John Paul Rathbone e Robin Wigglesworth |
Financial Times, de Miami e
Nova York
Valor Econômico, 23/11/2017
Na semana passada, a convite do presidente
Nicolás Maduro, um grupo de credores internacionais esteve em Caracas para iniciar
o que vem sendo classificado de a mais complicada reestruturação de dívida do
mundo, além de uma das maiores e certamente uma das mais estranhas.
Ressaltando o contraste de uma economia amparada
pelas maiores reservas de petróleo do mundo, mas à beira do colapso, o governo
Maduro estendeu um tapete vermelho para seus convidados e posicionou uma guarda
cerimonial.
A Venezuela busca uma solução que seja boa para
todos, disse o vice-presidente, Tareck El Aissami, aos investidores. O país
continuará pagando a sua dívida externa, de US$ 150 bilhões, assegurou, embora
agências de classificação de risco estivessem emitindo alertas de calotes
enquanto ele falava. O pronunciamento terminou meio hora depois. Os
participantes saíram com presentes, como pacotes de café e chocolates finos,
mas sem nenhum esclarecimento. O governo declarou a reunião um sucesso.
"Estamos todos tentando descobrir se há um
método nessa loucura da Venezuela", diz Peter West da consultoria EM
Funding. "Se você estiver um pouco confuso... não se sinta mal",
acrescentou Russ Dallen da Caracas Capital, um especialista na dívida da
Venezuela.
A confusão deriva, em parte, da complexidade das
obrigações da Venezuela, que foram emitidas por várias entidades, com várias
cláusulas legais, para múltiplas partes. O país deve US$ 64 bilhões a
detentores de bônus, mais de US$ 20 bilhões aos aliados China e Rússia, US$ 5
bilhões a credores multilaterais, como o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), e dezenas de bilhões a importadores e firmas de serviços
que mantêm a crucial indústria do petróleo funcionando e o regime respirando.
As incertezas resultam da noção de que a
Venezuela embarcou num "plano de reestruturação" clássico. Caracas
não está iniciando um exercício de reescalonamento da dívida, sustentabilidade
e outras medidas que geralmente marcam uma renegociação. Em vez disso, o país
começou um jogo de pôquer sem limite de apostas.
Com exceção dos detentores de bônus, para outras
cinco partes interessadas- governo, oposição, EUA, Rússia e China - o prêmio
vai muito além do dinheiro. Está em jogo a sobrevivência política de um
governo, o destino de 30 milhões de cidadãos venezuelanos e os interesses
geopolíticos conflitantes de três superpotências.
"É um jogo complexo com muitos jogadores, e
que poderá ter um resultado ruim", diz Robert Kahn, ex-funcionário do
Fundo Monetário Internacional (FMI) e veterano de outras crises de dívidas
soberanas. "Além disso, muitos dos jogadores não conhecem nem entendem as
motivações dos demais."
O governo Maduro quer apenas sobreviver. Ele
teme que os detentores de bônus, que querem apenas ser pagos, possam confiscar
suas cargas de petróleo no caso de um default, tirando de Caracas a sua única
fonte de receitas. Entre as superpotências, Washington quer abreviar um regime
envolvido com o tráfico de drogas, que possui reservas de petróleo avaliadas em
US$ 15 trilhões e distante só três horas de avião dos EUA.
Moscou tenta transformar Caracas numa base
avançada nas Américas. Os interesses da China são mais comerciais: por ter
emprestado a Caracas mais de US$ 60 bilhões na última década, Pequim quer
manter acesso às enormes reservas de energia da Venezuela.
Contribuindo para a complexidade estão as regras
- ou ausência delas. Todos os bônus da Venezuela no mercado externo estão
submetidos às leis de Nova York. Mas a presença da Rússia e da China no jogo é
um complicador a mais numa reestruturação que será, ao menos parcialmente,
conduzida fora do FMI ou do Clube de Paris.
Depois, há o fato de os dois venezuelanos encarregados
de conduzir o processo, El Aissami e Simon Zerpa, o ministro de Economia, serem
alvos de sanções dos EUA acusados de tráfico de drogas e de casos de abusos dos
direitos humanos. A nomeação dos dois indica que Caracas se imagina operando
num universo legal paralelo - como demonstra o jogo de pôquer que se desenrola.
Uma das poucas coisas que estão claras nesse
exercício de blefes é que a Venezuela não pode mais arcar com sua dívida. Há
dez anos, em meio ao boom dos preços das commodities, a Venezuela recebeu de um
fluxo extraordinário de petrodólares estimado em US$ 1 trilhão. Com ajuda de
Wall Street, Caracas emitiu mais de US$ 50 bilhões em bônus. Junto com o
dinheiro dos chineses e outros empréstimos, isso quadruplicou a dívida externa.
Grande parte do dinheiro se perdeu ou foi roubado - até US$ 300 bilhões,
segundo ex-ministros. Agora, Caracas está sem recursos.
As reservas internacionais estão abaixo de US$
10 bilhões, perto do menor patamar em 20 anos. As importações caíram 85% em
cinco anos, algo muito pior que o mais austero dos programas do FMI. No mercado
paralelo, a taxa de câmbio está 7.000 vezes acima da taxa oficial, e a produção
média diária de petróleo - a única fonte de divisas estrangeiras - encolheu 20%
em relação ao ano passado.
Além disso, a Venezuela sofre com a
hiperinflação, com os preços subindo mais de 50% só no mês passado. Nenhuma
economia consegue sobreviver à hiperinflação por muito tempo. Com o calote da
dívida à vista, mudanças podem estar chegando para a Venezuela.
Certamente é isso que a oposição espera. Embora
abalada e dividida, ela é uma carta potencialmente forte nesse jogo. Sanções
impedem instituições dos EUA de negociar emissões da dívida refinanciada da
Venezuela, o que efetivamente torna impossível uma reestruturação. A única
exceção é se a dívida for autorizada pela Assembleia Nacional, controlada pela
oposição.
Em tese, isso abre a possibilidade de uma
barganha política que poderia resultar numa mudança mais profunda. A oposição
poderia aprovar um refinanciamento da dívida. Em troca, o governo permitiria
eleições presidenciais livres, justas e monitoradas internacionalmente no ano
que vem.
Se o governo está preocupado, até agora não deu
muitos sinais disso. Além disso, Maduro tem bons motivos para achar que pode
blefar com os EUA, com a oposição e com os detentores de bônus.
Aconselhado pela inteligência cubana, que por
sua vez foi instruída pelos soviéticos, Maduro exerce um domínio
"orwelliano" sobre o país. À parte a Assembleia Nacional, todas as
demais instituições estão o sob seu controle - incluindo a Suprema Corte, a
imprensa, a autoridade eleitoral e os militares.
Há escassez de alimentos - e grande parte do que
está disponível é distribuído por meio de um programa estatal subsidiado, que
Maduro pode usar para coagir o apoio público. A oposição está exausta depois
que as manifestações em massa deste ano não produziram mudanças, apesar dos
mais de 100 mortes. Começa até mesmo a surgir uma "oposição fiel",
cooptada pelo governo.
"Tudo isso deixar o presidente Nicolás
Maduro numa posição confortável" e também "reduz significativamente
as chances de uma mudança de regime", escreveu Risa Grais-Targow, da
consultoria de risco Eurasia.
Deve ser por isso que Maduro iniciou as
discussões sobre a dívida em primeiro lugar. Mesmo um calote não seria
necessariamente o fim. Ele poderia usar os US$ 9 bilhões previstos de serviço
da dívida em 2018 para dobrar a importação, aumentando assim suas chances na
eleição do ano que vem. Enquanto isso, seus advogados trabalhariam para rebater
as queixas dos investidores nos tribunais.
"O governo jamais irá negociar se não achar
que essa será a sua melhor operação", diz um analista a par da situação.
"E esse momento ainda não chegou."
Apesar da escassez de divisas, Caracas continua
pagando os credores privados, ainda que de maneira irregular, graças à
generosidade de Moscou e Pequim.
Na semana passada, a Rússia reestruturou sua
dívida bilateral de US$ 3,5 bilhões com a Venezuela, liberando recursos para
Caracas pagar outros credores. A China, embora relute em aumentar sua exposição
de cerca de US$ 20 bilhões à Venezuela, também parece preferir o status quo
político.
"A Venezuela é um atoleiro para a
China", diz Margaret Myers, uma especialista em China do instituto
Inter-American Dialogue, de Washington. "Mas a sensação geral é que Pequim
vai desembolsar outros US$ 4 bilhões ou coisa parecida para a Venezuela neste
ano, por meio do fundo estabelecido em joint-venture pelos dois países. Mas a
China não irá além disso."
Este promete ser um jogo de pôquer exaustivo.
Mas haverá um ajuste de contas. A hiperinflação venezuelana e a contínua queda
na produção de petróleo serão responsáveis por isso. Nem Moscou, nem Pequim
continuarão reestruturando a dívida da Venezuela indefinidamente enquanto
investidores em bônus continuam sendo pagos. Quando esse momento chegar, os
outros jogadores terão de arriscar tudo, ou ceder.
Os EUA poderão ser os primeiros a subir a
aposta. O país poderá ampliar a proibição de viagens e o congelamento de ativos
de autoridades venezuelanas. Também poderá emitir sanções secundárias contra
companhias de petróleo russas e bancos chineses que negociam com a Venezuela,
assim como tem feito com empresas que têm negócios com a Coreia do Norte. A
maior sanção de Washington seria a "opção nuclear" de proibir a
importação de 600 mil barris de petróleo/dia da Venezuela.
Quanto aos detentores de bônus, em algum momento
eles terão de decidir se vão esperar para receber propostas de reestruturação
do governo da Venezuela ou elaborar suas próprias propostas.
Em caso extremo, isso significaria o confisco de
cargas de petróleo. Se essa estratégia for bem-sucedida, Maduro enfrentaria uma
escolha difícil. Ele poderia desistir e fugir para o exílio em Cuba - uma saída
já sugerida a Havana por diplomatas latino-americanos. Ou, ele poderia resistir
e reprimir uma instabilidade social crescente. O papel dos militares seria
então crucial: eles continuam leais a Maduro, mas isso pode não durar para
sempre - como mostrou o Zimbábue recentemente.
As apostas foram feitas. O jogo será difícil,
mas os retornos são potencialmente altos. Isso se aplica especialmente àqueles
investidores dispostos a suportar uma batalha como a que produziu lucros
descomunais para vários "fundos abutre" que compraram títulos da
dívida da Argentina na reestruturação de US$ 100 bilhões em bônus do país, e
então entraram com processos buscando o reembolso integral ao preço nominal.
"No fim, eles vão ganhar mais dinheiro na
Venezuela do que ganharam na Argentina", diz Hans Humes, presidente da
Greylock Capital, que está formando uma comissão de investidores. As
consequências geopolíticas e humanitárias deverão ser ainda maiores.
(Tradução
de Mario Zamarian)
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