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sábado, 18 de novembro de 2017

O gigantismo estatal no Brasil e o masoquismo brasileiro - Percival Puggina

O Brasil padece sob o peso do Estado, que consome recursos sem fim dos cidadãos contribuintes compulsórios e das empresas assacadas, apenas em benefício dos políticos e dos próprios funcionários. Mas o brasileiro é contra as privatizações: ele ama o Estado, quer mais Estado, clama por políticas públicas e exige serviços estatais de qualidade. Ainda não chegamos na idade da razão, os brasileiros ainda não se deram conta de que são masoquistas econômicos, e de que são eleitores sádicos, que querem infligir o maior mal aos demais, sem se dar conta de que faz mal a si mesmo.
O link referido neste artigo é este aqui:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_empresas_estatais_do_Brasil#Estatais_do_governo_federal
Paulo Roberto de Almeida

UM SOCIALISTA NO ARMÁRIO

por Percival Puggina. Artigo publicado em

 Pretendia contar o número de empresas, institutos e fundações estatais existentes no Brasil, considerando União, Estados e municípios. Comecei com determinação, mas desisti. Levei um susto! Quem quiser sentir a pujança do estatismo nacional vá à página da Wikipedia que tem a lista. Estamos falando de muitas centenas, senão de milhares desses entes. O Brasil é um país socialista, que muitos, sacudindo bandeiras vermelhas, se esforçam para tirar do armário. Armário cheio de esqueletos.
 A União tem 148 empresas estatais! Trinta por cento, segundo editorial de O Globo do dia 19 de agosto de 2016, criadas durante os governos petistas. Anos de gritaria contra privatizações e discursos de que "Estão vendendo tudo!" me levaram, ingenuamente, a crer que de fato estivessem. Mas era berreiro na sala, para distrair, enquanto a cozinha produzia novas iguarias para o cardápio político. A mesma matéria de O Globo conta que entre o fatídico ano de 2003 e 2015, esses filhotes do amor petista pelo Estado pagaram R$ 5,5 bi em salários e totalizaram um prejuízo de R$ 8 bi. A mais engenhosa das novas estatais foi concebida no PAC 2. É a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), que absorveria a tecnologia do trem-bala e executaria o projeto da ligação de alta velocidade entre Rio e São Paulo. A empresa, descarrilada desde sua criação em 2008, é totalmente dependente do Tesouro.
 O formidável e assustador conjunto das "nossas" estatais é parte ponderável dos problemas do Brasil. No entanto, o Instituto Paraná Pesquisas revelou, há três meses, que 61% dos brasileiros são contra privatizações feitas pelo setor privado. Pelo jeito, preferem as "privatizações" caseiras, as notórias apropriações, por partidos, sindicatos e líderes políticos, de tudo que for estatal. Se é para ser abusado que seja pelos de sempre. Trata-se de um vício do nosso presidencialismo. Quem governa comanda a administração e chefia o Estado, estendendo as mãos sobre o que puder alcançar em suas instituições.
É nos estofados desses grandes gabinetes, que a "privatização" do Estado proporciona os melhores orgasmos do poder. Em outras palavras: a experiência política e administrativa nos evidencia que empresas estatais realmente devotadas ao interesse público são fenômeno incomum. Como regra, resultam submetidas às conveniências privadas que descrevi acima. São nichos de usufruto e poder que pouco têm a ver com o bem nacional. Dentro desses domínios nascem as maiores reações a qualquer transferência que conduza ao desabrigo do Tesouro e às aflições do livre mercado. A ninguém entusiasma a ideia de remover o acento da poltrona e alinhá-lo à reta da competitividade.
A doutrinação socialista cumpre seu papel, ensinando que estatal é sinônimo de público, de social, e imune a interesses privados. Empresas estatais seriam como santuários de desprendimento e abnegação. Sim, claro. O Mensalão não existiu e a Lava Jato, você sabe, foi criada para impedir a alma mais honesta do Brasil de retornar à presidência.
E quando um partido sai, vem o outro para fazer a mesma coisa? - perguntará um leitor estrangeiro. Nem sempre, prezado visitante. Se o serviço for bem feito, a privatização partidária de um ente estatal pode ser anterior e se perpetuar além do governo desse partido. Quem duvida olhe para o Ministério de Educação e para as universidades públicas. Ali se educa a nação para amaldiçoar a iniciativa privada, amar o Estado, abrir o armário, e fornecer, nos ambicionados concursos públicos, respostas de acordo com o que pensa a banca.
_______________________________
* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

Eleicoes presidenciais na Franca em 2002 e no Brasil em 2018: alguma similaridade? - Paulo Roberto de Almeida

Escrevi este artigo logo depois do primeiro turno das eleições presidenciais na França de 2002, que viram o ex-primeiro ministro, líder do Partido Socialista, Lionel Jospin, ser rechaçado em favor do candidato de extrema direita, Jean-Marie Le Pen. O segundo turno foi ganho, como se sabe, pelo candidato da direita, gaullista, já presidente, Jacques Chirac, mas não é isso que importa. O importante é refletir sobre essas polarizações, e especular, como eu fiz em 2002, sobre o sentido das eleições para a esquerda brasileira. A esquerda venceu no Brasil em outubro, como se sabe, mas atualmente, em previsão das eleições de 2018, a mesma polarização direita-esquerda, e sobretudo a rejeição dos políticos tradicionais, pode trazer resultados inesperados.
A ver...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de novembro de 2017


A esquerda francesa e a esquerda brasileira:
eleições “didáticas” para políticos tradicionais

Paulo Roberto de Almeida
Publicada em Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, nº 12, Maio de 2002, link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35907/21066).

O primeiro turno das eleições presidenciais franceses, realizadas em 21 de abril de 2002, provocou, como é sabido, um terremoto político inesperado, num país conhecido, há várias décadas, pela tradicional divisão entre esquerda e direita. No dia 5 de maio, data do segundo turno, os franceses estão convidados a escolher entre um candidato de direita, o atual presidente Jacques Chirac, e um de extrema direita, o líder da Frente Nacional Jean-Marie Le Pen.
A eliminação do candidato socialista, o primeiro-ministro Lionel Jospin, trouxe enorme comoção, e não apenas entre os socialistas franceses. No Brasil, igualmente, sua derrota surpresa foi claramente ressentida nos meios de esquerda, cujo principal candidato às eleições presidenciais de outubro próximo, Lula, do PT, procurou ressaltar os perigos da divisão da esquerda, em lugar de expressar sua opinião sobre o pífio resultado do candidato socialista, que tinha recebido sua visita poucas semanas antes.
Mas o que representa, de fato, o resultado das eleições na França e que lições poderia ele apresentar para a esquerda brasileira, que se defronta com dilemas, senão similares, provavelmente equivalentes? Descartemos, em primeiro lugar, as explicações simplistas que redundam em explicar o sucesso do candidato direitista por tendências xenófobas que estariam latentes na população francesa e que teriam sido habilmente exploradas por Jean-Marie Le Pen. Certamente a população francesa não foi acometida por nenhum surto repentino de racismo, nem pretenderia fazer com que o próximo presidente, qualquer que seja ele, promova ou dê início a um processo sistemático de expulsão de estrangeiros, em primeiro lugar as centenas de milhares de magrebinos ou outros imigrantes islâmicos presentes no Hexágono. Não é isso exatamente que estava em causa nessas eleições, ou pelo menos não se trata, em primeiro lugar, de uma repentina impulsão anti-estrangeira por parte do eleitorado francês que teria emergido como um raio no céu azul da política gaulesa. O eleitorado francês mandou um recado aos políticos tradicionais, de esquerda e de direita, deixando de votar ou expressando um apoio de certa forma circunstancial ao candidato de extrema direita, que foi o único a tocar com alguma sinceridade nas questões que o preocupam em primeiro lugar: garantia de emprego e violência urbana.
Os resultados do escrutínio, estrito senso, são menos espetaculares do que suas consequências psicológicas. Uma totalização dos resultados obtidos pelos candidatos no primeiro turno das eleições presidenciais revela, com efeito, que a esquerda e a direita conservam, grosso modo, uma presença quase que estável no panorama eleitoral francês. Vejamos, em primeiro lugar, os números dos dezesseis candidatos e façamos, em seguida, os agrupamentos que uma lógica primária “esquerda-direita” poderia permitir.

Tabela 1

Resultados das eleições presidenciais da França

1º Turno, 21.04.02
Inscritos
40 251 881
Votantes
29 129 595
Votos válidos
28 141 988
Abstenções
27,63 %
Candidatos
Número votos
%
Jacques Chirac (presidente atual, RPR, direita)
5 664 263
19.87
Jean-Marie Le Pen (Front national, extrema direita)
4 804 385
16.86
Lionel Jospin (primeiro ministro socialista)
4 609 428
16.17
François Bayrou (centro, UDF)
1 948 535
6.83
Arlette Laguiller (trotsquista, LO)
1 629 977
5.72
Jean-Pierre Chevènement (soberanista, MDC)
1 518 633
5.32
Noël Mamère (ecologista, Verdes)
1 495 673
5.24
Olivier Besancenot (trotsquista, LCR)
1 210 505
4.24
Jean Saint-Josse (caçadores, direita, CPNT)
1 202 731
4.22
Alain Madelin (direita liberal, DL) 
1 113 428
3.90
Robert Hue (comunista, PCF)
960 703
3.37
Bruno Mégret (extrema direita, MNR)
666 979
2.34
Christiane Taubira (esquerda, PRG)
660 372
2.31
Corinne Lepage (ecologista, direita, CAP 21)
535 783
1.88
Christine Boutin (direita, FRS)
341 185
1.19
Daniel Gluckstein (trotsquista, PT)
132 712
0.46
Fonte: França: Ministère de l’Intérieur (Justiça)


Tabela 2

Resultados segundo a dicotomia esquerda-direita (em %)

Direita (Chirac, Saint-Josse, Madelin, Lepage, Boutin)
31,06
Extrema Direita (Le Pen, Mégret)
19,20
Esquerda (Jospin, Chevènement, Hue, Taubira,)
27,17
Extrema Esquerda (Laguiller, Besancenot, Gluckstein)
10,42
Centro (Bayrou, Mamère)
12,07

Uma análise preliminar desses resultados indicaria, portanto, que a esquerda, em seu conjunto, logrou preservar seu capital eleitoral (admitindo-se contar o “gaullista de esquerda” Chevènement entre suas fileiras), ainda que o candidato socialista tenha perdido muitos votos (cerca de 2,5 milhões) e que o comunista tenha sido propriamente “lapidado” (passou de 2,6 milhões em 1995 para cerca de 960 mil em 2002). A esquerda tradicional, em relação a 1995, perdeu pouco mais de 1,5 milhão de votos (mas apenas cerca de 300 mil votos, se excluídos os comunistas e os ecologistas), o que corresponde aproximadamente aos ganhos da extrema esquerda. De fato, foi a direita quem perdeu relativamente mais votos, em parte transferidos para a extrema direita representada pelos “irmãos inimigos” Le Pen e Mégret (este, um “trânsfuga” do Front National). A direita dita governamental (na qual poderia ser colocada igualmente o centro) perdeu, no total, quase 4 milhões de votos, sem que isso tenha ido beneficiar a extrema direita, que agregou menos de um milhão de votos adicionais aos resultados de 1995. Os votos faltantes na direita, portanto, foram os daqueles que se abstiveram, os verdadeiros vilões desta eleição de 2002, na qual a “participação” dos ausentes passou de 21 % em 1995 a quase 28 % agora.
Em outros termos, os resultados das eleições francesas não foram dramáticos para o conjunto da esquerda, mas é verdade que alguns dos candidatos da esquerda tradicional foram exemplarmente castigados, da mesma forma, aliás, que outros candidatos da direita governamental. A extrema direita deve ser considerada, para todos os efeitos práticos, como um agrupamento antissistema e de fato seu discurso político ataca tanto a esquerda como os representantes da direita e do centro conservador, considerados como pouco confiáveis na defesa dos “interesses do povo francês”.
No Brasil, cuja classe  política seguiu com atenção esses resultados, o candidato do PT, Lula, chamou a atenção, como vimos, para os perigos da divisão no seio da esquerda, algo tão tradicional como a multiplicação de seitas religiosas. De fato, Jospin deixou de figurar no segundo turno porque alguns dos tradicionais opositores da direita também quiseram mandar um sinal de descontentamento aos socialistas votando pelos candidatos da extrema esquerda. Mas, isso também ocorreu com os eleitores da direita tradicional. Quais seriam, portanto, os verdadeiros ensinamentos a serem tirados dessas eleições francesas?
Parece claro, em primeiro lugar, que o eleitorado francês – como eventualmente o brasileiro também poderá fazer dentro de alguns meses – mandou um sinal de nítido descontentamento em relação à classe política em seu conjunto, muito embora o castigo tenha penalizado mais claramente os candidatos tradicionais, de esquerda ou direita. Em segundo lugar, esse descontentamento se prende a razões bem específicas, que explicam o relativo sucesso da extrema direita: se trata da insegurança, tanto econômica quanto pessoal. A primeira fonte de insegurança se refere às ameaças ao emprego, representadas pelos perigos difusos da globalização – que os franceses, por atavismo antiamericano, chamam de mundialização – enquanto a segunda está diretamente ligada às ameaças bem reais de delinquência e de violência urbanas. Em terceiro lugar, no Brasil, esse tipo de sinalização seria mais suscetível de atingir os candidatos da esquerda, que são os mais identificados com uma certa leniência em relação às fontes de insegurança social.
O que, em termos mais simples, os eleitores franceses disseram aos políticos foi mais ou menos o seguinte: quero meu emprego de volta e quero que sejam eliminadas radicalmente as fontes de delinquência nos subúrbios das grandes cidades (as que são identificadas, certa ou erradamente, com a população imigrada, em primeiro lugar de origem árabe). Tudo isso tem muito pouco a ver com as diatribes anti-comunitárias do candidato Le Pen e suas ameaças de retirar a França da UE e da moeda única, mas deve provavelmente incitar o candidato Chirac a reforçar sua defesa dos esquemas “generosos” de redistribuição de recursos a grupos de interesses, entre os quais se conta a absurda (e absolutamente nefasta para os interesses brasileiros) Política Agrícola Comum.
No Brasil, igualmente, desemprego e violência serão os dois grandes temas das próximas campanhas presidenciais e não está ainda muito claro quem, da situação ou da oposição, poderá apresentar programas de governo dotados de um pouco mais de credibilidade nesses dois fortes vetores sociais. Se o candidato tradicional da esquerda parece mais propenso a defender o emprego dos já empregados, não é certo que ele seja visto como capaz de criar novas fontes de trabalho para os milhões de jovens (e outros nem tão jovens) que sobrevivem no mercado informal ou no subemprego. Por outro lado, a esquerda é vista, habitualmente, como mais leniente em relação ao “tratamento” a ser aplicado aos delinquentes, o que retira muito do apoio que lhe poderia ser concedido pela classe média ou mesmo pelas camadas ditas populares. O candidato governista, por sua vez, não terá uma campanha muito confortável nessas duas áreas, uma vez que o taxa média de desemprego tendeu a crescer no período (ainda que não dramaticamente) e que, segundo o senso comum, a violência parece ter aumentado exponencialmente.
Em que pese a crença de muitos militantes de esquerda, o eleitorado, qualquer que seja ele, tende a votar de maneira não ideológica, privilegiando mais suas preocupações do momento do que grandes programas de transformação geral da situação econômica ou política. O eleitor quer em geral que o político resolva o seu problema de emprego e de insegurança pessoal, todo o resto vindo depois, inclusive a peroração contra as políticas neoliberais e as privatizações.
Os detalhes e demandas específicas em termos de políticas setoriais surgem durante a campanha, e nesse campo a estabilidade econômica continua a ser valorizada potencialmente (ainda que seja pouco provável que ela constitua o “cabo eleitoral” que foi em 1994 e em 1998). Em todo caso, o candidato do PT não parece dispor, nesse particular, de uma boa base de partida, tendo em algum momento do passado deixado a entender que um “pouquinho” de inflação seria uma troca aceitável por um pouco mais de crescimento econômico e de criação de empregos. Em síntese, no Brasil como na França, o embate não se dará entre a esquerda e a direita, mas entre candidatos que saberão inspirar maior ou menor confiança em termos de preocupações imediatas dos cidadãos, em primeiro lugar em relação às fontes de insegurança pessoal e social. Políticos acomodados, de direita ou de esquerda: preparem-se para algumas surpresas!

Paulo Roberto de Almeida
895: 26/04/2002
revisão em 29/04/2002

Uma homenagem a Rubens Ricupero - Paulo Roberto de Almeida


Em busca do livro perdido: homenagem a Rubens Ricupero

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag
[Saudação a Rubens Ricupero; um reconhecimento e uma dívida pendente]



Em busca do livro perdido
À la recherche du temps perdu é um roman fleuve de Marcel Proust, escrito entre 1906 e 1922, publicado em sete tomos entre 1913 e 1922, cujos três últimos volumes apareceram depois da morte do autor. Mais do que a descrição de uma sequência de fatos e de acontecimentos enfeixados entre essas datas, essa obra de Proust representa uma reflexão sobre a literatura, sobre a memória, sobre o tempo.
Não pretendo, nesta pequena homenagem ao embaixador Rubens Ricupero, mimetizar o esforço monumental de Proust, como uma espécie de compensação pela inexistência de um livro, mas apenas em um único volume, que deveria ter precedido, de alguns anos, este ensaio “fleuve” que é hoje apresentado no Itamaraty pelo seu autor. O que desejo, nesta oportunidade, é, em primeiro lugar, formular um pedido de desculpas, efetuar, depois, um reconhecimento, e, por fim, confirmar que tenho, acho que todos temos, uma dívida, ainda a ser reparada em favor de um mestre, um autor, um professor, um colega de carreira que, reconhecidamente, honra o Itamaraty e suas tradições de excelência, encarnadas da melhor forma possível, ao longo das últimas seis décadas, por um dos nossos intelectuais mais distinguidos.
Por que digo isto, e por que começo esta homenagem a Ricupero, evocando Marcel Proust e seu roman fleuve em busca do tempo perdido? É porque eu também estou em busca do livro perdido, e por isso mesmo formulo, em primeiro lugar, um pedido de desculpas. Mais de cinco anos atrás, formulei um projeto, apresentado pouco depois a Gelson Fonseca e prontamente aceito sob a forma de uma coedição, de fazer um livro em homenagem ao mestre, tentativamente chamado “História, diplomacia e comércio internacional: ensaios em homenagem a Rubens Ricupero”. Esse projeto tinha até uma completa organização, em duas dúzias de capítulos divididos em cinco partes: 1) História: a mais constante das companhias; 2) Diplomacia: princípios, regras e valores; 3) Políticas Públicas: formulação e execução; 4) Comércio e desenvolvimento nos contextos regional e internacional, e 5) Globalização: problemas e perspectivas. Eu ainda me tinha reservado a confecção de uma introdução e de dois capítulos finais, o primeiro uma síntese pessoal sobre o professor e o homem público, o segundo, de cunho conclusivo, um ensaio reflexivo e interpretativo sobre a vida e o pensamento de Rubens Ricupero. Nada disso foi feito, ou o foi apenas em parte, daí este meu primeiro pedido de desculpas que sou agora obrigado a oferecer.
Esse era o projeto original que, acompanhado de uma carta convite, assinada por mim e pelo embaixador Gelson Fonseca, foi encaminhado a duas dezenas de amigos, de admiradores e colegas do embaixador Ricupero, com o nosso pedido singelo de que oferecessem, em tempo hábil, suas contribuições a um volume de ensaios que se encaixaria naquela categoria, amplamente conhecida nos meios acadêmicos, que os alemães chamam de Festschrift, os franceses pelo qualificativo de Mélanges offertes à..., e, na tradição inglesa e americana, pelo tradicional Essays in Honor ofPois bem, quero apresentar aqui o nosso humilde pedido de desculpas, por não termos sido capazes de apresentar, muito por falta de cooperação dos convidados, mas também por nossa própria negligência, esse projetado livro que deveria ter precedido, de alguns anos, este que agora vem a público, do próprio autor, e que merece, legitimamente, uma justa homenagem de todos nós. Mas, este não era o livro que eu teria gostado de fazer, de apresentar e de oferecer aos interessados no devido tempo, hélas perdido.
Desejo, em segundo lugar, efetuar um reconhecimento, e creio interpretar a unanimidade dos presentes, no sentido em que, mais do que simplesmente prestar uma homenagem ao maior intelectual da carreira, dizer que somos nós que agradecemos esta oportunidade, a chance e o benefício de recebermos agora, este livro que representa a mais bela síntese sobre o que tem sido, ao longo de dois séculos ou mais, nossa própria história, nossa participação na construção da nação, nosso papel em episódios decisivos de uma trajetória bissecular, nossa contribuição para a edificação, sempre tentativa, de um país, de uma sociedade, que provavelmente gostaríamos fosse mais desenvolvida, mais justa, mais inclusiva, e mais participativa no chamado concerto das nações, mas que é esta que hoje contemplamos um pouco apreensivos quanto ao seu estado presente e seus rumos futuros. Independentemente do balanço que se faça – e o faremos a caminho do bicentenário –, esta é a nação da qual somos representantes mandatados, para a qual contribuímos com nosso quinhão de esforços voltados para a construção – nos termos da sociologia germânica – de uma Gemeinschaft que certamente imaginávamos um pouco mais solidária e mais avançada do que esta que agora temos, se tivéssemos tido a possibilidade de consolidar uma Wirtschaft compatível com as justas aspirações do seu povo, ao longo destes dois séculos.
Se não o conseguimos, devemos pelo menos reconhecer que esta obra, A Diplomacia na Construção da Nação, 1750-2016, representa a melhor síntese sobre esse itinerário – constante, contínuo e denodado – de esforços de várias gerações de diplomatas e de homens públicos que honraram a nação, e que tentaram dela fazer, senão um país ideal, pelo menos um Estado de bem-estar em benefício de seus próprios cidadãos e perfeitamente cooperativo no plano internacional, em prol da paz, da segurança, do desenvolvimento de todos os povos e nações. Somos nós, portanto, que devemos agradecer ao embaixador Rubens Ricupero, por nos ter oferecido uma rationale histórica dessa longa trajetória que vai das negociações do Tratado de Madri por Alexandre de Gusmão até as angústias e dúvidas do tempo presente, quanto às possibilidades de sermos capazes de honrar os pais fundadores da nação, e também nossos antecessores na diplomacia profissional, dando continuidade à obra ainda inacabada de construção da nação, preservando nossos mais sagrados princípios e valores, os da democracia, dos direitos humanos, da justiça social, do tratamento humanitário e igualitário de todos os brasileiros.

Um livro apenas temporariamente perdido
É comum, no ambiente acadêmico, a organização de volumes comemorativos em homenagem àqueles que se distinguiram em carreiras especialmente bem sucedidas na docência e na pesquisa de uma área qualquer; a prática, é verdade, é bem mais usual e frequente nas humanidades do que nas ciências exatas. O objetivo é justamente o de se render tributo, geralmente por parte de colegas, a quem soube exercer-se com talento e dedicação nas diversas vertentes e feituras do magistério e da pesquisa ao longo de todo um itinerário que costuma estender por uma geração inteira, senão mais, alcançando, ano a ano, dezenas de graduações acadêmicas e de cursos complementares, com possível e não rara influência fora do ambiente estritamente universitário.
Esses volumes são menos conhecidos fora da academia, isto é, nas corporações de ofício que também possuem no trabalho intelectual a base fundamental de suas reflexões e de suas práticas: estas seriam, por exemplo, a magistratura, os encarregados de políticas públicas, como os funcionários dos tesouros nacionais, dos bancos centrais e várias outras na burocracia oficial. Poderiam também merecer tais distinções algumas categorias do “mandarinato estatal” que, em diversos casos, possuem instituições de ensino, de formação e treinamento, bibliotecas especializadas e, por vezes até, um corpo estável de professores, dedicados a instruir e aperfeiçoar, nos ossos daquele ofício, os novos recrutas e os funcionários concursados da profissão em causa.
Este deveria ser também o caso da diplomacia, uma carreira de Estado altamente intelectualizada, dotada de instituições próprias de seleção, recrutamento e treinamento, com professores designados, dentro e fora da carreira, para o processo de socialização, homogeneização e aperfeiçoamento dos admitidos na carreira. A mais forte razão, os diplomatas são, junto com os soldados e marinheiros, agentes do Estado por excelência, dos quais se exige, justamente a mais alta qualificação técnica e intelectual na defesa dos interesses do país e na consecução dos grandes objetivos nacionais. De fato, temos notícia de que o Instituto Rio Branco, que exerce, desde 1945, o monopólio nessas tarefas, ou o braço editorial do Itamaraty, a Fundação Alexandre de Gusmão, têm se esforçado em prestar uma justa homenagem, sob diversas formas, aos mais brilhantes ou distinguidos mentores e profissionais da carreira, por exemplo na modalidade de “leituras públicas” enfeixadas sob a rubrica de “Percursos Diplomáticos” que criamos com o Diretor-Geral do Instituto Rio Branco, ou ainda pela publicação ocasional de diversos volumes de compilação de escritos esparsos ou das memórias de um ou outro dentre os diplomatas que deixaram suas marcas intelectuais nesta Casa.
Volumes comemorativos do sesquicentenário do nascimento do ícone ímpar da diplomacia brasileira, de sua entrada em funções, em 1902, e de sua morte no exercício do cargo, dez anos depois, foram publicados pela Funag, em 1995 – aliás, pelo próprio Ricupero, uma fotobiografia do Barão do Rio Branco, com João Hermes Pereira de Araujo –, e em 2002 e 2012, respectivamente. Mas não se tratou, obviamente, de obras comparáveis, no espírito e no estilo, a um Festschrift, como o que reconhecemos deveria ser feito em homenagem a Ricupero. Um exercício vagamente assimilável a esse gênero – mas exercendo-se apenas em direção de personagens falecidos – foi constituído pela obra organizada em 2001 pelo diplomata e acadêmico Alberto da Costa e Silva, em torno da presença de figuras relevantes do Itamaraty na cultura brasileira, certamente título ambicioso, mas que permitiu registrar a registrar a trajetória de um número seleto de diplomatas intelectuais, desparecidos, que se exerceram com talento nas letras e nas humanidades, em geral.
Embora reconhecendo o mérito do empreendimento, foi como se a iniciativa dissesse algo do gênero: “Aos mortos, todas as nossas homenagens; aos vivos, mais um pouco de paciência: contentem-se, por enquanto, com algumas medalhinhas, antes que possamos nos ocupar, no devido tempo, de seus despojos literários”. Existe um duplo risco no empreendimento: por um lado, os mortos, a exemplo de Varnhagen, Edmundo Penna Barbosa da Silva, ou Oswaldo Aranha – todos eles contemplados em livros editados recentemente pela Funag – já não podem reclamar do que contarmos ou escrevermos sobre eles. Mas se fossemos, por outro lado, nos ocupar de alguns muito vivos, pessoas do presente, dotadas de certa influência, sempre se pode correr o risco de cair no conjuntural ou, pior, sofrer pressão política indevida, para que elas sejam entronizadas como supostos arautos geniais da verdadeira doutrina social, ou até mesmo da melhor prática diplomática. Em relação aos desaparecidos existe hipoteticamente o risco de cair em exagerados elogios póstumos, atribuindo-lhes todas as virtudes e nenhum vício; no segundo caso, o perigo seria o de fazer algum tipo de panegírico aos poderosos do momento, que podem ser ególatras compulsivos, a exemplo de certo “filho do Brasil”.
Mas aqui entra um nicho histórico em favor de Rubens Ricupero, em relação ao qual, dado o testemunho concreto de sua imensa obra já publicada, não se corre nenhum risco de incorrer numa ou noutra tentação. O sentido de uma verdadeira homenagem, e acredito que o fazemos agora, é o de prestar um justo reconhecimento a quem tanto contribuiu para o nosso próprio enriquecimento intelectual, para a valorização desta Casa e a de nossa carreira e para o engrandecimento da nação. Estamos, portanto, nos antecipando à inevitável passagem do tempo, prestando uma homenagem em vida a um dos nossos mais distintos intelectuais e homens públicos. Ao fazê-lo, cabe, em terceiro lugar, o reconhecimento desta dívida, que ainda precisa ser reparada, e o será, no devido tempo, esperamos não mais perdido.

O sentido de uma justa homenagem
Por que decidimos romper com esta sadia precaução e prestar uma homenagem a um colega de carreira ainda em plena e intensa produção intelectual? Poderíamos alinhar parágrafos e mais parágrafos de justificativas e explicações, mas dispensamo-nos da redundância. Bastaria o atestado, informal, de quem conhece o personagem e sua produção. Quem quer que tenha acompanhado a diplomacia brasileira nos últimos cinquenta anos, quem sorveu suas aulas na Universidade de Brasília ou no Instituto Rio Branco, quem assistiu a qualquer uma de suas centenas de palestras em algum canto do mundo, quem percorreu, nas últimas décadas, as páginas dos jornais mais importantes do país, nas seções de economia ou de atualidade internacional, quem acompanhou a saga da implementação do Plano Real, ou quem cotidianamente segue a discussão bem informada e responsável, em quaisquer veículos, em torno dos temas do comércio, do meio ambiente, os diplomáticos e, de modo geral, os de relações internacionais, ou de qualquer outro assunto, quem já leu seus artigos e ensaios, ouviu suas opiniões, assistiu a entrevistas de Rubens Ricupero, qualquer um desses pode responder melhor do que os organizadores e colaboradores de uma coletânea ainda em preparação sobre a razão desta homenagem, sendo apenas de se estranhar o atraso na tarefa. Não parece caber, assim, qualquer justificativa para a presente sessão de homenagem: o personagem aqui presente, e suas produções, constituem sua própria mensagem e sua apresentação, sem qualquer necessidade de campanha publicitária.
Esta iniciativa, preliminar, portanto, a um verdadeiro Festschrift, deve ser vista no sentido preciso que possui um Festschrift: uma homenagem, singela, mas sincera, de amigos e admiradores de Rubens Ricupero a um dos mais distinguidos diplomatas e homens públicos do Brasil do último meio século e um pouco além. Os elogios que podemos fazer em sua intenção deveriam tocar pelo menos alguns – senão todos – os domínios da inteligência e do pensamento intelectual que percorreu e frequentou nosso personagem: todos os aqui presentes certamente possuem ou exibem, em relação a ele, aquilo que Goethe chamou de “afinidades eletivas”. Este é o sentido de nossa sincera e justa homenagem, nosso reconhecimento pela obra intelectual que Ricupero construiu em benefício da nossa diplomacia, neste exercício que eu mesmo chamaria, numa pequena inversão do conceito de Goethe, de “escolhas afetivas”. Este é o sentido desta homenagem, que fazemos ao mestre, com carinho.
Nosso mais sincero reconhecimento ao embaixador Rubens Ricupero.
Cheers!


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de setembro de 2017