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terça-feira, 16 de maio de 2017

Canibalismo na historia: Mao Tse-tung nao foi o primeiro a promove-lo na China: Revolucao Taiping

Antes daquele líder demencial da China no século XX, vulgo Mao, promover, ativa e despreocupadamente a morte, por fome, de milhões de chineses (que praticaram canibalismo como recurso último, depois de esgotar tubérculos, raízes, grama, ratos, etc,), os chineses já tinha tido uma experiência no terreno, com a revolução Taiping, em meados do século XIX, como registrado neste excerto de livro selecionado pelo site Delanceyplace.
Paulo Roberto de Almeida

Today's selection -- from Autumn in the Heavenly Kingdom by Stephen R. Platt. The most widely cited estimate of deaths in China's Taiping Rebellion is 20 million, but more recent scholarship puts that estimate as high as 70 million. The destruction to cities and farms was so pervasive that cannibalism became routine:

"Meanwhile,  the  famine  in  the  countryside  deepened.  Despite  the  relief  stations  [Qing Dynasty General] Zeng  Guofan  had  set  up  in  southern  Anhui,  conditions  in that mountainous part of the province had deteriorated far beyond even the horror that had existed when he first took control of Anqing. 'Every­where in southern Anhui they are eating people,' he wrote in his diary on June 8, 1863, a remark whose very banality signified the degree to which the unthinkable had become commonplace. It was one of several notations on cannibalism in his diary, though in this instance the concern that drove him to mention it wasn't so much that human meat was being consumed per se -- for that was old news -- but that it was becoming so expensive: the price per ounce had risen fourfold since the previous year, meaning that even this most dismal of sustenances was becoming unaffordable. ... [British Army officer] Charles Gordon saw its gruesome footprint for himself while on cam­paign, though he didn't think his brethren back in Shanghai could possibly understand the true horror of it. '[T]o read that there are human beings eating human flesh:' he wrote to his mother, 'produces less effect than if they saw the corpses from which that flesh is cut.'

"The most widely accepted estimates put the death toll of China's nineteenth-century  civil war at somewhere between twenty million and thirty million people. The figure is necessarily impressionistic, for there are no reliable censuses to compare from the time, so it is typi­cally based on demographic projections of what the Chinese popula­tion should otherwise have been in later generations. According to one American study published in 1969, by as late as 1913, nearly fifty years after the fall of Nanjing, China's population had yet to recover to its pre-1850 level. 

"A more recent study by a team of scholars in China, published in 1999, estimated that the five hardest-hit provinces -- Jiangxi, Hubei, An­hui, Zhejiang, and Jiangsu -- together suffered a population loss of some eighty-seven million people between 1851 and 1864: fifty-seven million of them dead from the war, and the rest never born due to depressed birth­rates. Their projection for the full scale of the war in all provinces was seventy million dead, with a total population loss of more than one hun­dred million. Those higher numbers have recently gained wider circula­tion, but they are controversial; critics argue that there is no way to know how many of the vanished people died -- from the war, from disease, from starvation -- and how many took up lives elsewhere. Nevertheless, even the most subjective anecdotal reports from travelers on the lower Yangtze testified to the deep scars on China's cities and countryside, which were still far from being healed even decades after the Taiping war, and those figures begin to give a sense of the unprecedented scale of destruction and social dislocation that consumed China in what is believed to be the deadliest civil war in all of human history."

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Autumn in the Heavenly Kingdom: China, the West, and the Epic Story of the Taiping Civil War
Publisher: Vintage
Copyright 2012 by Stephen R. Platt
Pages: 358-359, 338-339

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O Homem que Pensou o Brasil: Roberto Campos ainda atual - Paulo Roberto de Almeida


O Homem que Pensou o Brasil: Roberto Campos ainda atual

Paulo Roberto de Almeida
 [Apresentação do livro sobre Roberto Campos; publicação digital]

Paulo Roberto de Almeida (org.):
O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos
(Curitiba: Editora Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0)


Ives Gandra da Silva Martins; Paulo Rabello de Castro (orgs.):
Lanterna na proa: Roberto Campos Ano 100
 (São Luís: Resistência Cultural, 2017, 340 p.; ISBN: 978-85-66418-13-2)


Ambos livros pedem outros livros, mais exatamente os do próprio Roberto Campos. Ao tomar a iniciativa de organizar o primeiro livro, no final de 2016, já prevendo uma possível homenagem pelo centenário do grande estadista brasileiro da segunda metade do século XX. Eu já conhecia razoavelmente bem o pensamento, a ação, as derrotas de Roberto Campos, um dos poucos solitários liberais num país, que, desde o pós-guerra até os nossos dias, se situou consistentemente do lado do estatismo, do intervencionismo, do protecionismo, do nacionalismo, do distributivismo, numa palavra, em prol de medidas e políticas de cunho caracterizadamente socialdemocrata (ainda que conservadores tenham ocupado a presidência e os centros de decisão econômico ao longo do período).
Roberto Campos esteve, com brevíssimas exceções – quando foi ministro do planejamento do primeiro governo do regime militar, por exemplo, ou nos seus primeiros anos como tecnocrata –, do lado exatamente inverso: contra os excessos do intervencionismo estatal, pela abertura econômica e a liberalização comercial, pela inserção do Brasil nas correntes mais dinâmicas da economia mundial, segundo regras de mercado, contra o nacionalismo introvertido e oposto aos investimentos estrangeiros, em favor da educação para ganhos de produtividade, antes que assistencialismo estatal. Ele sempre viu antes, mais e melhor do que seus contemporâneos, mas foi derrotado cada vez que pretendeu reformar o Brasil com base em seu profundo conhecimento da economia – adquirida não apenas nos livros, mas também nos cenários negociadores internacionais e nos mais altos cargos de planejamento econômico nacional – e do mundo, como diplomata experimentado que era. Sua lógica implacável, adquirida nos seminários, o colocava a contracorrente dos hábitos nacionais, bem mais “flexíveis”.
Para saber de tudo isso, não é preciso ler o primeiro livro, ou o segundo, quase equivalente nos seus objetivos, ainda que diferente na concepção, com muitos mais colaboradores do que os que reuni (apenas dez) em meu livro: a obra coordenada por Ives Gandra Martins e Paulo Rabello de Castro congregou mais de seis dezenas de autores – mas para temas circunscritos a 3 ou 4 páginas cada, entre eles eu mesmo, com três “capítulos”, sobre Bretton Woods, BNDE e receitas para desenvolver um país – e oferece uma boa introdução ao que pensava Roberto Campos sobre uma enorme gama de assuntos. O ideal seria ler diretamente Roberto Campos, mas o problema é que seus primeiros livros estão há muito tempo fora do mercado, só disponíveis em poucos sebos e na posse de colecionadores dotados de afinidades intelectuais com o grande pensador. Com exceção de suas memórias, Lanterna na Popa, e de suas duas últimas antologias, em edições da Topbooks, uma outra dúzia de obras simplesmente desapareceu dos catálogos, tanto porque Campos circulou por diferentes editoras ao longo de mais de quarenta anos. Na impossibilidade, portanto, de ler Roberto Campos, esses dois livros cumprem bastante bem o objetivo buscado de apresentar seu pensamento, sua ação política e econômica, seu legado exitoso no plano de uma “projeção utópica” das reformas necessárias e seu registro frustrado de reformas propostas e não realizadas.
O livro de Gandra e Castro é necessariamente mais superficial, pela opção por textos curtos, quase sem referências bibliográficas ou transcrições de originais. O que eu coordenei deixou os colaboradores à vontade para discorrerem sobre seus temas de escolha, na extensão desejada e com ampla liberdade metodológica. Eu mesmo tomei a liberdade de me estender sobre toda a obra escrita deixada por Campos, partindo de suas memórias, examinando inicialmente sua dissertação de mestrado na George Washington University, em 1948 (que Schumpeter considerou uma verdadeira tese de doutorado), passando por seus trabalhos econômicos mais importantes dos anos 1950 (ainda marcados por uma confiança indisfarçável no planejamento estatal), e seguindo depois por mais de meio século de artigos semanais nos grandes jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, ademais de sua atividade diplomática (embaixador em Washington e Londres) e política (ministro do planejamento e parlamentar durante 16 anos, primeiro senador, depois deputado).
Meu capítulo ocupa a metade do livro O Homem que Pensou o Brasil, mas é o último, o que me habilita a falar agora dos onze primeiros capítulos. O primeiro, na verdade, também é meu, e se dedica precisamente a apresentar em grandes traços o “rebelde com causa”, o “tecnocrata erudito”, e o “filósofo do pragmatismo”, na feliz definição de Gilberto Paim, autor de um livro exatamente com esse título. Seu irmão, Antonio Paim, comparece com um breve texto sobre a contribuição de Campos para a modernização do Brasil. Em seguida, Ives Gandra Martins, um dos dois coordenadores do segundo livro, também oferece um depoimento curto sobre suas afinidades eletivas com Campos, irmãos na “luta comum contra a irracionalidade”. Rogerio Farias, um jovem pesquisador  trata especificamente da carreira diplomática, “heterodoxa”, do grande economista, discorrendo sobre um período pouco conhecido de sua atividade no Itamaraty: sua participação na comissão de reforma da carreira e da estrutura da chancelaria, na primeira metade dos anos 1950. O filósofo Ricardo Vélez-Rodríguez, ex-seminarista como Roberto Campos, aborda a questão do patrimonialismo em sua obra, tema no qual o próprio Ricardo é um dos maiores especialistas brasileiros.
O cientista político Reginaldo Teixeira Perez, autor de uma tese publicada sobre o “pensamento político de Roberto Campos”, examina a racionalidade e a autonomia na obra de Campos, em ensaio com variadas referências a Max Weber, o autor que mais tratou das diferentes éticas na vida pública e das relações entre ciência e ideologia. O ex-diretor do Banco Central, criado por Roberto Campos, economista Roberto Castello Branco desmente as visões de ortodoxia, de austeridade ou de monetarismo associadas frequentemente a Campos, demonstrando que ele era um desenvolvimentista, mas muito consciente da importância de sólidos fundamentos macro e microeconômicos para que taxas de crescimento sustentado pudesse realmente desembocar num processo de desenvolvimento consistente, com distribuição social de seus benefícios. Rubem de Freitas Novaes, ex-diretor do BNDES e professor na FGV, oferece uma verdadeira aula de economia liberal, revisando todas as principais correntes de pensamento econômico do século XX, aquelas que justamente acompanharam a atividade de Roberto Campos.
Carlos Henrique Cardim, colega diplomata e ex-presidente da Editora da UnB, onde publicou as grandes obras clássicas e centenas de outras, todas elas de referência nas humanidades, revela o papel de Roberto Campos na abertura política, ao enfocar sua participação nos encontros internacionais que ele organizou na UnB, ao início dos 80s. Antonio José Barbosa, assessor parlamentar e professor de história brasileira na UnB, percorre os 16 anos das atividades parlamentares de Campos, entre 1983 e 1999, e não deixa de sublinhar tanto o acertado de seus diagnósticos e prescrições sobre os problemas brasileiros, quanto as frustrações que ele enfrentou durante todo o período. O cientista político, professor na UnB e também assessor parlamentar Paulo Kramer fecha a lista dos colaboradores convidados com uma brilhante comparação entre Campos e Raymond Aron, ambos liberais clássicos, ambos enfrentando a oposição da esquerda e dos estatizantes no Brasil e na França, embora absolutamente corretos, ambos, nas suas análises antecipatórias sobre o triunfo das democracias de mercado sobre as economias socialistas e seus regimes autoritários.
Numa avaliação global, os dois livros oferecem “visitas” oportunas e muito bem fundamentadas em seus escritos e ações, sobre a vida, a obra, o pensamento e as atividades do insigne economista-diplomata-tecnocrata-ministro-parlamentar que foi Roberto Campos, um homem sempre à frente do seu tempo e, infelizmente, pouco feliz em suas tentativas de convencimento (visando sobretudo as elites) de que as liberdades econômicas, a contenção do intervencionismo estatal e a abertura ao capital estrangeiro teriam levado o Brasil a uma condição bem diversa desta hoje ostentada, ou seja, uma economia aberta, inserida nos grandes intercâmbios mundiais, com maior capacidade de competição (e, portanto, de inovação) e grau razoável de crescimento da produtividade, com base numa educação de boa qualidade. Retomo, pois, o terceiro capítulo de minha autoria no livro de Gandra-Rabello, sobre a receita, fundamentada em Roberto Campos, para desenvolver um país: 1) estabilidade macroeconômica; 2) competição microeconômica; 3) boa governança; 4) alta qualidade do capital humano; 5) abertura a comércio internacional e a investimentos estrangeiros.
Os livros já estão disponíveis nas principais redes de distribuição online e com alguma presença física em livrarias, ou podem ser encomendados diretamente às editoras. O ideal seria, obviamente, que os interessados na obra do grande economista e diplomata lessem toda a sua obra, ou pelo menos suas memórias (1.500 páginas) e suas antologias mais recentes ainda disponíveis. Na dificuldade de encontrá-las, ou na preguiça de mergulhar em milhares de páginas, estes dois livros oferecem um atalho muito conveniente, fiável e ao mesmo tempo profundo ao seu pensamento sempre atual. Roberto Campos certamente se frustrou ao não conseguir convencer os membros das elites econômicas e políticas brasileiras a adotarem outro curso de ação do que aquelas que foram seguidas no meio século durante o qual ele foi um ativo participantes das propostas de políticas públicas, muito erráticas e incapazes de tirar o Brasil, como ele dizia, da pobreza evitável para colocá-lo num patamar de prosperidade possível.
Mas ele teria se frustrado muito mais se, vivo na década que se seguiu ao seu falecimento em 2001, tivesse assistido à Grande Destruição de riqueza produzida pela grande inépcia econômica e enorme corrupção política dos companheiros. Se resta um consolo em face dessas frustrações acumuladas, seria este: todas as suas propostas (e mesmo projetos de lei) teriam plena validade operacional e total adequação racional aos dias que correm, quando ainda discutimos reformas que ele propôs, e que poderiam ter sido feitas desde os anos 1960, cujo teor basta examinar em qualquer um dos dois livros aqui resenhados. Não há nenhuma dúvida: Roberto Campos permanece incrivelmente atual. Confiram...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3117, 15 de maio de 2017

segunda-feira, 15 de maio de 2017

O Grande Salto para a Fome, na China: 45 milhoes de vitimas - resenha de Frank Dikotter, por Daniel Lopes


Escravidão e fome no comunismo chinês
Revista Amálgama, 15/05/2017
Um estudo indispensável de Frank Dikötter sobre as muitas formas de destruição e morte durante o Grande Salto Adiante.

“A Grande Fome de Mao: A história da catástrofe mais devastadora da China, 1958-1962”, de Frank Dikötter (Record, 2017, 532 páginas)
1.
A razão principal para os recentes trabalhos do historiador holandês Frank Dikötter terem sido tão louvados é que ele, perito na língua e cultura da China, teve acesso a uma massa de arquivos chineses apenas recentemente abertos a um público menos restrito – antes disponível apenas para poucos historiadores ligados ao Partido Comunista – e entrevistou pessoalmente diversos indivíduos do povo comum que viveram os horrores de eventos como o Grande Salto Adiante, a Revolução Cultural e a própria revolução comunista. Ao acessar essas pessoas e documentos, Dikötter escreve uma história que revisa, no bom sentido, muito da visão que o senso comum tinha dessas tragédias chinesas.
Tome o Grande Salto Adiante, objeto deste A Grande Fome de Mao. Nome oficial para as políticas ditadas por Mao Tsé-Tung entre os anos de 1958 e 1962, o Grande Salto ficaria associado nas décadas seguintes quase que exclusivamente a mortes pela fome. Assim, por muito tempo, o número de mortos nesse período rondou cifras que iam dos 15 milhões reconhecidos pelo governo chinês como vítimas de “desastres naturais”, até os 30 milhões da maioria dos historiadores. Frank Dikötter, por sua vez, levou a cifra para cerca de 45 milhões de mortos.
Por quê? Porque o Grande Salto causou principalmente, mas não somente, mortes pela fome. As políticas dos planejadores chineses produziu uma gama incrível de tipos de morte, relacionados mais ou menos com as políticas para a agricultura que causaram o grosso das mortes no período.
Não apenas isso. A pesquisa de Dikötter vai além dos custos do Grande Salto em termos de vida humana, e pormenoriza uma série de desastres para a natureza e para propriedades públicas e privadas na China. O retrato total da destruição, pintado em A Grande Fome de Mao, é nada menos do que apocalíptico.
A marca principal do Grande Salto Adiante, é verdade, foi a fome em massa. E o esqueleto do Grande Salto foi a planificação econômica. É um dos grandes méritos de Dikötter dar uma ótima noção desta estrutura, começando pela própria origem do termo “economia planificada” – que vem do alemão “Befehlswirtschaft”, originalmente aplicado à economia nazista, depois servindo para caracterizar a economia soviética, até criar raízes próprias em solo chinês. Sim, é isso mesmo: a planificação econômica esteve umbilical e naturalmente associada aos três totalitarismos mais assassinos da história.
Em tal sistema, os oficiais alocados para cuidar de fazendas ou indústrias coletivizadas não raro tomam medidas sem qualquer sentido em termos de efetividade, apenas por sabujismo a superiores hierárquicos, preocupando-se apenas, de tempos em tempos, em maquiar números de produtividade e comandar assassinatos de alguns trabalhadores para manter um nível mínimo de trabalho. Na China, a economia planejada contribuiu, entre outras coisas, para o apodrecimento de grãos armazenados e esquecidos; colapso de um sistema ferroviário que não suportou a carga de bens que teve que transportar de um lado a outro do país; infinita produção de bens de segunda categoria, de móveis a fiações elétricas, que se desmanchavam com pouco tempo de uso e haviam saído de fábricas apenas pelo esforço de se cumprir metas de produção; corrupção e roubo, por parte de oficiais de vários níveis, de bens que deveriam ser distribuídos para o populacho; erosão contínua do poder de compra dos mais pobres, que o planejamento econômico ditava que deviam ter acesso a vários bens por um baixo preço, quando na prática ocorria o contrário.
Antes da revolução de 1949, a China possuía uma forte tradição de pequeno comércio e valorização da propriedade privada. O capítulo 19 de A Grande Fome de Mao traz descrições, emocionantes mesmo, de parte dessa realidade pré-comunismo. Mesmo após a chegada do Partido Comunista ao poder, muito dessa tradição chinesa persistiu, mas com o início do Grande Santo ela seria sufocada. Na província de Yunnan, por exemplo, os 200 mil burros e mulas que levavam comidas e outros bens para aldeias distantes foram substituídos por um sistema centralmente administrado de carretas puxadas por cavalos, cavalos que custavam muito em ração, ração que era incompetentemente administrada pelo Estado, o que levou os cavalos à fome e as aldeias a ficarem privadas de bens essenciais.
Em um verdadeiro pesadelo estatista,
À medida que gigantes estatais substituíam lojas pequenas, a responsabilidade por bens defeituosos afastou-se da rua em direção a remotas e impenetráveis burocracias. O plano [econômico], naturalmente, tinha uma resposta para esse problema, instalando “estações de serviços” (fuwuzu) para o benefício das grandes massas. Mas elas eram poucas e muito afastadas umas das outras, incapazes de dar conta do dilúvio de bens malfeitos e, acima de tudo, profundamente desinteressadas em prestar serviço ao povo. Então, em um país pobre, o custo de consertar um objeto com frequência superava o custo de substituí-lo.
Os indivíduos eram na prática propriedades do Estado. Se este passava, como passou, por uma “febre do aço”, em que qualquer material do tipo era requerido para ser derretido e regredir à sua matéria-prima, então o povão chinês era “convidado” a doar para o poder central até mesmo utensílios domésticos e ferramentas agrícolas. Para os moradores do campo, isso foi mais um passo rumo à fome, pois mesmo nos raros casos em que conseguiam uma brecha para escapar do trabalho escravo em fazendas coletivizadas, não tinham muitos meios técnicos para fazer um plantio próprio, de subsistência.
À medida que a coletivização se aprofundava, os oficiais na chefia das comunas usavam os poucos alimentos reservados para os escravos como forma de recompensa ou punição. Na prática, era uma forma de deixar morrer os que não poderiam ser escravizados por muito tempo, devido a doenças ou idade avançada, por exemplo. Como disse o próprio Mao para líderes do partido em 1959, “quando não há o bastante para comer, as pessoas morrem de fome. É melhor deixar metade das pessoas morrerem para que a outra metade possa se saciar”.


Uma mulher moribunda e sua família. (foto: Getty Images)
2.
Na China, os grãos e outros bens primários eram armas em uma guerra geopolítica, e, como tais, deveriam ser rigorosamente controlados pelo Estado.
Indivíduo de ambições desmedidas, Mao instituiu, pelo menos em sua cabeça, uma corrida páreo a páreo com a União Soviética pela liderança do mundo socialista. Quando Kruschev anunciou em 1957 que em poucos anos seu país alcançaria os Estados Unidos na produção de carne, leite e manteiga, Mao não perdeu tempo em “sugerir” aos inferiores que a China deveria ultrapassar tanto URSS quanto EUA nesse aspecto econômico, e talvez em outras áreas. A liderança chinesa poderia ser alcançada mesmo em curto prazo – com muito esforço, em curtíssimo prazo. Seus vassalos no Partido logo acharam esse um projeto razoável.
Nessa batalha rumo ao topo, caberia aos camponeses, por meio do trabalho em terras coletivizadas, o papel de alimentar as cidades e prover bens de exportação. Sua própria sobrevivência vinha apenas em um distante terceiro lugar. Quantidade assombrosa de alimentos foi vendida no período do Grande Salto, e o dinheiro convertido na importação de equipamentos industriais e militares.
No sistema planificado chinês, funcionava assim: os líderes do país pariam no papel estimativas delirantes de produção interna, a fim de firmarem acordos comerciais indispensáveis para colocar a China no topo. Para tais acordos serem cumpridos, as estimativas teriam que se concretizar, e essa era a ordem dada às lideranças locais. Se as projeções tivessem sido realistas e concretizadas, daria para o país exportar e se alimentar. Como não foram, acabou dando apenas para se alimentar ou exportar, e a escolha pela exportação já havia sido feita. Durante todo o período do Grande Salto, quanto mais a fome se aprofundava, mais as quotas de exportação aumentavam. Daí as 45 milhões de “mortes desnecessárias” calculadas por Frank Dikötter.
Nos anos iniciais do Grande Salto, Mao e seus esbirros não aceitavam sequer críticas em privado das políticas chinesas – que dizer em público. Repressões em aldeias e expurgos nos quadros do Partido foram características da época. A culpa pela média de milhares de mortos por dia era posta nos “desastres naturais”, quando não, claro, nos “inimigos do povo”.
Quando a realidade da fome em massa começou a se impor entre a liderança, outro problema concorreu para que as mortes continuassem a varrer os campos: o orgulho da elite comunista. Foi por orgulho que ela recusou ajuda em alimentos de países do bloco socialista – a fome no gigante asiático já era do conhecimento de meio mundo. A oferta de ajuda da Cruz Vermelha também foi rejeitada. Mesmo os grãos que a China comprou durante o período foram em grande parte exportados – ou seja, não tinham o objetivo de matar a fome dos chineses, mas de fazer a roda da política de exportações continuar a rodar. O país também nunca parou de doar grãos para países como Cuba, para manter a imagem de farol do socialismo bem sucedido.
Apenas a partir do final de 1960, quando o planejamento econômico foi em pequena parte reduzido e aldeões puderam cultivar suas próprias hortas e o comércio local deixou de ser crime, é que a fome começou em diminuir.
Crianças de rua agonizantes. (foto: Life Magazine)
3.
As “mortes desnecessárias” de Frank Dikötter incluem, além da maioria por fome, mortes por acidentes, doenças, violência (inclusive no laogai, o gulag chinês) e por canibalismo (um número comparativamente insignificante, mas ainda assim simbólico das realizações do comunismo).
Como era de se esperar, os sete capítulos que compõem a sexta parte de A Grande Fome de Mao, intitulada “Modos de morrer”, trazem as páginas mais fortes da obra. Por exemplo: Um camponês de Guangdong, chamado Wang Ziyou cometeu o crime de desenterrar uma batata para matar a fome e foi punido pela administração local com o corte de uma orelha, pernas amarradas com arame farpado, uma pedra de 10 quilos atirada sobre as costas e marcação na pele com ferro em brasa. Em parágrafo que lembra o totalitarismo islamista de nossos dias, Dikötter narra que pessoas eram trancadas em porões e deixadas lá até a morte, em meio a gritos atrozes de desespero. Outras eram queimadas vivas. Enquanto isso, idosos eram empilhados em asilos, e crianças muitas vezes iam parar em instituições que fariam qualquer Febem paulista parecer uma utopia.
Como ocorre em todo tempo e lugar em que se tenta fundar o paraíso socialista e o “novo homem socialista”, também na China a espécie humana foi reduzida a seus aspectos mais degradantes. No sistema de comunas, os laços familiares eram apagados, com crianças sem mães, mulheres sem maridos e idosos sem parentes. Nas fábricas, os escravos não podiam abandonar seus postos facilmente, e urinavam e defecavam no próprio chão em que estavam trabalhando. Mulheres eram comumente humilhadas e abusadas por chefes locais (“o estupro se espalhou como um contágio em uma paisagem moral angustiada”, escreve Dikötter), e tinham muitas vezes que trabalhar nuas, para “quebrar tabus feudais”.
A mentira, o roubo, o contrabando, a trapaça, a manipulação, eram formas não apenas de camponeses se voltarem contra o Estado, mas também uns contra os outros. “No campo”, pontua o autor, “a feroz competição pela sobrevivência gradualmente corroeu qualquer sentido de coesão social”.
É por ligar esses diversos aspectos da tragédia do Grande Salto – a Grande Fome, sim, mas também toda uma gama de mortes no campo e nas cidades; a destruição de propriedades privadas; a destruição da natureza; as decisões da cúpula do Partido e os modos de sobrevivência das massas – que o livro de Dikötter é leitura básica para quem deseja compreender a China moderna.
Não só este livro, aliás, mas também seus volumes sobre a revolução comunista e a Revolução Cultural – duas obras que também deverão sair no Brasil, pela mesma editora que nos trouxe este A Grande Fome de Mao.

Cartaz de propaganda chinês da época do Grande Salto Adiante
 
Editor da Amálgama

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Agora, entre nós: o preço deste livro é extorsivo. Por isso recomendo comprar uma edição em inglês, em qualquer sebo da rede Abebooks: vejam abaixo, mesmo na Amazon fica mais barato, ainda pagando 10 ou 15 dólares de frete.
 
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Brazil Forum, em Londres, discute os problemas brasileiros

Brazil Forum, em Londres, discute os problemas brasileiros
COLUNISTA DA FOLHA, EM LONDRES
13/05/2017 16h36
Cynthia Vanzella

Luis Barroso - Brazil Forum London
O ministro do STF Luís Roberto Barroso participa do Brazil Forum, em Londres

Enquanto a plateia de cerca de 150 pessoas aguardou ao longo do dia o "grande duelo" entre José Eduardo Cardozo e Sergio Moro, uma série de dados extremamente críticos em relação ao país foram apresentados em diferentes palestras do Brazil Forum, neste sábado (13), em Londres.

Números que deveriam surpreender os brasileiros do outro lado do Atlântico, mas que aqui caíram numa espécie de vazio.

Coube ao ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso abrir os trabalhos.

Ele comentou que o Brasil, sozinho, é responsável por 98% dos processos trabalhistas em todo o planeta —o país tem 3% da população mundial.

O magistrado citou o caso do Citibank, que desistiu de operar no Brasil quando detectou que obtinha no país 1% de suas receitas, mas sofria 93% das ações trabalhistas.

Depois comentou que 4% do PIB brasileiro é gasto com o custo do funcionalismo público, com o que procurou indicar o alto custo do Estado.

Barroso defendeu as reformas da Previdência, trabalhista, política e eleitoral. 
Ao falar da Previdência, disse que a soma dos sistemas público e privado custa o correspondente a 54% do Orçamento brasileiro, mais do que o dobro do que é gasto com educação, saúde e benefícios sociais.

Barroso classificou a Previdência como responsável por uma perversa transferência de renda.

"Os 32 milhões de aposentados da iniciativa privada custam o mesmo que 1 milhão de aposentados do poder público."

Ao dividir dessa forma desigual, meio a meio, toda a arrecadação da Previdência, o resultado é que a maioria pobre dá dinheiro à minoria mais endinheirada.

"Quando vejo um pobre ser contra a reforma da Previdência, tenho pena. Ele está sendo enganado."

Convidado para o evento na condição de ex-ministro da Educação, Fernando Haddad comentou que os gastos com educação subiram de 3,5% do PIB em 2000 para 5,5% em 2015, sendo que o acréscimo foi concentrado em gastos com educação básica. 
Apesar desse crescimento, no entanto, o desempenho do país na avaliação mundial, o Pisa, caiu.

Carlos Rittl, do Observatório do Clima, informou que o desmatamento da Amazônia cresceu 60% em dois anos —subiu para 8 mil hectares por ano, quase metade da meta prevista para 2020.

Em meio à grande crise hídrica do país, disse também que 60% de toda a água consumida é usada para a produção de commodities agropecuárias.

LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

Claudia Sender, CEO da TAM, referiu-se ao desemprego, que afeta mais de 14 milhões de brasileiros, como o maior problema do país. Mas citou também outros temas de intensa preocupação para uma diretora de empresa.

E deu um exemplo de como a legislação trabalhista brasileira é arcaica e reduz a capacidade das empresas darem emprego.

Em seu setor, contou que uma equipe de bordo da TAM só pode fazer o voo São Paulo-Londres-São Paulo três vezes por mês, enquanto a British Airways permite quatro viagens por mês a seus funcionários.

A lei trabalhista brasileira reduz a produtividade dos trabalhador da TAM em 33% —mesmo que ele quisesse ganhar mais para fazer a viagem, não poderia.

A TAM não pode voar de São Paulo para Doha, no Oriente Médio, pois o voo é mais longo do que a jornada permitida a funcionários brasileiros pela lei trabalhista que rege a aviação.

As regras foram criadas quando não existiam aviões capazes de voar até Doha. O resultado: diariamente, uma companhia árabe faz esse voo, sem concorrente brasileiro.

A presidente da companhia aérea citou também os problemas causados pela política tributária, cara e confusa. Disse que o Brasil é o pais com o mais caro combustível de aviação onde a companhia atua.

É mais barato encher o tanque em Miami do que no Brasil, onde o litro custa três vezes mais do que nos EUA.

O maior imposto sobre o insumo é o ICMS, estadual. Disse que São Paulo cobra 25% e o Rio cobra 12%. Por isso, a empresa procura encher o tanque no Rio, o que faz com que voe com mais peso a partir daquele Estado e isso faz o avião poluir mais.

"O Brasil é o único país do universo que provoca poluição com tributos sobre a aviação", disse.

Por sua posição estratégica entre a América Latina e a Europa, os aeroportos do Nordeste brasileiro teriam vocação de grandes hubs (centros de distribuição) de carga internacional. Mas isso não acontece porque a cadeia de produção dessa indústria tem muitas interfaces com o funcionalismo público —alfândegas e Polícia Federal, por exemplo— cujas constantes greves tornam instável e imprevisível o fluxo de mercadorias, especialmente perecíveis.

PESO DO ESTADO

O senador Armando Monteiro (PTB-PE), que foi ministro do governo Dilma Rousseff até o impeachment, citou um dado revelador da atividade da economia brasileira: as despesas dos governos cresceram 6% ao ano ao longo dos últimos 25 anos, enquanto a economia patinou ou cresceu pouco na maior parte desse período.

"O país iria quebrar mais cedo ou mais tarde."

A produtividade do trabalho também patinou, contou ele: nos últimos 20 anos, cresceu à razão de 0,68% por ano. Enquanto isso, nossos concorrentes cresciam reduzindo preço e aumentando a competitividade de seus produtos (as empresas por isso vão embora do Brasil).

Monteiro mostrou ainda que, de todas as riquezas produzidas no país, o PIB —de R$ 6,3 trilhões em 2016—, um terço (33%) é apropriado como custo do Estado.

E embora os cidadãos recebam mais atendimento de municípios e de Estados, é a União que fica com a parte do Leão —65%, ou R$ 1,3 trilhão; Estados arrecadam R$ 500 milhões e municípios, R$ 200 milhões.

Ou seja: a economia brasileira trabalha um terço do tempo para gerar receitas para o Estado gastar com sua máquina, e o dinheiro fica em Brasília, longe da cidadania.

O mais grave sobre isso, no entanto, disse, nem é trabalhar tanto para o governo, mas atender a difícil e confusa carga tributária: as empresas gastam 2.300 mil horas por ano com a burocracia tributária.

São números impressionantes que foram mostrados a uma palestra predominantemente formada por brasileiros morando em Londres, cuja capacidade de influenciar as decisões sobre o Brasil é nula.

E cuja maioria estava mais interessada em assistir ao possível duelo de José Eduardo Cardozo e Sérgio Moro – que não se realizou. Ambos divergiram educadamente e trocaram mesuras.