Um artigo de 2002, quando as críticas dos companheiros eram idiotamente dirigidas contra um "neoliberalismo" totalmente inexistente, mas que podiam fazer sucesso nos meios acadêmicos, sempre idiotamente propensos a acreditar nas maiores bobagens divulgadas por máquinas de propaganda poderosas. Eu sempre me surpreendi com a capacidade desses gramscianos de academia de acreditar nesse tipo de bobagem.
Por isso escrevi esse artigo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de novembro de 2017
A
indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil:
uma avaliação econômica e
política da era neoliberal
Introdução:
Segundo vários críticos do
“capitalismo realmente existente” no Brasil, o País estaria vivendo, desde o
início dos anos 90, sob um regime “neoliberal”. Não partilho dessa opinião mas,
para todos os efeitos práticos, vamos admitir que isso seja verdade. Em outros
termos, teria ocorrido, na história econômica brasileira recente, um corte
fundamental – epistemológico, diriam velhos adeptos do althusserianismo –
entre, de um lado, o que vem sendo pregado, adotado e realizado em termos de
políticas econômicas há aproximadamente uma década – ou seja, abertura
econômica, liberalização comercial, privatizações, retirada do Estado de velhos
monopólios (nem tão velhos assim, pois que criados, em sua maior parte, a
partir dos anos 60), interdependência financeira, negociação de acordos
comerciais, admissão de investimento estrangeiro em setores anteriormente
reservados unicamente ao capital nacional etc. –, isto é, tudo o que se costuma
designar por “políticas neoliberais”, e, de outro lado, o que se tinha e
conhecia anteriormente como políticas e práticas do regime “normal” do
capitalismo brasileiro no século XX: restrições comerciais e protecionismo, lei
do similar nacional, lei de reserva do mercado para informática, ausência de
patenteamento para medicamentos e biotecnologia de forma geral, impedimentos
constitucionais ao investimento direto estrangeiro em vários setores, enfim, o
que se conhece na literatura corrente como “desenvolvimento econômico com
autonomia nacional e preservação da soberania”.
Pois bem, ao ter de aceitar, a partir dos anos 90 e
pelas mãos de seus dirigentes políticos, que a interdependência econômica constitui
uma organização social dotada de maior racionalidade instrumental do que a
autonomia semi-autárquica até então praticada, o Brasil passou a viver
plenamente a era neoliberal, ou pelo menos passou a ter de suportar ou conviver
com um regime neoliberal. Em todo caso, é disso que os partidários do modelo
anterior, ou defensores da soberania nacional, acusam os sucessivos governos
desde o início da presidência Collor. Admitamos, portanto, que isso corresponda
à verdade e que de fato saímos do purgatório autonomista para o limbo
neoliberal, sem nunca ter alcançado o paraíso do pleno desenvolvimento
econômico e social.
Para atender aos requisitos do subtítulo deste
trabalho – realizar uma avaliação econômica e política da era neoliberal no
Brasil – nós precisaremos então colocar essa era neoliberal sob o teste da
realidade, isto é, aferir o desempenho relativo e as realizações do
neoliberalismo no Brasil, para confirmar se e como tais políticas e práticas se
ajustam efetivamente ao cânone neoliberal. Será necessário, pois, formular uma
série de perguntas e questões fundamentais que nos permitirão comparar a era
neoliberal com as políticas e práticas de uma era anterior, assim como com
realizações similares em nossa própria era, conformando portanto uma análise ao
mesmo tempo sincrônica e diacrônica. Caberia contudo lembrar, desde o início,
que o regime anterior sob o qual o Brasil estava organizado economicamente –
seja durante o período militar, seja sob a República de 1946 – não se
caracterizava exatamente pelo estruturalismo econômico – que seria,
supostamente, o oposto do neoliberalismo atual –, mas por um sistema híbrido,
que poderíamos caracterizar como de “liberal-intervencionismo”, praticado tanto
sob os “czares econômicos da ditadura” (Roberto Campos, Delfim Netto, Simonsen
etc.), como pelos ministros políticos da Fazenda na “república populista” que a
precedeu.
Questões
metodológicas iniciais:
Trata-se de perguntas mais de
caráter metodológico, ou de interesse histórico-conceitual, do que propriamente
operacional, não sendo absolutamente relevantes para a discussão que se vai
seguir:
1. Teria ocorrido, no início dos anos 90, uma
espécie de “complô neoliberal”, que tomou de assalto um sistema econômico
indefensável, erodido por anos (décadas?) de fracasso inflacionário e
abandonado pelos patrocinadores do ancien régime não-neoliberal, isto é,
liberal-intervencionista?
Não é a
opinião deste autor, que acredita que o mais provável é que tenha ocorrido uma
transição natural e necessária do velho protecionismo-estatismo a um conjunto
de princípios e práticas que começaram de fato a romper com o déjà vu daquele antigo regime.
2. A implementação – alguns diriam a irrupção –
desses princípios e práticas neoliberais representou uma espécie de importação
clandestina ou sub-reptícia, e de certa forma “forçada”, de “idéias fora do
lugar”, isto é, uma ideologia estranha e intrusiva, talvez associada ao chamado
“consenso de Washington”, ou ainda um tipo de “gripe espanhola ideológica”, que
passou a contaminar irrevogavelmente o conjunto dos tecnocratas e economistas
públicos do País?
Tampouco
partilho desta opinião, e creio mesmo que existiam, no estamento
tecno-burocrático brasileiro, como nas imensas coortes de economistas
acadêmicos e práticos, suficientes elementos “neoliberais” (talvez embutidos,
em outros casos já de forma aberta), o que justamente explicaria como o
neoliberalismo tomou facilmente “de assalto” os bastiões do poder político no
Brasil. Em outros termos, a antiga predominância ideológica do “estruturalismo”
e da industrialização cepalina não teve de lutar nas trincheiras contra o
inimigo ideológico neoliberal, mas foi gradualmente submergida a partir de
dentro, por economistas e políticos já “assumidos” e comprometidos com os
princípios essenciais do neoliberalismo.
O
núcleo duro do neoliberalismo no Brasil e seu desempenho histórico:
3. Qual foi o desempenho efetivo do neoliberalismo
nos anos 90?; cumpriu ele o que prometia, foi eficiente no fornecimento de seus
serviços econômicos, políticos e sociais, enfim, correspondeu ao que se
esperava dele?
De modo geral, pode-se dizer que
sim, com algumas insuficiências localizadas, talvez explicáveis pelo ambiente
de crise financeira externa e pela própria magnitude dos desafios que o
aguardavam desde o final dos anos 80. Não ocorreram grandes desastres do
neoliberalismo, como podem ter ocorrido em países vizinhos ou em regiões mais
distantes, mas tampouco os resultados foram espetaculares, pelo menos no
julgamento imediato. Talvez uma perspectiva histórica de maior alcance nos
permitirá, no futuro, aferir a amplitude das transformações ocorridas nos anos
90 – processo que já foi descrito, por partidários e opositores dessa
realidade, como de “desmantelamento do Estado varguista” –, mas caberia registrar,
no momento, a modéstia do crescimento ou a insuficiência aparente das
transformações estruturais.
Os resultados mais significativos
foram no terreno da luta anti-inflacionária e da recuperação do poder da moeda
como elemento de referência e reserva de valor, com os pequenos sobressaltos
eventuais que seriam normais de se esperar de um país tradicionalmente
acostumado (e drogado) a mecanismos indexadores e a uma certa permissividade
emissionista. Mas, no campo regulatório as mudanças foram igualmente importantes,
com diversas emendas constitucionais desmantelando décadas de uma cultura
estatal enraizada na consciência coletiva (a ponto de grandes líderes políticos
defenderem ferrenhamente a preservação do monopólio estatal na área de
telecomunicações ou a manutenção de companhia estatal de minério de ferro como
sendo de “alto caráter estratégico” para o País). No terreno da reforma
administrativa e previdenciária, as mudanças foram menos completas ou
definitivas, mas ainda assim os progressos do “neoliberalismo” foram sensíveis.
4. O neoliberalismo trouxe crescimento e
desenvolvimento tecnológico ao Brasil?
Os avanços tecnológicos e os
aumentos de produtividade foram inegáveis, mas em termos de crescimento, a
resposta tem de ser mais matizada. Vejamos: a taxa de crescimento não
correspondeu ao que se poderia esperar de um “país emergente” como o Brasil,
que tinha crescido na era militar e mesmo antes dela a taxas anuais que eram
notoriamente superiores às do aumento anual da população. Caberia descontar os
vários processos de ajuste conhecidos nos anos 90, resultantes dos programas de
estabilização tentados em seu início e em meados da década, assim como os
choques externos (a partir do México em 94-95) que impactaram bastante o fluxo
normal das atividades econômicas nessa década.
O que os
críticos costumam chamar de “fracasso do neoliberalismo” no Brasil refere-se
portanto a essas taxas modestas, ou medíocres, de crescimento econômico, quando
o País teria necessidade do dobro, ou do triplo, para absorver o exército
industrial de reserva e acomodar todos os novos entrantes na população
economicamente ativa. Em defesa do neoliberalismo se poderia argumentar que ele
está mais preocupado com a estabilização macroeconômica do que com o
atendimento de indicadores positivos no grau de ocupação da força de trabalho,
mas essa não é a questão real. Se pensarmos na magnitude da obra de
desmantelamento dos comportamentos indexacionistas e na da própria cultura
inflacionária no Brasil, teremos idéia do quanto foi realizado na segunda
metade dos anos 90: pela primeira vez em muitas décadas, talvez até
historicamente na República, a moeda correspondeu a uma expressão de valor
visível, aferida contabilmente, quem sabe até desfrutando da confiança dos
brasileiros. Isso não é pouco como realização “neoliberal” e o desempenho do
crescimento econômico precisa portanto ser medido segundo o critério da
estabilidade, novo valor fundamental da política econômica governamental.
5. O neoliberalismo conseguiu reduzir as imensas
desigualdades regionais e sociais existentes historicamente no Brasil?
A
resposta deveria ser não, mas ainda aqui seria preciso considerar, em primeiro
lugar, que não correspondia à “missão histórica” do neoliberalismo a
implementação de vastos programas de correção de desigualdades econômicas e
sociais. Sua “agenda de trabalho”, digamos assim, estava concentrada no
esforço, bem sucedido, como vimos, de estabilização macroeconômica e de
estabelecimento das condições mínimas para a retomada do crescimento (este foi
perturbado pela ocorrência de choques financeiros externos, como também
constatamos). A correção das desigualdades sociais e regionais deve integrar
uma vasta panóplia de políticas setoriais e estruturais, com componentes
institucionais, fiscais, tributários, distributivos, compensatórios (enfim,
várias outras medidas e políticas de caráter “intervencionista”), que superam
em muito a modesta racionalidade instrumental do neoliberalismo.
De
toda forma, a redução ou eliminação do imposto inflacionário já correspondeu a
um passo inicial na correção das desigualdades sociais no Brasil, uma vez que
os índices inaceitáveis de concentração de renda estão em parte associados a
esse “imposto”, ainda que outros fatores tenham de ser igualmente levados em
conta (práticas altamente regressivas na área social e na alocação de dotações
públicas, por exemplo). No campo das políticas regionais, por sua vez, a era
neoliberal assistiu a um dos mais vigorosos processos de descentralização
industrial e de redistribuição espacial de atividades econômicas já registradas
em toda a história do País, equivalentes, talvez, ao ciclo do ouro, à expansão
da economia cafeeira ou, de modo negativo, à própria centralização industrial
no Sudeste nas primeiras décadas da era republicana. Trata-se aqui, como em
outros campos, de algo que apenas poderá ser apreciado devidamente com o recuo
suficiente do tempo.
6. As políticas neoliberais melhoraram a qualidade
da gestão macroeconômica no Brasil?
Otimisticamente,
e talvez mesmo inequivocamente, sim. Nunca, em qualquer época, a despeito do
aparente e alegado “desmantelamento do Estado”, a gestão macroeconômica dispôs
de condições tão favoráveis para o exercício daquela que talvez seja a função
básica do governante: conceber, aprovar, implementar e monitorar a execução de
um orçamento público, dotado dos requisitos normalmente associados a esse
conceito. A importância dessa realização não é suficientemente apreciada mesmo
entre a classe política, acostumada a décadas de orçamento fictício (quando não
contribuía ela mesma para a erosão desse conceito essencial da administração
pública), e menos ainda na oposição, bem mais permissiva em matéria de
“investimentos sociais” ou mesmo partidária de se lograr um trade-off “aceitável” entre inflação e
crescimento. O Brasil, pela primeira vez em muitas décadas, começa a medir a
magnitude real dos recursos públicos, e portanto os limites ao exercício da
“vontade geral” embutida na administração pública. A Lei de Responsabilidade
Fiscal, peça central do “neoliberalismo”, desempenha papel importante nessa
correção de rumos.
7. O neoliberalismo aperfeiçoou o desempenho geral
do sistema econômico brasileiro?
Certamente.
Isso foi feito mediante as privatizações, desmonopolizações, criação de um novo
ambiente regulatório em áreas tão diversas quanto a indústria siderúrgica, os
serviços e telecomunicações, portuário e outras, o que por sua vez permitiu
incrementar as atividades nas indústrias e serviços de informações e de
tecnologias da comunicação. Ou seja, mediante uma série de ações ousadas nos
campos da desestatização e da desregulação ‑ medidas que se situam no coração
mesmo daquilo que os detratores ideológicos condenam no neoliberalismo ‑, este
conseguiu elevar os padrões de qualidade de setores inteiros do sistema
econômico brasileiro. A ameaça da “desnacionalização”, a alegada “cessão de
soberania”, a “redução tarifária unilateral” e outras práticas consideradas
nefastas pelos adversários ideológicos do neoliberalismo não foram consideradas
tão “letais” a ponto de induzir a população brasileira a rejeitar de modo
decisivo o “neoliberalismo”, que terminou amplamente vitorioso em 1994 e em
1998. Visto nessa perspectiva dos detratores, o neoliberalismo conduziu o mais
formidável “assalto” ao Estado intervencionista que se realizou no Brasil
praticamente desde a assunção da autonomia política em 1822. Em nenhuma outra
época (no passado, obviamente) os agentes econômicos puderam realizar tão bem
aquilo que constitui sua missão histórica indiscutível em qualquer regime
capitalista digno desse nome: investir, recolher os frutos desse investimento
inicial, reinvestir, expandir atividades.
As
muitas frustrações registradas no processo (até aqui parcial) de
aperfeiçoamento do sistema econômico brasileiro não devem ser creditadas ao
neoliberalismo, e sim ao seu contrário, ou seja: a excessiva intervenção
remanescente do Estado na vida econômica, sob a forma de regulações e em
especial mediante uma tributação tão extorsiva quanto irracional, pois que
penalizando a cadeia produtiva e a atividade exportadora. O neoliberalismo
precisa avançar nessas áreas, para que sua “missão liberadora” possa ser
concretizada também nessas frentes.
8. O neoliberalismo fez piorar as condições gerais
do panorama social brasileiro?
Não
exatamente, talvez até mesmo o contrário. O “neoliberalismo” (mas, de fato,
este aspecto também faz parte do Estado intervencionista) melhorou o desempenho
do orçamento público e continuou os investimentos sociais necessários à
minimização do tremendo grau de iniquidade social que ainda caracteriza o
Brasil. Com isso, os indicadores sociais apresentaram, na grande maioria dos
casos, melhorias visíveis e mesmo rápidas, inclusive no que se refere ao
consumo de bens correntes e duráveis. Na verdade, a eliminação do imposto
inflacionário – que foi o fator singular mais importante na melhoria desses
condições sociais – não deveria ser vista como fazendo parte de uma agenda
exclusivamente neoliberal, mas deveria ser suscetível de integrar qualquer
programa de ação das principais forças políticas e ideológicas do País. O fato
é que, na nossa história política, a esquerda tem sido extremamente leniente e
tolerante no que se refere à derrapagem inflacionária e ao deslize
emissionista, mais em todo caso do que os neoliberais contemporâneos.
O
desemprego, que é a conseqüência do não crescimento sustentado nos últimos
anos, tem sido apontado como o mais evidente fracasso do neoliberalismo no
Brasil, ao lado da mais tradicional concentração de renda. O aumento da criminalidade
nos grandes centros urbanos também poderia indicar uma deterioração geral das
condições de vida, e portanto refletiria mais um dos fracassos do
neoliberalismo posto em prática. Entretanto, um neoliberal convicto poderia
responder que a elevação da taxa de desemprego se deve, precisamente, à não
aplicação do receituário neoliberal, que no caso recomendaria a flexibilização
da regras vigentes no mercado de trabalho, manifestamente regulamentado e
onerado em demasia no Brasil. A criminalidade se explicaria, por outro lado,
mais pelo não equipamento e organização das polícias – áreas as quais o
neoliberal nunca apontou como carentes de desregulação ou “desestatização” – do
que pelas condições de pobreza das camadas subalternas urbanas.
Questões
de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil:
9. O neoliberalismo agravou a concentração de renda
e as desigualdades sociais?
De
forma alguma, no máximo ele foi neutro em relação a esses dois aspectos mais
gritantes das iniquidades sociais extremamente graves do Brasil. O coeficiente
de Gini tem sido teimosamente estável no Brasil, como a indicar que ele depende
mais de fatores estruturais e de políticas setoriais e redistributivas, do que
propriamente de políticas de ajuste fiscal ou de estabilização macroeconômica.
De fato, ocorreu uma pequena melhora na primeira fase de implementação do Plano
Real, mas depois o índice de Gini foi mais o menos o mesmo a que estamos
acostumados há quase três décadas: em torno de 61 ou 62.
Pode-se,
portanto, condenar o neoliberalismo por não ter transformado o índice que
revela todas as nossas mazelas “africanas”, mas não por agravar o panorama
social do ponto de vista redistributivo. Poderia ele fazer mais e melhor numa
área que costuma ser marcada por políticas ativas por parte dos poderes
públicos? Certamente, mas aí temos de considerar não apenas a ação exclusiva do
executivo federal, como também a nefasta mobilização dos mesmos privilegiados
de sempre na defesa de sua parte na torta das despesas federais: categorias
sociais, profissionais e corporativas entranhadas no aparelho de estado,
assalto constante de grupos de interesse em programas de “apoio” a determinadas
atividades econômicas, velhos conhecidos do estado cartorial quatrocentão que
defendem como podem a parte que lhes cabe desse latifúndio imenso que é o
Brasil. Na verdade, uma política mais ativa de redistribuição de renda em favor
das camadas subalternas certamente passaria por uma “extração” mais penosa de
recursos da classe média, a única em condições de ser ordenhada com relativa
facilidade pelo poder público, o que coloca de imediato a questão da
legitimidade e da sustentabilidade política desse tipo de “extorsão” sobre os
mesmos pagantes de sempre, em condições de plafonnement
da capacidade tributável da população incluída na base fiscal da Receita.
O neoliberalismo
recomendaria, ao contrário, um alívio no grau de extorsão, mas é verdade que
ele tem se revelado menos eficiente no redirecionamento dos canais
redistributivos. Talvez essa correção das desigualdades devesse passar, então,
pelo aumento extraordinário dos investimentos em educação e capacitação
profissional, os únicos capazes de alterar verdadeiramente o perfil da
distribuição da renda no Brasil, mas essa opção tem o inconveniente de ser
irritantemente longa para os padrões conhecidos de impaciência com a “questão
social”.
10. O neoliberalismo agravou a fragilidade externa
do Brasil?
Talvez,
mas as respostas aqui não são conclusivas, uma vez que se deve separar fatores
contingentes das políticas implementadas, fatores estruturais da
características brasileira de desenvolvimento econômico e fatores conjunturais
das crises financeiras dos anos 90. O fato é que, a partir da implementação do
Plano Real em 1994, e da relativa valorização do real nos quatro primeiros anos
do processo de estabilização, a balança comercial apresentou sensível
deterioração, não sendo mais capaz de compensar, o que antes ocorria, o
tradicional déficit dos serviços e rendas do capital em que incorre o Brasil desde
que nos conhecemos como nação. Em conseqüência, o saldo negativo das transações
correntes tornou-se enorme, e teve de ser compensado por entradas maciças de
capitais externos, muitas vezes de curto prazo, mas também com muita ênfase em
fluxos de risco, o geralmente mais bem vindo (não para a esquerda econômica)
investimento estrangeiro direto. A dependência financeira externa tornou-se
portanto maior e com ela o recurso aos juros altos para atrair ou reter capital
volátil: os anos 90 foram, sem dúvida, os anos de déficits externos e de
malabarismos cambiais, com o recurso eventual ao FMI para compensar os riscos
de insolvência externa.
Deve-se
contudo observar que não há nada de intrinsecamente neoliberal (ou de
keynesiano) na acumulação de déficits externos. Trata-se de elemento
“estrutural” ou “conjuntural”, segundo as épocas, regimes de câmbio e controles
sobre movimentos de capitais: diferentes economias podem acumular saldos
negativos nas contas comerciais, de serviços ou de capitais, independentemente
de sua interação com o mundo ou de seu coeficiente de abertura externa. Assim,
pode ser lembrado que a mesma fragilidade financeira externa já tinha ocorrido
no Brasil em outras épocas – durante a crise da dívida dos anos 80, ou na crise
do petróleo dos 70, por exemplo – em condições de saldo comercial relativamente
alto, o que não foi impedimento, contudo, para moratórias de fato. Não se pode
assim imputar às políticas neoliberais dos anos 90 a responsabilidade por um
quadro de desequilíbrios externos e de fragilidade financeira que já tinha
ocorrido em épocas de “liberal-intervencionismo” ou de “estruturalismo
claudicante”.
Em
resumo, nem todas as mazelas sociais e os problemas econômicos acumulados no
Brasil “neoliberal” podem ou devem ser atribuídos ao neoliberalismo, em
particular a pobreza generalizada, a corrupção, os baixos níveis educacionais,
o não funcionamento da justiça, a esclerose administrativa, a insuficiência dos
serviços de saúde e previdenciários, a criminalidade rampante, os surtos de
dengue ou a decadência do futebol. Existem problemas seculares, outros criados
ao longo de um regime republicano pouco propenso a estimular as virtudes
cívicas dos cidadãos, alguns derivados da ditadura e vários outros criados nos
anos de populismo constitucional-democrático, a maior parte deles “made in
Brazil”, e não importados pela onda globalizante que conviveu com o
neoliberalismo nos tormentosos anos 90. O funcionamento deficiente do nosso
legislativo, a inoperância gritante da justiça, os absurdos do mercado laboral
são males que, como diria Nelson Rodrigues, não se improvisam, mas resultam do
acúmulo de anos e anos – que digo?, décadas – de erros gerenciais e de
incapacidade das lideranças políticas em corrigi-los.
Em
resumo, qualquer neoliberal de boa cepa concordaria em que os mercados não
podem tudo, e que um Estado eficiente e dispensador de bens públicos é
essencial para o bom funcionamento desses mesmos mercados, sobretudo em seus
aspectos regulatórios e concorrenciais. O tamanho do governo importa menos ao
neoliberal do que seu modo de funcionamento e sua eficácia relativa, o que se
choca em geral com a cultura de esquerda, que costuma ver em qualquer reforma
administrativa e gerencial um ataque frontal contra direitos adquiridos, em especial
o sacrossanto direito à estabilidade e a uma pensão mais generosa do que os
salários de contribuição.
Enfim, a verdade é que o
liberalismo, velho ou novo, ainda não fez suas provas no Brasil, pela simples
razão de que ele quase nunca foi aplicado de forma consistente e persistente ao
longo de nossa história. De fato, os verdadeiros desafios do neoliberalismo no
Brasil ainda estão por vir e seu horizonte de aplicação deve ser visto mais em
direção do futuro do que num retrospecto do passado recente.
À guisa de conclusão: a insustentável leveza teórica do neoliberalismo no
Brasil
11.
As idéias neoliberais tornaram-se dominantes na sociedade e na cultura
brasileira?
Ainda
não, e de toda forma de modo nenhum nas universidades, que – com as honrosas
exceções de sempre, em especial nas áreas técnicas (e em algumas faculdades de
economia) – continuam a ostentar as mesmas idéias exibidas em meus tempos de
curso universitário (final dos anos 60, início dos 70). Essas idéias se
caracterizam por uma mistura curiosa de marxismo confusionista, nacionalismo
instintivo, anti-imperialismo (ou melhor, anti-americanismo) evidente e uma
natural propensão a atribuir ao Estado (de fato ao governo em vigor,
invariavelmente descrito como neoliberal, independentemente das épocas) a
origem de todas as mazelas que marcam nossa sociedade.
Assim,
a despeito de todos os furiosos ataques contra o neoliberalismo (como se ele de
fato ocupasse o poder no Brasil), nossa ação pública, nas diversas vertentes do
espectro político, continua a ostentar os mesmos vícios intervencionistas e
dirigistas que caracterizaram o País desde sua constituição independente e de
fato a própria nação desde seu nascimento no bojo do cartorialismo português.
Não é certo, portanto, que as idéias do neoliberalismo tenham algum futuro
brilhante pela frente, mas parece evidente que elas não têm nenhum passado no
Brasil.
_______
Anexo:
A pontuação do neoliberalismo no Brasil
Pode-se efetuar um score do neoliberalismo no Brasil? Como
seriam os resultados de uma avaliação quantificada a partir dos critérios sob
os quais uma economia passa a ser classificada de “neoliberal”? A pontuação
abaixo realizada é talvez impressionista, tão boa quanto qualquer outra (sendo
arbitrária, o leitor está convidado a efetuar sua própria pontuação e verificar
os resultados). Ela foi construída com base numa avaliação pessoal de qual
seria o desempenho do Brasil ao abrigo dos critérios originalmente propostos
pelo economista John Williamson, em seu famoso ensaio “What Washington Means by
Policy Reform?” (incluído no livro editado por ele mesmo, Latin American Adjustment: How Much Has Happened?, Washington:
Institute for International Economics, 1990, pp. 7-20). Ainda que o
neoliberalismo não deva ser considerado como uma emanação do chamado “consenso
de Washington” (um conjunto de regras servindo mais como instrumentos de
política de ajuste, do que como um conjunto de objetivos ou resultados elevados
à categoria de dogma), esses critérios podem fornecer uma boa indicação do que
representa uma política neoliberal “pura”.
Brasil, 1990-2001
pontuação na escala neoliberal
|
1) déficits fiscais
|
4
|
2) prioridades de despesas públicas
|
5
|
3) reforma tributária
|
0
|
4) taxa de juros
|
2
|
5) taxa de câmbio
|
5
|
6) política comercial
|
6
|
7) investimento direto estrangeiro
|
8
|
8) privatizações
|
7
|
9) desregulação
|
6
|
10) direitos de propriedade
|
7
|
Média
aritmética simples
|
5,7
|
Em outros termos, a pontuação do neoliberalismo no Brasil
é bastante sofrível, para não dizer medíocre, insuscetível portanto de vê-lo
aprovado em exames de primeira época de qualquer escola neoliberal digna desse
nome. Isso apenas confirma nossa vaga impressão de que há, como advertido ao
iniciarmos esta reflexão, uma indefinível leveza do neoliberalismo no País,
tanto no plano teórico, como, sobretudo, no âmbito da praxis. Como ocorre em outras áreas de interpretação sociológica,
nosso país não se encaixa bem em nenhum modelo pré-fabricado – segundo dogmas
ideológicos muito estritos – de desenvolvimento econômico e social. Somos originais?
Provavelmente. Era o que eu pretendia demonstrar...
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 862: 7/02/2002
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