Atualmente, o famoso Consenso de Washington parece estar esquecido, isto porque os companheiros se encarregaram de denegri-lo durante os mais de 13 anos de sua gestão (aliás, desde antes, e ainda hoje), sempre classificando suas regras (que nunca debateram realmente) como sendo "neoliberais".
Esse rótulo tinha o estranho poder de impedir qualquer debate racional.
Como os mais jovens aprenderam com seus professores nas faculdades de Humanidades que o Consenso de Washington é o diabo em pessoa, acho útil postar esse meu trabalho de 2011, explicando direitinho o que é, o que são as famosas regras de reforma e ajuste...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de abril de 2018
Consenso de Washington: Revisitando um mal amado
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 6 de agosto de 2011
O que é o Consenso de Washington, em seu contexto original
O neoliberalismo e o Consenso de Washington continuam a despertar coceiras e comichões em certos setores mal informados (e de má fé) da academia brasileira. Professores universitários – e muitos não mereceriam esse nome – continuam a “ensinar” a seus alunos indefesos que se trata de uma perversidade do capitalismo e de um complô do imperialismo contra países periféricos. Estou exagerando, eu sei, mas em alguns casos fica até abaixo dessa “explicação” sumária que acabo de dar.
Para corrigir algumas mentes emboloradas e esclarecer outras ainda abertas ao conhecimento real das coisas, pretendo neste texto expositivo e analítico apresentar em grandes traços as características principais das famosas regras enfeixadas nesse conceito geográfico, explicar seu significado real, e disponibilizar aos alunos e leitores interessados uma informação mais compatível com a realidade.
Estou falando, obviamente, das dez regras de ajuste econômico, formalizadas por ocasião de um seminário realizado em Washington, no final dos anos 1980, ao cabo de dez anos de reformas econômicas conduzidas em diversos países da América Latina. O encontro tentava, justamente, fazer o balanço do que, exatamente, tinha sido aprendido na região (e fora dela) como experiência prática da penosa fase de crises recorrentes dos anos (e décadas) anteriores, ademais dos problemas estruturais e características sistêmicas desde sempre: inflação renitente, emissionismo irresponsável, choques do petróleo, crise da dívida, moratória, desequilíbrios cambiais e de balanço de pagamentos, pobreza generalizada, desigualdades extremas etc.
O que ocorreu nesse seminário, portanto, não foi uma decisão dos órgãos oficiais de Washington, vinculados de alguma forma à elaboração de “prescrições” de política econômica – que seriam as duas “sisters in the woods”, FMI e BIRD, e o Departamento do Tesouro dos EUA –, mas sim um “resumo-síntese” de um consenso puramente acadêmico, que não pretendia ser apresentado como “receituário” obrigatório de implementação de políticas econômicas “neoliberais. Tratava-se apenas como um trabalho de reflexão e uma colaboração intelectual ao esforço de ajuste e de reformas.
O CW deve, portanto, ser entendido exatamente pelo que ele foi, ou é, e não pelo que seus supostos inimigos ideológicos pretendem que ele seja: uma contribuição ao esclarecimento de políticas que “deram certo”, não um “pacote” imposto desde o alto. Este é o quadro situacional e o contexto intelectual pelos quais devem ser avaliados o CW – e seus desenvolvimentos posteriores – e como tais considerados em qualquer trabalho de avaliação que se pretenda fazer em torno dele, como o que agora se empreende. Vamos, agora, à sua substância.
Resumidamente, ele toca nos seguintes pontos: disciplina fiscal, reorientação das despesas públicas, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, taxa cambial, abertura aos investimentos estrangeiros, privatização, desregulação e garantia de contratos e direitos de propriedade. Caberia recordar, desde já, que as regras do CW não foram estabelecidas por economistas liberais para orientar governos desejosos de uma política econômica “ortodoxa”. Trata-se de um conjunto de prescrições de política econômica, formalizadas a posteriori– como acontece geralmente com os modelos econômicos, que nada mais são do que a formalização genérica de uma experiência passada, geralmente bem-sucedida, pois raramente se constroem modelos a partir de fracassos –, para tentar sintetizar o que estava acontecendo com países como Chile e México, que desde o início dos anos 1980 tentavam enquadrar-se no chamado mainstream economics, depois de décadas de políticas erráticas e experiências substitutivas.
O autor das propostas foi o economista John Williamson, que, num artigo intitulado “O que Washington entende por reforma da política [econômica]”, fazia o balanço de quase dez anos de ajuste na América Latina, depois da crise da dívida externa, em 1982. Os países mais avançados nesse processo de ajuste eram o Chile e o México. Ao contrário do que muitos pensam, portanto, foram as políticas já adotadas de forma independente por países da região que serviram de “modelo” para que o economista, a partir das medidas concretas de política econômica de seus governos, apresentasse seu esquema de “receitas bem-sucedidas de ajuste”. Essas receitas cobriam dez áreas de reformas econômicas e políticas, nomeadamente as seguintes:
1) disciplina fiscal;
2) prioridades nas despesas públicas;
3) reforma tributária;
4) taxa de juros de mercado;
5) taxa de câmbio competitiva;
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais;
7) abertura ao investimento direto estrangeiro;
8) privatização de estatais ineficientes;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados;
10) direitos de propriedade.
Em sua versão original, as regras enunciadas por Williamson pouco se ocupavam de equilíbrio no balanço de pagamentos, da liberalização financeira, de desregulação bancária, não implicavam a diminuição do papel do Estado (como acusam, sem razão, muitos críticos apressados) e não necessariamente condicionavam o sucesso dessas políticas à manutenção de uma baixa taxa de inflação. John Williamson afirmava expressamente que suas regras eram mais “instrumentos de política”, do que um conjunto de objetivos ou resultados que devessem ser elevados à categoria de dogma. Elas estavam longe, portanto, de representar um remédio para economias doentes, pois que tinham sido concebidas como um conjunto de princípios para, justamente, manter as economias latino-americanas em estado “saudável”, sem a necessidade de correções de rumo brutais, com intervenção do FMI e pacotes de ajuda “impostos de fora”.
Em relação à acusação de que essas regras condenavam as economias latino-americanas à recessão, cabe registrar que o CW nunca pretendeu, nem poderia, ser um “receituário de desenvolvimento”; ele estava unicamente destinado a fornecer “instrumentos de política econômica” para facilitar o processo de reformas e de ajuste num momento de crise, como era o caso da dívida externa. Esses instrumentos deveriam, assim, fornecer as condições mínimas da estabilidade, após a qual políticas especificamente desenhadas para estimular ou facilitar o desenvolvimento econômico deveriam ser concebidas e implementadas pelos governos da região.
As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe
Vejamos agora cada um dos pontos de maneira mais argumentativa.
1. Disciplina fiscal
Todos aqueles que conhecem a história econômica da América Latina têm presente o quadro de descalabro financeiro cercando as finanças públicas da maior parte dos países. Na verdade, nem precisaria conhecer essa história trágica para saber que desequilíbrios orçamentários levam à acumulação de dívida pública, sustentada em emissões contínuas de títulos governamentais, daí à elevação dos juros e a um ciclo infernal de novas emissões apenas para cobrir o serviço (juros) da dívida. Basta considerar apenas o orçamento doméstico, ou suas próprias receitas e despesas, para saber que déficits contínuos na conta corrente produzem uma conta salgada que corre o risco de se tornar inadministrável. Como, a rigor, governos não vão à falência, e sempre possuem a capacidade de avançar sobre as rendas dos cidadãos e das empresas, o processo pode levar a consequências extremas, deixando uma “herança maldita” para o governo seguinte ou as futuras gerações.
Não se trata, propriamente, de um problema confrontando escolas econômicas ou orientações políticas distintas, ainda que o próprio Williamson se permita cutucar alguns crentes do “estímulo fiscal”. Diz ele que “os crentes de esquerda no estímulo keynesiano, por meio de grandes déficits orçamentários, são quase uma espécie em extinção”. Trata-se, basicamente, da sustentabilidade das contas públicas, e aqui o ideal seria não permitir que o déficit orçamentário não excedesse uma dada relação entre a dívida pública e o PIB. Pelos critérios de Maastricht, como se sabe, o déficit orçamentário permitido é de, no máximo, 3% do PIB, sendo que a dívida pública não deveria exceder 60% do PIB. Talvez sejam relações razoáveis, mas tudo depende de como está sendo construído esse déficit – se for para investimento é obviamente melhor do que para novas despesas correntes continuadas – e de qual é o perfil da dívida em função do nível dos juros e do calendário de amortização.
Uma trajetória que contemple, por exemplo, aumentos generosos de salários para o funcionalismo público – em total desproporção do que se paga no setor privado – e criação de novos cargos públicos em função de critérios totalmente políticos, sem correspondência quanto ao nível e qualidade dos serviços públicos, pode constituir uma receita segura para uma bomba-relógio de natureza fiscal, da mesma forma como a concessão de aposentadorias e pensões em clara dissociação com os recolhimentos havidos na fase ativa dos beneficiários. O Brasil, justamente, parece enfrentar alguns desses problemas na presente fase, o que certamente vai ter repercussões mais graves alguns anos mais à frente. Tampouco adianta, como também se pratica por aqui, cobrir essas novas despesas buscando novas fontes de arrecadação ou aprofundando a “extração” fiscal sobre os contribuintes e as empresas: o único resultado desse tipo de medida é reduzir o espaço da poupança privada – que deveria ser usada para o investimento empresarial – o que obviamente terá efeitos negativos sobre a taxa de criação de empregos, de crescimento da renda e outros impactos que os economistas chamam de convite à irresponsabilidade política: inflação e fuga de capitais.
2. Prioridades nas despesas públicas
Deixando de lado despesas militares – que são consideradas um domínio da segurança nacional, fora, portanto, do alcance de simples tecnocratas – todas as outras despesas são passíveis de racionalização e, eventualmente, de redução, pela via dos ganhos de eficiência. Existem três fontes de gastos públicos que parecem inevitáveis em toda e qualquer circunstância: gastos previdenciários (supondo-se um regime de repartição, e não de capitalização); investimentos públicos, sobretudo em infraestrutura; saúde e educação, considerados corretores de desequilíbrios existentes no mercado (devendo, portanto, beneficiar os mais pobres).
É óbvio, mesmo para o mais “direitista” dos economistas, que prioridade nas despesas públicas não quer dizer redução de gastos sociais, e sim eliminação ou pelo menos diminuição de outras despesas evitáveis, como os subsídios públicos. Existem muitos subsídios, diretos e indiretos, que poderiam ser cortados ou reduzidos, e nem todo mundo têm consciência de que eles existem. Quando o governo, por exemplo, escolhe não aumentar o preço da gasolina em compasso com a cotação do petróleo nos mercados internacionais, ele pode estar subsidiando o transporte da classe média, em detrimento do número muito maior que usa transporte público. Quando ele concede empréstimos governamentais a industrias “estratégicos”, aplicando uma taxa de juros que é a metade daquela que ele mesmo usa para remunerar seus títulos da dívida pública, ele está subsidiando uma categoria privilegiada da população.
Mas mesmo os gastos com saúde e educação podem estar profundamente distorcidos por um perfil exageradamente concentrado destes últimos na educação superior, por exemplo, que no Brasil contempla, como sabemos, muito mais recursos do que os alocados aos dois níveis anteriores. Da mesma forma, quando o governo permite que operações de mudança de sexo sejam cobertas pelo sistema geral de saúde pública ele pode estar, ipso facto, retirando recursos que poderiam ir para cuidados preventivos ou saneamento básico para populações de baixa renda.
3. Reforma tributária
Não existe, a rigor, nada de liberal no sistema tributário, um expediente a que recorrem todos os governos conhecidos desde a noite dos tempos. Trata-se de uma extração forçada, para fins supostamente públicos, mas cuja incidência repercute de modo diferenciado segundo a base escolhida e a forma de “captura” da renda pessoal.
Existem, basicamente, duas grandes formas de coleta de recursos pelo Estado: de maneira direta sobre a renda dos cidadãos individualizados (com uma aplicação progressiva das alíquotas definidas), e de maneira indireta sobre o consumo de todos os cidadãos (o que recomendaria taxar menos produtos básicos, que serão os mais amplamente, e talvez exclusivamente, adquiridos pelos mais pobres, e de forma mais “agressiva” produtos supérfluos ou de consumo conspícuo). Outras taxas são cobradas sobre serviços específicos, dependendo de quem os use (estradas, aeroportos, etc.).
Com relação ao imposto de renda, o consenso parece ser de que a base deveria ser ampla e as alíquotas marginais reduzidas (para evitar elisão e evasão fiscal, fuga de capitais, etc.). Por outro lado, impostos indiretos excessivos acabam penalizando os mais pobres de maneira desproporcional, que podem pagar mais impostos (em relação à renda pessoal) do que os ricos. Esse fenômeno é muito conhecido em vários países latino-americanos, mas poucos governos têm a coragem de enfrentá-lo, uma vez que os impostos sobre os consumos são mais fáceis de cobrar e passam quase despercebidos (quando sua incidência não está expressa no preço dos produtos). Não é preciso dizer nada sobre o imposto de transações financeiras, que é cumulativo ao longo da cadeia produtiva e, portanto, altamente irracional do ponto de vista social e da capacidade competitiva de um país.
4. Taxa de juros de mercado
Isto significa, simplesmente, que ela não dever ser manipulada pelos governos e sim determinada pelo equilíbrio da oferta e da procura por dinheiro na economia. Se o governo precisa fixar alguma taxa, que ela seja positiva (ou seja, superior à inflação, caso contrário provocaria fuga de capitais). Ela também deve ser moderada, de forma a estimular o investimento e, se possível, neutra entre os desejos dos poupadores por uma taxa estimulante e os dos investidores por uma taxa adequada ao seu retorno. Uma taxa muito “positiva” pode ter um efeito devastador sobre a dívida pública.
Um mercado de créditos extremamente concentrado ou cartelizado tende a produzir altas taxas de juros, razão pela qual um setor financeiro aberto à competição representa um bom estímulo à manutenção de taxas de mercado moderadas. Se o governo, por outro lado, pretende determinar de forma muito intrusiva o que os banqueiros podem ou devem fazer com seus depósitos – ou seja, estabelece muitas regras para o crédito direcionado a setores, ademais do alto volume de depósito compulsório – ele pode contribuir para juros anormalmente elevados.
5. Taxa de câmbio competitiva
Da mesma forma como os juros, o câmbio também deve ser determinado pelo mercado, o que parece coincidir com a escolha da vasta maioria dos países que adota o regime de flutuação de suas moedas. John Williamson diz preferir uma “taxa de câmbio em equilíbrio fundamental”, o que, no caso de um país em desenvolvimento, significa que ela deve ser “suficientemente competitiva para promover uma taxa de crescimento das exportações que faça a economia crescer à taxa máxima permitida pelo seu potencial de oferta, ao mesmo tempo em que mantém o déficit de transações correntes em uma proporção tal que possa ser financiado em bases sustentáveis”. Ele acrescenta que a taxa de câmbio não deveria ser mais competitiva do que essa relação; do contrário, ela poderia produzir pressões inflacionárias desnecessárias, assim como limitar os recursos disponíveis para o investimento doméstico.
Essa taxa de câmbio competitiva é o elemento essencial de uma política econômica orientada para fora, na qual as restrições de balanço de pagamentos são superadas essencialmente pelo crescimento das exportações, não por um programa de substituição de importações. Uma orientação para fora e exportações crescentes – sobretudo em setores não tradicionais – constitui uma fórmula de sucesso para uma economia dinâmica.
6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais
A visão mercantilista da maior parte dos políticos – em especial na América Latina – faz com que eles vejam com bons olhos as exportações, mas condenem como se fosse um pecado as importações. Na verdade, abertura às importações é relevante para ajustar o setor produtivo a um setor exportador que possa ser competitivo internacionalmente, do contrário o excesso de proteção penalizará a oferta doméstica e tornará o país mais pobre. Licenciamento de importações constitui, aliás, uma fonte inevitável de corrupção, cabendo tão somente um sistema tarifário transparente.
7. Abertura ao investimento direto estrangeiro
Como já indicado, a liberalização dos fluxos financeiros não é considerada uma prioridade. Em contrapartida, o fechamento ao investimento direto estrangeiro pode ser visto como propriamente contraproducente. O IED traz não apenas capital, mas conhecimento e é um grande indutor de ganhos de produtividade. Ele pode ser conseguido, também, por conversão da dívida; mas tende a ser desestimulado em virtude de reações nacionalistas que podem ser economicamente prejudiciais. Em geral, empresas estrangeiras contribuem muito mais para o desempenho exportador e, portanto, o IED é também um gerador de divisas.
8. Privatização de estatais ineficientes
Como regra geral, empresas privadas são geridas de forma mais eficiente do que suas equivalente estatais, inclusive por uma questão de estímulos ligados ao lucro e pela falta de uma fonte fácil de recursos baratos. A privatização também traz ganhos fiscais diretos e indiretos, uma vez que o Estado se desobriga de fazer investimentos para os quais o seu Tesouro pode estar depauperado. Com exceção de muito poucos setores públicos (como o fornecimento de água, por exemplo), serviços “coletivos” podem ser fornecidos de maneira eficiente por empresas privadas, sob um regime de concessão monitorado por um sistema regulatório preferencialmente aberto a regras de competição em mercados relativamente abertos.
Não é necessário, tampouco, lembrar o assalto a empresas públicas conduzido por políticos ávidos por práticas clientelísticas, o que por sua vez redunda em desvios financeiros, quando não em corrupção aberta. Empresas públicas tendem a distorcer as condições de concorrência e as regras do jogo num setor determinado, em função do acesso que elas podem conseguir aos mecanismos decisórios do Executivo. Por fim, nas condições atuais de capacitação técnica e educacional dos recursos humanos e de amplo acesso a capitais e tecnologia, a rationale que presidiu ao estabelecimento de tantas estatais na América Latina e alhures – qual seja: a falta de capacidade técnica e de capitais no setor privado – não mais se justifica em bases racionais.
9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados
A América Latina é uma das regiões mais reguladas e burocratizadas no plano internacional, com tantos controles estatais que o “capitalismo de compadrio” e os estímulos à corrupção aparecem quase como inevitáveis. Monopólios e cartéis, ou seja, falta de competição, são uma das fontes mais comuns de preços altos, má qualidade nos produtos e serviços, corrupção e comportamentos rentistas inaceitáveis numa economia moderna. A regulação não se exerce apenas no fornecimento de bens ou serviços, mas também no cipoal de regras que determinam a entrada e saída de capitais, a remessa de lucros, os fluxos de tecnologia sob licenciamento, o ingresso de investimentos diretos, a existência de barreiras à entrada em novas atividades, bem como taxas e contribuições de todo tipo.
Para exercer o devido controle – que ele mesmo se impôs – sobre todos esses setores, o Estado precisa contar com um exército de funcionários, nem sempre pagos adequadamente e, portanto, abertos, em princípio, a possibilidades de corrupção ou a condutas pouco transparentes. A desregulação não significa descontrole ou ausência de regras; ao contrário: ela costuma andar junto com agências reguladoras, criadas em função de uma visão de longo prazo das necessidades do país, não na perspectiva de um governo temporário, e mantidas de forma independente à equipe que ocupa por um tempo limitado os mecanismos do Estado.
10. Direitos de propriedade
O CW não pretende tanto se referir aqui à propriedade intelectual – embora esta também seja insuficientemente protegida na América Latina – quanto chamar a atenção para o respeito aos contratos e para a estabilidade de regras. A instabilidade jurídica aumenta os custos de transação e é responsável por uma perda concomitante do PIB da região. Juízes que pretendem fazer justiça social terminam por “criar” leis, em lugar de apenas interpretar e aplicar a legislação em vigor.
O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington?
A “interpretação” deformada feita por certos setores acadêmicos na América Latina a propósito de processos de ajuste e reforma empreendidos por alguns países pretende que o CW tenha sido responsável por todos os problemas acumulados na região ou pelos desafios na agenda dos atuais governantes. Eles atribuem a “onda neoliberal” que percorreu alguns países desde o início dos anos 1980 a uma espécie de diretiva emitida em Washington e implementada de forma canônica por governos submissos ou suficientemente enfraquecidos economicamente para não resistir às pressões combinadas dos EUA e das entidades do capitalismo global.
O CW foi, na verdade, estabelecido a posteriori, depois que alguns países decidiram se lançar na penosa via dos ajustes e da reforma, a começar pelo México – a primeira vítima da crise da dívida de 1982 – e depois pelo Chile – o que não tem nada a ver com a ditadura de Pinochet, orientada por uma visão anacrônica, tão dirigista e estatizante quanto certos modelos “desenvolvimentistas”, estimulados antes e depois desses experimentos inovadores. Como todo modelo, o CW é em grande medida artificial, consistindo numa tentativa de síntese das medidas que supostamente teriam resultado em desempenho econômico satisfatório nas fases seguintes. Trata-se, obviamente, de uma simplificação de uma complexa realidade e de um conjunto de variáveis bastante sensíveis a um “mix” determinado de políticas, que jamais pode se desenvolver da mesma forma em dois países diferentes.
Interpretações de processos complexos são naturalmente sujeitas a caução, na medida em que não se pode isolar experimentos reais para fins de simulação ou teste controlado. Espíritos ingênuos tendem a confundir o CW com essa coisa diáfana chamada neoliberalismo e este, a rigor, não tem quase nada a ver com o CW, pois eles pertencem a dois universos diferentes. Em todo caso, em qualquer discussão sobre o “neoliberalismo” latino-americano sempre são trazidos em evidência os casos da Argentina, como exemplo de “fracasso”, o do Chile, como modelo supostamente bem sucedido – embora nem sempre com medidas em sintonia com a “ortodoxia” presumida do CW – e, eventualmente, o do México, o país que, alegadamente, teria iniciado o ciclo de conversões “neoliberais” desde o início dos anos 1980.
O que parece evidente, numa análise prima facie, é que há uma concentração quase obsessiva sobre o caso argentino para “demonstrar” o fracasso das receitas “neoliberais” para promover crescimento e igualdade na América Latina. Não se pode analisar em profundidade o desenvolvimento do ciclo completo do ajuste e reformas nessa vasta região; mas se pode, ao menos, examinar o caso argentino, para verificar se ele se conforma, ou não, ao suposto modelo prêt-à-porter, que seria disseminado pelos “profetas” de Washington como via milagrosa para o crescimento sustentado.
Vejamos, portanto, como se pode avaliar a experiência argentina, em função dos mesmos critérios que orientaram a primeira versão do CW (existem, pelo menos, duas outras, mais centradas sobre as políticas sociais ou sobre o papel das instituições na implementação das políticas recomendadas). Como julgar a Argentina, por meio do benchmark das regras estabelecidas no CW?
O “neoliberalismo” argentino:
1) disciplina fiscal: a Argentina esteve longe de cumprir este requisito básico do CW, de que são prova os contínuos déficits provinciais – problema associado ao federalismo também presente em outros países –, bem como o crescimento irresponsável da dívida pública, até o ponto inevitável da ruptura e do calote;
2) prioridades nas despesas públicas: o governo do presidente Menem passou toda a primeira metade dos anos 1990 empenhado em modificar a Constituição para sustentar seu projeto de reeleição, embora não tenha obtido um mandato com a mesma extensão que pretendia;
3) reforma tributária: ela foi feita de forma parcial, tanto que a capacidade “extratora” do Estado argentino sempre foi muito baixa, comparativamente com a carga fiscal do Brasil, cuja burocracia da Receita sempre foi muito eficiente para fechar vários “buracos” na teia tributária;
4) taxa de juros de mercado: de fato, os juros foram liberalizados, mas os desequilíbrios crescentes acumulados do lado fiscal e a falta de competitividade dos produtos argentinos, por força de uma inflação ainda importante, levaram o Estado a aumentar progressivamente o nível dos juros, em descompasso com as necessidades de investimento no país;
5) taxa de câmbio competitiva: trata-se, provavelmente, da mais eloquente negação de uma regra tida como essencial pelo autor do CW. A Argentina, ou melhor, o ministro Domingo Cavallo, fixou formalmente o valor do peso em dólar (1 por 1), no plano que teve início em 1991, preservando a mesma camisa de força durante dez anos seguidos. O regime de conversibilidade, assegurado por um sistema de “currency board”, constituiu, provavelmente, a mais significativa ruptura da Argentina com um elemento central do CW;
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais: de fato, ocorreu uma significativa liberalização comercial ao início do processo de estabilização; mas os desequilíbrios cambiais e inflacionários acumulados ao longo do tempo levaram a forte perda de competitividade externa, o que determinou nova onda de protecionismo tarifário, de expedientes para-tarifários (como uma “taxa de estatística”, por exemplo), além de outros mecanismos defensivos (antidumping e salvaguardas extensivas);
7) abertura ao investimento direto estrangeiro: de fato ocorreu, numa primeira fase, mas inviabilizada depois pela alta valorização do peso e a perda de competitividade adquirida em função da amarra cambial;
8) privatização de estatais ineficientes: o processo ocorreu, nem sempre de forma transparente, ou aberta à concorrência pública, e os recursos auferidos não serviram de abatimento da dívida pública, que continuou numa trajetória de crescimento;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados: ela foi conduzida sem preparação ou planejamento adequados, processo que resultou em novos monopólios privados, não controlados por nenhuma agência reguladora;
10) direitos de propriedade: o “capitalismo de compadrio”, a transformação dos sindicatos em negócios rendosos para as máfias nele encasteladas e diversas outras práticas arbitrárias dos agentes públicos continuaram a alimentar um ambiente de negócios pouco propício a um crescimento sustentável no país platino.
Muito antes desses processos pouco condizentes com a estrita racionalidade econômica ocorrerem na Argentina, o Chile já tinha enveredado pelo caminho dos ajustes e da reforma, itinerário por certo facilitado pela ausência de “perturbações” democráticas, mas nem por isso isento de percalços próprios da ideologia militar, tão centralizadora, estatizante e dirigista quanto a ideologia econômica de outros regimes militares na região. Na verdade, o processo de “disciplinamento” econômico dos militares chilenos se deu apenas após uma grave crise bancária, a persistência de focos inflacionários importantes, alto desemprego e desequilíbrios no abastecimento alimentar, o que determinou o apelo a economistas identificados com a “escola de Chicago” e os princípios liberais da escola “austríaca” de Von Mises e Hayek.
O importante a registrar é que muito tempo antes de qualquer “consenso” se formar em Washington, ou de técnicos do FMI ou do Tesouro americano virem a Santiago – o que, aliás, nunca ocorreu, fora das visitas de trabalho do FMI para fins de artigo IV – formular recomendações ou prescrições de política econômica, o Chile já tinha decido empreender vasta reforma de seu sistema econômico, num sentido amplamente liberalizante. Em outros termos, foi o Chile quem deu a “receita” para a construção de um “modelo” de ajuste e reformas, não o contrário. Foram essenciais em seu processo de ajuste e reformas, a manutenção da disciplina fiscal, a liberalização comercial e financeira – o que não significou, em absoluto, liberdade completa para os capitais, mas, sim, mecanismos de esterilização dos fluxos puramente financeiros, como a famosa “quarentena” –, políticas de atração de investimentos diretos e uma cuidadosa gestão monetária que trouxe a inflação chilena a níveis “europeus”. Em suma, o Chile fez o seu “dever de casa”, mas isso não significou converter-se de forma acrítica ao “neoliberalismo”, seja lá o que isso queira dizer. O Chile de fato desregulou, privatizou, liberalizou, mas tudo isso de forma planejada, consciente e administrada pelo Estado.
A julgar pelo desempenho respectivo de cada um dos países, não é preciso lembrar quem acumulou crescimento ao longo de mais de dez anos – a ponto de ter sido chamado de “tigre” ou “puma” latino-americano, e que ingressou na OCDE – e quem soçobrou na crise e na moratória, derrubando presidentes como quem brinca com um castelo de cartas. Longe de representar uma “derrota” do neoliberalismo, como pretendem alguns, de forma totalmente equivocada, o caso argentino é um exemplo cabal de reformas incompletas, mal conduzidas ou de erros primários de gestão macroeconômica, a começar pelo câmbio fixo e pela indisciplina fiscal, em total desacordo com as prescrições – se houvesse – do CW. De outra parte, longe de representar qualquer tipo de “vitória” para o mesmo CW, o caso do Chile é um modelo de pragmatismo e de cautela da implementação de medidas – elas sim – ortodoxas de política econômica, que asseguraram seu crescimento durante praticamente toda a década de 1990 e a estabilidade do poder de compra de sua moeda.
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 6 de agosto de 2011)
Nenhum comentário:
Postar um comentário