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domingo, 2 de fevereiro de 2014

Para libertar a nação dos bárbaros - Paulo Roberto de Almeida

Para libertar a nação dos bárbaros
(sob a inspiração de Maquiavel)

Paulo Roberto de Almeida

No último capítulo do seu Príncipe, Maquiavel faz uma “Exortação para tentar libertar a Itália dos bárbaros”. Estes eram invasores estrangeiros que devastavam os vários reinos, principados e repúblicas independentes em que se dividia a península de tradições seculares. Maquiavel esperava que um novo príncipe, ou alguma liderança providencial, conduzisse o povo italiano por novos caminhos.
Não é seguro que a nação brasileira encontre-se hoje tão “espoliada e lacerada”, ou que tenha de suportar “ruína de toda sorte”, como no caso da Itália de Maquiavel. Mas ela encontra-se, certamente, desesperançada e agoniada. O Brasil dispõe de uma democracia plena, ainda que de baixa qualidade intrínseca e com inúmeros defeitos formais e substantivos. O maior defeito de sua democracia, quiçá, é o total despeito dos direitos da cidadania, dos direitos elementares dos cidadãos mais humildes, fonte provável do clima de violência e de insegurança que vitima a todos e cada um, nos mais diferentes cantos do país.
Ocorrem aqui desventuras de toda a espécie, a começar pela incapacidade das elites em assegurar os direitos da cidadania, o que traduziu-se, recentemente, na mais profunda degradação dos costumes políticos já conhecida na história da nação. Há um aumento da corrupção em todas as partes e a extorsão diária por um sistema de derrama mais insidioso do que o dos antigos opressores coloniais; há a deterioração dos serviços públicos, o aumento da insegurança nas cidades, as mortes evitáveis ocorrendo em casas de saúde e outras mortes estúpidas nos cárceres lotados ou em combates entre agentes públicos e criminosos de baixa extração. Mas também existem criminosos de alta estirpe escapando da justiça por defeitos de procedimento, ou por comprar aqueles que os deveriam julgar; há dinheiro público sendo desviado e recursos esvaindo-se em obras inexistentes ou superfaturadas, com a conivência daqueles mesmos que deveriam fiscalizá-las.
Diferentemente do que pretendia Maquiavel para a sua Itália, nenhum líder providencial salvará esta nação a não ser que ela mesma queira ser salva, por seu próprio esforço, empenho e dedicação. Nenhum príncipe iluminado será capaz de redimir a nação de seus males mais conhecidos, a não ser que ela própria tome em suas mãos essa tarefa. Nem se vê, no presente, por que a nação deveria confiar o seu destino a mais um representante do Estado, quando vêm do próprio Estado os mais insidiosos ataques ao seu bem-estar e prosperidade.
Por acaso, não estão as fontes da corrupção concentradas no Estado, sendo os agentes públicos os seus promotores mais ativos? Não se vê que o estímulo à sonegação brota de um sistema de arrecadação extorsivo e da cobrança extensiva de toda sorte de impostos, taxas e contribuições, que tira dos privados a poupança que eles poderiam empregar para fins produtivos? Não se constata que toda essa arrecadação – e os pobres pagam mais dos que os ricos, no sistema regressivo dos impostos indiretos – não revertem em serviços para o povo, mas alimentam o gigante estatal, que cresce exageradamente há décadas?
À diferença dos tempos de Maquiavel, soldados invasores e mercenários à soldo não são bárbaros estrangeiros, e sim inimigos daqui mesmo. Nossos quatro cavaleiros do apocalipse são: o mau governo, a injustiça, a corrupção e a má educação. Em todas as partes da nação, temos notícias dos terríveis efeitos desses males nacionais sobre o moral do nosso povo. São eles a fonte última de toda violência e dos piores atentados aos direitos da cidadania. Já está na hora de combatermos nossos próprios bárbaros.
Não se pense em terroristas profissionais, em homens-bomba que se explodem com a alegria prometida aos justos. Não falamos de fundamentalistas que só admitem a verdade da sua própria religião, de intolerantes prontos a queimar e a trucidar em defesa de suas crenças. Esses são desajustados no mundo do livre arbítrio, da liberdade de pensamento, da democracia e dos direitos humanos, o que não impede que eles sejam, ao mesmo tempo, criminosos da pior espécie. Esses bárbaros não são novos: sua origem remonta às seitas dos assassinos, às guerras de religião em reinos pretendidamente piedosos, aos tempos de caça às bruxas, dos dogmatismos e dos grupos mafiosos, que estão conosco há vários séculos.
Falamos de “novos bárbaros”, uma classe especial de um gênero universal, que proliferou de forma não controlada nesta nação. Quem são estes “novos bárbaros”, que sugam o sangue do nosso povo, que limitam a capacidade de crescimento de sua economia, que dificultam o funcionamento e até a consolidação de instituições sólidas de governança? Quem são esses formidáveis obstrutores da boa educação pública em todos os níveis, do provimento de justiça, onde a justiça é devida, da garantia de segurança pública, nas casas e nas ruas? Quem são os que conspiram contra a simples aspiração do povo em ter um futuro melhor para os seus filhos, com emprego e renda decentes, com serviços públicos de qualidade, ou de poder dispor, no próprio mercado, de todo tipo de bem ou serviço, sem enfrentar monopólios, preços de cartéis, colusões organizadas e protegidas pelo Estado, que deveria pensar, antes de tudo, no interesse do cidadão comum? Quem são esses bárbaros que nos assolam regularmente, com nossa própria conivência?
Não é difícil identificá-los, pois eles estão todos os dias nas folhas impressas e nos meios de comunicação, eles entram em nossas casas sem que saibamos ou possamos impedir, eles tomam nossas terras sem que as autoridades se comovam, eles invadem prédios públicos sem que o poder legítimo se empenhe em desalojá-los, eles assaltam os cofres públicos quase à luz do dia, por meio de subterfúgios que são criados, paradoxalmente, justamente para evitar esse tipo de apropriação indébita. Estes nossos bárbaros não usam armaduras ou máscaras, no máximo identidades falsas; eles não são bandoleiros de estradas, como nos tempos de Maquiavel, embora também os haja; mas estes não são os mais danosos, no plano patrimonial privado ou do ponto de vista do tesouro público. Eles, na verdade, são nossos conhecidos e com eles interagimos quase todos os dias. Eles estão entre nós. Eles “somos” nós, ou quase...

Os novos bárbaros são os políticos demagogos e desonestos, que se elegem com grandes promessas de obras e realizações, mas que logo fazem dos negócios públicos o seu negócio particular, aquele pelo qual vivem e do qual vivem. Eles são os juízes venais, que se vendem por um punhado de moedas, a despeito de já ostentarem os maiores salários deste “principado”; existem, também, os que são honestos pessoalmente, mas que pretendem fazer justiça com as próprias mãos, isto é, interpretam a lei de forma distorcida para defender supostas causas sociais, quando não “criam” eles próprios a lei, em defesa de ideologias obscuras. Bárbaros também são os capitalistas promíscuos, que preferem ganhar dinheiro em colusão com funcionários públicos, afastando a concorrência, via cartéis arranjados e tarifas altas; são os que procuram uma participação “especial” em compras governamentais e é por meio destas que se opera a conjugação de interesses especiais de funcionários públicos e de parlamentares com o capitalismo de compadrio, que não é uma especialidade exclusiva desta nação, mas que aqui se aclimatou muito bem.
Deixando as esferas da alta política ou do grande capital, encontramos também outros bárbaros, na burocracia média, nas universidades, nas classes liberais, na esfera comercial. Há funcionários de governo que se servem do Estado, em vez de servir ao público; professores de universidades públicas que acreditam que a sociedade tem a “obrigação” de doar recursos às suas entidades, sem que tenham de prestar contas de sua produção ou de submetê-la a avaliações independentes; advogados sem escrúpulos que se especializam nas chamadas filigranas jurídicas para livrar notórios criminosos das garras da lei; por último, mas não menos importante, empresários que mantêm “caixa dois” como se fosse um alter ego literário. Muitos justificam o expediente escuso a pretexto de se defender contra as exações fiscais das autoridades da receita, e nisso recebem a colaboração de fiscais inventivos, sempre prontos a dar um abatimento de 50% na multa devida, desde que a arrecadação se faça também por vias paralelas. Ao fim e ao cabo, as classes médias se consideram vítimas de um sistema injusto, pelo qual elas não se sentem responsáveis, mas estão prontas a se utilizar dos pequenos benefícios de um sistema profundamente desigual e iníquo que perpetua desigualdades e pequenas contravenções, retardando o pleno estabelecimento do império da lei.
Há toda uma categoria especial de manipuladores da ingenuidade alheia, que são os adeptos da “teologia da prosperidade”: eles iludem os humildes – e outros nem tão humildes – agitando ameaças do capeta, de um lado, e promessas de redenção divina, de outro. Trata-se, talvez, do mais lucrativo investimento já conhecido na história econômica mundial, pois que os insumos e os meios de produção desses bárbaros religiosos não são feitos de matérias-primas ou de equipamentos, e sim de pura retórica, a fabricação literal de ouro, uma nova forma de alquimia, bem melhor do que aquela praticada nos tempos de Maquiavel.
Existem outros bárbaros, igualmente, nas chamadas “classes subalternas”, muitos deles simples ingênuos de espírito, manipulados por pretensos militantes intelectualmente desonestos, prontos a condenar o agronegócio e a comandar uma invasão de laboratórios e campos de experimentação de espécies elaboradas pela mão do homem, numa réplica de antigos ataques ludditas, tão obscurantistas quanto nefastos ao desenvolvimento de uma ciência libertadora de penúrias ancestrais. Existem falsos sindicalistas, que montam cartórios legais de extração de recursos dos trabalhadores, a pretexto de representação classista. Existem movimentos ditos minoritários, de inclinação racial, propensos a criar novas formas de apartheid social e cultural, sob escusa de redimir antigas injustiças. Há os que acreditam que a riqueza deve ser distribuída pelos estoques patrimoniais, não por fluxos crescentes de renda do trabalho, e que se entregam às invasões de propriedades urbanas e rurais, como profissionais da “expropriação social”.
Temos de lutar contra esses bárbaros: contra os que pretendem destruir nossas instituições democráticas pela via de velhos arremedos de “poder popular” e de “democracia direta”, que constituem um insulto à teoria e à prática da representação política; contra os que querem limitar a liberdade de imprensa a pretexto de “responsabilidade social”; contra os que querem fazer a escola retroceder a tempos obscurantistas de explicações ingênuas e anti-científicas; contra os que aspiram a dividir o povo em categorias raciais estanques, sob escusa de redimir antigas injustiças; contra os que defendem privilégios inaceitáveis, como os do foro privilegiado para políticos de província e pensões milionárias para os que exerceram cargos públicos por escasso tempo. Temos de defender a república contra todos os agentes corruptores, muitos deles eleitos por nós mesmos para altos cargos nas instituições de representação política. 
Nós carregamos uma parte de responsabilidade por essas deficiências que impedem a nação de deslanchar e de conformar uma situação mais amena no plano social, sobretudo em favor das classes menos favorecidas. Não se trata de colocar este “principado” numa posição de grande potência ou de pretender igualá-lo ao mais possante dos impérios, numa vã pretensão à grandeza que não ajuda em nada a diminuir o fosso de iniquidades que separa as classes abastadas das menos privilegiadas. O que se pretende é reduzir o grau de sofrimento humano embutido no atual sistema de reprodução de desigualdades. Isto se obtém pela eliminação do mau governo, pela diminuição da corrupção, pelo adequado funcionamento da justiça e, sobretudo, pela elevação de todos os cidadãos a um patamar mais condizente de dignidade social pela via da educação de qualidade para todos.
Para isso, não se deve esperar por nenhum “redentor” da nação. Não se quer um príncipe guerreiro, menos ainda autoritário ou alegadamente iluminado. Não se trata de construir o Estado a partir do nada, como no tempo de Maquiavel, mas de reconstruí-lo em novas bases, convertendo-o, de obstrutor do crescimento, o que ele é hoje, de fato, em um promotor das condições pelas quais possa ser estimulado o desenvolvimento da nação. O Estado precisa ser colocado em seu devido lugar, de simples administração das coisas. Trata-se de restabelecer o controle da própria sociedade sobre a administração dos homens. Toda a insegurança pública deriva, hoje, da incapacidade do Estado em prover esse bem primário de que necessitam todos os cidadãos. Se ele não o faz é porque se desviou de sua missão fundamental e básica, que é a de zelar para vida e a segurança dos que lhe pagam impostos. Temos de recolocar o Estado na sua função precípua de zelar pelo bem comum e antes de tudo pela segurança dos cidadãos. Quanto à criação de riqueza, a própria sociedade se encarregará disso... 

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