Tucídides (c. 460 – c. 400 a.C)
História da Guerra do Peloponeso
(Prefácio de Hélio Jaguaribe; tradução do grego
e notas de Mário da Gama Kury; 4a. edição: Brasília: Editora Universidade
de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, xlvii + 584 p.; Clássicos IPRI;
ISBN: 85-230-0204-9)
Extratos da oração fúnebre pronunciada por
Péricles, capítulos 35 a 46 do livro segundo de Tucídedes, p. 107-114:
35. “Muitos dos que me precederam neste lugar
fizeram elogios ao legislador que acrescentou um discurso à cerimônia usual
nestas circunstâncias, considerando justo celebrar também com palavras os
mortos na guerra em seus funerais. A mim, todavia, ter-me-ia parecido
suficiente, tratando-se de homens que se mostravam valorosos em atos,
manifestar apenas com atos as honras que lhes prestamos – honras como as que
hoje presenciastes nesta cerimônia fúnebre oficial – em vez de deixar o
reconhecimento do valor de tantos homens na dependência do maior ou menor
talento oratório de um só homem. É realmente difícil falar com propriedade numa
ocasião em que não é possível aquilatar a credibilidade das palavras do orador.
O ouvinte bem informado e disposto favoravelmente pensará talvez que não foi
feita a devida justiça em face de seus próprios desejos e de seu conhecimento
dos fatos, enquanto outro menos informado, ouvindo falar de um feito além de
sua própria capacidade, será levado pela inveja a pensar em algum exagero. De
fato, elogios a outras pessoas são toleráveis somente até onde cada um se julga
capaz de realizar qualquer dos atos cuja menção está ouvindo; quando vão além
disto, provocam a inveja, e com ela a incredulidade. Seja como for, já que
nossos antepassados julgaram boa esta prática também devo obedecer à lei, e
farei o possível para corresponder à expectativa e às opiniões de cada um de
vós.
36. “Falarei primeiro de nossos antepassados,
pois é justo e ao mesmo tempo conveniente, numa ocasião como esta, dar-lhes
este lugar de honra rememorando os seus feitos. Na verdade, perpetuando-se em
nossa terra através de gerações sucessivas, eles, por seus méritos, no-la
transmitiram livre até hoje. Se eles são dignos de elogios, nossos pais o são
ainda mais, pois aumentando a herança recebida, constituíram o império que
agora possuímos e a duras penas nos deixaram este legado, a nós que estamos
aqui e o temos. Nós mesmos aqui presentes, muitos ainda na plenitude de nossas
forças, contribuímos para fortalecer o império sob vários aspectos, e demos à
nossa cidade todos os recursos, tornando-a auto suficiente na paz e na guerra.
Quanto a isto, quer se trate de feitos militares que nos proporcionaram esta
série de conquistas, ou das ocasiões em que nós ou nossos pais nos empenhamos
em repelir as investidas guerreiras tanto bárbaras quanto helênicas, pretendo
silenciar, para não me tornar repetitivo aqui diante de pessoas às quais nada
teria a ensinar. Mencionarei inicialmente os princípios de conduta, o regime de
governo e os traços de caráter graças aos quais conseguimos chegar à nossa
posição atual, e depois farei o elogio destes homens, pois penso que no momento
presente esta exposição não será imprópria e que todos vós aqui reunidos, cidadãos
e estrangeiros, podereis ouvi-la com proveito.
37. ‘‘Vivemos sob uma forma de governo que não
se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de
modelo a alguns
ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas
da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais
para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é
preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe,
mas o mérito, que dá acesso aos pontos mais honrosos; inversamente, a pobreza
não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja
impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos
liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade
suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com
nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação
que, embora inócuos, lhes causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos
ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos
afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois
somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas
para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos
transgressores uma desonra visível a todos.
38. ‘‘Instituímos muito entretenimento para o
alívio da mente fatigada; temos concursos, temos festas religiosas regulares ao
longo de todo o ano, e nossas casas são arranjadas com bom gosto e elegância, e
o deleite que isto nos traz todos os dias afasta de nós a tristeza. Nossa
cidade é tão importante que os produtos de todas as terras fluem para nós, e
ainda temos a sorte de colher os bons frutos de nossa própria terra com certeza
de prazer não menor que o sentido em relação aos produtos de outras.
39. ‘‘Somos também superiores aos nossos
adversários em nosso sistema de preparação para a guerra nos seguintes
aspectos: em primeiro lugar, mantemos nossa cidade aberta a todo mundo e nunca,
por atos discriminatórios, impedimos alguém de conhecer e ver qualquer coisa
que, não estando oculta, possa ser vista por um inimigo e ser-lhe útil. Nossa
confiança se baseia menos em preparativos e estratagemas que em nossa bravura
no momento de agir. Na educação, ao contrário de outros que impõem desde a
adolescência exercícios penosos para estimular a coragem, nós, com nossa
maneira liberal de viver, enfrentamos pelo menos tão bem quanto eles perigos
comparáveis. Eis a prova disto: os lacedemônios não vêm sós quando invadem
nosso território, mas trazem com eles todos os seus aliados, enquanto nós,
quando atacamos o território de nossos vizinhos, não temos maiores
dificuldades, embora combatendo em terra estrangeira, em levar frequentemente a
melhor. Jamais nossas forças se engajaram todas juntas contra um inimigo, pois
aos cuidados com a frota se soma em terra o envio de contingentes nossos contra
numerosos objetivos; se os lacedemônios por acaso travam combate com uma parte
de nossas tropas e derrotam uns poucos soldados nossos, vangloriam-se de haver
repelido todas as nossas forças; se todavia, a vitória é nossa, queixam-se de
ter sido vencidos por todos nós. Se, portanto, levando nossa vida amena ao
invés de recorrer a exercícios extenuantes, e confiantes em uma coragem que
resulta mais de nossa maneira de viver que da compulsão das leis, estamos
sempre dispostos a enfrentar perigos, a vantagem é toda nossa, porque não nos
perturbamos antecipando desgraças ainda não existentes e, chegando o momento da
provação, demonstramos tanta bravura quanto aqueles que estão sempre sofrendo;
nossa cidade, portanto, é digna de admiração sob esses aspectos e muitos
outros.
40. ‘‘Somos amantes da beleza sem extravagâncias
e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a riqueza mais como uma
oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não há
vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la.
Ver-se-á em uma mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas
e públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios
não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem
alheio às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios
interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões
públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las
claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o
fato de não estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação.
Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos
ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que
pretendemos correr, para outros homens, ao contrário, ousadia significa
ignorância e reflexão traz a hesitação. Deveriam ser justamente considerados
mais corajosos aquele que, percebendo claramente tanto os sofrimentos quanto as
satisfações inerentes a uma ação, nem por isso recuam diante do perigo. Mais
ainda: em nobreza de espírito contrastamos com a maioria, pois não é por
receber favores, mas por fazê-los, que adquirimos amigos. De fato, aquele que
faz o favor é um amigo mais seguro, por estar disposto, através de constante
benevolência para com o beneficiado, a manter vivo nele o sentimento de
gratidão. Em contraste, aquele que deve é mais negligente em sua amizade,
sabendo que a sua generosidade, em vez de lhe trazer reconhecimento, apenas
quitará uma dívida. Enfim, somente nós ajudamos os outros sem temer as consequências,
não por mero cálculo de vantagens que obteríamos, mas pela confiança inerente à
liberdade.
41. ‘‘Em suma, digo que nossa cidade, em seu
conjunto, é a escola de toda a Hélade e que, segundo me parece, cada homem
entre nós poderia por sua personalidade própria, mostrar-se auto suficiente nas
mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade. E isto
não é mero ufanismo inspirado pela ocasião, mas a verdade real, atestada pela
força mesma de nossa cidade, adquirida em consequência dessas qualidades. Com
efeito, só Atenas entre as cidades contemporâneas se mostra superior à sua
reputação quando posta à prova, e só ela jamais suscitou irritação nos inimigos
que a atacavam, ao verem o autor de sua desgraça, ou o protesto de seus súditos
porque um chefe indigno os comanda. Já demos muitas provas de nosso poder, e
certamente não faltam testemunhos disto; seremos portanto admirados não somente
pelos homens de hoje mas também do futuro. Não necessitamos de um Homero para
cantar nossas glórias, nem de qualquer outro poeta cujos versos poderão talvez
deleitar no momento, mais que verão a sua versão dos fatos desacreditada pela
realidade. Compelimos todo o mar e toda terra a dar passagem à nossa audácia, e
em toda parte plantamos monumentos imorredouros dos males e dos bens que
fizemos. Esta, então, é a cidade
pela qual estes homens lutaram e morreram nobremente, considerando seu dever
não permitir que ela lhes fosse tomada; é natural que todos os sobreviventes,
portanto, aceitem de bom grado sofrer por ela.
42. ‘‘Falei detidamente sobre a cidade para
mostrar-vos que estamos lutando por um prêmio maior que o daqueles cujo gozo de
tais privilégios não é comparável ao nosso, e ao mesmo para provar cabalmente
que os homens em cuja honra estou falando agora merecem os nossos elogios.
Quanto a eles, muita coisa já foi dita, pois quando louvei a cidade estava de
fato elogiando os feitos heroicos com que estes homens e outros iguais a eles a
glorificavam; e não há muitos helenos cuja fama esteja como a deles tão
exatamente adequada a seus feitos. Parece-me ainda que uma morte como a destes homens
é prova total de máscula coragem, seja como seu primeiro indício, seja como sua
confirmação final. Mesmo para alguns menos louváveis por outros motivos, a
bravura comprovada na luta por sua pátria deve com justiça sobrepor-se ao
resto; eles compensaram o mal com o bem e saldaram as falhas na vida privada
com a dedicação ao bem comum. Ainda a propósito deles, os ricos não deixaram
que o desejo de continuar a gozar da riqueza os acovardasse, e os pobres não
permitiram que a esperança de mais tarde se tornarem ricos os levasse a fugir
ao dia fatal; punir o adversário foi aos seus olhos mais desejável que essas
coisas, e ao mesmo tempo o perigo a correr lhes pareceu mais belo que tudo;
enfrentando-o, quiseram infligir esse castigo e atingir esse ideal, deixando
por conta da esperança as possibilidades ainda obscuras de sucesso, mas na
ação, diante do que estava em jogo à sua frente, confiaram altivamente em si
mesmos. Quando chegou a hora do combate, achando melhor defender-se e morrer
que ceder e salvar-se, fugiram da desonra, jogaram na ação as suas vidas e, no
brevíssimo instante marcado pelo destino, morreram num momento de glória e não
de medo.
43. ‘‘ Assim estes homens se comportaram de
maneira condizente com nossa cidade; quanto aos sobreviventes, embora desejando
melhor sorte deverão decidir-se a enfrentar o inimigo com bravura não menor.
Cumpre-nos apreciar a vantagem de tal estado de espírito não apenas com
palavras, pois a fala poderia alongar-se demais para dizer-vos que há razões
para enfrentar o inimigo; em vez disso, contemplai diariamente a grandeza de
Atenas, apaixonai-vos por ela e, quando sua glória vos houver inspirado,
refleti em que tudo isto foi conquistado por homens de coragem cônscios de seu
dever, impelidos na hora do combate por um forte sentimento de honra; tais
homens, mesmo se alguma vez falharam em seus cometimentos, decidiram que pelo
menos à pátria não faltaria o seu valor, e que lhe fariam livremente a mais
nobre contribuição possível. De fato, deram-lhe suas
vidas para o bem comum e, assim fazendo, ganharam o louvor imperecível e o
túmulo mais insigne, não aquele em que estão sepultados, mas aquele no qual sua
glória sobrevive relembrada para sempre, celebrada em toda ocasião propícia à
manifestação das palavras e dos atos. Com efeito, a terra
inteira é o túmulo dos homens valorosos, e não é somente o epitáfio nos
mausoléus erigidos em suas cidades que lhes presta homenagem, mas há igualmente
em terras além das suas, em cada pessoa, uma reminiscência não escrita, gravada
no pensamento e não escrita, gravada no pensamento e não em coisas materiais.
Fazei agora destes homens, portanto, o vosso exemplo, e tendo em vista que a felicidade
é liberdade e a liberdade é coragem, não vos preocupeis exageradamente com os
perigos da guerra. Não são aqueles que estão em situação difícil que têm o
melhor pretexto para descuidar-se da preservação da vida, pois eles não têm
esperança de melhores dias, mas sim os que correm o risco, se continuarem a
viver, de uma reviravolta da fortuna para a pior, e aqueles para os quais faz
mais diferença a ocorrência de uma desgraça; para o espírito dos homens, com
efeito, a humilhação associada à covardia é mais amarga do que a morte quando
chega despercebida em acirrada luta pelas esperanças de todos.
44. ‘‘Eis porque não lastimo os pais destes
homens, muitos aqui presentes, mas prefiro confortá-los. Eles sabem que suas
vidas transcorrem em meio a constantes vicissitudes, e que a boa sorte consiste
em obter o que é mais nobre, seja quanto à morte – como estes homens – seja
quanto à amargura – como vós, e em ter tido uma existência em que sei foi feliz
quando chegou o fim. Sei que é difícil convencer-vos desta verdade, quando
lembrais a cada instante a vossa perda ao ver os outros gozando a ventura em
que também já vos deleitastes; sei,
também, que se sente tristeza não pela falta de coisas boas que nunca se teve,
mas pelo que se perde depois de ter tido. Aqueles entre vós ainda em idade de
procriar devem suavizar a tristeza com a esperança de ter outros filhos; assim,
não somente para muitos de vós individualmente os filhos que nascerem serão um
motivo de esquecimento dos que se foram, mas a cidade também colherá uma dupla
vantagem: não ficará menos populosa e continuará segura; não é possível, com
efeito, participar das deliberações na assembleia em pé de igualdade e
ponderadamente quando não se arriscam filhos nas decisões a tomar. Quanto a
vós, que já estais muito idosos para isso, contai como um ganho a maior porção
de vossa vida durante a qual fostes felizes, lembrai-vos de que o porvir será
curto, e sobretudo consolai-vos com a glória destes vossos filhos. Só o amor da
glória não envelhece, e na idade avançada o principal não é o ganho, como
alguns dizem, mas ser honrado.
45. ‘‘Para vós aqui presentes que sois filhos e
irmãos destes homens antevejo a amplitude de vosso conflito íntimo; quem já não
existe recebe elogios de todos; quanto a vós, seria muito bom se um mérito
excepcional fizesse com que fosseis julgados não iguais a eles, mas pouco
inferiores. De fato, há inveja entre os vivos por causa da rivalidade; os que
já não estão em nosso caminho, todavia, recebem homenagens unânimes.
‘‘Se tenho de falar também das virtudes femininas, dirigindo-me às
mulheres agora viúvas, resumirei todo num breve conselho: será grande a vossa
glória se vos mantiverdes fiéis à vossa própria natureza, e grande também será
a glória daquelas de quem menos se falar, seja pelas virtudes, seja pelos
defeitos.
46. ‘‘Aqui termino o meu discurso, no qual, de
acordo com o costume, falei o que me pareceu adequado; quanto aos fatos, os
homens que viemos sepultar já receberam as nossas homenagens e seus filhos
serão, de agora em diante, educados a expensas da cidade até a adolescência;
assim ofereceremos aos mortos e a seus descendentes uma valiosa coroa como
prêmio por seus feitos, pois onde as recompensas pela virtude são maiores, ali
se encontram melhores cidadãos. Agora, depois de cada um haver chorado
devidamente os seus mortos, ide embora’’.
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