Reflexão sobre a felicidade a partir de coisas simples...
Paulo Roberto de
Almeida
“Feliz aquele que
transfere o que sabe e aprende o que ensina”
Cora Coralina, poeta de
Goiás (1889-1985)
Tomei conhecimento tardiamente da frase acima de Cora Coralina e, quando
dela me “apossei”, constatei que outros milhares de leitores, um tribo imensa
de curiosos, professores e candidatos a poetas já a tinham incorporado em
centenas de outras citações, provavelmente esparsas e incompletas. O Google
“devolveu” 107 mil resultados para uma busca com essas palavras entre aspas, o
que descontando as inúmeras repetições consolida, ainda assim, vasto repositório
de citações de uma frase simples e no entanto imensamente poética e cativante.
Creio, como muitos outros antes de mim, que a felicidade pode estar
justamente nesse ato de ensino-aprendizado, que de fato me parece uma dupla
atividade, nos dois sentidos captados pela poeta de Goiás velho. Sempre
aprendemos algo tentando ensinar alguma coisa a outras pessoas, pois a própria
atividade docente constitui um aprendizado constante. Eu pelo menos estou
sempre lendo algo para melhorar minhas aulas, trazendo novos materiais em
classe, enviando artigos aos alunos, esforçando-me para que eles consigam
superar o volume forçosamente limitado daquilo que é humanamente possível
transmitir em sala de aula.
Eu me permitiria acrescentar à singela constatação da poeta goiana uma
outra fonte de felicidade, que aliás está implícita no seu sentido do ensino: o
hábito da leitura. Aproveito para transcrever uma outra frase, de um escritor e
dramaturgo conhecido, autor reputado popular, ainda que personalidade
sabidamente complicada:
“Eu não tenho o hábito da leitura. Eu tenho a paixão da leitura. O livro
sempre foi para mim uma fonte de encantamento. Eu leio com prazer e com
alegria”. Ariano Suassuna.
Creio poder dizer que eu não tenho apenas a paixão da leitura. Talvez
minha atitude esteja mais próxima da obsessão, da compulsão, um verdadeiro delirium tremens na fixação do texto
escrito, qualquer que seja ele, do mais simples ao mais elaborado. Quando digo
obsessão, não pretendo de forma alguma referir-me a algo doentio, fora de
controle, pois sou absolutamente calmo e controlado em minhas visitas a
livrarias e bibliotecas: contemplo com calma cada lombada ou capa e apenas
ocasionalmente retiro um livro para consultar seu interior. Não me deixo
dominar pelos livros e de forma alguma sou um bibliófilo ou mesmo um
colecionador de livros. Na verdade, não consigo me enquadrar em nenhuma
categoria dessas que supostamente compõem o mundo dos amantes de livros.
Para começar, não tenho nenhum respeito pelos livros, nenhuma devoção
especial, nenhum cuidado em manuseá-los ou guardá-los (muito mal, por sinal,
pois acabo me perdendo na selva de livros que constitui minha caótica
biblioteca, se é que ela merece mesmo esse título). Os livros, para mim, são
objetos de uso, de consumo, de manuseio indiferente, eles só valem pelo seu
conteúdo, como instrumentos de aquisição de um saber, que este sim, eu reputo
indispensável a uma vida merecedora de ser vivida.
Não hesitaria um só instante em trocar todos os meus livros por versões
eletrônicas, se e quando esse formato se revelar mais cômodo e mais
interessante ao manuseio e leitura. Não hesito em sacrificar um livro se devo
lê-lo em condições inadequadas, pois o que vale é o que podemos capturar em seu
interior, não sua aparência externa ou sua conservação impecável. Ou seja, não
sou um colecionador de livros, sou um “colhedor” de leituras, um agricultor da
página impressa, um cultivador do texto editado, eventualmente também um
semeador de conhecimento a partir dessas leituras contínuas.
De fato, o que me permite ser professor, resenhista de livros (tudo menos
profissional, já que só resenho os livros que desejo) e, talvez até, um
escrevinhador contumaz, antes que de sucesso, é esse hábito arraigado da
leitura ininterrupta, em toda e qualquer circunstância, para grande desespero
de familiares e outros “convivas”. Estou sempre lendo, algumas vezes até quando
dirijo carro – o que, sinceramente, não recomendo –, mas ainda não encontrei um
livro impermeável à água para leitura na ducha (na banheira seria mais fácil,
mas não tenho paciência para esse tipo de prática).
Creio que a felicidade pode ser encontrada nesse tipo de coisas simples:
um bom livro, uma boa música, um ambiente acolhedor, um sofá confortável, o que,
confesso, raramente acontece comigo. Acabo lendo na mesa do computador,
segurando o livro com a perna e teclando de modo desajeitado ao anotar coisas
para registro escrito do que li. Aliás, as duas mesas de trabalho que existem
em meu escritório, já não comportam mais nenhum livro: as pilhas se acumulam
dos dois lados do teclado, e a outra mesa já está alta de jornais, revistas e
livros, muitos livros, que também se esparramam pelo chão, como as batatinhas
daquele poema infantil.
Leitor anárquico que sou, tenho livros em processo de leitura espalhados
pelos diversos cômodos da casa, um pouco em todas as partes, novamente para
desespero dos familiares. Não creio que venha a mudar agora esses maus hábitos.
O que me deixa mesmo pensativo é a dúvida sobre quantos anos ainda terei pela
frente para “liquidar” todos os livros (meus e de outras procedências), que
aguardam leitura. Preciso de mais 80 ou 100...
Brasília, 1838: 19
novembro 2007.
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