo menos profissional, já que só resenho os livros que desejo) e, talvez até, um escrevinhador contumaz, antes que de sucesso, é esse hábito arraigado da leitura ininterrupta, em toda e qualquer circunstância, para grande desespero de familiares e outros “convivas”. Estou sempre lendo, algumas vezes até quando dirijo carro – o que, sinceramente, não recomendo –, mas ainda não encontrei um livro impermeável à água para leitura na ducha (na banheira seria mais fácil, mas não tenho paciência para esse tipo de prática).
Creio que a felicidade pode ser encontrada nesse tipo de coisas simples: um bom livro, uma boa música, um ambiente acolhedor, um sofá confortável, o que, confesso, raramente acontece comigo. Acabo lendo na mesa do computador, segurando o livro com a perna e teclando de modo desajeitado ao anotar coisas para registro escrito do que li. Aliás, as duas mesas de trabalho que existem em meu escritório, já não comportam mais nenhum livro: as pilhas se acumulam dos dois lados do teclado, e a outra mesa já está alta de jornais, revistas e livros, muitos livros, que também se esparramam pelo chão, como as batatinhas daquele poema infantil.
Leitor anárquico que sou, tenho livros em processo de leitura espalhados pelos diversos cômodos da casa, um pouco em todas as partes, novamente para desespero dos familiares. Não creio que venha a mudar agora esses maus hábitos. O que me deixa mesmo pensativo é a dúvida sobre quantos anos ainda terei pela frente para “liquidar” todos os livros (meus e de outras procedências), que aguardam leitura. Preciso de mais 80 ou 100...


Brasília, 1838: 19 novembro 2007.

Então e agora: atualidade de um visionário do século XVIII, o Abade Raynal e o Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Então e agora: atualidade de um visionário do século XVIII
o Abade Raynal e o Brasil

Paulo Roberto de Almeida

“O Brasil converter-se-á num dos mais formosos estabelecimentos do globo (nada para isso lhe falta) quando o tiverem libertado dessa multidão de impostos, desse cardume de recebedores que o humilham e oprimem; quando inúmeros monopólios não mais encadearem sua atividade; quando o preço das mercadorias que lhe trazem não mais for duplicado pelas taxas que andam sobrecarregadas; quando os seus produtos não pagarem mais direitos ou não os pagarem mais avultados que os dos seus concorrentes; quando as suas comunicações com as outras possessões nacionais se virem desembaraçadas dos entraves que as restringem...”
O autor desta passagem, absolutamente pertinente para os nossos dias, é o francês Guillaume-Thomas Raynal, mais conhecido como Abade Raynal (1713-1796), na Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes (publicada em Amsterdã, a partir de 1770, para o primeiro dos seis volumes da obra); a tradução deste trecho para o português foi feita pelo diplomata e historiador Manuel de Oliveira Lima, no D. João VI no Brasil (3a. ed.; Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 58-59).
Incrível, de fato, a atualidade dos argumentos transcritos acima, de uma das cabeças mais lúcidas do século XVIII francês, um pouco obscurecido, é verdade, pelos enciclopedistas Diderot e D’Alembert, com os quais, porém, ele pode ser comparado com grande vantagem. Anti-escravista em plena era do mais intenso tráfico africano (ele vinha de uma família de mercadores que enriqueceu no comércio de escravos), pensador iluminista, profundo conhecedor das coisas do mundo, mesmo sem ter viajado fora da Europa, o abade Raynal poderia ser descrito, em linguagem moderna, como um “globalizador esclarecido”, categoria à qual eu mesmo me orgulharia de pertencer, se existisse entre nós um tal clube filosófico.
Com efeito, a sua provocadora Histoire philosophique et politique des établissemens & du commerce des européens dans les deux Indes pode ser classificada como o primeiro “tratado da globalização” dos tempos modernos. Os franceses, sempre suscetíveis nessas coisas de anglofonia, talvez preferissem chamá-la de premier traité de la mondialisation. [Nota: Os leitores interessados em ler na íntegra esta obra, obviamente na linguagem original de 1770, em francês (bem como, outros escritos de Raynal), podem descarregá-la, como eu fiz, da base de dados “Frantext”, do Institut National de la Langue Française, na coleção Galica da Bibliothèque Nationale de France, a partir deste link: http://visualiseur.bnf.fr/Visualiseur?Destination=Gallica&O=NUMM-89431.]
Raynal começa sua obra monumental proclamando a mudança radical que tinha sido a passagem do cabo da Boa-Esperança: “uma revolução começou então no comércio, na potência das nações, nos costumes, na indústria e no governo dos povos. Foi nesse momento que os homens dos lugares mais distantes se fizeram necessários: os produtos dos climas equatoriais são consumidos nos climas vizinhos do pólo; a indústria do norte é transportada ao sul; os tecidos do Oriente vestem o Ocidente e, em todas as partes, os homens intercambiam suas opiniões, suas leis, seus hábitos, seus remédios, suas enfermidades, suas virtudes e seus vícios” (Nota: minha tradução, a partir do arquivo acima citado). Além de lúcido, nosso abade era um visionário: “Tudo mudou e tudo deve mudar ainda. Mas, as revoluções passadas e aquelas que ainda vão vir, podem ser úteis à natureza humana? O homem, por causa delas, gozará um dia de mais tranqüilidade, de mais virtudes ou de mais prazeres? Poderão essas revoluções torná-lo melhor, ou elas apenas o mudarão um pouco?”
Estas perguntas, filosóficas, de fato, são examinadas à luz da obra colonizadora dos europeus nas duas “Índias”, a do oriente e a do ocidente: “Depois que se conheceu a América e a rota do Cabo, nações que não eram nada se tornaram poderosas; outras, que faziam estremecer a Europa, se enfraqueceram”. Entre as primeiras, o abade Raynal estava sobretudo pensando nas então treze colônias americanas do Reino Unido, já dotadas de certa autonomia política e com potencial econômico para igualar a metrópole em termos de desenvolvimento material, como de fato se viu com a transposição, praticamente contemporânea, das principais invenções da primeira revolução industrial, em curso na velha Inglaterra, para a “new England”, no noroeste do que viria a constituir os Estados Unidos independentes. Entre as segundas, ele estava provavelmente pensando na China e no Império otomano, que já tinham começado sua longa trajetória em direção à decadência e submissão ao imperialismo europeu.
Mas, continuava o abade Raynal: “Como essas descobertas influenciaram a situação dos povos? Por que, enfim, as nações mais florescentes não são exatamente aquelas com as quais a natureza foi mais pródiga?” Ele começa, então, a explorar essas questões, partindo do pressuposto da unificação comercial do mundo sob a hegemonia do se poderia chamar, hoje em dia, de capitalismo ocidental. Sua análise é absolutamente atual, podendo-se dizer que seus argumentos parecem referir-se à globalização contemporânea. De fato, as nações mais prósperas não são exatamente aquelas mais bem dotadas de recursos naturais – embora esse fator seja importante, como no caso dos Estados Unidos – e sim aquelas que desenvolveram seus recursos humanos. Não fosse assim, o Japão seria um monte de ilhas de desenvolvimento médio, ao passo que gigantes do petróleo, como Nigéria, Irã e Venezuela, seriam países avançadíssimos nos campos social e tecnológico.
De forma geral, todos os ensaios “filosóficos” do abade Raynal podem ser colocados sob o signo controverso da globalização do seu tempo, tendo ele enfrentado opositores às suas idéias nos campos opostos da Igreja e dos reformistas radicais, por dizer exatamente o que pensava, e não aquilo que certos leitores gostariam de ler. Representantes das correntes anti-iluministas ligadas à Igreja e ao ancien régime colocaram a sua obra no index dos livros proibidos e tentaram calar sua voz incômoda e libertária (a Igreja católica não o suportou por muito tempo, “cassando” seus direitos de abade, o que o fez viver de seus escritos). Depois da publicação da terceira edição da sua história filosófica das duas Índias, seus inimigos a fazem condenar – sim, as obras – pelo Parlamento de Paris, queimando-a em praça pública, enquanto ele se refugiava na Suíça (onde cuida de erigir um monumento em honra à liberdade). Raynal freqüenta em seguida a corte de Frederico II, da Prússia, e logo depois a de Catarina II, da Rússia.
Às vésperas da Revolução, Raynal continuava encarnando os ideais do Iluminismo e dos direitos humanos e protesta contra a autocracia e a escravidão nos territórios coloniais, cujos horrores ele já conhecia muito bem, por ser descendente de uma família de grandes comerciantes. Tendo sido perseguido pelo ancien Régime, ele se coloca, também, contra os exageros “libertários” do novo, como declarado em sua carta à Assembléia Nacional em 31 de maio de 1791: “eu alertei os reis quanto aos seus deveres, inquietai-vos de que hoje eu fale ao povo dos seus erros” (in “Guillaume-Thomas Raynal”, artigo na Wikipedia; link: http://fr.wikipedia.org/wiki/Guillaume-Thomas_Raynal; acesso em 11/10/2007).
Até nisso, o pensamento do abade Raynal possui atualidade, uma vez que suas idéias confrontam o senso comum. De fato, mesmo os mais bem intencionados, como por exemplo, os hoje chamados altermondialistes franceses – e seus seguidores miméticos no Terceiro-Mundo, os antiglobalizadores –, cometem erros crassos de política econômica, ao pretender substituir as pretensas iniqüidades da globalização capitalista por sistemas econômicos surrealistas, cujo único efeito prático seria o de fazer com que os povos das antigas colônias ficassem ainda mais pobres do que já o são. A julgar pelo que Raynal disse sobre o Brasil dos tempos pombalinos – como transcrito na abertura deste ensaio –, os mesmos equívocos de política econômica continuam a ser praticados impunemente pelos dirigentes.
Nisso, os atuais protecionistas comerciais e intervencionistas econômicos encontram companheiros, entre os detentores de idéias bizarras, como os altermundialistas. Alguns deles são seguidores de filosofias démodées, outros são defensores de propostas que já eram anacrônicas no momento de sua formulação e todos eles são perfeitamente representados pela fauna variada de propugnadores de “um outro mundo possível” que freqüentam os ruidosos encontros anuais do Fórum Social Mundial. Ainda que esse novo mundo alternativo não seja obviamente o mesmo para as diversas tribos componentes desse grande jamboree regular de contestação inócua, todos eles continuam insistindo em lutar contra a globalização, como se ela fosse a responsável pelos males que eles combatem: miséria, desemprego, concentração de renda, injustiças várias.
O mais curioso dessa história toda é que esses grupos de contestadores infantis – entre os quais se encontram velhos sindicalistas e os órfãos do socialismo – se tornaram populares justamente por causa e no bojo dessa globalização tão vilipendiada por eles. Eles são os seres humanos mais conectados do planeta, graças às famosas TIC (tecnologias de informação e de comunicação) que se desenvolveram extraordinariamente sob o impulso da globalização.
Quanto à pluralidade de idéias e a suposta “hegemonia do pensamento liberal”, a realidade é exatamente a oposto do que eles proclamam. Nunca encontrei um grupo tão coeso na defesa do “pensamento único” quanto esses jovens ingênuos (e alguns velhos militantes de causas fracassadas), a despeito de eles pretenderem que a globalização unifica o mundo sob a mesma idéia fixa da globalização capitalista. De toda forma, qualquer diálogo com os altermundialistas é virtualmente impossível, pela absoluta inexistência de idéias concretas, salvo slogans facilmente agitados nas manifestações. Confesso que eu nunca consegui descobrir quais são, na verdade, essas idéias, a despeito dos muitos slogans que eles agitam em suas bandeiras, condenando coisas vagas como o “neoliberalismo” e o “consenso de Washington”. Acho que os altermundialistas bem fariam em ler o Abade Raynal.

Nota final: O escritor católico Antoine Sérieys (1755-1819) publicou em 1805, sob o título de Éléments de l’histoire du Portugal, contenant les causes de la décadence des Portugais, leurs lois, leur commerce, les révolutions de ce royaume (Paris: Demoraine, an XIII [1805]; viii+232 p.), uma obra que parece ter sido composta por Raynal. Com efeito, o trabalho é menos uma história de Portugal do que uma série de considerações gerais inteiramente concebidas à maneira e ao estilo de Raynal, o que mereceria ser esclarecido. Devo esta nota final (complementada por uma busca no catálogo da BNF) ao hipertexto: “RAYNAL, historien et philosophe, 1711-1796; Oeuvres, correspondance et divers”, neste link: http://perso.orange.fr/dboudin/zGalerie/Raynal.html#a; acesso em 4/11/2007.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de novembro de 2007 

Para libertar a nação dos bárbaros - Paulo Roberto de Almeida

Para libertar a nação dos bárbaros
(sob a inspiração de Maquiavel)

Paulo Roberto de Almeida

No último capítulo do seu Príncipe, Maquiavel faz uma “Exortação para tentar libertar a Itália dos bárbaros”. Estes eram invasores estrangeiros que devastavam os vários reinos, principados e repúblicas independentes em que se dividia a península de tradições seculares. Maquiavel esperava que um novo príncipe, ou alguma liderança providencial, conduzisse o povo italiano por novos caminhos.
Não é seguro que a nação brasileira encontre-se hoje tão “espoliada e lacerada”, ou que tenha de suportar “ruína de toda sorte”, como no caso da Itália de Maquiavel. Mas ela encontra-se, certamente, desesperançada e agoniada. O Brasil dispõe de uma democracia plena, ainda que de baixa qualidade intrínseca e com inúmeros defeitos formais e substantivos. O maior defeito de sua democracia, quiçá, é o total despeito dos direitos da cidadania, dos direitos elementares dos cidadãos mais humildes, fonte provável do clima de violência e de insegurança que vitima a todos e cada um, nos mais diferentes cantos do país.
Ocorrem aqui desventuras de toda a espécie, a começar pela incapacidade das elites em assegurar os direitos da cidadania, o que traduziu-se, recentemente, na mais profunda degradação dos costumes políticos já conhecida na história da nação. Há um aumento da corrupção em todas as partes e a extorsão diária por um sistema de derrama mais insidioso do que o dos antigos opressores coloniais; há a deterioração dos serviços públicos, o aumento da insegurança nas cidades, as mortes evitáveis ocorrendo em casas de saúde e outras mortes estúpidas nos cárceres lotados ou em combates entre agentes públicos e criminosos de baixa extração. Mas também existem criminosos de alta estirpe escapando da justiça por defeitos de procedimento, ou por comprar aqueles que os deveriam julgar; há dinheiro público sendo desviado e recursos esvaindo-se em obras inexistentes ou superfaturadas, com a conivência daqueles mesmos que deveriam fiscalizá-las.
Diferentemente do que pretendia Maquiavel para a sua Itália, nenhum líder providencial salvará esta nação a não ser que ela mesma queira ser salva, por seu próprio esforço, empenho e dedicação. Nenhum príncipe iluminado será capaz de redimir a nação de seus males mais conhecidos, a não ser que ela própria tome em suas mãos essa tarefa. Nem se vê, no presente, por que a nação deveria confiar o seu destino a mais um representante do Estado, quando vêm do próprio Estado os mais insidiosos ataques ao seu bem-estar e prosperidade.
Por acaso, não estão as fontes da corrupção concentradas no Estado, sendo os agentes públicos os seus promotores mais ativos? Não se vê que o estímulo à sonegação brota de um sistema de arrecadação extorsivo e da cobrança extensiva de toda sorte de impostos, taxas e contribuições, que tira dos privados a poupança que eles poderiam empregar para fins produtivos? Não se constata que toda essa arrecadação – e os pobres pagam mais dos que os ricos, no sistema regressivo dos impostos indiretos – não revertem em serviços para o povo, mas alimentam o gigante estatal, que cresce exageradamente há décadas?
À diferença dos tempos de Maquiavel, soldados invasores e mercenários à soldo não são bárbaros estrangeiros, e sim inimigos daqui mesmo. Nossos quatro cavaleiros do apocalipse são: o mau governo, a injustiça, a corrupção e a má educação. Em todas as partes da nação, temos notícias dos terríveis efeitos desses males nacionais sobre o moral do nosso povo. São eles a fonte última de toda violência e dos piores atentados aos direitos da cidadania. Já está na hora de combatermos nossos próprios bárbaros.
Não se pense em terroristas profissionais, em homens-bomba que se explodem com a alegria prometida aos justos. Não falamos de fundamentalistas que só admitem a verdade da sua própria religião, de intolerantes prontos a queimar e a trucidar em defesa de suas crenças. Esses são desajustados no mundo do livre arbítrio, da liberdade de pensamento, da democracia e dos direitos humanos, o que não impede que eles sejam, ao mesmo tempo, criminosos da pior espécie. Esses bárbaros não são novos: sua origem remonta às seitas dos assassinos, às guerras de religião em reinos pretendidamente piedosos, aos tempos de caça às bruxas, dos dogmatismos e dos grupos mafiosos, que estão conosco há vários séculos.
Falamos de “novos bárbaros”, uma classe especial de um gênero universal, que proliferou de forma não controlada nesta nação. Quem são estes “novos bárbaros”, que sugam o sangue do nosso povo, que limitam a capacidade de crescimento de sua economia, que dificultam o funcionamento e até a consolidação de instituições sólidas de governança? Quem são esses formidáveis obstrutores da boa educação pública em todos os níveis, do provimento de justiça, onde a justiça é devida, da garantia de segurança pública, nas casas e nas ruas? Quem são os que conspiram contra a simples aspiração do povo em ter um futuro melhor para os seus filhos, com emprego e renda decentes, com serviços públicos de qualidade, ou de poder dispor, no próprio mercado, de todo tipo de bem ou serviço, sem enfrentar monopólios, preços de cartéis, colusões organizadas e protegidas pelo Estado, que deveria pensar, antes de tudo, no interesse do cidadão comum? Quem são esses bárbaros que nos assolam regularmente, com nossa própria conivência?
Não é difícil identificá-los, pois eles estão todos os dias nas folhas impressas e nos meios de comunicação, eles entram em nossas casas sem que saibamos ou possamos impedir, eles tomam nossas terras sem que as autoridades se comovam, eles invadem prédios públicos sem que o poder legítimo se empenhe em desalojá-los, eles assaltam os cofres públicos quase à luz do dia, por meio de subterfúgios que são criados, paradoxalmente, justamente para evitar esse tipo de apropriação indébita. Estes nossos bárbaros não usam armaduras ou máscaras, no máximo identidades falsas; eles não são bandoleiros de estradas, como nos tempos de Maquiavel, embora também os haja; mas estes não são os mais danosos, no plano patrimonial privado ou do ponto de vista do tesouro público. Eles, na verdade, são nossos conhecidos e com eles interagimos quase todos os dias. Eles estão entre nós. Eles “somos” nós, ou quase...

Os novos bárbaros são os políticos demagogos e desonestos, que se elegem com grandes promessas de obras e realizações, mas que logo fazem dos negócios públicos o seu negócio particular, aquele pelo qual vivem e do qual vivem. Eles são os juízes venais, que se vendem por um punhado de moedas, a despeito de já ostentarem os maiores salários deste “principado”; existem, também, os que são honestos pessoalmente, mas que pretendem fazer justiça com as próprias mãos, isto é, interpretam a lei de forma distorcida para defender supostas causas sociais, quando não “criam” eles próprios a lei, em defesa de ideologias obscuras. Bárbaros também são os capitalistas promíscuos, que preferem ganhar dinheiro em colusão com funcionários públicos, afastando a concorrência, via cartéis arranjados e tarifas altas; são os que procuram uma participação “especial” em compras governamentais e é por meio destas que se opera a conjugação de interesses especiais de funcionários públicos e de parlamentares com o capitalismo de compadrio, que não é uma especialidade exclusiva desta nação, mas que aqui se aclimatou muito bem.
Deixando as esferas da alta política ou do grande capital, encontramos também outros bárbaros, na burocracia média, nas universidades, nas classes liberais, na esfera comercial. Há funcionários de governo que se servem do Estado, em vez de servir ao público; professores de universidades públicas que acreditam que a sociedade tem a “obrigação” de doar recursos às suas entidades, sem que tenham de prestar contas de sua produção ou de submetê-la a avaliações independentes; advogados sem escrúpulos que se especializam nas chamadas filigranas jurídicas para livrar notórios criminosos das garras da lei; por último, mas não menos importante, empresários que mantêm “caixa dois” como se fosse um alter ego literário. Muitos justificam o expediente escuso a pretexto de se defender contra as exações fiscais das autoridades da receita, e nisso recebem a colaboração de fiscais inventivos, sempre prontos a dar um abatimento de 50% na multa devida, desde que a arrecadação se faça também por vias paralelas. Ao fim e ao cabo, as classes médias se consideram vítimas de um sistema injusto, pelo qual elas não se sentem responsáveis, mas estão prontas a se utilizar dos pequenos benefícios de um sistema profundamente desigual e iníquo que perpetua desigualdades e pequenas contravenções, retardando o pleno estabelecimento do império da lei.
Há toda uma categoria especial de manipuladores da ingenuidade alheia, que são os adeptos da “teologia da prosperidade”: eles iludem os humildes – e outros nem tão humildes – agitando ameaças do capeta, de um lado, e promessas de redenção divina, de outro. Trata-se, talvez, do mais lucrativo investimento já conhecido na história econômica mundial, pois que os insumos e os meios de produção desses bárbaros religiosos não são feitos de matérias-primas ou de equipamentos, e sim de pura retórica, a fabricação literal de ouro, uma nova forma de alquimia, bem melhor do que aquela praticada nos tempos de Maquiavel.
Existem outros bárbaros, igualmente, nas chamadas “classes subalternas”, muitos deles simples ingênuos de espírito, manipulados por pretensos militantes intelectualmente desonestos, prontos a condenar o agronegócio e a comandar uma invasão de laboratórios e campos de experimentação de espécies elaboradas pela mão do homem, numa réplica de antigos ataques ludditas, tão obscurantistas quanto nefastos ao desenvolvimento de uma ciência libertadora de penúrias ancestrais. Existem falsos sindicalistas, que montam cartórios legais de extração de recursos dos trabalhadores, a pretexto de representação classista. Existem movimentos ditos minoritários, de inclinação racial, propensos a criar novas formas de apartheid social e cultural, sob escusa de redimir antigas injustiças. Há os que acreditam que a riqueza deve ser distribuída pelos estoques patrimoniais, não por fluxos crescentes de renda do trabalho, e que se entregam às invasões de propriedades urbanas e rurais, como profissionais da “expropriação social”.
Temos de lutar contra esses bárbaros: contra os que pretendem destruir nossas instituições democráticas pela via de velhos arremedos de “poder popular” e de “democracia direta”, que constituem um insulto à teoria e à prática da representação política; contra os que querem limitar a liberdade de imprensa a pretexto de “responsabilidade social”; contra os que querem fazer a escola retroceder a tempos obscurantistas de explicações ingênuas e anti-científicas; contra os que aspiram a dividir o povo em categorias raciais estanques, sob escusa de redimir antigas injustiças; contra os que defendem privilégios inaceitáveis, como os do foro privilegiado para políticos de província e pensões milionárias para os que exerceram cargos públicos por escasso tempo. Temos de defender a república contra todos os agentes corruptores, muitos deles eleitos por nós mesmos para altos cargos nas instituições de representação política. 
Nós carregamos uma parte de responsabilidade por essas deficiências que impedem a nação de deslanchar e de conformar uma situação mais amena no plano social, sobretudo em favor das classes menos favorecidas. Não se trata de colocar este “principado” numa posição de grande potência ou de pretender igualá-lo ao mais possante dos impérios, numa vã pretensão à grandeza que não ajuda em nada a diminuir o fosso de iniquidades que separa as classes abastadas das menos privilegiadas. O que se pretende é reduzir o grau de sofrimento humano embutido no atual sistema de reprodução de desigualdades. Isto se obtém pela eliminação do mau governo, pela diminuição da corrupção, pelo adequado funcionamento da justiça e, sobretudo, pela elevação de todos os cidadãos a um patamar mais condizente de dignidade social pela via da educação de qualidade para todos.
Para isso, não se deve esperar por nenhum “redentor” da nação. Não se quer um príncipe guerreiro, menos ainda autoritário ou alegadamente iluminado. Não se trata de construir o Estado a partir do nada, como no tempo de Maquiavel, mas de reconstruí-lo em novas bases, convertendo-o, de obstrutor do crescimento, o que ele é hoje, de fato, em um promotor das condições pelas quais possa ser estimulado o desenvolvimento da nação. O Estado precisa ser colocado em seu devido lugar, de simples administração das coisas. Trata-se de restabelecer o controle da própria sociedade sobre a administração dos homens. Toda a insegurança pública deriva, hoje, da incapacidade do Estado em prover esse bem primário de que necessitam todos os cidadãos. Se ele não o faz é porque se desviou de sua missão fundamental e básica, que é a de zelar para vida e a segurança dos que lhe pagam impostos. Temos de recolocar o Estado na sua função precípua de zelar pelo bem comum e antes de tudo pela segurança dos cidadãos. Quanto à criação de riqueza, a própria sociedade se encarregará disso... 

O mito da dependencia externa e outras bobagens companheiras... - Paulo Roberto de Almeida

Durante os tempos do nunca antes -- atenção, eles ainda não acabaram, e parecem dispor de um brilhante futuro pela frente, com direito a repeteco, para infelicidade da nação, e a maior felicidade dos companheiros -- muito ouvi, li e contemplei o guia genial dos povos dizer, não uma ou duas vezes, mas incontáveis vezes, que o Brasil deveria reorientar o seu comércio para uma tal de "nova geografia do comércio internacional", pois não deveria, aliás não poderia ficar "dependente do comércio com os Estados Unidos e os outros países ricos".
Nunca ouvi, ou li, besteira maior em termos de comércio internacional, mas isso fundamentou ainda outras besteiras maiores, como uma tal "substituição de importações" em favor de países menores do que nós, mais pobres, coitados, de quem deveríamos importar mais, mesmo se a custos maiores.
Sim, essa foi a segunda maior besteira que já ouvi em matéria de "teoria" do comércio internacional: em função de uma tal "diplomacia da generosidade" -- não sei se existe nos anais da diplomacia mundial, mas é mais uma de nossas geniais contribuições ao engrandecimento moral da humanidade, uma das jabuticabas que infelizmente nos tornam ridículos aos olhos do mundo, alimentadas pelos companheiros -- o Brasil deveria importar mais dos vizinhos, mesmo se tivesse de pagar mais caro por isso.
Ou seja, o guia genial dos povos recomendava aos empresários que importassem produtos de menor qualidade e a preços mais caros, apenas para se encaixar na sua "diplomacia da generosidade". Não sei se algum empresário maluco fez essa bobagem, provavelmente não, pois eles prezam mais os seus lucros (como deve ser), do que recomendações alopradas como essas. Mas o governo fez, e continua fazendo, esse tipo de coisa: não é por nada que estamos construindo um belo porto numa ditadura caribenha, que aliás nunca será pago (e posso apostar isso).
Enfim, nesses tempos malucos eu escrevi um pequeno trabalho sobre a tal de "dependência", que acabou passando despercebido, pois nunca foi publicado em qualquer veículos, mas apenas divulgado neste blog.
Como ando revisando minhas listas de trabalhos, creio que este (de 2007, e apenas postado em 2010) merece repostagem.
Sinal de que as bobagens continuam se acumulando e não são corrigidas com a experiência do tempo passado. Enfim, o que é que vocês querem? Os companheiros não estudam, assim que não podem aprender nada de novo.
Aqui vai, sem mexer em nada...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2/02/2014

A Dependência Diplomática e os Interesses Nacionais

Notas esparsas
Paulo Roberto de Almeida
Divulgado no blog Diplomatizzando (11.07.2010; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/07/de-vez-em-quando-descubro-algum.html).

A interdependência econômica é um fato irrecorrível do mundo contemporâneo. Mesmo nos momentos de maior abertura econômica internacional, correspondendo aos “anos dourados” do capitalismo triunfante da belle époque – grosso modo, entre o último quinto do século XIX e os três primeiros lustros do século XX – o mundo nunca foi tão interdependente como agora.
            Havia, obviamente, naquela época, mais liberdade do que hoje: para a circulação de capitais, de pessoas e de investimentos diretos, mas o comércio de bens era essencialmente um intercâmbio entre bens finais, correspondendo à centralização e à verticalização da produção.
            Atualmente, o comércio se faz basicamente dentro dos mesmos ramos industriais, em grande medida intra-firmas, e se concentra nos bens intermediários, ou partes e acessórios que serão assemblados em locais por vezes muito diferentes daqueles que produziram os componentes, sendo que as atividades de design, marketing e controle das operações se fazem nas sedes das empresas, onde muito provavelmente o produto físico final jamais é visto ou manipulado. Ele será, se tanto, objeto de contabilidade empresarial.
            Isto significa, essencialmente, que o mundo se tornou quase tão plano quanto possível, pelo menos ao nível dos processos produtivos e das operações dos grandes conglomerados multinacionais. Infelizmente, talvez, para as pretensões de Tom Friedman, o mundo não é plano no que se refere a normas, regulamentos, políticas setoriais e sobretudo para a plena circulação dos fatores de produção que poderiam se disseminar com muito maior rapidez, fossem as fronteiras realmente livres – um borderless state, como pretendia Kenichi Omahe – e as regras de comércio internacional aplicáveis de maneira uniforme pela maioria dos países.
            Enquanto economistas sensatos são entusiasticamente a favor de sempre maior liberalização comercial, políticos ditos “sensatos” insistem nas velhas receitas protecionistas. Ainda assim, o protecionismo tornou-se basicamente setorial nos países desenvolvidos – tocando a agricultura e algumas velhas indústrias com alguma sensibilidade empregadora. Nos países em desenvolvimento, ele é bem mais disseminado, cobrindo inclusive as ditas políticas setoriais, supostamente favoráveis ao “desenvolvimento nacional”.
            O fato é que as melhores políticas setoriais são aquelas de caráter universal e horizontal, cobrindo basicamente educação, capacitação técnico profissional da mão-de-obra e investimentos em ciência e tecnologia e infra-estrutura, de modo amplo (inclusive os marcos legais responsáveis por um bom ambiente de negócios). Os países que mais prosperaram, nas últimas décadas (ou mais), são aqueles que asseguraram, ao mesmo tempo e de forma sólida, a manutenção dos seguintes requerimentos:
1) estabilidade macroeconômica
2) microeconomia competitiva
3) instituições de governança market-friendly
4) alta qualidade dos recursos humanos
5) abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros

            Ainda no terreno da interdependência econômica, existe uma nítida correlação entre o coeficiente de abertura externa – isto é, comércio exterior total sobre o PIB – e os níveis de renda e riqueza de um país. Com a possível exceção dos EUA – que apresentam pequeno coeficiente, mas apenas porque seu mercado interno é imenso, sendo ainda assim um país tremendamente aberto ao comércio internacional – e do Japão – aqui por estrito nacionalismo econômico, o que atua em seu detrimento, mas que ainda assim constitui uma economia basicamente voltada para a competição externa baseada na qualidade –, todos os países mais prósperos do mundo apresentam alto grau de abertura externa.
            O Brasil se situa, infelizmente, em menos da metade da média mundial e tem ainda um longo caminho no sentido de construir a sua interdependência econômica, o que deve ser assegurado, essencialmente, por empresas nacionais internacionalizadas.

            Portanto, quanto mais o Brasil for interdependente das trocas internacionais, menos dependente ele será das alterações dos mercados internacionais. Ser interdependente garante, de fato, a independência nacional.
            Este fator é verdadeiro inclusive no plano financeiro. Tivesse o Brasil um fluxo de comércio internacional – em ambos os sentidos – que representasse o triplo dos níveis atuais, ele não necessitaria acumular um volume tão alto de reservas internacionais  -- mais de um ano de importações, quando os economistas recomendam três meses em média –, o que representa altos custos em termos fiscais. Um alto fluxo, contínuo, de pagamentos de fatores é a melhor garantia que um país pode ter em caso de crises, juntamente com um comércio diversificado, tanto em sua composição quanto na cobertura geográfica.

            No plano político, o Brasil deveria manter um diálogo de alto nível com os principais parceiros dos seus intercâmbios comerciais, de serviços, financeiros e monetários, que são, obviamente, as potências econômicas mundiais. A busca de arranjos ad hoc com países em desenvolvimento perpetua políticas defensivas, restritivas, protecionistas e basicamente estatizantes, quando o que se persegue é um setor privado vibrante e dinâmico, capaz de dialogar de igual para igual com as grandes empresas mundiais. Os esquemas negociadores que pretendem juntar os “países em desenvolvimento” em torno de plataformas comuns são essencialmente self-defeating e equivocados, pois que reduzindo os interesses nacionais do país a um conjunto muito modesto de interesses setoriais – geralmente concentrados em produtos de menor elasticidade-renda e de crescimento vegetativo no plano do comércio internacional – quando o interesse do país se encontra na diversificação da sua produção de manufaturados, os de maior dinamismo nesse comércio.
            Grupos como o G-77, G-20 ou o grupo dos sul-americanos são contraditórios por sua própria natureza. Grandes países, com pretensões a uma política externa verdadeiramente independente, não amarram seus interesses exclusivamente a um grupo específico, e sim mantêm uma estratégia multifacética, feita de táticas diferentes para cada questão objeto de negociação. Exemplos disso são a China e a índia, que acompanham o Brasil no G-20, mas não deixam de se inserir em outros grupos também, por vezes de interesse diverso e até contraditório com o G-20, mantendo absoluta independência de ação, sem qualquer concessão a uma pretensa “solidariedade entre países em desenvolvimento”. Isto é uma ilusão profunda da política externa brasileira, que vem prejudicando os interesses dos seus setores produtivos mais dinâmicos.

            Em uma palavra: o interesse nacional não se defende com posições principistas, sobretudo ideologicamente motivadas e eivadas de preconceitos contra os países desenvolvidos, mas sim com posições pragmáticas que contempla, basicamente, as estratégias de crescimento das próprias empresas baseadas no território nacional – nacionais ou estrangeiras – e não a de políticas ditas “nacionais”, ilusoriamente classificadas como de “desenvolvimento”, quando elas respondem unicamente aos desejos de burocratas governamentais.

            Uma palavra retorna de forma recorrente em certos discursos políticos para justificar algumas políticas equivocadas no plano econômico externo: a de “soberania”. Pretende-se, como se diz, favorecer a inserção econômica internacional do Brasil, com a “preservação da soberania nacional” (sem mencionar que, ao mesmo tempo, se impulsiona a integração regional de forma exacerbada e até irracional, o que é uma alienação de soberania evidente, e portanto totalmente contraditória com aquele primeiro objetivo).
            Descartando o fato de que soberania não se defende retoricamente e sim na prática, cabe registrar que a melhor defesa da soberania nacional está no fortalecimento da base econômica nacional, o que só se obtém através de uma internacionalização ativa da economia nacional, por mais contraditório que isso possa parecer. Soberania são empresas nacionais capazes de competir globalmente, não um Estado “extrator” de todas as energias nacionais por uma taxação exagerada e uma regulação intrusiva que impede as empresas de se concentrar naquilo que elas devem fazer prioritariamente: competir em todos os mercados, nacionais e internacionais. 

            Seria preciso libertar a diplomacia da “dependência” anacrônica de idéias requentadas de outras épocas, como um cepalianismo démodé, um nacionalismo velhusco, e um protecionismo visceral. Uma diplomacia ideologicamente dependente é a melhor garantia de que o Brasil vai continuar arrastando-se penosamente em direção à modernidade, impulsionado, certo, por empresários dinâmicos, mas que precisam competir com uma bola de ferro amarrada aos pés, representada por políticas setoriais ultrapassadas e inadequadas aos nossos tempos de globalização.
            Por fim, seria preciso libertar o Brasil, também, da dependência de programas grandiosos, e em grande medida retóricos, de integração continental, como a chamada Unasul – de inspiração chavista – e fazê-lo concentrar-se em projetos pragmáticos favorecendo a liberalização comercial recíproca no continente. Seria preciso, igualmente, superar a dependência estrita de grandes acordos multilaterais  - que são bem mais difíceis de serem concretizados – e adotar uma estratégia múltipla de acordos talvez mais limitados, mas de ganhos concretos em mercados setoriais.
            Colocar todas as suas cartas em uma única cesta nunca foi a melhor tática, em qualquer terreno que se pense. Quanto mais liberdade dispuser o país, e isso implica, em primeiro lugar, em liberdade “mental” para conceber novas políticas, menos dependente diplomaticamente será o Brasil.

18.09.2007