Escrevi este artigo logo depois do primeiro turno das eleições presidenciais na França de 2002, que viram o ex-primeiro ministro, líder do Partido Socialista, Lionel Jospin, ser rechaçado em favor do candidato de extrema direita, Jean-Marie Le Pen. O segundo turno foi ganho, como se sabe, pelo candidato da direita, gaullista, já presidente, Jacques Chirac, mas não é isso que importa. O importante é refletir sobre essas polarizações, e especular, como eu fiz em 2002, sobre o sentido das eleições para a esquerda brasileira. A esquerda venceu no Brasil em outubro, como se sabe, mas atualmente, em previsão das eleições de 2018, a mesma polarização direita-esquerda, e sobretudo a rejeição dos políticos tradicionais, pode trazer resultados inesperados.
A ver...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de novembro de 2017
A
esquerda francesa e a esquerda brasileira:
eleições
“didáticas” para políticos tradicionais
Paulo
Roberto de Almeida
O primeiro turno das eleições presidenciais franceses,
realizadas em 21 de abril de 2002, provocou, como é sabido, um terremoto
político inesperado, num país conhecido, há várias décadas, pela tradicional
divisão entre esquerda e direita. No dia 5 de maio, data do segundo turno, os
franceses estão convidados a escolher entre um candidato de direita, o atual
presidente Jacques Chirac, e um de extrema direita, o líder da Frente Nacional
Jean-Marie Le Pen.
A eliminação do candidato socialista, o primeiro-ministro
Lionel Jospin, trouxe enorme comoção, e não apenas entre os socialistas
franceses. No Brasil, igualmente, sua derrota surpresa foi claramente
ressentida nos meios de esquerda, cujo principal candidato às eleições
presidenciais de outubro próximo, Lula, do PT, procurou ressaltar os perigos da
divisão da esquerda, em lugar de expressar sua opinião sobre o pífio resultado
do candidato socialista, que tinha recebido sua visita poucas semanas antes.
Mas o que representa, de fato, o resultado das eleições
na França e que lições poderia ele apresentar para a esquerda brasileira, que
se defronta com dilemas, senão similares, provavelmente equivalentes?
Descartemos, em primeiro lugar, as explicações simplistas que redundam em
explicar o sucesso do candidato direitista por tendências xenófobas que
estariam latentes na população francesa e que teriam sido habilmente exploradas
por Jean-Marie Le Pen. Certamente a população francesa não foi acometida por
nenhum surto repentino de racismo, nem pretenderia fazer com que o próximo presidente,
qualquer que seja ele, promova ou dê início a um processo sistemático de
expulsão de estrangeiros, em primeiro lugar as centenas de milhares de
magrebinos ou outros imigrantes islâmicos presentes no Hexágono. Não é isso
exatamente que estava em causa nessas eleições, ou pelo menos não se trata, em
primeiro lugar, de uma repentina impulsão anti-estrangeira por parte do
eleitorado francês que teria emergido como um raio no céu azul da política
gaulesa. O eleitorado francês mandou um recado aos políticos tradicionais, de
esquerda e de direita, deixando de votar ou expressando um apoio de certa forma
circunstancial ao candidato de extrema direita, que foi o único a tocar com
alguma sinceridade nas questões que o preocupam em primeiro lugar: garantia de emprego
e violência urbana.
Os resultados do escrutínio, estrito senso, são menos
espetaculares do que suas consequências psicológicas. Uma totalização dos
resultados obtidos pelos candidatos no primeiro turno das eleições
presidenciais revela, com efeito, que a esquerda e a direita conservam, grosso
modo, uma presença quase que estável no panorama eleitoral francês. Vejamos, em
primeiro lugar, os números dos dezesseis candidatos e façamos, em seguida, os
agrupamentos que uma lógica primária “esquerda-direita” poderia permitir.
Tabela 1
Resultados das eleições presidenciais da França
1º Turno, 21.04.02
|
Inscritos
|
40 251 881
|
Votantes
|
29 129 595
|
Votos válidos
|
28 141 988
|
Abstenções
|
27,63 %
|
Candidatos
|
Número votos
|
%
|
Jacques Chirac
(presidente atual, RPR, direita)
|
5 664 263
|
19.87
|
Jean-Marie Le Pen (Front
national, extrema direita)
|
4 804 385
|
16.86
|
Lionel Jospin (primeiro
ministro socialista)
|
4 609 428
|
16.17
|
François Bayrou (centro,
UDF)
|
1 948 535
|
6.83
|
Arlette Laguiller
(trotsquista, LO)
|
1 629 977
|
5.72
|
Jean-Pierre Chevènement
(soberanista, MDC)
|
1 518 633
|
5.32
|
Noël Mamère (ecologista,
Verdes)
|
1 495 673
|
5.24
|
Olivier Besancenot
(trotsquista, LCR)
|
1 210 505
|
4.24
|
Jean Saint-Josse
(caçadores, direita, CPNT)
|
1 202 731
|
4.22
|
Alain Madelin (direita
liberal, DL)
|
1 113 428
|
3.90
|
Robert Hue (comunista,
PCF)
|
960 703
|
3.37
|
Bruno Mégret (extrema
direita, MNR)
|
666 979
|
2.34
|
Christiane Taubira
(esquerda, PRG)
|
660 372
|
2.31
|
Corinne Lepage
(ecologista, direita, CAP 21)
|
535 783
|
1.88
|
Christine Boutin
(direita, FRS)
|
341 185
|
1.19
|
Daniel Gluckstein
(trotsquista, PT)
|
132 712
|
0.46
|
Fonte: França: Ministère de l’Intérieur (Justiça)
|
Tabela 2
Resultados segundo a dicotomia esquerda-direita (em %)
|
Direita
(Chirac, Saint-Josse, Madelin, Lepage, Boutin)
|
31,06
|
Extrema
Direita (Le Pen, Mégret)
|
19,20
|
Esquerda
(Jospin, Chevènement, Hue, Taubira,)
|
27,17
|
Extrema
Esquerda (Laguiller, Besancenot, Gluckstein)
|
10,42
|
Centro
(Bayrou, Mamère)
|
12,07
|
Uma análise preliminar desses resultados indicaria,
portanto, que a esquerda, em seu conjunto, logrou preservar seu capital
eleitoral (admitindo-se contar o “gaullista de esquerda” Chevènement entre suas
fileiras), ainda que o candidato socialista tenha perdido muitos votos (cerca
de 2,5 milhões) e que o comunista tenha sido propriamente “lapidado” (passou de
2,6 milhões em 1995 para cerca de 960 mil em 2002). A esquerda tradicional, em
relação a 1995, perdeu pouco mais de 1,5 milhão de votos (mas apenas cerca de
300 mil votos, se excluídos os comunistas e os ecologistas), o que corresponde
aproximadamente aos ganhos da extrema esquerda. De fato, foi a direita quem
perdeu relativamente mais votos, em parte transferidos para a extrema direita
representada pelos “irmãos inimigos” Le Pen e Mégret (este, um “trânsfuga” do
Front National). A direita dita governamental (na qual poderia ser colocada
igualmente o centro) perdeu, no total, quase 4 milhões de votos, sem que isso
tenha ido beneficiar a extrema direita, que agregou menos de um milhão de votos
adicionais aos resultados de 1995. Os votos faltantes na direita, portanto,
foram os daqueles que se abstiveram, os verdadeiros vilões desta eleição de
2002, na qual a “participação” dos ausentes passou de 21 % em 1995 a quase 28 %
agora.
Em outros termos, os resultados das eleições francesas
não foram dramáticos para o conjunto da esquerda, mas é verdade que alguns dos
candidatos da esquerda tradicional foram exemplarmente castigados, da mesma
forma, aliás, que outros candidatos da direita governamental. A extrema direita
deve ser considerada, para todos os efeitos práticos, como um agrupamento antissistema
e de fato seu discurso político ataca tanto a esquerda como os representantes
da direita e do centro conservador, considerados como pouco confiáveis na
defesa dos “interesses do povo francês”.
No Brasil, cuja classe
política seguiu com atenção esses resultados, o candidato do PT, Lula,
chamou a atenção, como vimos, para os perigos da divisão no seio da esquerda,
algo tão tradicional como a multiplicação de seitas religiosas. De fato, Jospin
deixou de figurar no segundo turno porque alguns dos tradicionais opositores da
direita também quiseram mandar um sinal de descontentamento aos socialistas
votando pelos candidatos da extrema esquerda. Mas, isso também ocorreu com os
eleitores da direita tradicional. Quais seriam, portanto, os verdadeiros
ensinamentos a serem tirados dessas eleições francesas?
Parece claro, em primeiro lugar, que o eleitorado
francês – como eventualmente o brasileiro também poderá fazer dentro de alguns
meses – mandou um sinal de nítido descontentamento em relação à classe política
em seu conjunto, muito embora o castigo tenha penalizado mais claramente os
candidatos tradicionais, de esquerda ou direita. Em segundo lugar, esse
descontentamento se prende a razões bem específicas, que explicam o relativo
sucesso da extrema direita: se trata da insegurança, tanto econômica quanto
pessoal. A primeira fonte de insegurança se refere às ameaças ao emprego,
representadas pelos perigos difusos da globalização – que os franceses, por
atavismo antiamericano, chamam de mundialização – enquanto a segunda está
diretamente ligada às ameaças bem reais de delinquência e de violência urbanas.
Em terceiro lugar, no Brasil, esse tipo de sinalização seria mais suscetível de
atingir os candidatos da esquerda, que são os mais identificados com uma certa
leniência em relação às fontes de insegurança social.
O que, em termos mais simples, os eleitores franceses
disseram aos políticos foi mais ou menos o seguinte: quero meu emprego de volta
e quero que sejam eliminadas radicalmente as fontes de delinquência nos
subúrbios das grandes cidades (as que são identificadas, certa ou erradamente,
com a população imigrada, em primeiro lugar de origem árabe). Tudo isso tem
muito pouco a ver com as diatribes anti-comunitárias do candidato Le Pen e suas
ameaças de retirar a França da UE e da moeda única, mas deve provavelmente
incitar o candidato Chirac a reforçar sua defesa dos esquemas “generosos” de
redistribuição de recursos a grupos de interesses, entre os quais se conta a
absurda (e absolutamente nefasta para os interesses brasileiros) Política
Agrícola Comum.
No Brasil, igualmente, desemprego e violência serão os
dois grandes temas das próximas campanhas presidenciais e não está ainda muito
claro quem, da situação ou da oposição, poderá apresentar programas de governo
dotados de um pouco mais de credibilidade nesses dois fortes vetores sociais.
Se o candidato tradicional da esquerda parece mais propenso a defender o
emprego dos já empregados, não é certo que ele seja visto como capaz de criar
novas fontes de trabalho para os milhões de jovens (e outros nem tão jovens)
que sobrevivem no mercado informal ou no subemprego. Por outro lado, a esquerda
é vista, habitualmente, como mais leniente em relação ao “tratamento” a ser
aplicado aos delinquentes, o que retira muito do apoio que lhe poderia ser
concedido pela classe média ou mesmo pelas camadas ditas populares. O candidato
governista, por sua vez, não terá uma campanha muito confortável nessas duas
áreas, uma vez que o taxa média de desemprego tendeu a crescer no período
(ainda que não dramaticamente) e que, segundo o senso comum, a violência parece
ter aumentado exponencialmente.
Em que pese a crença de muitos militantes de esquerda, o
eleitorado, qualquer que seja ele, tende a votar de maneira não ideológica,
privilegiando mais suas preocupações do momento do que grandes programas de
transformação geral da situação econômica ou política. O eleitor quer em geral
que o político resolva o seu problema de emprego e de insegurança pessoal, todo
o resto vindo depois, inclusive a peroração contra as políticas neoliberais e
as privatizações.
Os detalhes e demandas específicas em termos de
políticas setoriais surgem durante a campanha, e nesse campo a estabilidade econômica
continua a ser valorizada potencialmente (ainda que seja pouco provável que ela
constitua o “cabo eleitoral” que foi em 1994 e em 1998). Em todo caso, o
candidato do PT não parece dispor, nesse particular, de uma boa base de
partida, tendo em algum momento do passado deixado a entender que um
“pouquinho” de inflação seria uma troca aceitável por um pouco mais de
crescimento econômico e de criação de empregos. Em síntese, no Brasil como na
França, o embate não se dará entre a esquerda e a direita, mas entre candidatos
que saberão inspirar maior ou menor confiança em termos de preocupações
imediatas dos cidadãos, em primeiro lugar em relação às fontes de insegurança
pessoal e social. Políticos acomodados, de direita ou de esquerda: preparem-se
para algumas surpresas!
Paulo Roberto de Almeida
895:
26/04/2002
revisão
em 29/04/2002
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