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quarta-feira, 14 de abril de 2021

Esperando Godot: o nunca existente neoliberalismo brasileiro (2007) - Paulo Roberto de Almeida

 Esperando Godot: o nunca existente neoliberalismo brasileiro

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.org)

Paper preparado para o I Congresso da ABRI

(Brasilia, 25-27 de julho de 2007)

 

Sumário: 

1. Introdução: as razões e o significado de um debate 

2. Parâmetros conceituais do suposto neoliberalismo: o “consenso de Washington”

3. O contexto histórico-econômico do “neoliberalismo” no Brasil

4. O núcleo duro do neoliberalismo no Brasil e seu desempenho histórico

5. Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil

5. Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil

7. Uma avaliação preliminar da era “não neoliberal” no Brasil

8. Conclusões: o “iliberalismo” essencial da formação social brasileira

 

 

1. Introdução: as razões e o significado de um debate

A bibliografia especializada na história econômica do Brasil contemporâneo e, mais especificamente, no estudo dos padrões de desenvolvimento econômico observados ao longo do último meio século, costuma praticar uma espécie de bipolaridade conceitual entre, de um lado, um modelo dito “autônomo” ou “desenvolvimentista” – que teria sido aquele praticado, grosso modo, por Getúlio Vargas e por governos do regime militar – e, de outro, um modelo dito “associado” ou “dependente” – alegadamente defendido por lideranças contrárias ao “nacional-trabalhismo” do primeiro e ao estatismo dos segundos –, modelo que teria sido encarnado pelos governos Collor e FHC. O primeiro encontra, ao que se diz, defensores intelectuais nas correntes identificadas com o chamado estruturalismo e a heterodoxia econômica – pretensamente de extração keynesiana –, ao passo que o segundo modelo teria adeptos na ortodoxia econômica e no liberalismo de tipo econômico, mas também político. Basicamente, segundo as “explicações” históricas oferecidas, os primeiros promoveriam o desenvolvimento nacional por meio de políticas ativas patrocinadas pelo Estado, ao passo que os segundos prefeririam ver o Brasil guiado unicamente pelas chamadas “forças do mercado”.

Segundo a literatura de cunho interpretativo, essas orientações divergentes em matéria de política econômica teriam se sucedido e alternado em diversas épocas desde o final da segunda guerra mundial, ao sabor da correlação de forças entre correntes opostas: “intervencionistas”, de um lado, “liberais”, de outro. A dicotomia filosófica conformaria uma espécie de “zig-zag econômico” entre uma postura basicamente “independente” (também identificada com o “nacionalismo econômico”) e uma outra essencialmente “interdependente” (por suposição inversa comprometida com uma orientação mais aberta em relação ao capital estrangeiro). Em que pese o simplismo dessa visão, ela parece ainda encontrar ainda adeptos nos dias que correm, como revelado no debate público (pobre, [e verdade) em torno das principais escolhas de políticas econômicas (macro e setoriais). 

A incompreensão mútua entre ambas as correntes, aliada a certas caracterizações apressadas, derivou muitas vezes para o equacionamento simplista do “intervencionismo estatal” com o “desenvolvimento nacional”, de um lado, e para uma identificação igualmente mistificadora entre o “liberalismo” e o “crescimento dependente”, por definição “alinhado” e “desnacionalizador”, de outro. Para ficar apenas nos casos mais evidentes, assim como os dois governos de Getúlio Vargas e o de João Goulart teriam encarnado todas as virtudes do “nacional-desenvolvimentismo”, os governos de Dutra, de Collor e de FHC concentrariam, por excelência, os vícios do modelo “associado”. Mas estes são apenas os casos mais paradigmáticos do maniqueísmo virtual praticado por certa historiografia em relação aos caminhos do desenvolvimento nacional.

Existem casos de “fronteira”. Vejamos os mais evidentes dentre eles. Tendo sido precocemente jogado num incômodo ostracismo pelo nacionalismo ideológico de alguns estudiosos não exatamente isentos do ponto de vista político, o Governo JK poderia ser visto, de alguma forma, como uma espécie de “patinho feio” da história econômica brasileira, primeiro por ter sido considerado um exemplo de governo desnacionalizador, para ser depois reabilitado no altar desenvolvimentista do período contemporâneo. Os governos José Sarney e Itamar Franco poderiam lhe fazer companhia, pelo caráter híbrido – isto é, intervencionista-liberalizante – das políticas econômicas conduzidas de forma errática em suas respectivas administrações, da mesma forma como alguns governos militares, hoje cultuados como “planejadores”, como teria sido o caso do governo ultra-estatizante de Ernesto Geisel. 

A pergunta que cabe legitimamente ser colocada, ao início deste ensaio de revisão histórica, é se esse tipo de avaliação essencialmente dicotômica no campo econômico – consubstanciada, por exemplo, nos vocábulos “desenvolvimentista” ou “liberal” com que muitos pesquisadores acadêmicos rotulam esses governos – permanecerá fazendo parte do nosso universo historiográfico. O próprio conceito de “liberalismo” continuará, por sua vez, a ter a conotação essencialmente pejorativa que assumiu para gerações inteiras de brasileiros engajados na luta pelo desenvolvimento nacional? Seria a busca de “interdependência econômica” uma espécie de “pecado original” de economistas e líderes políticos considerados excessivamente associados ao modelo capitalista de mercado?

Escapa às pretensões do presente trabalho a tentativa de resgatar a reputação e a credibilidade política do liberalismo econômico, sobretudo num país ainda seriamente marcado por julgamentos ideologicamente comprometidos por décadas de lutas entre “varguistas” e “anti-varguistas”, entre “autônomos” e “associados”, entre “nacionalistas” e “entreguistas”, entre “independentes” e “interdependentes”. Tampouco se pretende reconstituir por inteiro uma história econômica e política já adequadamente coberta por estudiosos de grande calibre acadêmico e de credenciais insuspeitas.

O presente ensaio histórico persegue um objetivo mais modesto, ainda que mais desafiador: explorar não apenas a teoria, mas essencialmente a prática do que se poderia caracterizar como “política econômica do liberalismo”, tal como posta em prática durante a fase recente da trajetória econômica brasileira, aquela identificada por muitas lideranças políticas da atualidade como tendo sido “neoliberal”. Sua principal virtude talvez possa ser encontrada na tentativa de operar uma consulta às evidências materiais desta época e de proceder a uma releitura das interpretações efetuadas de maneira tendenciosa com vistas a redimensionar o que foi por muitos chamado de “neoliberalismo econômico”.

Algumas premissas iniciais e uma hipótese de trabalho precisam ser formuladas desde já, de molde a deixar clara a postura do autor em relação às acusações lançadas contra a política do “liberalismo econômico”, tal como praticado desde o início dos anos 1990 no Brasil. Isso se justifica pelo fato de que, nas ciências humanas, a discussão de qualquer temática – que não possui, muitas vezes, a materialidade e a possibilidade de testes ou experiências concretas, que constituem a marca das chamadas ciências “exatas” – exige, previamente, um entendimento quanto aos conceitos empregados e em relação às hipóteses de trabalho. No caso deste ensaio, os conceitos centrais, obviamente, são os de “liberalismo” e de “dirigismo”, na experiência histórica do desenvolvimento econômico brasileiro, e a principal hipótese de trabalho é a de que o Brasil é, claramente, um caso exacerbado de intervencionismo estatal durante toda a trajetória histórica desse processo, em contraposição ao que teria ocorrido, hipoteticamente, no caso de uma expansão mais equilibrada da iniciativa privada e das forças de mercado no sistema econômico brasileiro. É essa hipótese de trabalho que explica, aliás, a escolha do título do trabalho, uma vez que, como ocorre na peça de Samuel Beckett, o personagem principal jamais aparece em cena ou dá ele sinais de que existe, efetivamente.

Caberia deixar claro que nunca houve essa entidade fantasmagórica que muitos representantes de correntes acadêmicas – e, no seu seguimento, os jornalistas e militantes políticos – chamam de “neoliberalismo”, assim como não existem, no cenário político brasileiro, personagens que poderiam ser chamados de “neoliberais”, pela simples razão que nunca houve, no Brasil, algo que se pareça, de perto ou de longe, com o liberalismo econômico. Trata-se de uma designação que, nos últimos quinze anos aproximadamente, converteu-se em uma espécie de superlativo conceitual, quando não um epíteto ofensivo, equivalente a uma condenação sumária ao “gulag dos entreguistas”.

O conceito “neoliberal” esclarece pouco e confunde muito. Para que tivéssemos tido neoliberalismo, teria sido preciso que tivesse existido algum liberalismo concreto, de alguma forma afastado ou travado em suas manifestações práticas por formas veladas ou abertas de estatismo ou de dirigismo centralista, que depois tivessem sido, estes últimos, varridos por alguma “onda neoliberal” dominante nos círculos dirigentes e nas academias das últimas duas décadas. Não é o que constatamos pela leitura dos debates ocorridos nesta fase, nem o que se verifica por um exame detido da realidade econômica do país. 

Dito isto, vejamos como pode ser organizado este debate intelectual (unilateral, é verdade) em torno das idéias “neoliberais” no Brasil. Numa primeira seção, trataremos de resumir o que os “acusadores” entendem serem políticas “neoliberais”, que costumam ser confundidas, ainda que erroneamente, com as prescrições do chamado “consenso de Washington” (CW). Em seguida, com base em perguntas formuladas em torno dessas “acusações”, trataremos dos aspectos enfocados nas prescrições, confrontando sua suposta aplicação com a prática efetiva do Brasil em cada uma dessas vertentes, para constatar em que medida a política econômica do país seguiu, de fato, os cânones do “neoliberalismo”. Ainda que algumas simplificações sejam inevitáveis, acreditamos que a contribuição aqui efetuada possa esclarecer a natureza do desenvolvimento brasileiro no período recente e, sobretudo, evidenciar o quanto ainda o Brasil encontra-se afastado de “neoliberalismo” (ou do liberalismo, tout court). Nesse processo, alguma repetição de argumentos do autor, expressos em trabalhos anteriores, é igualmente inevitável.

 

(...)

Ler a íntegra neste link: 

terça-feira, 23 de março de 2021

O neoliberalismo e os seus descontentes - Christian Edward Cyril Lynch (FSP)

 Ainda vou retrucar este ensaio: mas como já são 3h45 da madrugada, e acabo de tomar uma supercaipirinha de Pisco, vou deixar para depois...

Paulo Roberto de Almeida


LIBERAIS, NEOLIBERAIS, POLÍTICA E MERCADO!

(Christian Edward Cyril Lynch, autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro - Ilustríssima - Folha de S.Paulo, 21) O tema do neoliberalismo está em voga desde a década de 1980, quando a crise da social-democracia europeia trouxe a crítica do planejamento econômico pelo Estado e a defesa do liberalismo econômico como fórmula capaz de superar a estagnação.

Nos últimos dez anos, seu prestígio cresceu e seus partidários aderiram à chamada "nova direita", parte da qual viria a apoiar o governo Bolsonaro. O debate público sobre o conceito de liberalismo é intenso. Hoje, o tema guarda grande atualidade, tendo em vista o referido endosso de Paulo Guedes e de maioria dos neoliberais brasileiros às tendências conservadoras e autoritárias de Jair Bolsonaro.

Entre os pretendentes dessa ideologia política, a querela gira em torno de um liberalismo democrático inimigo do autoritarismo político (a vertente liberal democrata), que mantém relações pragmáticas com a economia, e um outro, para quem a liberdade política depende essencialmente da econômica, ponto de vista segundo o qual o verdadeiro autoritarismo seria a intervenção do Estado na economia (a vertente neoliberal).

Os neoliberais se apresentam como “liberais”, ou como sendo os “autênticos liberais”, alinhando-se, todavia, a pautas reconhecidamente conservadoras em sua dimensão política. Tentam, assim, conciliar em abstrato a distinção histórica entre conservadorismo e liberalismo, sem deixar de aderir a uma coalizão de vocação autoritária, que conta com conservadores reacionários (olavistas) e estatistas (militares).

Eles enfrentam sempre a oposição de outros “liberais”, que se pretendem progressistas e negam a compatibilidade entre liberalismo e conservadorismo ou autoritarismo político.

Vários estudiosos conferiram grande importância à questão das chamadas famílias, tradições ou linhagens do pensamento político brasileiro. Esse tipo de classificação tem entre suas vantagens a capacidade de servir de anteparo ao presentismo: a tentação de ver os problemas do momento atual como puramente inéditos. Assim, podemos revisitar a tradição do liberalismo brasileiro, buscando suas regularidades no tempo.

Desde o começo do século 19, os liberais associaram o suposto atraso brasileiro a um problema de origem. A baixa capacidade de os portugueses estabelecerem as bases de uma civilização moderna nos trópicos, a influência da Igreja Católica, a concentração da grande propriedade agrária e a escravidão teriam produzido uma sociedade civicamente egoísta, indiferente à ciência, dependente de um Estado autoritário e patrimonial, avessa ao indivíduo autônomo e incapaz de cooperação —como descrito, por exemplo, por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” (1958).

Para além do transplante de instituições anglo-saxãs, o programa liberal inspirado por Stuart Mill tem se pautado por políticas públicas voltadas para a abertura comercial e cultural, para a descentralização político-administrativa, desregulação econômica e redução da burocracia.

Do ponto de vista político, o liberalismo brasileiro de tendência democrática manifesta um certo centrismo. O mais destacado intelectual liberal brasileiro do período pós-independência, Evaristo da Veiga, já celebrava a moderação como a virtude política por excelência. Essa postura confere aos liberais um dinamismo de se deslocar para a direita ou para a esquerda, conforme percebam a ameaça autoritária vindo de um dos lados opostos, socialista ou conservador.

No governo, o liberalismo democrático brasileiro tende a ser mais cauteloso, hesitando a respeito da conveniência e do ritmo da expansão dos direitos sociais e políticos. Acreditando que a colonização teria conformado uma sociedade inclinada a soluções políticas messiânicas, populistas e estatistas, os liberais acabam por não confiar no “bom senso” das massas. Daí a tendência a um excesso de moderação que conduz ao elitismo, ou seja, a circunscrever o centro decisório a uma minoria homogênea de cidadãos em termos de renda e cultura.

Desde que a democratização começou a surgir no horizonte, a partir da Campanha Abolicionista com Joaquim Nabuco e, depois, com a Campanha Civilista de Rui Barbosa, a classe média entrou no radar dos liberais. Como segmento social, exprimiria as qualidades da sociedade civil, por sua sensibilidade a temas como participação política, liberdade, mérito e moralidade.

Entretanto, por vezes, os liberais democráticos se perceberam em um clima de polarização entre a esquerda e a direita radicais que reduzia o seu espaço de atuação em defesa das liberdades públicas e inclinava o país para o autoritarismo. A sociedade brasileira parecia não se adequar à pedagogia dos valores cosmopolitas liberais.

Inoculada nas massas, a hostilidade a esses valores inclinaram-nas à tutela de um líder carismático; daí a fortuna de um conceito controverso como o de “populismo” tanto entre liberais quanto entre socialistas cosmopolitas. Tal diagnóstico leva muitos liberais democráticos a periodicamente advogarem mecanismos institucionais como o parlamentarismo e o judiciarismo.

Este último é uma velha aspiração que data da queda da Monarquia e encontrou seus grandes defensores em Rui Barbosa e Pedro Lessa, para quem a República transferira para o Supremo Tribunal a função arbitral exercida antes pelo Poder Moderador.

Somente na Nova República, todavia, com a retirada de cena do Exército, o judiciarismo se tornou hegemônico, auxiliado pelo desenho institucional da Constituição de 1988. No começo do século 21, voltou a ser apresentado como um remédio para as tendências corruptoras e oligárquicas da representação política.

Em épocas de polarização e crise aguda do Estado de Direito, quando as instituições constitucionais parecem indiferentes ou hostis à cultura do liberalismo, nasceu frequentemente entre os liberais democratas brasileiros a tentação do golpismo.

Desde 1889, o liberalismo nacional tendeu a encarar esse recurso como legítimo em momentos críticos para salvar a liberdade contra seus inimigos percebidos como autoritários. Quem melhor representou essa ambiguidade foi o próprio Rui Barbosa. O temor de um eventual reinado reacionário da princesa Isabel o fez embarcar no golpe militar e a se tornar ministro da ditadura republicana, interpretada por ele como um autoritarismo transitório que preparava um Estado de Direito mais sólido, conforme o figurino estadunidense.

Depois de combater o militarismo dos presidentes Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, Rui voltou a cogitar a intervenção do Exército no começo dos anos 1920, quando lhe pareceu que a República marchava de novo para o autoritarismo.

O golpe de 1964 também foi apoiado por liberais democratas, a exemplo de Afonso Arinos e Carlos Lacerda, como um breve período de exceção destinado a afastar o risco de ameaça comunista. Na prática, em todas essas ocasiões, os liberais brasileiros só participaram de uma “jornada de otários”, que precipitou o advento de um autoritarismo de direita que terminou por voltar-se contra eles e persegui-los como subversivos.

Embora se imagine sempre uma correlação automática entre liberalismo econômico e político, essa relação, ao longo dos últimos três séculos, é mais complexa e nem sempre de fácil distinção. Se a liberdade de mercado é parte das liberdades modernas, o foco sobre a liberdade política, aquela plasmada na forma dos direitos e das garantias constitucionais, distingue o liberalismo democrático daquele que via no livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal.

A esta última vertente poderíamos chamar de libertarianismo econômico, ou neoliberalismo. Surgido pelas mãos de Herbert Spencer por volta de 1880 como reação ao processo de democratização política, impulsionado pelo socialismo e pelo alargamento do sufrágio, o neoliberalismo consiste em um híbrido de liberalismo e conservadorismo: ao mesmo tempo em que apresenta características liberais, como o individualismo, eleva o mercado à condição de gerador e ordenador da vida social, intangível porque produto de forças extra-humanas —uma suposta “ordem espontânea” do universo social fruto da interação não planificada entre os indivíduos.

Os neoliberais apresentam seus argumentos em uma roupagem supostamente “técnica” ou “científica”, defendendo suas posições como as únicas “realistas”, não capturadas pela tentação idealista e normativa da mentalidade planificadora e maximizadora do Estado que teria marcado as ideologias democráticas desde o século 18, como se notaria tanto nos liberais quanto nos socialistas.

Na ideologia neoliberal, a função do Estado é essencialmente a preservação das condições de competição dos indivíduos no mercado. A justiça social é produto das leis do mercado, cujo livre funcionamento por parte de empresários “empreendedores” e criativos, em um contexto de população tecnicamente educada, geraria de forma mais ou menos automática riqueza pública e emprego, através de sucessivos ganhos de produtividade.

Para os neoliberais, o Brasil estaria sempre patinando entre a barbárie e a estupidez, carecendo constantemente de abertura comercial e financeira para o mercado exterior. Aqui, empreender teria muito mais obstáculos a enfrentar devido à ausência de uma cultura moderna, ou seja, capitalista. Em contraste, os países do Atlântico Norte costumam ser referenciados como modelares.

O cosmopolitismo neoliberal demonstra, coerentemente, grande apreço a organismos internacionais —mas não os de caráter político, como a Liga das Nações ou a ONU, enaltecidas pelos liberais democratas, e sim os financeiros, como o FMI, bancos e empresas multinacionais.

E se é verdade que ambas as tradições liberais podem ter uma aproximação instrumental com o autoritarismo, no caso dos neoliberais essa dimensão é muito mais acentuada. De todo esse diagnóstico negativo dos libertários econômicos sobre a situação do Brasil resultava um descompromisso ainda maior com a democracia.

A necessidade de um choque civilizador de capitalismo vindo de fora justificava métodos autoritários. A marca acentuadamente demofóbica já estava presente nos fundadores libertários da República, como os irmãos Alberto e Campos Sales, que ajudaram a urdir o golpe de 1889 contra os liberais e defendiam a toda força o presidencialismo, na crença de que só um governo forte e enérgico poderia enfrentar o “socialismo”.

No século 20, Eugênio Gudin e Roberto Campos demonstraram idêntico descaso com o regime democrático. Diziam que as constituições de 1946 e 1988, por não corresponderem às suas doutrinas, eram produtos da ignorância e da utopia. Como nenhuma delas resolvia os problemas do país, duravam pouco e mereciam, por isso, o desprezo geral.

Muitas tensões marcaram a convivência dos dois liberalismos, o democrático e o neoliberal, em nosso país. Para Rui Barbosa, o presidente Campos Sales era o grande artífice do conservadorismo da Primeira República. Ele acusava Sales de autoritário, oligarca e corruptor, assim como via na política neoliberal de seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, uma cortina de fumaça doutrinária destinada a favorecer os interesses internacionais. Já Sales e Murtinho chamavam Rui de subversivo e tendente ao socialismo, criticando sua política econômica.

Quando o regime militar impôs a Constituição de 1967, o liberal democrata Afonso Arinos também se queixou de que a nova Carta continha “excessivo liberalismo econômico em contraste com o autoritarismo político”. Em defesa dela, os neoliberais Gudin e Roberto Campos justificaram o fortalecimento do Executivo pela necessidade de passar as reformas modernizadoras de corte libertário.

Roberto Campos também se estranhou publicamente com Carlos Lacerda, quando este atacou sua política neoliberal como própria de tecnocratas e defendeu uma abordagem pragmática da economia. No livro “Brasil entre a Verdade e a Mentira” (1965), Lacerda invocou em seu apoio a autoridade de Rui Barbosa, cuja obra defendeu contra Murtinho e Campos.

Apoiador de primeira hora do golpe militar, Lacerda acabou preso após o AI-5 e teve seus direitos políticos cassados. Também para ele, a adesão ao golpismo resultou numa “jornada de otários”. A história se repetiu recentemente, com a adesão dos liberais democratas ao lavajatismo como método de deposição da esquerda. Ao invés de chegarem ao reino da liberdade republicana, esquentaram a cama para Jair Bolsonaro se deitar.

Depois de 1990, os liberais democratas recuperariam o discurso do liberalismo econômico, voltando a apresentar um ponto de contato com os neoliberais. Nem por isso se tornariam a mesma coisa. Em suas memórias, “A Lanterna na Popa” (1994), Roberto Campos lamentou as brigas com Arinos e Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro...”. Ele estava errado. Embora aparentados do ponto de vista “macro ideológico”, o liberalismo democrático e o neoliberalismo, como já se percebia então, são ideologias distintas.

O liberalismo democrático, que representa o tronco principal da linhagem, na segunda metade do século 19 já havia, por meio de Stuart Mill, renunciado a aspectos secundários da doutrina, como o voto censitário e o liberalismo econômico, vinculados ao governo oligárquico e plutocrático.

O neoliberalismo, ao contrário, surgiu como uma reação conservadora à adaptação do liberalismo ao ambiente democrático, destinado a preservar a dimensão oligárquica e plutocrática do Estado de Direito. Onde os liberais viam democracia, os neoliberais passaram a ver socialismo. Longe de preservar o liberalismo oitocentista, os neoliberais deliberadamente o reformularam, modificando seus fundamentos, para se concentrar, quase que exclusivamente, na defesa do Estado mínimo.

O atual contencioso em torno do autoritarismo conservador de Bolsonaro demonstra com clareza a distinção de neoliberais e liberais democratas. A adesão de Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica.

Basta lembrar que no passado apoiaram as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a oligárquica República Velha e o regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol...


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Saudades dos tempos em que o perigo era só o “neoliberalismo” - Paulo Roberto de Almeida

 Alguém “desenterrou” um texto meu de 2009, depois reproduzido no Ordem Livre, em 2014, do qual eu havia esquecido completamente.

Mas era sobre essas coisas amenas do neoliberalismo, consenso de Washington, quando a Academia brigava contra os seus próprios conceitos falaciosos. 

Saudades desses tempos mais saudáveis. Atualmente temos de ficar ouvindo um besteirol inacreditável, feito de “globalismo”, “covidismo” e outras estupidezes ainda piores, vindas não só do chanceler acidental e suas “alucinações exteriores”, mas do próprio tresloucado que tenta dirigir o governo (hoje sob o controle cleptocrático do Centrão, e nisso repito um general boçal, que teve de engolir suas próprias palavras).

Acho que avançamos muito no grau de loucuras nacionais. Anteriormente, elas se colocavam num patamar mais ou menos racional, com o qual era possível dialogar.

Atualmente, as falácias não são apenas mentirosas: elas são simplesmente ALUCINANTES, como revelado no último (ou apenas o mais recente) discurso do patético chanceler em 22/10/2020. Outros virão, tenham certeza: estamos entregues a um bando de doidos.

Em todo caso, agradecendo a quem desenterrou meu texto de uma década atrás, reproduzo-o aqui abaixo.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 28/10/2020


O mito do neoliberalismo

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1. Da pouco nobre arte de ser falaz

Falácia, segundo os bons dicionários, é a qualidade ou o caráter do que é falaz, que, por sua vez, é um adjetivo sugerido como sendo o equivalente de enganador, ardiloso ou fraudulento, ou, ainda, quimérico, ilusório ou enganoso. Pois bem, ao longo de minhas “peregrinações” acadêmicas, tenho tido a oportunidade de deparar-me com exemplos de afirmações, argumentos, postulações, teses ou artigos inteiros que correspondem ao caráter enganador ou, até mesmo, fraudulento contido nesse adjetivo. Comecemos esta série por um dos mais recorrentes em nossos tempos.

Como sabem todos aqueles que convivem com a literatura acadêmica na área de ciências sociais, nenhum conceito tem sido tão equivocadamente mencionado no ambiente universitário, nas últimas duas décadas, quanto o epíteto “neoliberal”, junto com o seu correspondente coletivo e doutrinal, o “neoliberalismo”. A incidência estatística de seu (mau) uso é tão notória, que se poderia falar de uma verdadeira epitetomania anti-neoliberal, dirigida contra todas as políticas econômicas associadas, de perto ou de longe, ao chamado mainstream economics, este representado pelas correntes ortodoxas de pensamento e suas práticas econômicas correspondentes.

Junto com o substantivo usado e abusado de globalização, ou, ainda, o tão mais detestado quanto praticamente desconhecido programa econômico do “consenso de Washington”, o neoliberalismo converteu-se, simultaneamente, em um xingamento e em um slogan de uso praticamente obrigatório por todos aqueles que pretendem desqualificar e condenar as políticas e as práticas da escola econômica convencional. Eles o fazem, supostamente em nome de uma outra orientação, de uma doutrina ou de uma escola, que seriam, alegadamente, heterodoxas, alternativas e até mesmo opostas às primeiras. Os argumentos e teses utilizados para esse tipo de condenação são pouco compatíveis com um trabalho analítico sério, ou seja, capazes de passar pelos testes da coerência, relevância, compatibilidade com os dados da realidade e passíveis de aferição, independentemente dos próprios argumentos que sustentam a acusação.

Nesse sentido, o neoliberalismo já se converteu em um mito acadêmico, isto é, deixou de significar uma realidade empírica, aferível por dados extraídos de alguma situação concreta, para passar a representar uma entidade nebulosa, definida de modo muito pouco precisa, aplicada a diferentes conjunturas de países e políticas vagamente caracterizadas como pertencendo ao domínio dos “livres mercados”, em oposição ao que seria uma regulação estatal mais estrita. Não se é neoliberal por vontade própria, mas apenas por ter sido assim catalogado por aqueles que detêm o monopólio dessa classificação, que são, invariavelmente, os opositores de supostas idéias “neoliberais”.

Por certo, existem muitos outros abusos acadêmicos em relação a diversos conceitos que são usados indevidamente no panorama pouco rigoroso das nossas “humanidades”, entre eles o de classe, o de imperialismo, o de burguesia e vários do mesmo gênero. Contudo, o manancial de falácias que brota sem cessar a partir do uso inadequado do adjetivo “neoliberal” é provavelmente o mais abundante e o mais disseminado de que se tem registro desde os anos 1980. São tantas as variedades de uso e as manifestações qualitativas – ainda que superficiais – em torno desse termo, que fica difícil ignorá-lo como o campeão absoluto de referências numa série analítica que pretende, justamente, examinar alguns exemplos de falácias acadêmicas. Seu uso é tão corrente e banal que pode ser espinhoso selecionar uma “falácia” representativa de toda uma corrente de pensamento que se propõe aqui submeter ao crivo da crítica argumentada e sistemática.

Encontrei, porém, no contexto de minhas leituras, um texto suficientemente representativo de uma falácia acadêmica associada ao dito conceito e perfeitamente ilustrativo do mito mencionado no título deste ensaio. Vou proceder à citação do texto em questão, submetendo o trecho selecionado à crítica que pretendo fazer de toda uma orientação doutrinal muito comum nos meios ligados à comunidade universitária que se move em torno das chamadas humanidades. Os únicos critérios que me guiam na releitura crítica do texto em questão são aqueles que se espera encontrar em todo e qualquer trabalho acadêmico: clareza na descrição ou exposição dos fatos, coerência na apresentação dos argumentos, relevância do discurso para a realidade de que se pretende tratar e sua adequação aos dados dessa própria realidade.

2. As novas roupas do velho imperialismo, em sua fase neoliberal

Deparei-me, num típico volume que deve figurar entre as leituras obrigatórias ou recomendadas de vários cursos dentro dessa área, com a seguinte afirmação:

“...o produto social da globalização, o neoliberalismo tem sido o mais dramático possível. Em pouco tempo esse novo regime de acumulação desagregou sociedades, tornou os ricos mais ricos e ampliou a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia, onde a barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos.” (autor: Edmilson Costa; artigo: “Para onde vai o capitalismo? Ensaio sobre a globalização neoliberal e a nova fase do imperialismo”; in Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari (coord.), Relações Internacionais: Múltiplas Dimensões; São Paulo: Aduaneiras, 2004, p. 201-233; cf. p. 206.)

Existe ainda outra frase extraída do mesmo artigo que me parece adequada ao propósito de avaliar criticamente o mito do neoliberalismo em certo pensamento acadêmico contemporâneo, embora esta acima me pareça uma perfeita síntese de tudo o que existe de equivocado e falacioso no “pensamento” universitário em torno desse conceito onipresente e polivalente. Vejamos em todo caso o complemento ideal a ela:

“O neoliberalismo é a síntese de todo esse processo de mudanças profundas que estão ocorrendo no sistema capitalista: funciona como uma espécie de gerenciador ideológico, político, econômico, social e cultural dessa nova fase do imperialismo. Trata-se de uma ideologia primitiva para os tempos atuais, com postulados do século XVIII e meados do XIX, época do capitalismo concorrencial, mas com um apelo espantoso ao senso comum. A ideologia neoliberal procura manipular os sentimentos mais atrasados das massas, revigorando os preconceitos, açulando o individualismo, distorcendo o significado das coisas, reduzindo os fenômenos à sua aparência, de forma a ganhar os corações e mentes para o jogo do livre mercado e da livre iniciativa.” (Idem, op. cit., p. 219)

Não vale a pena alertar para a incoerência de se destacar o caráter “primitivo” de uma ideologia que, sendo de meados do século XIX, tem mais ou menos o mesmo grau de “primitivismo” que o marxismo, nem para a inconsistência de se vincular a defesa do livre mercado e da livre iniciativa a “sentimentos atrasados das massas”, já que a mesma ideologia estaria, supostamente, “açulando o individualismo”. Pedir um mínimo de coerência analítica seria exigir demais de um autor que, manifestamente, distorce o “significado das coisas”, reduz o fenômeno do liberalismo à sua aparência, com o provável objetivo de ganhar os corações e mentes de alguns estudantes para o livre jogo dos seus argumentos ilusórios. Passemos, portanto, a examinar cada uma das partes dessas afirmações, elas mesmas espantosas, em relação ao neoliberalismo, com a atenção que nos requer este exemplo consumado de fraude intelectual (se é verdade que este último adjetivo se aplica ao caso em questão).

3. O neoliberalismo como produto de uma imaginação confusa

Em primeiro lugar, o neoliberalismo nunca foi um “produto social da globalização”. Esta é um processo tão velho quanto os empreendimentos marítimos dos mercadores fenícios da antiguidade e as aventuras em mares desconhecidos dos navegadores ibéricos do final do século XV. Em suas manifestações mais comuns, ela vem sendo aceita tranquilamente até pelos mais empedernidos opositores desse processo, aqueles que, sob inspiração francesa, acreditam que “um outro mundo é possível” e que pedem por “uma outra globalização”, que deveria ser não assimétrica e, preferencialmente, não capitalista. Quanto ao neoliberalismo, a rigor, ele não tem nada a ver com a globalização, podendo ser teoricamente encontrado em diversos sistemas econômicos, bastando com que as práticas econômicas se ajustem ao que se tem, via de regra, como os fundamentos do sistema liberal: liberdade de iniciativa, pleno respeito à propriedade privada e aos contratos, defesa do individualismo contra as intrusões do Estado e, de modo amplo, um conjunto de instituições e práticas que buscam garantir, tanto quanto possível, a liberdade dos mercados.

A rigor, o neoliberalismo não existe, sendo apenas e tão somente um revival, ou renascimento, de uma velha escola de pensamento econômico e de orientações em matéria de políticas econômicas que se filiam ao antigo liberalismo doutrinal que surge na Grã-Bretanha a partir dos séculos XVII e XVIII. Aliás, nenhum “neoliberal” consciente e conseqüente se classificaria dessa maneira: ele apenas diria que segue os princípios do liberalismo (econômico ou político, não vem ao caso diferenciar aqui os dois sistemas, que não são idênticos, mas tampouco estranhos um ao outro) e ponto final; todo o resto seria dispensável. Neoliberal é, como já referido, um epíteto criado pelos opositores do liberalismo ou, se quisermos, um conceito que busca evidenciar, justamente, o retorno do antigo liberalismo, depois de um longo intervalo marcado por práticas e orientações claramente intervencionistas e estatizantes.

Mas continuemos. Deixemos de lado a caracterização de “dramático” aplicada a esse “produto”, pois isto corresponde a uma apreciação inteiramente subjetiva do autor, carente de qualquer fundamentação empírica. Esclareça-se, de imediato, que o “produto” não conforma, absolutamente, um “novo regime de acumulação”, que seria, supostamente, uma forma de organização social da produção e da distribuição de bens e mercadorias historicamente inédita para os padrões conhecidos do capitalismo. Ora, o liberalismo – e seu sucedâneo contemporâneo, que seria “neo” – está longe de ser novo e menos ainda de conformar um regime de acumulação, posto que configurando uma filosofia ou orientação geral nos terrenos da política e da economia. Acumulação é um termo geralmente associado ao pensamento econômico marxista, que denota formas genéricas de apropriação dos resultados sociais do processo de produção, o que pode ocorrer em regime de livre concorrência, de monopólio, de propriedade estatal ou de modalidades mistas dessas configurações produtivas. Aparentemente este autor demonstra pouco rigor na sua utilização do ferramental conceitual marxista; em benefício próprio, deveria ser mais cuidadoso com sua terminologia estereotipada.

Pretender, agora, que esse “novo regime” desagregou sociedades equivaleria a afirmar que o neoliberalismo foi responsável pela desestruturação de várias nações que conheceram a aplicação de políticas neoliberais. Olhando-se, honestamente, um mapa dinâmico do planeta, o que poderíamos constatar é que as únicas sociedades verdadeiramente desestruturadas da atualidade são algumas nações africanas que conheceram processos traumáticos de instabilidade política e social, algumas até atravessando guerras civis abertas e conflitos étnicos ou religiosos intermitentes, ou surtos violentos de conflitos tribais que se arrastam na quase indiferença das nações mais ricas do planeta, estas efetivamente “neoliberais” ou simplesmente liberais.

Com efeito, se podemos caracterizar algumas sociedades como mais liberais do que outras, estas parecem ser as nações do chamado arco civilizacional anglo-saxão (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia), sendo elas seguidas como menor rigor doutrinal (e maior pragmatismo) pelos países nórdicos ou escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia). Quanto aos países da Europa ocidental, essencialmente capitalistas em seu “modo de produção”, eles têm alternado práticas e políticas liberais – ou politicamente “direitistas”, para sermos simplistas – com outras tantas práticas e políticas mais social-democráticas, geralmente conduzidas por partidos de esquerda ou progressistas. No fundo, não se vê bem como distinguir essas políticas entre elas, a não ser no plano da retórica eleitoral.

Em nenhum outro continente ou região podemos distinguir países e sociedades verdadeiramente “neoliberais”, se formos rigorosos na utilização desse conceito. De fato, pretender que países latino-americanos, que empreenderam programas de ajuste e de estabilização macroeconômica depois de longas e recorrentes crises econômicas trazidas por processos inflacionários e de desequilíbrio no balanço de pagamentos, sejam ou tenham sido “neoliberais” – qualquer que seja o entendimento que se dê a esse conceito – representaria abusar em demasia desse conceito, retirando-lhe qualquer precisão metodológica e adequação à realidade empírica que nos é dada observar ao longo das últimas décadas.

Olhando com lupa, talvez se pudesse dizer que o Chile se apresenta como um país mais “neoliberal” do que a média dos latino-americanos. Ora, não se pode dizer que a sociedade chilena esteja “desestruturada”, a qualquer título. Colocando a lupa em outras sociedades da região, o que se observa é que existem, sim, alguns países bem mais desestruturados: os primeiros que aparecem são a Bolívia, a Venezuela e o Equador, com a possível inclusão da Argentina nesse conjunto. Pois bem, dificilmente se poderia dizer que eles estão assim por causa do neoliberalismo. Ao contrário. Em cada um deles, o que se observou, ao longo dos últimos anos, por acaso coincidentes com seus respectivos processos de desestruturação, foi, justamente, a aplicação de políticas dirigistas, estatizantes, intervencionistas, heterodoxas e, até, socialistas; ou seja, tudo menos políticas liberais. O autor deve estar com suas lentes embaçadas por preconceitos ideológicos, o que o impede de constatar a simples realidade de políticas econômicas que são efetivamente aplicadas nos diversos países considerados.

4. O neoliberalismo produz miséria e é sinônimo de barbárie?

O que dizer, em seguida, da suposta ação do neoliberalismo, que teria ampliado “a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia”? Trata-se, mais uma vez, de afirmação desprovida de qualquer fundamentação empírica, não se podendo apoiá-la em praticamente nenhum exemplo de sociedade reconhecidamente “neoliberal”, qualquer que seja. A África, como vimos, afundou de fato na pobreza e na desesperança – embora ela venha crescendo novamente nos últimos anos –, mas essa evolução dificilmente poderia ser creditada à ação do neoliberalismo. Desafio o autor do texto selecionado a provar o contrário.

Quanto às duas nações “periféricas” que mais progressos fizeram na elevação gradual de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, a China e a Índia, o que se observou, nas últimas duas décadas, foi um conjunto de reformas, várias ainda em curso, conduzidas justamente na direção de mecanismos de mercado, não de orientações estatizantes ou de planejamento centralizado. A renda per capita tem se elevado, progressivamente, em ambos os países, especialmente na China, que deu saltos espetaculares na redução da pobreza e na abertura de setores inteiros de sua economia à livre iniciativa e ao capital estrangeiro (todo ele capitalista e, supostamente, neoliberal). Quanto à Cuba socialista, ela conseguiu realizar a proeza de passar da maior renda per capita da América Latina em 1960 – não escondendo o fato de que ela era bem mal distribuída – para um patamar abaixo da média, em 2006, confirmando o consenso de que o socialismo é bem mais eficiente em repartir de modo relativamente igualitário a pobreza existente do que em criar novas riquezas.

Pode-se, talvez, alegar que as mudanças econômicas ocorridas na China vêm sendo feitas sob a égide do planejamento estatal e sob a firme condução do Estado chinês, que mantém controle sobre setores ditos estratégicos da economia do país. Essa realidade não elimina o fato de que todas as reformas operadas apresentam um caráter essencialmente capitalista e, portanto, tendencialmente neoliberal, ainda que não na versão “quimicamente” pura do modelo original anglo-saxão. O estilo ou a forma não pode sobrepor-se à essência do sistema, caberia registrar. Neste caso, nosso autor ou é cego ou é intelectualmente desonesto, ao não querer reconhecer esses dois processos de “enriquecimento capitalista”, que se desenvolvem sob os olhos de todo o planeta há aproximadamente duas décadas. Suas lentes estão completamente fora de foco ou muito sujas, aparentemente. Um pouco de estatística não lhe faria mal.

O fato de que, em vários desses processos – tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento –, os ricos estejam se tornando mais ricos não impede o outro fato concomitante de que os pobres estejam se tornando menos miseráveis. Quem não quiser tomar minha afirmação como um argumento de fé, pode conferir os dados apresentados por estudiosos da distribuição mundial de renda, como Xavier Sala-i-Martin, cujas evidências e conclusões já resumi neste artigo: “Distribuição mundial de renda: as evidências desmentem as teses sobre concentração e divergência econômica”, Revista Brasileira de Comércio Exterior (Rio de Janeiro: Funcex, ano XXI, n. 91, abril-junho 2007, p. 64-75; disponível: https://www.academia.edu/5904200/1716_Distribuição_mundial_de_renda_as_evidências_desmentem_as_teses_sobre_concentração_e_divergência_econômica_2007_ ).  

Se existem sociedades nas quais a “barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos”, como pretende o autor, elas estão longe de representar um modelo de “acumulação” ou de organização social da produção que seja liberal ou neoliberal, sendo mais efetivamente caracterizadas pelo autoritarismo político e pelo extremo intervencionismo econômico do Estado, quando não entregues à violência política, religiosa ou tribal, pura e simples, como parece ser o caso de alguns países do continente africano ou do Oriente Médio.

A afirmação carece, assim, de qualquer embasamento na realidade, sendo uma construção puramente mental de um autor manifestamente enviesado contra o que ele crê ser “neoliberalismo”, quando nenhum exemplo concreto desse sistema é discutido ou sequer aventado. Para um autor como esse, ser contra o neoliberalismo significaria se posicionar contra o livre comércio, contra o ingresso do capital estrangeiro, contra a administração em bases de mercado de inúmeros serviços públicos, contra a fixação dos juros e da paridade cambial pelo livre jogo da oferta e demanda de crédito e de moeda, enfim, preservar o controle estatal de inúmeras atividades com impacto social.

Se formos examinar, contudo, os dados econômicos relativos à renda, riqueza e prosperidade de um conjunto significativo de países, estabelecendo duas colunas, nas quais se colocaria, de um lado, os mais “neoliberais” – abertura ao comércio e aos investimentos, menor regulação estatal de atividades de produção e distribuição, fluxo livre de capitais e fixação dos juros e câmbio pelo mercado – e, de outro, os países menos propensos à abertura e mais inclinados à regulação estatal, e certamente quanto ao movimento de capitais – como são em grande medida os da América Latina, do Oriente Médio e da quase totalidade da África – teríamos uma correspondência quase perfeita entre maiores coeficientes de abertura, isto é, maior grau de “neoliberalismo”, e maior renda e prosperidade. O “quase perfeita” vem por conta de países de grande mercado interno – como os EUA – que apresentam pequeno coeficiente de abertura externa (apenas no que tange ao peso do comércio exterior no PIB), sem no entanto deixar de serem abertos às importações e atrativos aos capitais estrangeiros. Ou seja, a liberalização em comércio e em investimentos e um ambiente de negócios favorável à iniciativa privada constituem, sim, poderosas alavancas para a formação de riqueza e a distribuição de prosperidade.

5. O neoliberalismo é um mito, mas alguns ingênuos não sabem disso

Em qualquer hipótese, porém, o neoliberalismo é um mito, tanto pelo lado das acusações infundadas dos anti-neoliberais, como pelo lado dos promotores da própria doutrina liberal, uma vez que todos os Estados modernos, sem exceção, apresentam graus variados de intervenção no sistema econômico e de regulação da vida social. Uma série estatística sobre níveis de tributação e gastos públicos, ao longo do século XX, revelaria um avanço regular e constante da intermediação estatal nos fluxos de valor agregado e de dispêndio total, confirmando o papel sempre relevante do Estado na repartição setorial da renda total e na correção das desigualdades mais gritantes introduzidas pelos regimes puros de mercado. Aliás, falar em “Estado liberal” é uma total contradição nos termos, tanto o substantivo desmente o seu suposto adjetivo.

O que estava, contudo, em causa na análise conduzida neste ensaio de simples avaliação crítica de um dos mitos mais difundidos na academia não era, propriamente, a evolução econômica das modernas sociedades de mercado, e sim a afirmação – que vimos totalmente desprovida de qualquer fundamentação empírica – de que existe algo chamado neoliberalismo sendo ativamente praticado pelos Estados modernos e de que essa doutrina e prática seriam responsáveis por todas as misérias da sociedade contemporânea. Trata-se de uma das fabulações mais inconsistentes de que se tem notícia na produção acadêmica tida por séria e responsável.

Os dados disponíveis, revelados por organismos internacionais e por uma variedade razoável de organizações independentes, confirmam a melhoria sustentada dos padrões de vida em diferentes regiões do planeta, tanto mais rápida e disseminada quanto mais integrados estão esse países e regiões aos fluxos mundiais de comércio, tecnologia e investimentos. Assim, considerar que a “acumulação” neoliberal ampliou a pobreza em todos os cantos do mundo, aprofundou as desigualdades e provocou o cortejo de misérias que são registradas em áreas jamais tocadas por políticas e práticas neoliberais – qualquer que seja o entendimento que se dê ao conceito em questão –configura um tipo de fraude que só consegue ser repetido impunemente em salas de aula universitárias porque a academia brasileira é pouco responsável no “controle de qualidade” dos cursos da área de humanas e nos métodos de avaliação de docentes manifestamente despreparados para cumprir o programa do qual são encarregados. Para sermos mais precisos, estamos em face de uma desonestidade intelectual que só encontra paralelo em apresentações de mágicos de circos mambembes.

Termino por aqui minha primeira análise de uma falácia acadêmica detectada em livros utilizados em universidades brasileiras. De fato, o mito do neoliberalismo – que não guarda a mínima correspondência com a realidade verificável – oferece um exemplo concreto desse tipo de prática, mais comum do que se pensa, aliás, em nosso ambiente universitário. A um simples trecho selecionado de um artigo do autor aqui examinado pode-se aplicar o conjunto de caracterizações dicionarizadas e conectadas ao termo “falácia”: enganador, ardiloso, fraudulento, quimérico e ilusório. Outros exemplos certamente existem: eles também serão trazidos a exame no momento oportuno. Concluo com um aviso à maneira dos franceses: à suivre...

 

* Publicado originalmente em 09/03/2009.


domingo, 8 de abril de 2018

A neoliberalização e os seus descontentes (2003) – Paulo Roberto de Almeida

Em novembro de 2003, recém retornado ao Brasil depois de 4 anos no exterior, encontrei um ambiente muito confuso entre os tradicionais apoiadores do partido da reforma integrantes da minha "classe", ou seja, a dos acadêmicos engajados. Desde o início do governo Lula, em janeiro de 2003, como o governo confirmasse as políticas cautelosas, prudentes, "neoliberais", do governo anterior, essa classe autodenominada de "intelectuais" começou a publicar manifesto atrás de manifesto condenando essas políticas e exigindo uma "política desenvolvimentista", no velho estilo daquilo que já tinha sido praticado no Brasil antes e durante o regime de 1964, e que resultaram naqueles desastres que todos conhecemos: hiperinflação, dívida externa, desvalorização, crise de balanço de pagamentos, recessão, desemprego, etc.
Sem qualquer mandato do governo, escrevi alguns textos criticando, não o governo – o que eu também fiz, aberta e "secretamente" –, mas esses intelectuais desmiolados (e muitos sairiam do PT, batendo a porta, para se abrigar no PSOL, outros foram expulsos, por recusar reformas que o governo estava promovendo, acusadas de serem "neoliberais").
O texto abaixo é um retrato dessa luta solitária que mantive durante bastante tempo, de um lado contra as inconsistências do governo – que eu considerava, ao início, serem apenas resultado da incompetência dos companheiros, de sua inépcia administrativa, e que mais adiante eu descobri que eram deliberadas, medidas e políticas criminosas, feitas expressamente para roubar – e, de outro lado, contra as loucuras dos intelectuais de academia.
Como atualmente, essa mesma classe retorna para apoiar agora o personagem a quem acusou de se render aos capitalistas e neoliberais (o que é verdade, diga-se de passagem), e que se revelou o maior bandido da história política do Brasil, considero ser interessante republicar esse meu texto de crítica à minha "classe" (mas que não deve considerar que eu pertenço às suas fileiras, por sectarismo, claro). Toda a esquerda e grande parte da academia progressista juntou-se aos "mortadelas" – os militantes voluntários ou os mercenários pagos para gritar em prol do meliante corrupto – e denuncia o julgamento "político" do chefe da quadrilha, inclusive um ex-chanceler que vive pateticamente repetindo mentiras e atuando contra o Brasil.
Eis o artigo, escrito no final de 2003.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de março de 2018

A neoliberalização e os seus descontentes:
os órfãos do old-PT e os filhos (confusos) do new-PT

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de novembro de 2003

A sociedade brasileira, na interpretação de muitos intelectuais, estava pronta para grandes mudanças no decurso do processo eleitoral de 2002. Mais do que isso, ela exigia mudanças, cansada que estaria da “mesmice” dos oito anos de tucanato, ou pior, das velhas receitas de política econômica do Consenso de Washington, com o apoio dos políticos fisiológicos dos partidos aliados, a começar pelo PFL mas também pelo PMDB. Como resultado desse grande movimento para a frente, eis que surge um novo poder, liderado pelo partido que tinha prometido mudanças durante toda a sua vida de lutas em direção ao poder. Mais do que isso, ele era a própria encarnação das mudanças, ou pior, um partido em mudanças constantes, apenas que muito mais para dentro do que para fora de si mesmo.
Pois bem, quando esse partido finalmente mudou, a começar pelos compromissos assumidos pelo candidato a presidente em carta ao povo brasileiro, divulgada em junho de 2002, e depois novamente ao assumir finalmente o poder, em janeiro seguinte, os mesmos intelectuais fingem se surpreender e reagem indignados às muitas mudanças que o, agora, maior partido do Ocidente passou a defender, em defesa de teses tão antigas quanto legítimas, como a justiça e a inclusão sociais, a correção das enormes e gritantes desigualdades da sociedade brasileira e a decisão de colocar o Estado a serviço da maioria da população, e não apenas dos privilegiados de sempre. Estas reações parecem evidentes, a partir da gritaria em torno da reforma da Previdência – aprovada com o apoio de grande parte do PFL e da maioria do PMDB -- e em função das principais medidas de política econômica defendidas pela equipe dirigida pelo ministro da fazenda. Por que tudo isso?
Com efeito, enquanto a economia bate recordes de recessão, ou de estagnação, e a população economicamente ativa soçobra gradualmente no desemprego, a academia jamais apresentou níveis tão elevados de produtividade intelectual e de pleno emprego de suas forças produtivas, ainda que na redação de simples manifestos, abaixo-assinados e outras manifestações de “horror econômico”. O motivo? Os acadêmicos protestam contra essa realidade tão prosaica quanto chocante: o mundo mudou, o Brasil mudou e o PT também mudou, como o provam as medidas econômicas, as alianças políticas e o novo discurso social. Quem não mudou, finalmente, foram os acadêmicos, que continuam onde sempre estiveram: no alto de suas cátedras, escrevendo manifestos e assinando cartas ao presidente nos quais exigem mudanças na política econômica do governo.
Em face de um novo manifesto em prol de mudanças na política econômica de Lula, recentemente dado a luz com a fanfarra de sempre, pode-se perguntar: estaríamos em presença de uma nova traição dos clérigos? Ou se trata apenas de um velho cenário que já começa a cansar pela mesmice aborrecedora dos propósitos e argumentos?: os acadêmicos de sempre, “surpreendidos” e “frustrados” com as medidas do governo, lançam mais um “abaixo-assinado” para alertar contra a gravidade da situação e pedir mudanças na política econômica oficial. Déjà vu all over again

Eles só tem a perder os grilhões mentais…
O que terá acontecido com os acadêmicos brasileiros? A Nação vive um momento político sem precedentes em sua história republicana mas eles não parecem se dar conta da importância das mudanças ocorridas no partido governista, que se prepara agora para mudar o País a partir de novas bases conceituais. Bye byevelhas receitas estatizantes e dirigistas e bem-vindas sejam as novas parcerias público-privadas e a reorientação dos gastos sociais do governo. É o novo PT em ação.
Isso, entretanto, não parece impressionar os acadêmicos, encerrados como de hábito em sua torre de marfim, mas que pretendem ainda assim falar em nome da Nação: sem ter obtido nenhum voto popular, nenhum mandato executivo, sem arriscar cargos ou posições, eles pretendem encarnar a vontade do povo e promover, por indução própria e pela enésima vez, as mudanças que eles imaginam ser necessárias na condução da política econômica do País. Eles ainda não conseguiram se libertar de velhos grilhões mentais que os prendem a antigas receitas econômicas, que só falam de controle de capitais, gastos públicos, câmbio administrado, “administração” estatal da dívida pública e outras coisas do gênero.
Quem mudou, na verdade, foi o presidente: um líder operário que no passado prometia mudanças radicais na política econômica assumiu a presidência, tomando então consciência dos problemas que deve enfrentar todo líder político investido de um cargo dessa natureza. A “revolução pelo voto” com que sonhavam os acadêmicos teve de se confrontar aos constrangimentos por que passam todos os que assumem cargos dotados de tais responsabilidades: limitações orçamentárias, constrangimentos fiscais, ausência de base congressual adequada, fragilidade financeira externa, demandas sociais e setoriais em muito superiores às disponibilidades efetivas, enfim problemas com que se defronta todo presidente responsável, o que só parece fugir à compreensão dos acadêmicos. Estes se permitem falar em “elite financeira nacional e internacional” porque têm dela uma noção puramente abstrata e não se consideram, eles mesmos, como parte da “elite financeira nacional”, com suas aplicações em banco. Eles querem nos convencer que vivem, como a maioria do povo brasileiro, apenas de seus salários, mês a mês, e que não possuem sequer uma única aplicação bancária. Eles pretendem falar em “racionalidade econômica abstrata”, mas vivem de abstrações, não da racionalidade concreta dos números do orçamento.

A herança imaginária e a miséria da filosofia acadêmica

A “herança maldita” de que falam os acadêmicos – e mesmo muitos defensores do governo atual – constitui uma bela construção mental, feita metade de problemas reais, estruturais da economia e da sociedade brasileira, a outra metade tendo sido o resultado do próprio processo eleitoral, que, aceitem ou não os promotores dessa tese fragilíssima, provocou uma deterioração geral dos indicadores econômicos relevantes, processo que o governo atual apenas agora está conseguindo reverter. Os atuais indicadores voltam a ser o que eles eram em abril de 2002, e em alguns casos em meados de 2000, depois de superada a crise da desvalorização. Isso parece evidente a qualquer observador isento, mas os acadêmicos insistem em não olhar para os números.
A despeito dessa extraordinária produtividade escrevinhadora demonstrada pelos acadêmicos na produção de “manifestos econômicos” (de vários tamanhos, estilos e conteúdos), eles falharam miseravelmente, até aqui, em oferecer contorno, substância ou coerência ao que eles mesmo chamam de “política econômica alternativa” (que só parece existir na mente abstrata dos que assim escrevem). Em nenhum momento, eles expuseram a factibilidade de uma tal política econômica, não com base na retórica habitual, mas em números, relações de causa a efeito e sobretudo em condições de sustentabilidade fiscal e de adequação orçamentária. Uma avaliação correta dos custos e benefícios de uma “outra política econômica” nunca foi de fato tentada pela nomenklatura da academia. Essa política econômica “alternativa” é aventada, sugerida, invocada, clamada, exigida e até implorada nesses manifestos, mas nunca exposta de forma clara e coerente, com todas as limitações e constrangimentos efetivamente existentes na realidade econômica brasileira.
Pode-se perguntar: qual o mandato concedido aos acadêmicos para fazerem tais tipos de exigências? Que autoridade política possuem eles para pretender que suas idéias sejam implementadas? Aliás, em uma frase: quem avalia as propostas acadêmicas? Ou eles pretendem que seus requerimentos de política econômica alternativa sejam aceitos sem discussão no parlamento, sem exame dos responsáveis pelas contas públicas, por aqueles que, finalmente, foram investidos de tais responsabilidades pelo voto popular ou por decisão presidencial?
O novo Brasil está assistindo, infelizmente, ao velho espetáculo de acadêmicos sem responsabilidade executiva que se dedicam a fazer circular papeis abstratos como se eles fossem dotados de uma legitimidade intrínseca para que seus conceitos vagos e idéias alternativas fossem imediatamente aceitos pela sociedade e incorporados por aqueles que detêm a responsabilidade de conduzir a Nação.

Velhas alternativas e novas mudanças

Afinal de contas, o que pretendem os clérigos acadêmicos? Eles desejam, segundo um desses manifestos abstratos, “promover o desenvolvimento econômico, estabelecer condições para o pleno emprego e empenhar-se pela inclusão social, até que o ciclo de desenvolvimento alcance a totalidade dos brasileiros”. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma bela invocação de um estado ideal, com o qual sonham brasileiros e brasileiras. A essa invocação não corresponde, infelizmente, nenhuma descrição mais precisa dos meios, instrumentos, mecanismos ou modalidades de políticas setoriais e medidas administrativas que permitiriam atingir tal nirvana de felicidade bruta nacional. Não há, sobretudo, nesse meio etéreo em que flutuam os acadêmicos, nenhum constrangimento fiscal, nenhuma limitação orçamentária, nenhuma fragilidade externa, nada que possa opor-se, de fato, à concretização da cornucópia idealista na qual eles parecem se comprazer.
O que dizer, por outro lado, desta invectiva dirigida ao próprio presidente, numa dessas peças da imaginação acadêmica?: “(ele) sabe que terá que abandonar este modelo e lançar as bases de um novo paradigma. E a mudança a ser empreendida não admite meio termo.” Tanta certeza e segurança poderiam fazer pensar que os acadêmicos descobriram o Santo Graal do desenvolvimento econômico por moto-contínuo, a felicidade social a custo zero, a prosperidade de todos como um manancial dos céus, e a distribuição de riquezas sem limites na realidade.
Na verdade, eles oferecem algumas vias para o nirvana: o “abandono das metas de elevadíssimos e desnecessários superávits fiscais primários”, o “controle seletivo sobre o fluxo de capitais externos”, a “recuperação do controle estatal sobre a administração da dívida pública” e outras fórmulas do gênero. Qualquer semelhança com políticas econômicas de um passado não muito distante poderia ser mera coincidência, mas não é: são os mesmos personagens de sempre, voltando a velhas fórmulas de um passado que insiste em não passar.
E como se poderia conseguir o capital político e econômico para ter êxito nessa missão hercúlea? Pasmem os leitores, mas segundo os acadêmicos à custa de força moral, do apoio de todos os brasileiros, da mobilização política nacional, enfim do que eles chamam de “opinião pública mobilizada”, tendo à sua frente os mesmos acadêmicos que sempre nos prometem facilidades mas não conseguem conviver com a realidade.
O que se deve esperar, desse tipo de atitude, é que, mais uma vez, os acadêmicos conseguem se auto-excluir, totalmente, de um debate responsável sobre os rumos da política econômica no País. Este deveria idealmente ser feito com base em argumentos racionais, em evidências empíricas, em dados concretos da situação econômica do País, não a partir de julgamentos apressados, politicamente motivados e de natureza subjetiva, como aqueles que lemos em manifestos e abaixo-assinados universitários. Eles constituem, literalmente, abaixo-assinados, não propostas de alto significado econômico ou político.
Como já ocorreu tantas vezes, trata-se de uma manifestação de protesto de pessoas ressentidas com o fato de que suas “propostas” – de fato um confuso emaranhado de receitas antigas -- não foram acatadas pela equipe dirigente e não foram, portanto, convertidas em políticas públicas. De resto, sua aplicação teria constituído um rápido itinerário em direção ao descontrole inflacionário, à fuga de capitais, ao descalabro fiscal e ao estrangulamento externo, situações já conhecidas por essa mesma geração de acadêmicos que ainda insiste em tentar promover idéias ultrapassadas e propostas surrealistas de política econômica. 
Tudo indica, felizmente, que aqueles que assumiram responsabilidade governativas em janeiro de 2003 possuem bom senso suficiente para não arriscar um mandato duramente conquistado na arena da irresponsabilidade econômica e do aventureirismo político. Como diria o técnico Parreira, “cada macaco no seu galho”. Os dirigentes com mandato exercem sua responsabilidade no comando da Nação, e os acadêmicos escrevem manifestos para deleite dos mesmos crentes de sempre.

Paulo Roberto de Almeida é sociólogo e diplomata e autor do livro A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil(Editora Códex).
Brasília, 27 de novembro de 2003
(www.pralmeida.org)