A OTAN e o fim da
Guerra Fria
Paulo Roberto de
Almeida
O ato constitutivo da Organização do Tratado do Atlântico Norte foi assinado
em Washington em 4 de abril de 1949, como resultado das tensões acumuladas na
fase inicial da Guerra Fria entre as duas grandes potências vencedoras da II
Guerra Mundial. Os Estados Unidos e a União Soviética, nações aliadas no
esforço de guerra contra o inimigo nazi-fascista, descobrem no imediato
pós-guerra diferenças políticas e ideológicas irreconciliáveis, já evidenciadas
desde março de 1946 por Winston Churchill (1874-1965) que, em visita aos
Estados Unidos, pronunciou sua famosa frase sobre a “cortina de ferro” que
separava a Europa de Gdansk a Trieste.
O Tratado de Washington havia sido precedido pelo Tratado de Dunquerque,
assinado pela França e pela Grã-Bretanha em 1947, assim como, em 1948, pelo
Tratado de Bruxelas, criando a União da Europa Ocidental (UEO), esquema de
defesa comum entre a França, a Grã-Bretanha, os Países Baixos, a Bélgica e
Luxemburgo. Mas, se o tratado de assistência mútua anglo-francês era
especificamente dirigido contra um eventual novo ataque da Alemanha, o de
Bruxelas, apenas um ano mais tarde, já tinha a União Soviética como seu objeto,
o que é revelador de como as novas percepções da Guerra Fria iam sepultando os
temores ainda presentes dos antigos inimigos de guerra. A UEO, por sua vez,
tinha sido concebida em moldes similares aos delineados um ano antes no
continente americano, no Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). A exemplo do TIAR, o Tratado
de Washington criava uma aliança de países comprometidos com sua defesa
recíproca contra ameaças externas, neste caso, doze Estados da Europa ocidental
(nem todos democráticos, como era o caso de Portugal salazarista, membro
fundador em virtude das bases norte-americanas nas ilhas atlânticas) e da
América do Norte, sob a liderança dos Estados Unidos.
A construção institucional e a ulterior evolução organizacional da OTAN,
assim como o desenvolvimento de esquemas táticos e estratégicos de defesa comum
(inclusive mediante o emprego de armas nucleares) não podem ser vistos de
maneira independente do cenário político-militar predominante no hemisfério
norte nas décadas de confrontação bipolar, uma vez que, também do lado
socialista, uma aliança militar constituir-se-ia em 1955 sob a liderança da
União Soviética, o chamado Pacto de Varsóvia. Na verdade, a aliança dominada
por Moscou se destinava bem mais a garantir a manutenção forçada dos países da
Europa Central e Oriental no campo socialista do que a impedir um ataque
militar ocidental à União Soviética.
A primeira sede da OTAN foi instalada na capital da França, um aliado
militar que se revelaria politicamente recalcitrante, como foi demonstrado
anteriormente pela recusa soberanista em ratificar a Comunidade Européia de
Defesa (1954). Com o estabelecimento de uma nova doutrina militar concebida
pelo General De Gaulle (1890-1970) ao voltar ao poder (1958) – a chamada force de frappe independente, que também
traduziu-se na proibição do estacionamento de forças nucleares norte-americanas
em território francês –, a França abandona, em 1966, os esquemas militares ofensivos
comuns (táticos e nucleares), o que leva a OTAN a se mudar de Paris para a
Bélgica, passando ela a manter instalações políticas em Bruxelas (Secretariado)
e militares em Mons (comando militar aliado). De acordo com uma “divisão do
trabalho” institucional entre americanos e europeus, o Secretário Geral da OTAN
sempre foi escolhido entre os próprios europeus, ao passo que a designação do
seu comandante militar permanecia sob exclusiva responsabilidade dos Estados
Unidos (geralmente sem consulta aos aliados europeus). Esse tipo de acerto
informal se repete no caso das organizações de Bretton Woods, em que o Diretor
Gerente do Fundo Monetário Internacional tem sido buscado tradicionalmente na
Europa, enquanto a presidência do Banco Mundial é reservada a um cidadão
norte-americano.
A incorporação de novos membros ao esquema da OTAN se deu em saltos, em
função da evolução do quadro geopolítico. No período da Guerra Fria, acederam
progressivamente ao tratado de Washington quatro outros países europeus – a
Grécia e a Turquia em 1952, a Alemanha Federal em 1955 (mesmo ano da
constituição do Pacto de Varsóvia) e a Espanha redemocratizada do
pós-franquismo em 1982 –, observando-se então uma relativa estabilidade.
Depois, como resultado das transformações políticas relevantes ocorridas na
Europa Central e Oriental desde o fim do socialismo realmente existente e o
desaparecimento da União Soviética – e do próprio Pacto de Varsóvia – no começo
dos anos de 1990, três outros países outrora integrantes da aliança militar socialista
ingressaram na OTAN já em 1999, quando se comemorou o seu 50º aniversário: a
República Tcheca, a Hungria e a Polônia, elevando a aliança atlântica a 19
membros.
Com o fim da Guerra Fria e o desaparecimento da ameaça de uma invasão
militar “socialista” à Europa Ocidental, a OTAN foi reestruturada num sentido
menos preventivo de um conflito de amplas proporções e mais com objetivos de
cooperação em matéria de segurança e de medidas de confiança para o conjunto da
Europa. Ela também passou a participar, não sem alguns problemas em termos de
mandato “constitucional”, de operações de manutenção de paz no continente,
geralmente em coordenação com outras organizações internacionais (mas nem
sempre dotada de um claro mandato multilateral, como foi o caso nos Balcãs). De
forma bem mais complexa para os equilíbrios políticos na Europa pós-socialista,
ela veio a ser “assediada” por países desejosos de escapar ao “abraço fatal” da
Rússia, que recuperou (ou herdou) muitas das prevenções anti-ocidentais da desaparecida
União Soviética. Assim, a história recente da OTAN é bem mais movimentada em
termos institucionais e políticos do que a rigidez doutrinal e estratégica dos
anos de Guerra Fria.
Logo depois da queda do muro de Berlim, uma conferência da OTAN em Londres
dirigia votos de amizade aos países da Europa Central e Oriental e apoiava os
projetos de unificação européia, a começar pela própria Alemanha, dividida
oficialmente desde 1949 e de fato desde 1945. O Tratado da União Européia em
Maastricht, em 1992, assim como a transformação da Conferência sobre Segurança
e Cooperação na Europa em verdadeira organização (OSCE) foram saudadas como
passos significativos nesse processo de aproximação e de cooperação
pan-europeu. A OTAN estava pronta para aceitar novos membros e para reforçar
seus esquemas táticos. Medidas obstrucionistas russas impediam, no entanto, a
incorporação de novos candidatos da antiga zona soviética nos esquemas
militares da OTAN. A solução política encontrada pelos líderes do núcleo
original (com uma França já parcialmente reconciliada com o hegemonismo
norte-americano) foi o desenvolvimento de uma série de instâncias
institucionais e de foros ad-hoc para
acomodar os impulsos adesistas dos países mais abertamente pró-ocidentais (ou
mais virulentamente anti-russos), como a República Tcheca, a Hungria e a
Polônia. A primeira dessas iniciativas foi a criação de um Conselho de
Cooperação do Atlântico Norte (CCAN), envolvendo os membros das duas antigas
alianças rivais.
Foi através do “chapéu” do CCAN que se desenvolveu
o programa “Parceria para a Paz”, através do qual os países da OTAN abriram as
portas para a cooperação com outros países no quadro da aliança ocidental.
Contudo, não foi fácil vencer a resistência da Rússia a esses esquemas de cooperação
que inevitavelmente terminariam por minar a sua capacidade de controlar (ou
ameaçar) seus imediatos vizinhos geográficos. Apenas em 1997 se dá a
assinatura, em Paris, do histórico acordo entre a Rússia e a OTAN sobre suas
relações comuns, o que foi por alguns interpretado como uma espécie de veto
russo a qualquer futura ampliação da aliança ocidental aos países que lhe eram
contíguos. Poucos dias depois, entretanto, uma carta de cooperação foi assinada
entre a OTAN e a Ucrânia, minando um pouco mais os velhos bastiões do antigo
poderio soviético. Poucos meses depois, uma conferência de cúpula da OTAN, em
Madri, abria o caminho a novas adesões à sua estrutura militar, ao mesmo tempo
em que mantinha os esquemas cooperativos com a Rússia. Os três primeiros candidatos
da antiga fronteira ocidental do Pacto de Varsóvia – República Tcheca, Hungria
e Polônia – aderiram ao Tratado de Washington em março de 1999, coincidindo com
os primeiros 50 anos da organização e marcada por cerimônia organizada na
Biblioteca Truman. Assim, desde alguns anos, novos candidatos da Europa Central
e Oriental vêm batendo às portas da OTAN, a exemplo dos bálticos, e mesmo
alguns do Cáucaso (como a Geórgia), sem que, no entanto, a aliança ocidental
demonstre qualquer precipitação em seu acolhimento.
Ao completar o seu primeiro meio século de existência, a OTAN aprovou
novo conceito estratégico, revisando radicalmente e ampliando consideravelmente
seu mandato original e seu raio de atuação, uma vez que recebeu mandato para
cobrir operações humanitárias e anti-terroristas, para a luta contra o tráfico
de drogas, assim como ameaças indefinidas ao meio ambiente, à paz e à
democracia, num espaço geográfico igualmente difuso quanto a seus limites
externos. No terreno europeu, a OTAN começou a trabalhar cada vez mais
estreitamente com a Organização da União Européia (OUE), que também passa por
mudanças significativas em função dos avanços da integração européia a partir
do Tratado de Maastricht. A OTAN e a OUE já introduziram, por exemplo, o conceito
de forças-tarefas conjuntas (Combined
Joint Task Forces, CJTFs), ou seja, unidades separáveis mas não separadas
que podem ser deslocadas em função de objetivos especificamente europeus no
quadro da aliança liderada por Washington.
No próprio teatro estratégico europeu, a conformação de uma política
comum de segurança e defesa traduziu-se na transformação da UEO em uma espécie
de “braço armado” da União Européia (UE), muito embora não disponha ainda, em
sua estrutura institucional, de mecanismo equivalente à obrigação de
assistência mútua automática em caso de agressão (como previsto no quinto
artigo do Tratado de Bruxelas da OTAN). Em novembro de 2000, o conselho dos dez
membros plenos da UEO – outros cinco membros da UE e seis outros países da OTAN
não-membros da UE são observadores na UEO – aprovou a transferência progressiva
de suas funções operacionais para a UE, o que a termo significa o
desaparecimento da UEO. De fato, depois da criação da Força de Reação Rápida
(FRR) – desdobramento do Eurocorpo dominado pela França e pela Alemanha –, a
transferência do Estado-Maior da OUE para o Estado-Maior da UE até 2002 poderá
selar o destino da UEO, cujas estruturas políticas (Assembléia Parlamentar) e
de coordenação de equipamento militar (Grupo Armamento da Europa Ocidental) já
abrigam praticamente todos os países integrantes, candidatos à adesão ou
associados à UE. Quatorze dos atuais quinze membros da UE participam da FRR —
tendo a Dinamarca preferido abster-se de participar (como já tinha optado por
permanecer fora da união monetária) —, mas ela ainda padece de problemas
graves, tanto de ordem logística quanto política: os franceses, herdeiros
ideológicos de De Gaulle, gostariam de vê-la o mais possível independente da
OTAN e dos EUA, ao passo que os britânicos, os mais fiéis aliados dos EUA, têm
opinião exatamente inversa, preferindo manter uma estreita aliança com a OTAN,
cujos esquemas táticos são, aliás, indispensáveis a qualquer operação mais
complexa da futura FRR.
As
relações políticas nem sempre tranqüilas da OTAN com a Rússia passaram a ser
mantidas, desde maio de 1997, no quadro do “Ato Fundador das relações mútuas de
cooperação e de segurança”, que estabeleceu um novo foro de diálogo, o Conselho
Permanente OTAN-Rússia. A evolução interna à própria Rússia – que adotou, no
começo de 2000, uma nova doutrina estratégica, caracterizada por uma certa
“flexibilidade” no uso do armamento nuclear –, assim como os desenvolvimentos
políticos sempre imprevisíveis nos Balcãs e no Cáucaso, parecem constituir os
desafios imediatos colocados em face de uma nova OTAN que, embora mais
confiante em si mesma, não parece desejosa de crescer de forma incontrolada. De
forma surpreendente, porém, os ataques terroristas contra os EUA, ocorridos em
11.09.01, resultaram no estreitamento de relações e num novo espírito de
colaboração entre a Rússia e a OTAN, o que poderia mesmo resultar num novo
relacionamento cooperativo e, a termo, numa integração do país sucessor da
ex-potência soviética às estruturas políticas da aliança atlântica. Ainda que
não se preveja incorporação de esquemas militares e mesmo integração a nível de
comando, esses desenvolvimentos são suscetíveis de alterar fundamentalmente a
estrutura das relações internacionais.
No
início do século XXI, marcado por nacionalismos irredentistas em regiões de
grande diversidade étnica, a organização do Tratado de Washington aparece mais
militarmente preparada do que politicamente coesa e uniformemente consciente de
seus novos atributos “universais”. A hegemonia militar continua a ser
incontrastavelmente exercida pelos Estados Unidos, muito embora nem sempre sua
liderança política e seus interesses nacionais sejam compatíveis com aqueles
dos países europeus. Em todo caso, os compromissos com a causa dos direitos
humanos, da democracia e do meio ambiente podem levar a OTAN a caminhos bem
mais difíceis do que aqueles anteriormente balizados pelo maniqueísmo da Guerra
Fria.
Paulo
Roberto de Almeida
Washington: 756, 15/11/2000;
revisto em 25/11/2001
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