O gesto descrito às portas da igreja de Wittenberg é a
representação mítica e ritual do significado de Martinho Lutero para o
chamado
Sacro Império Romano-Germânico.
Há muito se duvida que ele tenha mesmo pregado suas teses; as menções
ao ato desafiador aparecem muito depois, conforme se vai adornando e
mitificando a personagem Lutero e o cisma que ele trouxe consigo. Mas,
se non è vero, è ben trovato (ainda que não seja verdade, é bem possível).
Seria muito menos heroico mandar o texto de protesto pelo correio – que
é o que provavelmente aconteceu – ao bispo de Mogúncia (Mainz). O gesto
simbólico conserva hoje toda sua aura teatral, mas era muito mais épico
naquele tempo, porque o homem do século XVI sabia que essa era a
maneira de divulgar os chamados cartazes de desafio, em que um
cavalheiro insultava publicamente outro e o desafiava a um duelo. E era
preciso responder, quem não o fazia ficava desonrado para sempre. Há, na
figura de Lutero, um componente de heroísmo
a posteriori muito interessante para compreender seu significado na história da
Alemanha e também, não se surpreenda o leitor, na da
Espanha.
O
cisma luterano é a manifestação de um problema político, mas o contexto
religioso em que foi mantido turva completamente sua compreensão.
Através dele se expressa o nacionalismo germânico primordial e, por
isso, Martinho Lutero é celebrado e exaltado na Alemanha cada vez que
esse nacionalismo ganha força. Desde a Segunda Guerra Mundial não se
comemorava de maneira significativa nenhuma efeméride luterana. Em 1983
passou em branco na Alemanha Ocidental o quinto centenário do nascimento
de Martinho Lutero, tão festejado nos tempos de
Bismarck. Em 10 de novembro de 1883, por exemplo, o imperador
Guilherme I liderou o desfile do quarto centenário de nascimento de Lutero em Eisleben.
Em
Historia del año 1883 o intelectual e político
espanhol Emilio Castelar escreve: “Os povos protestantes celebraram o
quarto centenário de Lutero com júbilo universal” e ainda, embora “os
católicos e os
protestantes
da Alemanha não tenham concordado em homenagear o religioso,
concordaram em homenagear o patriota”. Mas o mais interessante é o
expediente: “Nós, que não pertencemos à
religião luterana
nem à raça germânica, espanhóis e católicos de nascimento, podemos
celebrar sem receio aquele que, iniciando as liberdades de pensamento e
de exame, iniciou as revoluções modernas, por cuja virtude rompemos
nossos grilhões de servos e proclamamos a universalidade da justiça e do
direito”. Não precisamos, portanto, ir a Wittenberg para ler os textos
que comentam a espetacular exposição. O que ali se conta é exatamente o
mesmo que Castelar nos diz: Lutero, o pai da liberdade religiosa na
Europa; Lutero, o herói por cujo esforço ímpar este continente se livrou das trevas e da
escravidão.
Castelar diz que “rompemos nossos grilhões”. A Lutero devemos nada
menos que “a justiça e o direito”, porque é evidente que os espanhóis
não tínhamos isso.
Lutero foi o grande protetor das
oligarquias, o fiador religioso de um feudalismo tardio que manteve a
Alemanha no atraso e na pobreza
E, claro, se Lutero rompe os
grilhões
é porque havia grilhões a romper e alguém os tinha colocado. Se traz a
liberdade de pensamento é porque isso não existia, e quem impedia? Nem é
preciso dizer com todas as letras, mas está aí, constantemente
presente: o sombrio e sinistro Império espanhol e católico. Para que o
herói Lutero exista é preciso haver um monstro que o antagonize. Sem
monstro, não há herói. Quem visita Wittenberg ou qualquer das muitas
exposições e celebrações na Alemanha hoje, mesmo sendo espanhol e
católico – e especialmente se for espanhol e católico – não vê o cenário
que torna possível o brilho germânico. Quando digo católico não quero
dizer religioso. A fé é irrelevante neste contexto. Refiro-me a quem
nasceu em um país de
cultura católica. Porque esse fulgor germânico precisou, século após século, como condição
sine qua non
para sua exaltação, que o sul mediterrâneo fosse obscuro e atrasado,
imoral e decadente, indolente e pouco confiável. Foi em tempos de Lutero
que o adjetivo
welsch – uma denominação geográfica pouco
precisa para referir-se ao sul – passou a significar latino ou românico,
e malvado e imoral ao mesmo tempo.
A “liberdade luterana” não resiste a um olhar próximo e
livre de preconceitos. Começou provocando uma guerra espantosa que se
chamou
Guerra dos Camponeses
e deixou mais de 100.000 mortos nos campos do Sacro Império. Porque os
camponeses acreditaram de verdade naquelas exaltadas pregações da boca
de Lutero e de outros que clamavam contra as riquezas acumuladas pelos
poderosos da terra com
Roma como fiadora de tais injustiças. Isso provocou uma convulsão social como nenhuma outra na Europa até a
Revolução Francesa.
Os príncipes alemães, cujo propósito era basicamente opor-se ao
imperador, não pensaram que incentivar aquela efervescência antissistema
(Carlos V e o catolicismo) poderia se voltar contra eles, mas tiveram
que enfrentar uma revolta de proporções gigantescas. Alguns clérigos
revolucionários como
Müntzer,
conhecido como o teólogo da revolução, mantiveram-se fiéis a seus
princípios até o final e foram executados, mas Lutero decidiu
sobreviver. Desde o início de 1525, depois da morte de
Hutten
e Sickingen, os dois líderes revolucionários que o tinham protegido,
Lutero fica serviço dos príncipes alemães e incentiva a violência brutal
com que os grandes senhores germânicos sufocaram as rebeliões
campesinas: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena
em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados,
apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães
raivosos”.
A partir de então Lutero passa a ser o grande defensor das
oligarquias senhoriais, o arrimo teológico de um
feudalismo tardio
que manteve a Alemanha em um estado de pobreza e atraso já superado na
Espanha e na maior parte do sul. A estagnação dessas oligarquias pela
via religiosa impediu a unificação da Alemanha e possibilitou uma
sobrevivência anômala do sistema feudal nessa parte da Europa. Quase
todo mundo sabe que a servidão na
Rússia
durou até o século XIX, mas se ignora que na Alemanha também, sobretudo
nas regiões protestantes. Um dos primeiros estados a abolir as leis de
servidão foi a católica Bavária em 1808, mas, na região oriental, o
processo só foi concluído em meados do século. Bem. Isso no que diz
respeito a Lutero como libertador social. Vejamos agora Lutero como
libertador do pensamento.
Liberdade religiosa
e livre exame são dois ícones linguísticos cunhados por Lutero que
nunca tiveram um reflexo na realidade, como demonstram primeiro a lógica
e depois a história.
Quase uma quarta parte das propriedades do Sacro Império mudaram de mãos. Não houve um latrocínio igual até a Revolução Russa
Supostamente o livre exame significa que o cristão deve se
entender diretamente com Deus através dos textos sagrados, sem
intermediários onerosos e imorais como “os romanos” (assim Lutero
chamava o clero católico, embora fossem tão alemães como ele). Se for
assim, há uma consequência imediata: o desaparecimento do clero, por
desnecessário. Os fatos demonstram que isto jamais aconteceu, porque
Lutero não operou a destruição das igrejas, apenas criou outra. Nem
Lutero deixou de ser clérigo, nem o número deles no Sacro Império
diminuiu. Simplesmente se formou um novo corpo sacerdotal que também
guiou o rebanho aonde deveria ir. Só que agora esse corpo de pastores
serve unicamente ao senhor do território (e não a um Papa estrangeiro e a
um imperador aliado com o mundo
welsch), que é quem lhe dá de
comer. Se lhe servir bem, como fez Lutero, viverá bem. Viverá inclusive
melhor que com os “romanos”, e assim Lutero recebeu do príncipe da
Saxônia, como primeira prova de gratidão, aquele que havia sido o seu
antigo convento em Wittenberg. É um belíssimo palácio, onde se instalou
com sua nova esposa, seus parentes e seus criados. Tinha nascido no seio
de uma família muito humilde e, como monge agostiniano, jamais teria
podido se permitir esses luxos. E aqui não tocaremos mais no assunto das
críticas ferozes aos luxos do clero “romano”.
A liberdade religiosa é provavelmente o totem linguístico
mais afortunado de Martinho Lutero. Foi e é ininterruptamente debatido
diante das trevas do catolicismo e da sua nação defensora por princípio,
a Espanha. Nem é preciso pensar muito para ver aonde vai parar a
liberdade luterana. Se ela tivesse existido alguma vez, mesmo que
teoricamente, também os católicos e outras facções protestantes teriam
tido direito a ela. Se o cristão é livre para interpretar os textos
sagrados, então também a interpretação católica é possível e deve ser
aceita. E deveria ter sido respeitada em consonância com a
“liberdade religiosa”
que Lutero e seus diáconos pregavam. Se a lógica humana não é um engodo
desde a sua própria raiz, é porque é assim mesmo. Mas o fato é que o
novo clero criou uma versão do cristianismo que foi a única aceitável, e
todas as demais foram proscritas e perseguidas; a católica, obviamente,
mas também os
anabatistas,
calvinistas,
menonitas etcétera.
Ele é apresentado como o paladino da liberdade religiosa, mas o clero luterano perseguiu as demais versões do cristianismo
Entretanto, século após século, Lutero passeou pela história
da Europa imune à verdade, aos fatos e à lógica. Basta o leitor digitar
a sequência
“Lutero liberdade religiosa”
em algum buscador da Internet e verá. Se escrever em inglês e alemão,
ficará pasmado. Poderíamos levar um pouco adiante este perverso jogo com
as palavras e exasperar os argumentos históricos habitualmente aceitos.
Porque aplicar a “liberdade religiosa” em sentido luterano é o que
fizeram os
Reis Católicos na Espanha, ou seja, que todos os súditos devem ter a mesma religião que seu senhor terreno. Este é o princípio conhecido como
cuius regio, eius religio,
e deu cobertura legal aos príncipes alemães para obrigarem as
populações de seus territórios a se tornarem protestantes, quisessem ou
não, e nem sempre graças a sermões persuasivos e pacíficos. Mas é
evidente que os Reis Católicos não podem ser os pais da liberdade
religiosa, embora tenham feito exatamente o mesmo, porque, como diz
Castelar, nós não somos luteranos nem pertencemos à raça germânica.
A esta altura você já estará se perguntando: mas por que os
príncipes alemães
tinham tanto empenho em se tornarem protestantes? Não é difícil de
explicar, mas para isso, como apontamos acima, é preciso sair do terreno
religioso, da superioridade moral e das palavras totêmicas, onde todo o
protestantismo diligentemente insistiu em situar aquele sangrento
conflito. Quase uma quarta parte dos bens imóveis do Sacro Império
mudaram de mãos, entre confiscos de propriedades eclesiásticas e de
pessoas que abandonaram os territórios protestantes por se negarem a
acatar a conversão forçosa. Até a
Revolução Russa,
não houve latrocínio comparável no Ocidente. Mas, claro, não chamamos
assim, porque um tinha uma cobertura teológica, e o outro, uma cobertura
ideológica. Definitivamente: uma justificativa moral. Isto naturalmente
não será contado ao visitante na magna exposição de Wittenberg.
Foi furiosamente antissemita e prefigura o programa nazista. A Noite dos Cristais foi feita em homenagem aos seus 450 anos
Lutero foi não somente
antilatino, mas também furiosamente
antissemita. O filósofo alemão
Karl Jaspers escreveu que o programa nazista está prefigurado em Martinho Lutero, que dedicou parágrafos horripilantes aos
judeus:
“Devemos primeiro atear fogo às suas sinagogas e escolas, sepultar e
cobrir com lixo o que não incendiarmos, para que nenhum homem volte a
ver deles pedra ou cinza”. O primeiro grande
pogrom de 1938, a Noite dos Cristais, foi justificado como uma operação piedosa em homenagem a Martinho Lutero por seus 450 anos.
Hitler
disputou as eleições de 1933 com um soberbo cartaz no qual a imagem de
Lutero e a cruz gamada aparecem juntas. As celebrações luteranas dos
nazistas eram espetaculares. Com idêntica ferocidade Lutero estimulou e
justificou a queima de bruxas, que deixou nada menos do que 25.000
vítimas na Alemanha, segundo Henningsen. Acumulamos tantos milhares,
milhões de mortos com este assunto que é melhor nem fazer contas.
Mas não há do que se envergonhar. A Alemanha celebra
ostensivamente Martinho Lutero porque se sente bem, porque Lutero é o
pai do nacionalismo alemão e de sua Igreja, e tem, portanto… indulgência
teológica. Desde a reunificação, e depois com a chegada do euro como
elixir mágico, a Alemanha está em um tempo novo e encara às claras uma
hegemonia europeia inconteste. A
Grã-Bretanha desertou do barco da União, e a
França não está em condições de confrontar a indiscutível supremacia germânica. Nem a Espanha nem a
Itália
parecem perceber muito bem como são necessárias para compensar esta
hegemonia e como andam perdidas, sem conseguir superar o complexo de
inferioridade que assumiram há séculos. Porque, com tudo isto, chegamos
ao grande assunto do qual se trata aqui: o da superioridade moral frente
ao
suíno mundo não protestante no qual vivemos, a qual foi tão
absolutamente assumida que muitos de nossos jornais, como nos tempos de
Castelar, se somaram contentes à celebração luterana, tão cegos e tão
perdidos hoje no labirinto da sua própria inferioridade como estavam há
100 anos.
*María Elvira Rocha Barea é filóloga e autora de ‘Imperiofobia e Lenda Negra’ (Siruela).
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