O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Igreja católica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Igreja católica. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Padres alertam contra a reeleição do atual presidente da República - Carta aberta

Trata-se de algo inédito no Brasil: padres da Igreja Católica tomam a iniciativa de recomendar aos fieis que rejeitem o atual presidente. As razões são claramente expostas no texto a seguir.

Paulo Roberto de Almeida 

 Carta Aberta

Padres alertam contra a reeleição do atual presidente da República

Encontramo-nos, novamente, no período eleitoral. Em 2018 a população, enganada por fake news, desmotivada por crises econômicas, escândalos de corrupção e insuflada por discursos de ódio acabou por eleger para a presidência da República Jair Messias Bolsonaro. Uma catástrofe anunciada! Hoje, distante quatro anos daquele momento, nós Padres, conscientes do nosso dever de pastores do povo de Deus, queremos alertar para o perigo de repetirmos o mesmo erro, que pode pôr o Brasil em uma crise humana muito profunda. Por isso, elencamos dez elementos pelos quais, claramente, opomos nossas consciências à reeleição do atual Presidente da República.

1 – Uso do nome de Deus: o atual presidente sempre manipulou o sentimento religioso da população brasileira, tentando convencê-la de que é um homem cristão, religioso e, por isso, digno e bom. Trata-se apenas de uma estratégia de controle das consciências, visto que todo o seu discurso e suas ações são uma total oposição ao Evangelho de Jesus;

2 – Discurso de ódio: o atual presidente insufla ódio na população por aqueles que considera inimigos seus ou do país (ainda que inimigos imaginários como os “comunistas”), tendo sempre um discurso ligado à violência, ao apelo às armas, a imposição da maioria e submissão das minorias, e um tom de agressividade e de desprezo pelos pobres, pelas mulheres, comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, população de rua, comunidade LGBTQIA+, migrantes, etc;

3 – Fake news: toda a eleição de 2018 foi movida por notícias falsas e alarmistas, colocando em pânico a população mais simples e vulnerável. Notícias falsas circularam por grupos de WhatsApp e pelas demais redes socias, desinformando e manipulando a população. Durante todo o seu governo as notícias falsas e caluniosas permaneceram e o Presidente mente de forma compulsiva na TV e em seus diversos pronunciamentos;

4 – Má gestão da pandemia de COVID-19: o governo atual, capitaneado pelo Presidente Bolsonaro, geriu de forma desastrosa e desumana a pandemia de COVID-19. O Presidente fez propaganda de medicamentos comprovadamente ineficazes, atrasou propositalmente a compra de vacinas, criou dificuldades para o estabelecimento de políticas de distanciamento social, demitiu ministros da saúde que contradiziam suas ideias infantis e, incrivelmente, ainda imitou pessoas morrendo sufocadas;

 5 – Volta da pobreza: o país foi imerso na pobreza e 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil de hoje. Nós, que havíamos saído do mapa da fome em 2014, tornamos a ver a instabilidade alimentar em nosso meio. A inflação impede pessoas de comprarem alimentos básicos para a subsistência. Nosso povo passa fome enquanto super ricos cercam o atual Presidente por medo de perderem privilégios. Com tudo isso, o presidente ainda nega que existam pessoas com fome no Brasil;

6 – Aumento do desmatamento: O desmatamento ilegal, as políticas que favorecem o agronegócio irresponsável, favorecimento do garimpo ilegal, silêncio e despreocupação com as ameaças sofridas por ambientalistas e defensores da Amazônia, o uso de agrotóxicos proibidos em outras partes do mundo, o pisoteamento das comunidades indígenas, o desaparelhamento dos órgãos de controle ambiental e indigenista e a sistemática destruição da Amazônia são escândalos em nível mundial. O atual governo coloca em risco toda a confiabilidade do país e o equilíbrio ambiental através de suas políticas ecocidas;

7 – Sinais claros de corrupção: eleito com discurso anticorrupção, o atual Presidente vive soterrado e soterrando os escândalos de corrupção que o envolvem e envolvem sua família. Escândalos de corrupção na compra de vacinas, escândalos no MEC, interferência na Polícia Federal, desmonte das políticas de transparência fundamentais no combate à corrupção, compra do parlamento através do “orçamento secreto”, movimentações financeiras milionárias não esclarecidas (compra de 51 imóveis com dinheiro vivo), sigilo de 100 anos sobre ações pessoais sendo que somos uma República;

8 – Ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF): o Presidente da República tem sistematicamente atacado o STF, que diz intervir indevidamente no governo. Frases ameaçadoras contra ministros do STF são públicas e estão nas redes socias. A ameaça a um poder da República é um ataque à Constituição Federal e um perigo ao Estado Democrático de Direito. Além disso sustenta um discurso antidemocrático militarista;

9 – Questionamento sobre o processo eleitoral: mesmo tendo sido eleito pelo atual sistema de urnas eletrônicas, o Presidente da República questiona sistematicamente o sistema eleitoral brasileiro, afirmando que houve e que podem acontecer fraudes. Chegou mesmo a afirmar que existiam provas dessas fraudes, provas essas, que nunca pode demonstrar. O TSE já demonstrou que tudo não passa de retórica de mentira. Porém, com esse discurso cria desconfiança e instabilidade no sistema eleitoral do Brasil;

10 – Claros sinais de autoritarismo e fascismo: por fim, o lema do presidente Bolsonaro sempre foi: “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”, que se assemelha a propaganda nazista “Alemanha acima de tudo”, lema que deturpa patriotismo em perigoso nacionalismo. Em um Estado laico a única realidade que está acima de tudo é a Constituição, que existe para garantir a liberdade e o bem estar de todos os cidadãos, não importando suas etnias, religiões ou classes sociais. O Estado laico não é Estado ateu. Estado laico é a única garantia de que todos os cidadãos poderão viver e celebrar suas diversas crenças de forma livre;

Feitas essas considerações, como padres preocupados com o bem da nossa população, recordamos que Jesus veio para que tenhamos vida e vida em abundância (Jo 10,10). Um discípulo de Jesus consciente não pode reeleger um homem que com palavras e obras demonstra ser o oposto de tudo aquilo que Jesus é e anuncia. Deus nos ilumine para sermos fiéis ao Senhor da vida!

Comprometem-se com essa carta mais de 450 padres católicos de diversas Dioceses, Ordens, Congregações e Institutos de Vida Consagrada de todo o Brasil e fora dele, denominados Padres da Caminhada e Padres contra o fascismo, e que refletem e se unem desde 2018 em vista da democracia ameaçada no Brasil.

Brasil, 07 de setembro de 2022


terça-feira, 19 de novembro de 2019

Depois da "teologia da libertação" a "teologia da prosperidade" - Bruno Reikdal Lima (GGN)

É possível uma Teologia da Libertação evangélica?, por Bruno Reikdal Lima

É possível uma Teologia da Libertação evangélica?, por Bruno Reikdal Lima

Há um desafio posto para movimentos de esquerda na América Latina, sejam eles progressistas ou revolucionários: o que fazer com os evangélicos? Uma religião popular, de massas, espalhada em todo o continente, seja em grandes templos nos centros urbanos, em garagens feitas lugar de culto no fundão das periferias ou mesmo em casebres nos rincões, capaz de mobilizar multidões, garantir coesão social e apoio a projetos políticos de lideranças. Uma potência social transformadora alinhada, hoje, majoritariamente com programas reacionários, conservadores e por vezes fascistas. E mesmo que normalmente não se tenha o hábito de discutir religião em nossos círculos de debates e organizações partidárias ao se planejar um projeto político, reformas ou mesmo ambições revolucionárias, não se tem um programa popular sem o povo; e este é cada vez mais evangélico.
Entre as décadas de 1960 e 1980, um fenômeno religioso sui generis e propriamente latino-americano animou populações do Terceiro Mundo: a Teologia da Libertação. Como Michael Löwy mostra em seu Cristianismo delibertação, lançado em edição revisada pela Expressão Popular Junto, não tem como pensar e compreender os movimentos sociais e revolucionários da América Latina apoiados e aglutinadores de grandes massas, sem levar em conta esse movimento católico de padres e freiras que assumiram uma prática religiosa e uma teoria crítica muito peculiar, conciliando a missão evangelizadora da igreja em abertura à sociedade moderna com a Teoria Marxista da Dependência. A capilaridade da igreja católica por meio da rede de comunidades e fiéis que foi constituída desde os primeiros anos da colonização ibérica em 1492, garantia uma circulação gigantesca de materiais e conteúdos compartilhados entre lideranças e membros, discussões que cruzavam fronteiras, além de por vezes garantias de proteção e apoio por meio de solidariedade do clero nacional e internacional.
Foi um fenômeno, com grandes impactos e também com limites. Mas que por sua atuação mobilizou e tornou possível ligas campesinas, movimentos de lutas por direitos sociais e partidos políticos (no Brasil, o MST e o próprio PT são exemplo disso). Contudo, o continente ainda católico em um espaço de 30 anos se tornou 1/3 evangélico – e com perspectivas de ter sua população majoritariamente convertida a essa “nova” religião nos próximos anos. Outro fenômeno. Que por uma série de razões históricas que podemos destacar em outro momento, apesar de suas raízes periféricas e em disputas sociais, está em completo descompasso com o que fora a experiência da Teologia da Libertação e seus desdobramentos. Na verdade, um movimento que se desenvolve exatamente no oposto: em rejeição ao que apareça como moderno, no sentido de se portar como conservador, e a tudo o que pareça ser “marxista”.
Bem, a pergunta para a qual gostaria que nos voltássemos é: existe alguma viabilidade de termos uma Teologia da Libertação evangélica? Para tal, gostaria de fazer um rápido comparativo histórico e, por fim, indicar alguns desafios e algumas perspectivas sobre essa questão.
A Teologia da Libertação tem sua primeira raiz nas missões católicas europeias dos períodos entre as Grandes Guerras e no pós-Guerra. Jovens padres europeus são desafiados na primeira metade do século XX a modernizar a igreja, conciliando os avanços nas ciências modernas (sejam elas físicas, biológicas ou sociais) com a tradição. Era a abertura para o “mundo moderno”. A igreja católica europeia assumia frente ao processo histórico acelerado que vivia e às pressões sociais de fiéis e das relações políticas e econômicas com os Estados europeus, que a modernidade era inevitável, que traria melhorias na qualidade de vida das pessoas, mas que no processo de modernização, existiriam muitos flagelados, que ainda levariam um tempo para serem incluídos no “novo mundo”. Seu papel como Igreja, portanto, era de acolher os pobres e cuidar dos excluídos durante a modernização, em passo com ela, cumprindo sua missão.
Padres missionários passam a ser formados, então, para cuidar dos temporariamente pobres e excluídos que, no curso da história, seriam inseridos na marcha do progresso. Parte dessa leva de clérigos tem como destino o continente latino-americano. Entretanto, ao chegarem aos rincões dessa terra, encontram uma situação limite: os processos de modernização reproduzem grandes massas de pobres e excluídos, em uma miserabilidade não imaginável nos centros de onde vieram. Percebem com o passar dos anos que a para cuidarem dos pobres e dos excluídos de modo efetivo, não bastaria acolhe-los temporariamente, mas interromper o motor da exclusão: a própria modernização. Essa interpretação fica clara apenas ao final de 1960, quando alguns padres vindos das missões da Ação Católica e alguns discípulos, formados em solo ameríndio, tomam contato com a Teoria da Dependência e conseguem explicitar teoricamente por meio dos instrumentos teóricos dessa teoria científica moderna o que haviam descoberto nas missões: a pobreza e a exclusão não são uma etapa da modernização, mas seu fundamento. Assim em 1968 se tem a Conferência de Medellín, e em 1972 a publicação da primeira sistematização, Teología de la liberación, de Gustavo Gutiérrez.
Desse modo, de um processo de contradição entre a abertura da Igreja nos países centrais e a realidade enfrentada na periferia, a Teologia da Libertação é um efeito não-intencional e “negativo” da modernização da Igreja. Ademais, também se trata de um grupo de padres com escolarização e preparação missiológica formal, que saem de uma condição social privilegiada para situações e contextos de extrema pobreza, que se valem de uma instituição centralizada e forte, com redes já constituídas e longa tradição. Completamente diferente do processo histórico da religião evangélica no continente: que cresce particularmente, em uma primeira onda, com comunidades pentecostais que são periféricas, pequenas, sem poder centralizado e organização rígida. São, na verdade, um movimento carismático, muito mais dependente de uma liderança com seu nome e dons, do que de uma coordenação institucionalizada das ações das comunidades. Cada uma com seu líder e seus projetos, mesmo que partilhem de usos, costumes e ritos.
As igrejas evangélicas chamadas “tradicionais” também crescem, mas precisaram se transformar diante desse novo fenômeno místico. De todo modo, apesar de serem mais organizadas institucionalmente, também giram, em geral, em torno de lideranças fortes, por vezes famílias tradicionais nas comunidades, que formam pequenos grupos tomadores de decisões. Comumente, suas origens não são tão periféricas quanto as pentecostais, mas inicialmente, sempre, nos centros urbanos. Por outro lado, assim como com as igrejas pentecostais, os evangélicos tradicionais passam a vivenciar divisões e rachas internos, entre lideranças ou grupos de lideranças, fazendo nascer igrejas que procuram ser “independentes” de convenções e outros tipos de coordenações institucionais, todavia, sempre em torno de uma nova liderança. Ou seja: não há centralidade de Igreja, como se vivencia com a católica. São grupos que se unem em torno de temas, rituais comuns ou mesmo interesses, mas dispersos e relativamente autônomos uns dos outros.
As igrejas evangélicas estão espalhadas e contam com uma capilaridade imensa. Mas fragmentada. Talvez aqui encontremos um primeiro desafio: como coordenar uma ação contra-hegemônica em um grupo que é, desde sua origem, internamente rachado e já aguardando a próxima divisão? A Teologia da Libertação contava com uma instituição fortalecida, com mecanismos explícitos, hierarquia bem definida e proximidade entre os atores, que regularmente acabavam tendo que se reunir de alguma maneira. As igrejas evangélicas não tem nem padrão comum na formação de suas lideranças – aliás, por vezes, sem qualquer formação. Temos mais um ponto: a disparidade de acesso a educação formal, recursos formativos ou mesmo algum padrão de preparação de lideranças entre pastores e pastoras (nas comunidades em que existam mulheres com esse cargo). Sem centralidade institucional, sem organização na formação das lideranças – que operam, em geral, por sua capacidade de exercer carisma, ou seja, uma relação ainda mais orgânica.
Isto posto, comparando essas trajetórias, dos muitos apontamentos possíveis, gostaria de destacar dois desafios e duas perspectivas:
O primeiro desafio é como coordenar e aglutinar pessoas que dentro das comunidades evangélicas pretendam se posicionar ou já estejam posicionadas em outra chave que não a reacionária e conservadora atual. A primeira saída pensada poderia ser a de abrir uma nova instituição, para que essas pessoas se reúnam. Contudo, seria a repetição de mais um padrão comum da formação de comunidades evangélicas, em mais uma subdivisão que não necessariamente ganha visibilidade ou tenha a capacidade de aglutinar distintos indivíduos de tradições e comunidades distintas de lugares sociais e territoriais completamente diferentes. Uma nova igreja acrescentaria apenas mais uma pequena comunidade evangélica no meio de outras;
O segundo desafio é pensar como superar a relação carismática de dependência de uma liderança. Não que não se deva ter lideranças. Pelo contrário, não existiu nenhum processo histórico transformador ou revolucionário que não tenha se firmado na figura de uma ou duas grandes lideranças. A questão é que a individualização do processo repete mais um padrão da formação institucional fragmentária. Líderes que se pretendam lançar novas comunidades as fazem não sob uma coordenação institucional e minimamente sistematizada de um coletivo, mas no dom de trabalhar, no caso hipotético, questões progressistas que atendam um novo nicho de fieis. Como sistematizar um conteúdo comum com lideranças fragmentadas?
Com isso quero destacar que existiam estruturas mínimas para que a Teologia da Libertação produzisse efeitos e conteúdos que não se reduziam a uma ou outra liderança, uma ou outra comunidade, mas a um coletivo e organização institucional que não apagou as individualidades, e sim as posicionou a partir de uma perspectiva e projeto comum: a própria Teologia da Libertação.
Todavia, há uma brecha para uma produção teológica vanguardista no meio evangélico. Ao passo que a falta de centralidade impede maior atuação coordenada sob um projeto político comum, ela revela uma maior fragilidade do controle dessas instituições com respeito à flutuação de seus membros: eles optam por “mudar de igreja”. Isso indica, na verdade, que o sujeito tem maior autonomia para procurar uma comunidade que atenda melhor suas necessidades ou demandas em determinado tempo. Em torno de parte dessas necessidades que os rachas internos se instauram e aglutinam novos grupos religiosos, atendendo demandas que a anterior não cumpria. Há, na verdade, circulação de membros, que alternam as comunidades que frequentam de tempos em tempos. No hiato entre o que a comunidade oferece e o papel que ela não tem cumprido, existe uma possibilidade de denúncia interna, de crítica, que pode dispor de uma necessidade que exija mudanças religiosas.
A segunda brecha é a origem popular e periférica das comunidades evangélicas, em especial as pentecostais. Diferentemente da Igreja católica que na Teologia da Libertação teve de enfrentar sua opulência e os privilégios do clero para se aproximar da realidade do povo latino-americano, as igrejas evangélicas nascem na realidade popular e se mantém, nas periferias e rincões do país, organizada e coordenadas por pessoas da classe trabalhadora, muitas vezes empobrecidas, batalhadoras comuns. É uma organização propriamente popular, que se encontra regularmente, produtora de laços sociais e muitas vezes o único “serviço” público próximo às casas das pessoas socialmente excluídas – capaz de garantir algum apoio financeiro, mantimentos e encaminhamentos para algum auxílio social, mesmo que voluntário e amador.
De todo modo, pensar a história de uma experiência social exitosa permite que procuremos elementos que nos auxiliem em nossas ações, tomadas de decisão e organizações sociais. A Teologia da Libertação, no caso, disputou um território conservador, constituidor do próprio status quo de seu tempo, e foi capaz de produzir um fenômeno social com efeitos duradouros. As igrejas evangélicas também são territórios de disputa, e se temos o intuito de desenvolver um projeto popular, temos que estar com o povo e partir dele. E ele é cada vez mais evangélico.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Martinho Lutero, luzes e sombras, mais sombras do que luzes - María Elvira Rocha Barea (El Pais)

Igreja Luterana

Martinho Lutero como a escola nunca ensinou: antilatino e antissemita

Celebrações do 5º centenário do cisma luterano evitam aspectos obscuros do legado de Lutero.

O manto religioso encobre um conflito político e nacionalista


Diz a lenda que, em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546), escandalizado com o vergonhoso espetáculo que a Igreja Católica oferecia e indignado com a venda de indulgências, pregou nas portas da igreja de Wittenberg as 95 teses que desafiavam o poder de Roma. O aniversário de 500 anos desse gesto está sendo celebrado com pompa na Alemanha. Merkel e Obama prestaram homenagem a Lutero em 25 de maio no Portão de Brandemburgo e, por volta da mesma data, foi inaugurada uma espetacular exposição em Wittenberg. Esses são só alguns dos eventos mais destacados. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os aniversários luteranos (nascimento, morte, 95 teses, iluminação divina durante a tempestade de 1505…) quase não tinham relevância. Mas agora isso mudou. Por quê?

Igreja Luterana Martinho Lutero
Instalação do artista alemão Ottmar Hörl feita com 800 imagens de Martinho Lutero e exposta na cidade alemã de Wittenberg em agosto de 2010. AFP / Getty Images

O gesto descrito às portas da igreja de Wittenberg é a representação mítica e ritual do significado de Martinho Lutero para o chamado Sacro Império Romano-Germânico. Há muito se duvida que ele tenha mesmo pregado suas teses; as menções ao ato desafiador aparecem muito depois, conforme se vai adornando e mitificando a personagem Lutero e o cisma que ele trouxe consigo. Mas, se non è vero, è ben trovato (ainda que não seja verdade, é bem possível). Seria muito menos heroico mandar o texto de protesto pelo correio – que é o que provavelmente aconteceu – ao bispo de Mogúncia (Mainz). O gesto simbólico conserva hoje toda sua aura teatral, mas era muito mais épico naquele tempo, porque o homem do século XVI sabia que essa era a maneira de divulgar os chamados cartazes de desafio, em que um cavalheiro insultava publicamente outro e o desafiava a um duelo. E era preciso responder, quem não o fazia ficava desonrado para sempre. Há, na figura de Lutero, um componente de heroísmo a posteriori muito interessante para compreender seu significado na história da Alemanha e também, não se surpreenda o leitor, na da Espanha.


O cisma luterano é a manifestação de um problema político, mas o contexto religioso em que foi mantido turva completamente sua compreensão. Através dele se expressa o nacionalismo germânico primordial e, por isso, Martinho Lutero é celebrado e exaltado na Alemanha cada vez que esse nacionalismo ganha força. Desde a Segunda Guerra Mundial não se comemorava de maneira significativa nenhuma efeméride luterana. Em 1983 passou em branco na Alemanha Ocidental o quinto centenário do nascimento de Martinho Lutero, tão festejado nos tempos de Bismarck. Em 10 de novembro de 1883, por exemplo, o imperador Guilherme I liderou o desfile do quarto centenário de nascimento de Lutero em Eisleben.
Em Historia del año 1883 o intelectual e político espanhol Emilio Castelar escreve: “Os povos protestantes celebraram o quarto centenário de Lutero com júbilo universal” e ainda, embora “os católicos e os protestantes da Alemanha não tenham concordado em homenagear o religioso, concordaram em homenagear o patriota”. Mas o mais interessante é o expediente: “Nós, que não pertencemos à religião luterana nem à raça germânica, espanhóis e católicos de nascimento, podemos celebrar sem receio aquele que, iniciando as liberdades de pensamento e de exame, iniciou as revoluções modernas, por cuja virtude rompemos nossos grilhões de servos e proclamamos a universalidade da justiça e do direito”. Não precisamos, portanto, ir a Wittenberg para ler os textos que comentam a espetacular exposição. O que ali se conta é exatamente o mesmo que Castelar nos diz: Lutero, o pai da liberdade religiosa na Europa; Lutero, o herói por cujo esforço ímpar este continente se livrou das trevas e da escravidão. Castelar diz que “rompemos nossos grilhões”. A Lutero devemos nada menos que “a justiça e o direito”, porque é evidente que os espanhóis não tínhamos isso.

Lutero foi o grande protetor das oligarquias, o fiador religioso de um feudalismo tardio que manteve a Alemanha no atraso e na pobreza
E, claro, se Lutero rompe os grilhões é porque havia grilhões a romper e alguém os tinha colocado. Se traz a liberdade de pensamento é porque isso não existia, e quem impedia? Nem é preciso dizer com todas as letras, mas está aí, constantemente presente: o sombrio e sinistro Império espanhol e católico. Para que o herói Lutero exista é preciso haver um monstro que o antagonize. Sem monstro, não há herói. Quem visita Wittenberg ou qualquer das muitas exposições e celebrações na Alemanha hoje, mesmo sendo espanhol e católico – e especialmente se for espanhol e católico – não vê o cenário que torna possível o brilho germânico. Quando digo católico não quero dizer religioso. A fé é irrelevante neste contexto. Refiro-me a quem nasceu em um país de cultura católica. Porque esse fulgor germânico precisou, século após século, como condição sine qua non para sua exaltação, que o sul mediterrâneo fosse obscuro e atrasado, imoral e decadente, indolente e pouco confiável. Foi em tempos de Lutero que o adjetivo welsch – uma denominação geográfica pouco precisa para referir-se ao sul – passou a significar latino ou românico, e malvado e imoral ao mesmo tempo.
A “liberdade luterana” não resiste a um olhar próximo e livre de preconceitos. Começou provocando uma guerra espantosa que se chamou Guerra dos Camponeses e deixou mais de 100.000 mortos nos campos do Sacro Império. Porque os camponeses acreditaram de verdade naquelas exaltadas pregações da boca de Lutero e de outros que clamavam contra as riquezas acumuladas pelos poderosos da terra com Roma como fiadora de tais injustiças. Isso provocou uma convulsão social como nenhuma outra na Europa até a Revolução Francesa. Os príncipes alemães, cujo propósito era basicamente opor-se ao imperador, não pensaram que incentivar aquela efervescência antissistema (Carlos V e o catolicismo) poderia se voltar contra eles, mas tiveram que enfrentar uma revolta de proporções gigantescas. Alguns clérigos revolucionários como Müntzer, conhecido como o teólogo da revolução, mantiveram-se fiéis a seus princípios até o final e foram executados, mas Lutero decidiu sobreviver. Desde o início de 1525, depois da morte de Hutten e Sickingen, os dois líderes revolucionários que o tinham protegido, Lutero fica serviço dos príncipes alemães e incentiva a violência brutal com que os grandes senhores germânicos sufocaram as rebeliões campesinas: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados, apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães raivosos”.
A partir de então Lutero passa a ser o grande defensor das oligarquias senhoriais, o arrimo teológico de um feudalismo tardio que manteve a Alemanha em um estado de pobreza e atraso já superado na Espanha e na maior parte do sul. A estagnação dessas oligarquias pela via religiosa impediu a unificação da Alemanha e possibilitou uma sobrevivência anômala do sistema feudal nessa parte da Europa. Quase todo mundo sabe que a servidão na Rússia durou até o século XIX, mas se ignora que na Alemanha também, sobretudo nas regiões protestantes. Um dos primeiros estados a abolir as leis de servidão foi a católica Bavária em 1808, mas, na região oriental, o processo só foi concluído em meados do século. Bem. Isso no que diz respeito a Lutero como libertador social. Vejamos agora Lutero como libertador do pensamento.
Liberdade religiosa e livre exame são dois ícones linguísticos cunhados por Lutero que nunca tiveram um reflexo na realidade, como demonstram primeiro a lógica e depois a história.

Quase uma quarta parte das propriedades do Sacro Império mudaram de mãos. Não houve um latrocínio igual até a Revolução Russa
Supostamente o livre exame significa que o cristão deve se entender diretamente com Deus através dos textos sagrados, sem intermediários onerosos e imorais como “os romanos” (assim Lutero chamava o clero católico, embora fossem tão alemães como ele). Se for assim, há uma consequência imediata: o desaparecimento do clero, por desnecessário. Os fatos demonstram que isto jamais aconteceu, porque Lutero não operou a destruição das igrejas, apenas criou outra. Nem Lutero deixou de ser clérigo, nem o número deles no Sacro Império diminuiu. Simplesmente se formou um novo corpo sacerdotal que também guiou o rebanho aonde deveria ir. Só que agora esse corpo de pastores serve unicamente ao senhor do território (e não a um Papa estrangeiro e a um imperador aliado com o mundo welsch), que é quem lhe dá de comer. Se lhe servir bem, como fez Lutero, viverá bem. Viverá inclusive melhor que com os “romanos”, e assim Lutero recebeu do príncipe da Saxônia, como primeira prova de gratidão, aquele que havia sido o seu antigo convento em Wittenberg. É um belíssimo palácio, onde se instalou com sua nova esposa, seus parentes e seus criados. Tinha nascido no seio de uma família muito humilde e, como monge agostiniano, jamais teria podido se permitir esses luxos. E aqui não tocaremos mais no assunto das críticas ferozes aos luxos do clero “romano”.
A liberdade religiosa é provavelmente o totem linguístico mais afortunado de Martinho Lutero. Foi e é ininterruptamente debatido diante das trevas do catolicismo e da sua nação defensora por princípio, a Espanha. Nem é preciso pensar muito para ver aonde vai parar a liberdade luterana. Se ela tivesse existido alguma vez, mesmo que teoricamente, também os católicos e outras facções protestantes teriam tido direito a ela. Se o cristão é livre para interpretar os textos sagrados, então também a interpretação católica é possível e deve ser aceita. E deveria ter sido respeitada em consonância com a “liberdade religiosa” que Lutero e seus diáconos pregavam. Se a lógica humana não é um engodo desde a sua própria raiz, é porque é assim mesmo. Mas o fato é que o novo clero criou uma versão do cristianismo que foi a única aceitável, e todas as demais foram proscritas e perseguidas; a católica, obviamente, mas também os anabatistas, calvinistas, menonitas etcétera.

Ele é apresentado como o paladino da liberdade religiosa, mas o clero luterano perseguiu as demais versões do cristianismo
Entretanto, século após século, Lutero passeou pela história da Europa imune à verdade, aos fatos e à lógica. Basta o leitor digitar a sequência “Lutero liberdade religiosa” em algum buscador da Internet e verá. Se escrever em inglês e alemão, ficará pasmado. Poderíamos levar um pouco adiante este perverso jogo com as palavras e exasperar os argumentos históricos habitualmente aceitos. Porque aplicar a “liberdade religiosa” em sentido luterano é o que fizeram os Reis Católicos na Espanha, ou seja, que todos os súditos devem ter a mesma religião que seu senhor terreno. Este é o princípio conhecido como cuius regio, eius religio, e deu cobertura legal aos príncipes alemães para obrigarem as populações de seus territórios a se tornarem protestantes, quisessem ou não, e nem sempre graças a sermões persuasivos e pacíficos. Mas é evidente que os Reis Católicos não podem ser os pais da liberdade religiosa, embora tenham feito exatamente o mesmo, porque, como diz Castelar, nós não somos luteranos nem pertencemos à raça germânica.
A esta altura você já estará se perguntando: mas por que os príncipes alemães tinham tanto empenho em se tornarem protestantes? Não é difícil de explicar, mas para isso, como apontamos acima, é preciso sair do terreno religioso, da superioridade moral e das palavras totêmicas, onde todo o protestantismo diligentemente insistiu em situar aquele sangrento conflito. Quase uma quarta parte dos bens imóveis do Sacro Império mudaram de mãos, entre confiscos de propriedades eclesiásticas e de pessoas que abandonaram os territórios protestantes por se negarem a acatar a conversão forçosa. Até a Revolução Russa, não houve latrocínio comparável no Ocidente. Mas, claro, não chamamos assim, porque um tinha uma cobertura teológica, e o outro, uma cobertura ideológica. Definitivamente: uma justificativa moral. Isto naturalmente não será contado ao visitante na magna exposição de Wittenberg.

Foi furiosamente antissemita e prefigura o programa nazista. A Noite dos Cristais foi feita em homenagem aos seus 450 anos
Lutero foi não somente antilatino, mas também furiosamente antissemita. O filósofo alemão Karl Jaspers escreveu que o programa nazista está prefigurado em Martinho Lutero, que dedicou parágrafos horripilantes aos judeus: “Devemos primeiro atear fogo às suas sinagogas e escolas, sepultar e cobrir com lixo o que não incendiarmos, para que nenhum homem volte a ver deles pedra ou cinza”. O primeiro grande pogrom de 1938, a Noite dos Cristais, foi justificado como uma operação piedosa em homenagem a Martinho Lutero por seus 450 anos. Hitler disputou as eleições de 1933 com um soberbo cartaz no qual a imagem de Lutero e a cruz gamada aparecem juntas. As celebrações luteranas dos nazistas eram espetaculares. Com idêntica ferocidade Lutero estimulou e justificou a queima de bruxas, que deixou nada menos do que 25.000 vítimas na Alemanha, segundo Henningsen. Acumulamos tantos milhares, milhões de mortos com este assunto que é melhor nem fazer contas.
Mas não há do que se envergonhar. A Alemanha celebra ostensivamente Martinho Lutero porque se sente bem, porque Lutero é o pai do nacionalismo alemão e de sua Igreja, e tem, portanto… indulgência teológica. Desde a reunificação, e depois com a chegada do euro como elixir mágico, a Alemanha está em um tempo novo e encara às claras uma hegemonia europeia inconteste. A Grã-Bretanha desertou do barco da União, e a França não está em condições de confrontar a indiscutível supremacia germânica. Nem a Espanha nem a Itália parecem perceber muito bem como são necessárias para compensar esta hegemonia e como andam perdidas, sem conseguir superar o complexo de inferioridade que assumiram há séculos. Porque, com tudo isto, chegamos ao grande assunto do qual se trata aqui: o da superioridade moral frente ao suíno mundo não protestante no qual vivemos, a qual foi tão absolutamente assumida que muitos de nossos jornais, como nos tempos de Castelar, se somaram contentes à celebração luterana, tão cegos e tão perdidos hoje no labirinto da sua própria inferioridade como estavam há 100 anos.

*María Elvira Rocha Barea é filóloga e autora de ‘Imperiofobia e Lenda Negra’ (Siruela).