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domingo, 12 de novembro de 2017

A OTAN e o fim da Guerra Fria - Paulo Roberto de Almeida


A OTAN e o fim da Guerra Fria

 

Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, n. 9, fevereiro de 2002 (link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/35905/21033).


O ato constitutivo da Organização do Tratado do Atlântico Norte foi assinado em Washington em 4 de abril de 1949, como resultado das tensões acumuladas na fase inicial da Guerra Fria entre as duas grandes potências vencedoras da II Guerra Mundial. Os Estados Unidos e a União Soviética, nações aliadas no esforço de guerra contra o inimigo nazi-fascista, descobrem no imediato pós-guerra diferenças políticas e ideológicas irreconciliáveis, já evidenciadas desde março de 1946 por Winston Churchill (1874-1965) que, em visita aos Estados Unidos, pronunciou sua famosa frase sobre a “cortina de ferro” que separava a Europa de Gdansk a Trieste.

O Tratado de Washington havia sido precedido pelo Tratado de Dunquerque, assinado pela França e pela Grã-Bretanha em 1947, assim como, em 1948, pelo Tratado de Bruxelas, criando a União da Europa Ocidental (UEO), esquema de defesa comum entre a França, a Grã-Bretanha, os Países Baixos, a Bélgica e Luxemburgo. Mas, se o tratado de assistência mútua anglo-francês era especificamente dirigido contra um eventual novo ataque da Alemanha, o de Bruxelas, apenas um ano mais tarde, já tinha a União Soviética como seu objeto, o que é revelador de como as novas percepções da Guerra Fria iam sepultando os temores ainda presentes dos antigos inimigos de guerra. A UEO, por sua vez, tinha sido concebida em moldes similares aos delineados um ano antes no continente americano, no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). A exemplo do TIAR, o Tratado de Washington criava uma aliança de países comprometidos com sua defesa recíproca contra ameaças externas, neste caso, doze Estados da Europa ocidental (nem todos democráticos, como era o caso de Portugal salazarista, membro fundador em virtude das bases norte-americanas nas ilhas atlânticas) e da América do Norte, sob a liderança dos Estados Unidos.
A construção institucional e a ulterior evolução organizacional da OTAN, assim como o desenvolvimento de esquemas táticos e estratégicos de defesa comum (inclusive mediante o emprego de armas nucleares) não podem ser vistos de maneira independente do cenário político-militar predominante no hemisfério norte nas décadas de confrontação bipolar, uma vez que, também do lado socialista, uma aliança militar constituir-se-ia em 1955 sob a liderança da União Soviética, o chamado Pacto de Varsóvia. Na verdade, a aliança dominada por Moscou se destinava bem mais a garantir a manutenção forçada dos países da Europa Central e Oriental no campo socialista do que a impedir um ataque militar ocidental à União Soviética.
A primeira sede da OTAN foi instalada na capital da França, um aliado militar que se revelaria politicamente recalcitrante, como foi demonstrado anteriormente pela recusa soberanista em ratificar a Comunidade Européia de Defesa (1954). Com o estabelecimento de uma nova doutrina militar concebida pelo General De Gaulle (1890-1970) ao voltar ao poder (1958) – a chamada force de frappe independente, que também traduziu-se na proibição do estacionamento de forças nucleares norte-americanas em território francês –, a França abandona, em 1966, os esquemas militares ofensivos comuns (táticos e nucleares), o que leva a OTAN a se mudar de Paris para a Bélgica, passando ela a manter instalações políticas em Bruxelas (Secretariado) e militares em Mons (comando militar aliado). De acordo com uma “divisão do trabalho” institucional entre americanos e europeus, o Secretário Geral da OTAN sempre foi escolhido entre os próprios europeus, ao passo que a designação do seu comandante militar permanecia sob exclusiva responsabilidade dos Estados Unidos (geralmente sem consulta aos aliados europeus). Esse tipo de acerto informal se repete no caso das organizações de Bretton Woods, em que o Diretor Gerente do Fundo Monetário Internacional tem sido buscado tradicionalmente na Europa, enquanto a presidência do Banco Mundial é reservada a um cidadão norte-americano.
A incorporação de novos membros ao esquema da OTAN se deu em saltos, em função da evolução do quadro geopolítico. No período da Guerra Fria, acederam progressivamente ao tratado de Washington quatro outros países europeus – a Grécia e a Turquia em 1952, a Alemanha Federal em 1955 (mesmo ano da constituição do Pacto de Varsóvia) e a Espanha redemocratizada do pós-franquismo em 1982 –, observando-se então uma relativa estabilidade. Depois, como resultado das transformações políticas relevantes ocorridas na Europa Central e Oriental desde o fim do socialismo realmente existente e o desaparecimento da União Soviética – e do próprio Pacto de Varsóvia – no começo dos anos de 1990, três outros países outrora integrantes da aliança militar socialista ingressaram na OTAN já em 1999, quando se comemorou o seu 50º aniversário: a República Tcheca, a Hungria e a Polônia, elevando a aliança atlântica a 19 membros.
Com o fim da Guerra Fria e o desaparecimento da ameaça de uma invasão militar “socialista” à Europa Ocidental, a OTAN foi reestruturada num sentido menos preventivo de um conflito de amplas proporções e mais com objetivos de cooperação em matéria de segurança e de medidas de confiança para o conjunto da Europa. Ela também passou a participar, não sem alguns problemas em termos de mandato “constitucional”, de operações de manutenção de paz no continente, geralmente em coordenação com outras organizações internacionais (mas nem sempre dotada de um claro mandato multilateral, como foi o caso nos Balcãs). De forma bem mais complexa para os equilíbrios políticos na Europa pós-socialista, ela veio a ser “assediada” por países desejosos de escapar ao “abraço fatal” da Rússia, que recuperou (ou herdou) muitas das prevenções anti-ocidentais da desaparecida União Soviética. Assim, a história recente da OTAN é bem mais movimentada em termos institucionais e políticos do que a rigidez doutrinal e estratégica dos anos de Guerra Fria.
Logo depois da queda do muro de Berlim, uma conferência da OTAN em Londres dirigia votos de amizade aos países da Europa Central e Oriental e apoiava os projetos de unificação européia, a começar pela própria Alemanha, dividida oficialmente desde 1949 e de fato desde 1945. O Tratado da União Européia em Maastricht, em 1992, assim como a transformação da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa em verdadeira organização (OSCE) foram saudadas como passos significativos nesse processo de aproximação e de cooperação pan-europeu. A OTAN estava pronta para aceitar novos membros e para reforçar seus esquemas táticos. Medidas obstrucionistas russas impediam, no entanto, a incorporação de novos candidatos da antiga zona soviética nos esquemas militares da OTAN. A solução política encontrada pelos líderes do núcleo original (com uma França já parcialmente reconciliada com o hegemonismo norte-americano) foi o desenvolvimento de uma série de instâncias institucionais e de foros ad-hoc para acomodar os impulsos adesistas dos países mais abertamente pró-ocidentais (ou mais virulentamente anti-russos), como a República Tcheca, a Hungria e a Polônia. A primeira dessas iniciativas foi a criação de um Conselho de Cooperação do Atlântico Norte (CCAN), envolvendo os membros das duas antigas alianças rivais.
Foi através do “chapéu” do CCAN que se desenvolveu o programa “Parceria para a Paz”, através do qual os países da OTAN abriram as portas para a cooperação com outros países no quadro da aliança ocidental. Contudo, não foi fácil vencer a resistência da Rússia a esses esquemas de cooperação que inevitavelmente terminariam por minar a sua capacidade de controlar (ou ameaçar) seus imediatos vizinhos geográficos. Apenas em 1997 se dá a assinatura, em Paris, do histórico acordo entre a Rússia e a OTAN sobre suas relações comuns, o que foi por alguns interpretado como uma espécie de veto russo a qualquer futura ampliação da aliança ocidental aos países que lhe eram contíguos. Poucos dias depois, entretanto, uma carta de cooperação foi assinada entre a OTAN e a Ucrânia, minando um pouco mais os velhos bastiões do antigo poderio soviético. Poucos meses depois, uma conferência de cúpula da OTAN, em Madri, abria o caminho a novas adesões à sua estrutura militar, ao mesmo tempo em que mantinha os esquemas cooperativos com a Rússia. Os três primeiros candidatos da antiga fronteira ocidental do Pacto de Varsóvia – República Tcheca, Hungria e Polônia – aderiram ao Tratado de Washington em março de 1999, coincidindo com os primeiros 50 anos da organização e marcada por cerimônia organizada na Biblioteca Truman. Assim, desde alguns anos, novos candidatos da Europa Central e Oriental vêm batendo às portas da OTAN, a exemplo dos bálticos, e mesmo alguns do Cáucaso (como a Geórgia), sem que, no entanto, a aliança ocidental demonstre qualquer precipitação em seu acolhimento.
Ao completar o seu primeiro meio século de existência, a OTAN aprovou novo conceito estratégico, revisando radicalmente e ampliando consideravelmente seu mandato original e seu raio de atuação, uma vez que recebeu mandato para cobrir operações humanitárias e anti-terroristas, para a luta contra o tráfico de drogas, assim como ameaças indefinidas ao meio ambiente, à paz e à democracia, num espaço geográfico igualmente difuso quanto a seus limites externos. No terreno europeu, a OTAN começou a trabalhar cada vez mais estreitamente com a Organização da União Européia (OUE), que também passa por mudanças significativas em função dos avanços da integração européia a partir do Tratado de Maastricht. A OTAN e a OUE já introduziram, por exemplo, o conceito de forças-tarefas conjuntas (Combined Joint Task Forces, CJTFs), ou seja, unidades separáveis mas não separadas que podem ser deslocadas em função de objetivos especificamente europeus no quadro da aliança liderada por Washington.
No próprio teatro estratégico europeu, a conformação de uma política comum de segurança e defesa traduziu-se na transformação da UEO em uma espécie de “braço armado” da União Européia (UE), muito embora não disponha ainda, em sua estrutura institucional, de mecanismo equivalente à obrigação de assistência mútua automática em caso de agressão (como previsto no quinto artigo do Tratado de Bruxelas da OTAN). Em novembro de 2000, o conselho dos dez membros plenos da UEO – outros cinco membros da UE e seis outros países da OTAN não-membros da UE são observadores na UEO – aprovou a transferência progressiva de suas funções operacionais para a UE, o que a termo significa o desaparecimento da UEO. De fato, depois da criação da Força de Reação Rápida (FRR) – desdobramento do Eurocorpo dominado pela França e pela Alemanha –, a transferência do Estado-Maior da OUE para o Estado-Maior da UE até 2002 poderá selar o destino da UEO, cujas estruturas políticas (Assembléia Parlamentar) e de coordenação de equipamento militar (Grupo Armamento da Europa Ocidental) já abrigam praticamente todos os países integrantes, candidatos à adesão ou associados à UE. Quatorze dos atuais quinze membros da UE participam da FRR — tendo a Dinamarca preferido abster-se de participar (como já tinha optado por permanecer fora da união monetária) —, mas ela ainda padece de problemas graves, tanto de ordem logística quanto política: os franceses, herdeiros ideológicos de De Gaulle, gostariam de vê-la o mais possível independente da OTAN e dos EUA, ao passo que os britânicos, os mais fiéis aliados dos EUA, têm opinião exatamente inversa, preferindo manter uma estreita aliança com a OTAN, cujos esquemas táticos são, aliás, indispensáveis a qualquer operação mais complexa da futura FRR.
As relações políticas nem sempre tranqüilas da OTAN com a Rússia passaram a ser mantidas, desde maio de 1997, no quadro do “Ato Fundador das relações mútuas de cooperação e de segurança”, que estabeleceu um novo foro de diálogo, o Conselho Permanente OTAN-Rússia. A evolução interna à própria Rússia – que adotou, no começo de 2000, uma nova doutrina estratégica, caracterizada por uma certa “flexibilidade” no uso do armamento nuclear –, assim como os desenvolvimentos políticos sempre imprevisíveis nos Balcãs e no Cáucaso, parecem constituir os desafios imediatos colocados em face de uma nova OTAN que, embora mais confiante em si mesma, não parece desejosa de crescer de forma incontrolada. De forma surpreendente, porém, os ataques terroristas contra os EUA, ocorridos em 11.09.01, resultaram no estreitamento de relações e num novo espírito de colaboração entre a Rússia e a OTAN, o que poderia mesmo resultar num novo relacionamento cooperativo e, a termo, numa integração do país sucessor da ex-potência soviética às estruturas políticas da aliança atlântica. Ainda que não se preveja incorporação de esquemas militares e mesmo integração a nível de comando, esses desenvolvimentos são suscetíveis de alterar fundamentalmente a estrutura das relações internacionais.
No início do século XXI, marcado por nacionalismos irredentistas em regiões de grande diversidade étnica, a organização do Tratado de Washington aparece mais militarmente preparada do que politicamente coesa e uniformemente consciente de seus novos atributos “universais”. A hegemonia militar continua a ser incontrastavelmente exercida pelos Estados Unidos, muito embora nem sempre sua liderança política e seus interesses nacionais sejam compatíveis com aqueles dos países europeus. Em todo caso, os compromissos com a causa dos direitos humanos, da democracia e do meio ambiente podem levar a OTAN a caminhos bem mais difíceis do que aqueles anteriormente balizados pelo maniqueísmo da Guerra Fria.

Paulo Roberto de Almeida

Washington: 756, 15/11/2000; revisto em 25/11/2001

Referências Bibliográficas: 

A principal fonte de informação sobre a OTAN é a própria página da organização: http://www.nato.org; ver também as da UEO (www.weu.int) e da UE (www.europa.eu.int), para os acordos militares europeus.
ALMEIDA, Paulo R. de. Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOZO, Frédéric. Deux stratégies pour l’Europe: de Gaulle, les Etats-Unis et l’Alliance atlantique: 1958-1969. Paris: Plon/Fondation Charles de Gaulle, 1996.
CARPENTER, Ted Galen (ed.). NATO enters the 21st century. Portland: Frank Cass, 2000.
KAPLAN, Lawrence S.. The long entanglement: NATO’s first fifty years. Westport: Praeger, 1999.
KAPLAN, Lawrence S.. The United States and NATO: the formative years. Lexington: University Press of Kentucky, 1984. 
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (org.). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX - As Grandes Transformações do Mundo Contemporâneo: Conflitos, Cultura e Comportamento (Rio de Janeiro: Campus, 2004. 963p., ISBN 85-352-1406-2).

 

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