Em novembro de 2003, recém retornado ao Brasil depois de 4 anos no exterior, encontrei um ambiente muito confuso entre os tradicionais apoiadores do partido da reforma integrantes da minha "classe", ou seja, a dos acadêmicos engajados. Desde o início do governo Lula, em janeiro de 2003, como o governo confirmasse as políticas cautelosas, prudentes, "neoliberais", do governo anterior, essa classe autodenominada de "intelectuais" começou a publicar manifesto atrás de manifesto condenando essas políticas e exigindo uma "política desenvolvimentista", no velho estilo daquilo que já tinha sido praticado no Brasil antes e durante o regime de 1964, e que resultaram naqueles desastres que todos conhecemos: hiperinflação, dívida externa, desvalorização, crise de balanço de pagamentos, recessão, desemprego, etc.
Sem qualquer mandato do governo, escrevi alguns textos criticando, não o governo – o que eu também fiz, aberta e "secretamente" –, mas esses intelectuais desmiolados (e muitos sairiam do PT, batendo a porta, para se abrigar no PSOL, outros foram expulsos, por recusar reformas que o governo estava promovendo, acusadas de serem "neoliberais").
O texto abaixo é um retrato dessa luta solitária que mantive durante bastante tempo, de um lado contra as inconsistências do governo – que eu considerava, ao início, serem apenas resultado da incompetência dos companheiros, de sua inépcia administrativa, e que mais adiante eu descobri que eram deliberadas, medidas e políticas criminosas, feitas expressamente para roubar – e, de outro lado, contra as loucuras dos intelectuais de academia.
Como atualmente, essa mesma classe retorna para apoiar agora o personagem a quem acusou de se render aos capitalistas e neoliberais (o que é verdade, diga-se de passagem), e que se revelou o maior bandido da história política do Brasil, considero ser interessante republicar esse meu texto de crítica à minha "classe" (mas que não deve considerar que eu pertenço às suas fileiras, por sectarismo, claro). Toda a esquerda e grande parte da academia progressista juntou-se aos "mortadelas" – os militantes voluntários ou os mercenários pagos para gritar em prol do meliante corrupto – e denuncia o julgamento "político" do chefe da quadrilha, inclusive um ex-chanceler que vive pateticamente repetindo mentiras e atuando contra o Brasil.
Eis o artigo, escrito no final de 2003.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de março de 2018
A neoliberalização e os seus descontentes:
os órfãos do old-PT e os filhos (confusos) do new-PT
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de novembro de 2003
A sociedade brasileira, na interpretação de muitos intelectuais, estava pronta para grandes mudanças no decurso do processo eleitoral de 2002. Mais do que isso, ela exigia mudanças, cansada que estaria da “mesmice” dos oito anos de tucanato, ou pior, das velhas receitas de política econômica do Consenso de Washington, com o apoio dos políticos fisiológicos dos partidos aliados, a começar pelo PFL mas também pelo PMDB. Como resultado desse grande movimento para a frente, eis que surge um novo poder, liderado pelo partido que tinha prometido mudanças durante toda a sua vida de lutas em direção ao poder. Mais do que isso, ele era a própria encarnação das mudanças, ou pior, um partido em mudanças constantes, apenas que muito mais para dentro do que para fora de si mesmo.
Pois bem, quando esse partido finalmente mudou, a começar pelos compromissos assumidos pelo candidato a presidente em carta ao povo brasileiro, divulgada em junho de 2002, e depois novamente ao assumir finalmente o poder, em janeiro seguinte, os mesmos intelectuais fingem se surpreender e reagem indignados às muitas mudanças que o, agora, maior partido do Ocidente passou a defender, em defesa de teses tão antigas quanto legítimas, como a justiça e a inclusão sociais, a correção das enormes e gritantes desigualdades da sociedade brasileira e a decisão de colocar o Estado a serviço da maioria da população, e não apenas dos privilegiados de sempre. Estas reações parecem evidentes, a partir da gritaria em torno da reforma da Previdência – aprovada com o apoio de grande parte do PFL e da maioria do PMDB -- e em função das principais medidas de política econômica defendidas pela equipe dirigida pelo ministro da fazenda. Por que tudo isso?
Com efeito, enquanto a economia bate recordes de recessão, ou de estagnação, e a população economicamente ativa soçobra gradualmente no desemprego, a academia jamais apresentou níveis tão elevados de produtividade intelectual e de pleno emprego de suas forças produtivas, ainda que na redação de simples manifestos, abaixo-assinados e outras manifestações de “horror econômico”. O motivo? Os acadêmicos protestam contra essa realidade tão prosaica quanto chocante: o mundo mudou, o Brasil mudou e o PT também mudou, como o provam as medidas econômicas, as alianças políticas e o novo discurso social. Quem não mudou, finalmente, foram os acadêmicos, que continuam onde sempre estiveram: no alto de suas cátedras, escrevendo manifestos e assinando cartas ao presidente nos quais exigem mudanças na política econômica do governo.
Em face de um novo manifesto em prol de mudanças na política econômica de Lula, recentemente dado a luz com a fanfarra de sempre, pode-se perguntar: estaríamos em presença de uma nova traição dos clérigos? Ou se trata apenas de um velho cenário que já começa a cansar pela mesmice aborrecedora dos propósitos e argumentos?: os acadêmicos de sempre, “surpreendidos” e “frustrados” com as medidas do governo, lançam mais um “abaixo-assinado” para alertar contra a gravidade da situação e pedir mudanças na política econômica oficial. Déjà vu all over again?
Eles só tem a perder os grilhões mentais…
O que terá acontecido com os acadêmicos brasileiros? A Nação vive um momento político sem precedentes em sua história republicana mas eles não parecem se dar conta da importância das mudanças ocorridas no partido governista, que se prepara agora para mudar o País a partir de novas bases conceituais. Bye byevelhas receitas estatizantes e dirigistas e bem-vindas sejam as novas parcerias público-privadas e a reorientação dos gastos sociais do governo. É o novo PT em ação.
Isso, entretanto, não parece impressionar os acadêmicos, encerrados como de hábito em sua torre de marfim, mas que pretendem ainda assim falar em nome da Nação: sem ter obtido nenhum voto popular, nenhum mandato executivo, sem arriscar cargos ou posições, eles pretendem encarnar a vontade do povo e promover, por indução própria e pela enésima vez, as mudanças que eles imaginam ser necessárias na condução da política econômica do País. Eles ainda não conseguiram se libertar de velhos grilhões mentais que os prendem a antigas receitas econômicas, que só falam de controle de capitais, gastos públicos, câmbio administrado, “administração” estatal da dívida pública e outras coisas do gênero.
Quem mudou, na verdade, foi o presidente: um líder operário que no passado prometia mudanças radicais na política econômica assumiu a presidência, tomando então consciência dos problemas que deve enfrentar todo líder político investido de um cargo dessa natureza. A “revolução pelo voto” com que sonhavam os acadêmicos teve de se confrontar aos constrangimentos por que passam todos os que assumem cargos dotados de tais responsabilidades: limitações orçamentárias, constrangimentos fiscais, ausência de base congressual adequada, fragilidade financeira externa, demandas sociais e setoriais em muito superiores às disponibilidades efetivas, enfim problemas com que se defronta todo presidente responsável, o que só parece fugir à compreensão dos acadêmicos. Estes se permitem falar em “elite financeira nacional e internacional” porque têm dela uma noção puramente abstrata e não se consideram, eles mesmos, como parte da “elite financeira nacional”, com suas aplicações em banco. Eles querem nos convencer que vivem, como a maioria do povo brasileiro, apenas de seus salários, mês a mês, e que não possuem sequer uma única aplicação bancária. Eles pretendem falar em “racionalidade econômica abstrata”, mas vivem de abstrações, não da racionalidade concreta dos números do orçamento.
A herança imaginária e a miséria da filosofia acadêmica
A “herança maldita” de que falam os acadêmicos – e mesmo muitos defensores do governo atual – constitui uma bela construção mental, feita metade de problemas reais, estruturais da economia e da sociedade brasileira, a outra metade tendo sido o resultado do próprio processo eleitoral, que, aceitem ou não os promotores dessa tese fragilíssima, provocou uma deterioração geral dos indicadores econômicos relevantes, processo que o governo atual apenas agora está conseguindo reverter. Os atuais indicadores voltam a ser o que eles eram em abril de 2002, e em alguns casos em meados de 2000, depois de superada a crise da desvalorização. Isso parece evidente a qualquer observador isento, mas os acadêmicos insistem em não olhar para os números.
A despeito dessa extraordinária produtividade escrevinhadora demonstrada pelos acadêmicos na produção de “manifestos econômicos” (de vários tamanhos, estilos e conteúdos), eles falharam miseravelmente, até aqui, em oferecer contorno, substância ou coerência ao que eles mesmo chamam de “política econômica alternativa” (que só parece existir na mente abstrata dos que assim escrevem). Em nenhum momento, eles expuseram a factibilidade de uma tal política econômica, não com base na retórica habitual, mas em números, relações de causa a efeito e sobretudo em condições de sustentabilidade fiscal e de adequação orçamentária. Uma avaliação correta dos custos e benefícios de uma “outra política econômica” nunca foi de fato tentada pela nomenklatura da academia. Essa política econômica “alternativa” é aventada, sugerida, invocada, clamada, exigida e até implorada nesses manifestos, mas nunca exposta de forma clara e coerente, com todas as limitações e constrangimentos efetivamente existentes na realidade econômica brasileira.
Pode-se perguntar: qual o mandato concedido aos acadêmicos para fazerem tais tipos de exigências? Que autoridade política possuem eles para pretender que suas idéias sejam implementadas? Aliás, em uma frase: quem avalia as propostas acadêmicas? Ou eles pretendem que seus requerimentos de política econômica alternativa sejam aceitos sem discussão no parlamento, sem exame dos responsáveis pelas contas públicas, por aqueles que, finalmente, foram investidos de tais responsabilidades pelo voto popular ou por decisão presidencial?
O novo Brasil está assistindo, infelizmente, ao velho espetáculo de acadêmicos sem responsabilidade executiva que se dedicam a fazer circular papeis abstratos como se eles fossem dotados de uma legitimidade intrínseca para que seus conceitos vagos e idéias alternativas fossem imediatamente aceitos pela sociedade e incorporados por aqueles que detêm a responsabilidade de conduzir a Nação.
Velhas alternativas e novas mudanças
Afinal de contas, o que pretendem os clérigos acadêmicos? Eles desejam, segundo um desses manifestos abstratos, “promover o desenvolvimento econômico, estabelecer condições para o pleno emprego e empenhar-se pela inclusão social, até que o ciclo de desenvolvimento alcance a totalidade dos brasileiros”. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma bela invocação de um estado ideal, com o qual sonham brasileiros e brasileiras. A essa invocação não corresponde, infelizmente, nenhuma descrição mais precisa dos meios, instrumentos, mecanismos ou modalidades de políticas setoriais e medidas administrativas que permitiriam atingir tal nirvana de felicidade bruta nacional. Não há, sobretudo, nesse meio etéreo em que flutuam os acadêmicos, nenhum constrangimento fiscal, nenhuma limitação orçamentária, nenhuma fragilidade externa, nada que possa opor-se, de fato, à concretização da cornucópia idealista na qual eles parecem se comprazer.
O que dizer, por outro lado, desta invectiva dirigida ao próprio presidente, numa dessas peças da imaginação acadêmica?: “(ele) sabe que terá que abandonar este modelo e lançar as bases de um novo paradigma. E a mudança a ser empreendida não admite meio termo.” Tanta certeza e segurança poderiam fazer pensar que os acadêmicos descobriram o Santo Graal do desenvolvimento econômico por moto-contínuo, a felicidade social a custo zero, a prosperidade de todos como um manancial dos céus, e a distribuição de riquezas sem limites na realidade.
Na verdade, eles oferecem algumas vias para o nirvana: o “abandono das metas de elevadíssimos e desnecessários superávits fiscais primários”, o “controle seletivo sobre o fluxo de capitais externos”, a “recuperação do controle estatal sobre a administração da dívida pública” e outras fórmulas do gênero. Qualquer semelhança com políticas econômicas de um passado não muito distante poderia ser mera coincidência, mas não é: são os mesmos personagens de sempre, voltando a velhas fórmulas de um passado que insiste em não passar.
E como se poderia conseguir o capital político e econômico para ter êxito nessa missão hercúlea? Pasmem os leitores, mas segundo os acadêmicos à custa de força moral, do apoio de todos os brasileiros, da mobilização política nacional, enfim do que eles chamam de “opinião pública mobilizada”, tendo à sua frente os mesmos acadêmicos que sempre nos prometem facilidades mas não conseguem conviver com a realidade.
O que se deve esperar, desse tipo de atitude, é que, mais uma vez, os acadêmicos conseguem se auto-excluir, totalmente, de um debate responsável sobre os rumos da política econômica no País. Este deveria idealmente ser feito com base em argumentos racionais, em evidências empíricas, em dados concretos da situação econômica do País, não a partir de julgamentos apressados, politicamente motivados e de natureza subjetiva, como aqueles que lemos em manifestos e abaixo-assinados universitários. Eles constituem, literalmente, abaixo-assinados, não propostas de alto significado econômico ou político.
Como já ocorreu tantas vezes, trata-se de uma manifestação de protesto de pessoas ressentidas com o fato de que suas “propostas” – de fato um confuso emaranhado de receitas antigas -- não foram acatadas pela equipe dirigente e não foram, portanto, convertidas em políticas públicas. De resto, sua aplicação teria constituído um rápido itinerário em direção ao descontrole inflacionário, à fuga de capitais, ao descalabro fiscal e ao estrangulamento externo, situações já conhecidas por essa mesma geração de acadêmicos que ainda insiste em tentar promover idéias ultrapassadas e propostas surrealistas de política econômica.
Tudo indica, felizmente, que aqueles que assumiram responsabilidade governativas em janeiro de 2003 possuem bom senso suficiente para não arriscar um mandato duramente conquistado na arena da irresponsabilidade econômica e do aventureirismo político. Como diria o técnico Parreira, “cada macaco no seu galho”. Os dirigentes com mandato exercem sua responsabilidade no comando da Nação, e os acadêmicos escrevem manifestos para deleite dos mesmos crentes de sempre.
Paulo Roberto de Almeida é sociólogo e diplomata e autor do livro A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil(Editora Códex).
Brasília, 27 de novembro de 2003
(www.pralmeida.org)
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