O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 4 de junho de 2024

O FMI aos 80 anos: mais efetivo, exitoso, ou desafiado em seu desempenho? - Gita Bhatt (IMF Bulettin)

 

As IMF Turns 80, Mounting Global Challenges Mean World Must Work Together

illustration of window looking out to a collage of green landscape, cityscape, technology motifs, construction and global connections

(Credit: Original illustration by Daniel Liévano)

By Gita Bhatt

“Prosperity, like peace, is indivisible,” US Treasury Secretary Henry Morgenthau Jr. said as he opened the Bretton Woods conference in 1944. It was, as he put it, an “elementary economic axiom” to help guide the founders of the IMF.

Today, these words are more important than ever. Our biggest challenges—from global warming to demographic and technological transformations—cannot be resolved by countries acting alone.

Yet just when we need greater international cooperation, we get the opposite: more fragmentation, conflict, and global disengagement; more zero-sum thinking that risks leaving our world poorer and less secure.

As we mark the IMF’s 80th anniversary, we ask: How can the Fund continue to adapt to the new realities and the changing needs of our 190 members? This F&D issue seeks to provide answers that are inspiring and thought-provoking.

IMF Managing Director Kristalina Georgieva strikes an optimistic note and calls for “21st century multilateralism”—a framework for international cooperation that’s more open and representative, with a better balance between advanced economies and the voices of emerging market and developing economies.

These voices are represented in this issue by top policymakers such as Barbados’ Prime Minister Mia Mottley, Kenyan President William Ruto, and Pablo García-Silva, a former vice-governor of Chile’s central bank. The economic fortunes of their regions depend, in many ways, on a better multilateral system, and they suggest ways in which the IMF can deliver that for its members.

On that point, proposals abound. Adam Posen reckons that narrowing the IMF’s mandate to its core macroeconomic mission and giving it greater operational independence would make it more evenhanded. Raghuram Rajan makes a related point: delegating more authority to the IMF’s management—coupled with reform to more fairly allocate quotas, the financial contributions paid by each member—could help bring a fragmented world together on critical issues.

quote

Among these is climate change. That brings us to Masood Ahmed’s piece, which considers the ongoing debate over the IMF’s proper role in addressing the climate threat.

The Fund, of course, has long adapted to change. The IMF’s Ceyla Pazarbasioglu shows how much the organization has evolved in its regular reviews of member economies and its regional and global analyses. In a similar vein, Atish Rex Ghosh and Andrew Stanley chart how IMF lending, in particular, has evolved rapidly over the past 30 years. And historian Harold James draws lessons from the past for global financial risk management.

As we move forward, one thing remains clear. “We cannot have a better world without international cooperation,” notes Georgieva. Taking inspiration from John Maynard Keynes, one of the IMF’s founding fathers, she concludes: “Keynes would encourage us to go even further as a global ‘transmission line’ for sound economic policies, financial resources, knowledge—and as the ultimate platform for global economic cooperation.”

We also mark the 60th anniversary of this quarterly magazine, Finance & Development. Just as the Bretton Woods institutions and the global economy have adapted, so too has F&D. Today we are a platform on which thought leaders in many fields and from many countries explain and debate issues central to the global economy.

I want to express my gratitude to all our readers and contributors as we look forward to another 60 years of fresh thinking and inspiring debate.


quarta-feira, 30 de junho de 2021

O aquecimento global está virando uma obsessão na Europa e nos EUA: talvez seja o momento de enfrentar esse touro...

29/06/2021: 

The Washington Post
Today's WorldView
 
 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Uma mensagem de otimismo, junto com as constatações dos desafios - Jamil Chade e Paulo Roberto de Almeida

Sempre que leio um texto que me toca tenho vontade de compartilhá-lo com mais gente, mas sempre acrescento, ou agrego antecipadamente, minhas próprias reflexões. É o que faço a partir de uma mensagem singela de Jamil Chade, sobre as realizações de 2020, malgré tout...


                   Minha lista de notícias positivas de 2020 23/12/2020 04h00   

noticias.uol.com.brJamil Chade - Minha lista de notícias positivas de 2020O ano de 2020 marcará a história da humanidade. Haverá um antes e um depois, tanto para milhões de famílias como em termos políticos e sociais. Para alguns, o ano inaugura o século 21. Para outros, encerra de vez a ideia de que um mundo infinito. Previ 

Paulo Roberto de Almeida

Já alguém reproduziu. Era isso que eu esperava...

Uma visão otimista e realista. Eu estava precisando disso.

2020 foi um ano extraordinário, desses que só existem em um século — desde, por exemplo, a “gripe espanhola”, que era americana de origem — ou em séculos, desde a Peste Negra do século XIV, com consequências não tão avassaladoras, mas igualmente impactantes.
Alguns dirão que foi um annus horribilis, certamente não mirabilis (como 1989, que libertou milhões da opressão totalitária), mas também com muitas realizações admiráveis, como o progresso científico na busca de vacinas, e a cooperação entre cientistas acima das fronteiras, a despeito de líderes populistas execráveis, que se empenharam em sabotar qualquer esforço de cooperação multilateral (os idiotas do antiglobalismo).
Jamil Chade traça aqui o seu panorama ponderado das coisas boas que ainda é possível esperar da Humanidade.
Destaco aqui um trecho, mais representativo, mas recomendo a todos lerem sua bela e profunda mensagem de final de ano, com as avaliações do que avançou, no meio do pandemônio da pandemia:
“Mas se 2020 constata a fragilidade dos sistemas de saúde e revela o fracasso de líderes políticos supostamente fortes, o ano também trouxe notícias positivas. Ficou evidenciado neste ano que nacionalismo, isolacionismo e negacionismo não darão a resposta. O ano deixou claro que todo populismo mata e que existe um limite para o que vendedores de ilusões podem atingir.” [Jamil Chade]
Desde a guerra de Troia vivemos entre amores e ódios, mas no final — e a despeito de tiranos assassinos e psicopatas políticos —, a Humanidade avança, no caminho do progresso, do bem-estar para a maioria, da ciência e da racionalidade. Mas idiotas e psicopatas continuarão existindo, não se iludam. Cabe a nós identificá-los e isolá-los, como bacilos perigosos para o bem estar da população; os americanos conseguiram, ainda que parcialmente, nós, brasileiros, ainda não: temos grandes desafios pela frente nos próximos dois anos.
Malgré tout, um bom 2021 a todos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23/12/2020




quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Os desafios da integração Brasil-Argentina - Editorial Estadão

Nunca, nos últimos 30 anos, a integração Brasil-Argentina foi tão maltratado quanto agora, e isso por exclusiva responsabilidade do presidente brasileiro, que atacou, sem qualquer razão, o presidente argentino, como se a população daqueles país tivesse necessariamente de votar pelo candidato do gosto dele.

Paulo Roberto de Almeida


Os desafios da integração Brasil-Argentina

Os interesses comuns vão além do espectro do Mercosul e das transações econômicas

 

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

18 de outubro de 2020 | 03h00

 

Na relação entre Brasil e Argentina está em jogo muito mais que o destino dos dois países. Juntos eles formam a base do Mercosul e representam cerca de dois terços do território, da população e do PIB do Cone Sul. O Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina e a Argentina é o terceiro maior parceiro do Brasil e o principal destino de suas manufaturas. Em um momento de redefinição da geopolítica global, foi oportuno que o Centro Brasileiro de Relações Internacionais, em parceria com a consultoria argentina Berensztein, tenha reunido diplomatas e pesquisadores em uma Jornada de Diálogos Brasil-Argentina.

Em que pesem as insatisfações e imperfeições na relação entre os dois países, o salto com o Mercosul foi incomparável em relação ao que havia antes. Só na primeira década do século 21 o comércio praticamente quadruplicou. Ainda assim, em comparação à experiência da União Europeia ou do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, há muito a ser feito. De resto, os interesses comuns dos dois países vão além do espectro do Mercosul e das transações econômicas.

No campo geoestratégico, como notou o ex-chanceler Celso Lafer, a coesão entre Brasil e Argentina tem para ambos, talvez mais do que com quaisquer outros países, o potencial de ampliar sua capacidade de atuação internacional e de gestão de riscos nos campos político, militar, energético e científico.

Dada a complexidade dessa rede de interesses, os dois países não podem simplesmente confiar, como disse o professor Hussein Kalout, na “inércia burocrática” parcialmente provida pelo Mercosul, mas precisam suplementá-la por uma atuação política.

O próprio Mercosul é um exemplo. Suas bases foram lançadas no final da década de 80 pelos presidentes Sarney e Alfonsín sob o lema “Juntos para crescer”. Mas sua parceria internacional mais importante, o acordo com a União Europeia, ficou quase duas décadas em “banho-maria” até os presidentes Temer e Macri, percebendo uma oportunidade com o desarranjo transatlântico entre a Europa e os EUA liderados por Trump, acelerarem a costura final que agora é submetida à ratificação dos dois blocos.

Por outro lado, como um contraexemplo, as convicções ideológicas dos presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández ameaçam paralisar, quando não desconstruir, anos de engenharia diplomática.

Justamente neste momento se faz como nunca necessário fortalecer os vínculos entre as classes políticas, empresariais e civis de ambos os países como um antídoto contra as oscilações e idiossincrasias dos governos de turno. Isso implica estimular transações não só econômicas, mas culturais, acadêmicas e científicas.

Motivações não faltam. Uma pauta importante é a defesa e a segurança, em especial no combate transfronteiriço ao crime organizado. Outra é a cooperação tecnológica, particularmente nos campos espacial, energético e digital. A crise pandêmica é uma oportunidade para intensificar os diálogos em prol de uma regulamentação sanitária regional, assim como a crise econômica o é para aumentar as importações e diminuir a dependência dos mercados financeiros internacionais.

Para tanto, é fundamental aprimorar mecanismos de integração já em vigor (como a tarifa externa comum) e criar outros, como uma burocracia do Mercosul mais robusta (a exemplo da União Europeia) ou instituições acadêmicas comuns. Há além de tudo áreas novas a serem exploradas, como a bioeconomia ou os vínculos com a região do pacífico asiático, atualmente a mais dinâmica do mundo do ponto de vista econômico.

O consenso entre os debatedores é de que há, na fórmula de Lafer, um imenso “potencial de sociabilidade”. O desafio é transformar a potência em ato. Vencer esse desafio é mais do que uma oportunidade para o desenvolvimento dos dois países, é quase uma condição sine qua non. Dado o seu entrelaçamento geográfico e histórico, o relacionamento entre ambos tem “a obrigação de dar certo”, como disse o professor Hussein Kalout: “É um matrimônio em que nenhum dos dois tem direito ao divórcio”. 


terça-feira, 19 de novembro de 2019

Depois da "teologia da libertação" a "teologia da prosperidade" - Bruno Reikdal Lima (GGN)

É possível uma Teologia da Libertação evangélica?, por Bruno Reikdal Lima

É possível uma Teologia da Libertação evangélica?, por Bruno Reikdal Lima

Há um desafio posto para movimentos de esquerda na América Latina, sejam eles progressistas ou revolucionários: o que fazer com os evangélicos? Uma religião popular, de massas, espalhada em todo o continente, seja em grandes templos nos centros urbanos, em garagens feitas lugar de culto no fundão das periferias ou mesmo em casebres nos rincões, capaz de mobilizar multidões, garantir coesão social e apoio a projetos políticos de lideranças. Uma potência social transformadora alinhada, hoje, majoritariamente com programas reacionários, conservadores e por vezes fascistas. E mesmo que normalmente não se tenha o hábito de discutir religião em nossos círculos de debates e organizações partidárias ao se planejar um projeto político, reformas ou mesmo ambições revolucionárias, não se tem um programa popular sem o povo; e este é cada vez mais evangélico.
Entre as décadas de 1960 e 1980, um fenômeno religioso sui generis e propriamente latino-americano animou populações do Terceiro Mundo: a Teologia da Libertação. Como Michael Löwy mostra em seu Cristianismo delibertação, lançado em edição revisada pela Expressão Popular Junto, não tem como pensar e compreender os movimentos sociais e revolucionários da América Latina apoiados e aglutinadores de grandes massas, sem levar em conta esse movimento católico de padres e freiras que assumiram uma prática religiosa e uma teoria crítica muito peculiar, conciliando a missão evangelizadora da igreja em abertura à sociedade moderna com a Teoria Marxista da Dependência. A capilaridade da igreja católica por meio da rede de comunidades e fiéis que foi constituída desde os primeiros anos da colonização ibérica em 1492, garantia uma circulação gigantesca de materiais e conteúdos compartilhados entre lideranças e membros, discussões que cruzavam fronteiras, além de por vezes garantias de proteção e apoio por meio de solidariedade do clero nacional e internacional.
Foi um fenômeno, com grandes impactos e também com limites. Mas que por sua atuação mobilizou e tornou possível ligas campesinas, movimentos de lutas por direitos sociais e partidos políticos (no Brasil, o MST e o próprio PT são exemplo disso). Contudo, o continente ainda católico em um espaço de 30 anos se tornou 1/3 evangélico – e com perspectivas de ter sua população majoritariamente convertida a essa “nova” religião nos próximos anos. Outro fenômeno. Que por uma série de razões históricas que podemos destacar em outro momento, apesar de suas raízes periféricas e em disputas sociais, está em completo descompasso com o que fora a experiência da Teologia da Libertação e seus desdobramentos. Na verdade, um movimento que se desenvolve exatamente no oposto: em rejeição ao que apareça como moderno, no sentido de se portar como conservador, e a tudo o que pareça ser “marxista”.
Bem, a pergunta para a qual gostaria que nos voltássemos é: existe alguma viabilidade de termos uma Teologia da Libertação evangélica? Para tal, gostaria de fazer um rápido comparativo histórico e, por fim, indicar alguns desafios e algumas perspectivas sobre essa questão.
A Teologia da Libertação tem sua primeira raiz nas missões católicas europeias dos períodos entre as Grandes Guerras e no pós-Guerra. Jovens padres europeus são desafiados na primeira metade do século XX a modernizar a igreja, conciliando os avanços nas ciências modernas (sejam elas físicas, biológicas ou sociais) com a tradição. Era a abertura para o “mundo moderno”. A igreja católica europeia assumia frente ao processo histórico acelerado que vivia e às pressões sociais de fiéis e das relações políticas e econômicas com os Estados europeus, que a modernidade era inevitável, que traria melhorias na qualidade de vida das pessoas, mas que no processo de modernização, existiriam muitos flagelados, que ainda levariam um tempo para serem incluídos no “novo mundo”. Seu papel como Igreja, portanto, era de acolher os pobres e cuidar dos excluídos durante a modernização, em passo com ela, cumprindo sua missão.
Padres missionários passam a ser formados, então, para cuidar dos temporariamente pobres e excluídos que, no curso da história, seriam inseridos na marcha do progresso. Parte dessa leva de clérigos tem como destino o continente latino-americano. Entretanto, ao chegarem aos rincões dessa terra, encontram uma situação limite: os processos de modernização reproduzem grandes massas de pobres e excluídos, em uma miserabilidade não imaginável nos centros de onde vieram. Percebem com o passar dos anos que a para cuidarem dos pobres e dos excluídos de modo efetivo, não bastaria acolhe-los temporariamente, mas interromper o motor da exclusão: a própria modernização. Essa interpretação fica clara apenas ao final de 1960, quando alguns padres vindos das missões da Ação Católica e alguns discípulos, formados em solo ameríndio, tomam contato com a Teoria da Dependência e conseguem explicitar teoricamente por meio dos instrumentos teóricos dessa teoria científica moderna o que haviam descoberto nas missões: a pobreza e a exclusão não são uma etapa da modernização, mas seu fundamento. Assim em 1968 se tem a Conferência de Medellín, e em 1972 a publicação da primeira sistematização, Teología de la liberación, de Gustavo Gutiérrez.
Desse modo, de um processo de contradição entre a abertura da Igreja nos países centrais e a realidade enfrentada na periferia, a Teologia da Libertação é um efeito não-intencional e “negativo” da modernização da Igreja. Ademais, também se trata de um grupo de padres com escolarização e preparação missiológica formal, que saem de uma condição social privilegiada para situações e contextos de extrema pobreza, que se valem de uma instituição centralizada e forte, com redes já constituídas e longa tradição. Completamente diferente do processo histórico da religião evangélica no continente: que cresce particularmente, em uma primeira onda, com comunidades pentecostais que são periféricas, pequenas, sem poder centralizado e organização rígida. São, na verdade, um movimento carismático, muito mais dependente de uma liderança com seu nome e dons, do que de uma coordenação institucionalizada das ações das comunidades. Cada uma com seu líder e seus projetos, mesmo que partilhem de usos, costumes e ritos.
As igrejas evangélicas chamadas “tradicionais” também crescem, mas precisaram se transformar diante desse novo fenômeno místico. De todo modo, apesar de serem mais organizadas institucionalmente, também giram, em geral, em torno de lideranças fortes, por vezes famílias tradicionais nas comunidades, que formam pequenos grupos tomadores de decisões. Comumente, suas origens não são tão periféricas quanto as pentecostais, mas inicialmente, sempre, nos centros urbanos. Por outro lado, assim como com as igrejas pentecostais, os evangélicos tradicionais passam a vivenciar divisões e rachas internos, entre lideranças ou grupos de lideranças, fazendo nascer igrejas que procuram ser “independentes” de convenções e outros tipos de coordenações institucionais, todavia, sempre em torno de uma nova liderança. Ou seja: não há centralidade de Igreja, como se vivencia com a católica. São grupos que se unem em torno de temas, rituais comuns ou mesmo interesses, mas dispersos e relativamente autônomos uns dos outros.
As igrejas evangélicas estão espalhadas e contam com uma capilaridade imensa. Mas fragmentada. Talvez aqui encontremos um primeiro desafio: como coordenar uma ação contra-hegemônica em um grupo que é, desde sua origem, internamente rachado e já aguardando a próxima divisão? A Teologia da Libertação contava com uma instituição fortalecida, com mecanismos explícitos, hierarquia bem definida e proximidade entre os atores, que regularmente acabavam tendo que se reunir de alguma maneira. As igrejas evangélicas não tem nem padrão comum na formação de suas lideranças – aliás, por vezes, sem qualquer formação. Temos mais um ponto: a disparidade de acesso a educação formal, recursos formativos ou mesmo algum padrão de preparação de lideranças entre pastores e pastoras (nas comunidades em que existam mulheres com esse cargo). Sem centralidade institucional, sem organização na formação das lideranças – que operam, em geral, por sua capacidade de exercer carisma, ou seja, uma relação ainda mais orgânica.
Isto posto, comparando essas trajetórias, dos muitos apontamentos possíveis, gostaria de destacar dois desafios e duas perspectivas:
O primeiro desafio é como coordenar e aglutinar pessoas que dentro das comunidades evangélicas pretendam se posicionar ou já estejam posicionadas em outra chave que não a reacionária e conservadora atual. A primeira saída pensada poderia ser a de abrir uma nova instituição, para que essas pessoas se reúnam. Contudo, seria a repetição de mais um padrão comum da formação de comunidades evangélicas, em mais uma subdivisão que não necessariamente ganha visibilidade ou tenha a capacidade de aglutinar distintos indivíduos de tradições e comunidades distintas de lugares sociais e territoriais completamente diferentes. Uma nova igreja acrescentaria apenas mais uma pequena comunidade evangélica no meio de outras;
O segundo desafio é pensar como superar a relação carismática de dependência de uma liderança. Não que não se deva ter lideranças. Pelo contrário, não existiu nenhum processo histórico transformador ou revolucionário que não tenha se firmado na figura de uma ou duas grandes lideranças. A questão é que a individualização do processo repete mais um padrão da formação institucional fragmentária. Líderes que se pretendam lançar novas comunidades as fazem não sob uma coordenação institucional e minimamente sistematizada de um coletivo, mas no dom de trabalhar, no caso hipotético, questões progressistas que atendam um novo nicho de fieis. Como sistematizar um conteúdo comum com lideranças fragmentadas?
Com isso quero destacar que existiam estruturas mínimas para que a Teologia da Libertação produzisse efeitos e conteúdos que não se reduziam a uma ou outra liderança, uma ou outra comunidade, mas a um coletivo e organização institucional que não apagou as individualidades, e sim as posicionou a partir de uma perspectiva e projeto comum: a própria Teologia da Libertação.
Todavia, há uma brecha para uma produção teológica vanguardista no meio evangélico. Ao passo que a falta de centralidade impede maior atuação coordenada sob um projeto político comum, ela revela uma maior fragilidade do controle dessas instituições com respeito à flutuação de seus membros: eles optam por “mudar de igreja”. Isso indica, na verdade, que o sujeito tem maior autonomia para procurar uma comunidade que atenda melhor suas necessidades ou demandas em determinado tempo. Em torno de parte dessas necessidades que os rachas internos se instauram e aglutinam novos grupos religiosos, atendendo demandas que a anterior não cumpria. Há, na verdade, circulação de membros, que alternam as comunidades que frequentam de tempos em tempos. No hiato entre o que a comunidade oferece e o papel que ela não tem cumprido, existe uma possibilidade de denúncia interna, de crítica, que pode dispor de uma necessidade que exija mudanças religiosas.
A segunda brecha é a origem popular e periférica das comunidades evangélicas, em especial as pentecostais. Diferentemente da Igreja católica que na Teologia da Libertação teve de enfrentar sua opulência e os privilégios do clero para se aproximar da realidade do povo latino-americano, as igrejas evangélicas nascem na realidade popular e se mantém, nas periferias e rincões do país, organizada e coordenadas por pessoas da classe trabalhadora, muitas vezes empobrecidas, batalhadoras comuns. É uma organização propriamente popular, que se encontra regularmente, produtora de laços sociais e muitas vezes o único “serviço” público próximo às casas das pessoas socialmente excluídas – capaz de garantir algum apoio financeiro, mantimentos e encaminhamentos para algum auxílio social, mesmo que voluntário e amador.
De todo modo, pensar a história de uma experiência social exitosa permite que procuremos elementos que nos auxiliem em nossas ações, tomadas de decisão e organizações sociais. A Teologia da Libertação, no caso, disputou um território conservador, constituidor do próprio status quo de seu tempo, e foi capaz de produzir um fenômeno social com efeitos duradouros. As igrejas evangélicas também são territórios de disputa, e se temos o intuito de desenvolver um projeto popular, temos que estar com o povo e partir dele. E ele é cada vez mais evangélico.

sábado, 12 de maio de 2012

O futuro do Mercosul, segundo um de seus protagonistas - Samuel Pinheiro Guimaraes

Poucas pessoas, no Brasil, tiveram tanto envolvimento na integração Brasil-Argentina quanto o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário-Geral dos governos Lula de 2003 a 2009, quando se aposentou por idade do Itamaraty e passou à condição (breve) de Secretário de Assuntos Estratégicos e, depois, no final do segundo governo, antes mesmo da posse da atual presidente, Alto Representante do Mercosul, uma espécie de comissário político do bloco.
Eu disse "envolvimento" com o processo bilateral Brasil-Argentina, e não exatamente Mercosul, pois é o primeiro esquema que lhe interessa prioritariamente, já que não ocupava mais funções decisórias quando o Mercosul foi criado NA FORMA em que foi criado.
Se dependesse dele, o Mercosul NUNCA teria sido criado dessa forma -- digamos "neoliberal" -- que foi criado, e que ele condena, por preferir os antigos esquemas da integração Brasil-Argentina, que ele ajudou a escrever pessoalmente, ou até foi o redator principal dos principais instrumentos -- protocolos setoriais -- que marcaram aquele processo, preferido por ele, já que o Mercosul, pelo Tratado de Assunção, sempre foi considerado um "desvio" do processo (ainda que a expressão, e a condenação, não sejam feitas de modo explícito).
Quaisquer que sejam, em todo caso, as posições, principistas ou formais, do referido personagem político e diplomático em relação ao Mercosul, se trata, como reconhecido, de figura influente no processo, passado e atual, e sua visão é considerada como sendo uma espécie de história oficial desse processo de integração.
Esta introdução para dizer que o texto abaixo, do qual só vim a tomar conhecimento em 11 de maio de 2012, representa, por assim dizer, uma espécie de síntese intelectual do que esse personagem influente entende como representativa da história passado, da situação presente e dos desafios atuais e futuros para o desenvolvimento desse processo de integração, do bloco do Mercosul, como um todo, que ele se empenha em ampliar, para incorporar toda a América do Sul (o que parece impossível de ocorrer sem desvirtuar os fundamentos do acordo comercial).
Provavelmente teria muitas considerações a fazer a cada um dos parágrafos abaixo transcritos, o que exigiria, talvez, um trabalho de iguais (ou maiores) dimensões, impossível de fazer aqui, neste momento.
Portanto, vai o texto transcrito, sem que isto represente endosso meu aos argumentos do personagem em questão (ao contrário, tenho sérias restrições, nos planos factual, analítico e interpretativo).
Paulo Roberto de Almeida 


Samuel Pinheiro Guimarães
Alto Representante do Mercosul
10 de abril de 2012
revista Austral, Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais
(Porto Alegre, UFRGS, Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS, vol. 1, n. 1, jan.-jun. 2012, p. 13-22)

1.  A análise da situação do Mercosul, de seus objetivos e das estratégias para alcançá-los, é de especial relevância no momento em que se vem de comemorar os vinte anos da assinatura, em 26 de março de 1991, do Tratado de Assunção, em plena e extraordinária crise e transformação política  e econômica mundial.
2.  Em 1991, era hegemônico o pensamento neoliberal, em um cenário econômico de grande otimismo. Era a Nova Ordem Mundial, anunciada pelo presidente G. H. Bush, a era da globalização, do fim das fronteiras, do fim da História, do progresso ilimitado para todos os Estados e para todos os indivíduos. Era o mundo unipolar, pacífico e próspero.
3.  Esse pensamento neoliberal, que veio a ser articulado no Consenso de Washington e impulsionado pelas políticas dos países desenvolvidos nos organismos e negociações internacionais e em suas relações bilaterais com os Estados da América Latina, viria a se refletir, em decorrência dessas pressões externas e até por convicção das elites dirigentes, nas políticas domésticas, econômicas e sociais, dos quatro Estados do Mercosul.
4.  Apesar das naturais diferenças entre as situações em que se encontravam Estados e sociedades naquele momento e do grau de radicalismo com que foram implementadas, essas políticas todas tinham como principal objetivo reduzir o Estado a seu mínimo, através de programas de privatização, de desregulamentação e de abertura externa para bens e capitais, muitas vezes adotados de forma unilateral, sem negociação, como “contribuição voluntária” ao progresso de globalização.
5.  Em 1991, a situação política internacional estava marcada pela desintegração da União Soviética, pelo fim dos regimes socialistas da Europa Oriental, pelo desprestígio do socialismo como sistema político e econômico, pela expansão (voluntária ou “estimulada”) de regimes democráticos, pelo fim aparente dos conflitos regionais,  pela “ressurreição” das Nações Unidas e, finalmente, pela hegemonia dos Estados Unidos.
6.  Em 2012, a economia mundial se caracteriza pelo aumento da distância entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, pela expansão da globalização e das mega empresas multinacionais e, de outro lado, passa pela sua mais profunda crise desde 1929, a qual se originou em uma tendência à superprodução, à extensão excessiva do crédito e, finalmente, em um enorme movimento especulativo, desencadeado por bancos, fundos de investimento, auditoras e corretoras, permitido pela globalização e pela profunda desregulamentação nacional e internacional dos sistemas financeiros. A crise eclodiu nos Estados Unidos e se espraiou pelos sistemas financeiros dos demais países desenvolvidos, enquanto se atribuiu aos países emergentes, de forma indistinta, a capacidade de manter algum crescimento positivo da economia mundial. Enquanto os países ocidentais desenvolvidos se encontram mergulhados em suas crises, que já afetam a unidade européia, a China surge como a segunda maior potência econômica do mundo.
7.  Em 2012, o panorama político-militar internacional se caracteriza pelo desenrolar de guerras em países islâmicos, com a expansão dos poderes da OTAN para muito além de sua área de competência; pela luta contra um inimigo difuso, o terrorismo; pela eclosão, imprevista, de movimentos populares contra ditaduras árabes tradicionalmente apoiadas, e às vezes até financiadas, pelas potências ocidentais; pela intervenção das potências ocidentais, a pretexto humanitário, nos assuntos internos de Estados mais fracos; pelo ressurgimento da xenofobia e do racismo, em especial na Europa, com reflexos sobre imigrantes sul-americanos; pela crescente sofisticação e automação das forças militares das grandes potências e pelo seu esforço em desarmar, inclusive em termos convencionais, os Estados mais fracos e já desarmados.
8.  Este cenário político-militar estará sendo cada vez mais transformado pela expansão geográfica da presença política, e no futuro militar, da China, a partir de sua crescente influência econômica, em sua qualidade de maior economia,  maior potência exportadora e importadora, segundo maior destino de investimentos internacionais, de sua crescente capacidade científica e tecnológica, de sua situação de maior detentora de reservas internacionais e de maior investidora em títulos do Tesouro americano. Apesar de todas as dificuldades e desafios a trajetória econômica e política chinesa tende a não sofrer radicais alterações devido às características de seu sistema político colegiado e de ascensão gradual dos membros do Partido Comunista  às posições de alta responsabilidade no Bureau Político do Comitê Central.
9.  A emergência da China como a maior potência econômica do mundo, e possivelmente, em breve, como a segunda maior potência política e militar, tem extraordinárias consequências para a América do Sul, mas muito especialmente para os Estados do  Mercosul.
10.   Em especial para o Mercosul, na medida em que certos governos da América do Sul tomaram a decisão, de grande   importância para seus países e para o futuro político e econômico da   América do Sul, que foi a de se inserir, inicialmente, no sistema econômico norte-americano, através da assinatura de amplos acordos econômicos, chamados impropriamente “de livre comércio”, e, em seguida, na economia mundial, através da negociação de  acordos, ai sim de livre comércio,  com a União Européia e com muitos outros países, entre eles a China.
11.   Esses países sul-americanos optaram por uma política de inserção irrestrita na economia global e abdicaram da possibilidade de utilizar  diversos instrumentos de promoção do desenvolvimento,  em especial importantes no caso de países subdesenvolvidos, com populações expressivas, com alto grau de urbanização, com grandes disparidades sociais e econômicas. E em consequência, abdicaram de uma participação mais intensa em um processo de integração regional sul-americano pela impossibilidade de participar de uma união aduaneira regional e de políticas regionais de natureza industrial que permitam o fortalecimento das empresas produtivas instaladas em seus territórios. Assim, a retórica presente em todos os encontros acadêmicos e políticos sobre a aspiração, a possibilidade e os benefícios de uma futura integração sul-americana deve ser vista à luz desta realidade atual.
12.   O impacto da China sobre a economia dos países do Mercosul, que já é  grande, se tornará extraordinário.
13.   A economia chinesa vem crescendo a 10% ao ano, em média, nos últimos trinta anos, desafiando os recorrentes prognósticos negativos dos especialistas. Sua economia moderna é integrada por cerca de 300 milhões de indivíduos, com um déficit crescente de alimentos para uma população que melhora e diversifica seu padrão alimentar, sem suficientes terras aráveis e água para a irrigação em grande escala, (ainda que haja a possibilidade de dessalinização da água do mar e de desenvolvimento de tecnologias agrícolas adequadas às suas regiões inóspitas), com uma demanda voraz e um déficit de minérios muito significativo, e com um déficit energético crescente, apesar dos ambiciosos programas de expansão de seus sistemas eletro-nuclear e eólico. A incorporação gradual de mais de um bilhão de chineses, hoje no campo e em atividades de baixa produtividade,  ao setor moderno da economia tornará a China o maior mercado do mundo, superior ao mercado americano e europeu somados.
14.   Apesar de a demanda chinesa por minérios, por alimentos e por energia poder ser suprida por outras regiões, em especial a África, a América do Sul e os países do Mercosul estão em condições especiais para atendê-la, como, aliás, já vem fazendo com suas exportações de soja e de minério de ferro, entre outros produtos.
15.   A demanda chinesa por minérios, petróleo e produtos agrícolas contribui, de forma expressiva, para o aumento dos preços mundiais desses produtos, para um impulso inflacionário em todos os países, para a geração de grandes receitas cambiais nos países do Mercosul,  e para a consequente valorização de suas moedas nacionais, afetadas pelo influxo simultâneo do excesso de moeda ofertada pelos Estados Unidos, através de sua política de “monetary easing”.
16.   Por outro lado, a China, que se constituiu, inicialmente, em uma enorme plataforma de produção e exportação das megaempresas multinacionais, passou, através de suas políticas comerciais,  industriais e de transferência de tecnologia, a criar e desenvolver suas empresas de capital chinês, capazes de participar do mercado mundial, nos mais diversos setores, com produtos dos mais simples aos mais complexos, com custos de produção e preços de exportação altamente competitivos. 
17.   A própria situação da China e sua estratégia de desenvolvimento afetará da forma mais profunda as perspectivas de desenvolvimento de cada país do Mercosul, colocará em cheque suas políticas comerciais, industriais e tecnológicas, pautadas pelas normas da OMC, negociadas e adotadas em um contexto internacional diverso, e o próprio futuro do Mercosul, como esquema de desenvolvimento econômico, de transformação produtiva e de desenvolvimento social da região.
18.   De um lado, a demanda chinesa por produtos primários e, de outro lado, sua oferta de produtos industriais a baixo preço, diante da ortodoxia de política econômica de certos países (centrada em uma excessiva preocupação com o combate à inflação e com o equilíbrio fiscal) e de seu baixo dinamismo tecnológico poderá levar, se não vierem a ser formuladas e implementadas firmes e permanentes políticas industriais de agregação de valor aos produtos primários em forte demanda,  a uma  especialização na produção primária para exportação, e à conquista pela China dos mercados de produtos industriais dos sócios do Mercosul e dos demais países da América do Sul .
19.   Esta situação tenderia a se agravar com a superação da crise econômica nos países altamente industrializados, que provocou a redução temporária de sua demanda por insumos primários. Com a retomada de seu crescimento industrial e de renda, esses países passarão a exercer uma pressão adicional ainda maior sobre os mercados de produtos primários, agrícolas e minerais, com alta possibilidade de aprofundar o processo de especialização regressiva dos países da América do Sul e em especial do Mercosul, que inclui as duas maiores economias industriais da região.
20.   Em sociedades cada vez mais urbanizadas e com populações expressivas, sob o impacto permanente da propaganda agressiva de estímulo ao consumo, essa especialização regressiva levaria a uma  oferta de empregos industriais nessas sociedades insuficiente para atender à crescente demanda decorrente do crescimento demográfico e da necessidade de absorver os estoques de mão de obra secularmente subempregados e desqualificados. Os efeitos sociais dessa insuficiente geração de empregos urbanos seriam de extrema gravidade.
21.   Esse cenário afetaria profundamente as perspectivas e as possibilidades de integração mais profunda entre os Estados do Mercosul na medida em que esta integração depende da vinculação cada vez maior entre suas economias (e consequente vinculação política) o que somente é possível pelo intercâmbio de produtos industriais pois, no setor  agrícola, além da menor gama de produtos típica desse  setor, as produções dos quatro países são, em larga medida, concorrentes. Suas economias ficariam gradual ou até mesmo rapidamente cada vez mais isoladas umas das outras e o processo de integração mais profunda ficaria definitivamente abalado e reduzido a esforços de cooperação em setores importantes, porém limitados. 

O desafio das assimetrias
22.   As assimetrias entre os Estados do Mercosul, que são notáveis em  território e população, aspectos o primeiro fixo e o segundo  de lenta transformação, mas que tem, todavia,  grande  importância econômica, vem crescendo rapidamente em termos de grau de diversificação produtiva, de dinamismo tecnológico e de dimensão dos respectivos parques produtivos.
23.   A dinâmica dessas assimetrias, deixada ao sabor das forças de mercado, em uma  união aduaneira e em uma área de livre comércio, na inexistência de esquemas corretivos, leva a um grau de desenvolvimento cada vez mais distinto e, portanto, a fricções, a frustrações e a ameaças permanentes à coesão do Mercosul, com todas as  consequências para a capacidade, tanto dos Estados maiores mas em especial dos menores, de defender e de promover seus interesses  em um cenário internacional cada vez mais caracterizado, apesar da crise, pela expansão de grandes blocos de países, nas Américas, na Europa e na Ásia. 
24.   A redução das assimetrias é essencial para que as economias e as  sociedades possam se beneficiar de forma equitativa do processo de integração.  As assimetrias que, em termos  concretos, correspondem a grandes diferenças de infra-estrutura física e  social, de capacitação da mão de obra e de dimensão das empresas, fazem com que os investimentos privados não possam se distribuir de forma mais harmônica dentro do espaço comum, que a geração e a qualidade de empregos seja desigual e que, portanto, seja desigual a geração de renda e o bem estar nas diversas sociedades.
25.   Outros esquemas de integração, como a União Européia, desde sua origem em 1958, se preocuparam com a existência e os efeitos de  diferentes níveis de desenvolvimento entre os Estados que deles participavam e com a necessidade de promover o desenvolvimento mais acelerado dos países mais atrasados para tornar mais equilibradas as oportunidades dentro do espaço econômico comum. Lançaram mão de vários programas, basicamente de transferência de recursos, com o objetivo de nivelar a economia dos Estados que foram se agregando à União Européia e que se encontravam em diferentes estágios de desenvolvimento. O processo de reunificação das duas Alemanhas foi e é um exemplo de grande transferência de recursos que chega a atingir trilhões de dolares com o objetivo de nivelar duas economias e sociedades que se integram.
26.   Devido à doutrina neoliberal e a seus objetivos implícitos, que presidiram à criação do Mercosul, inicialmente julgou-se e afirmou-se que as dimensões assimétricas dos Estados não afetariam o desenvolvimento de cada um deles  e que a simples integração comercial automática,  sem levar em conta de forma adequada essas assimetrias, permitiria a cada um deles usufruir, de forma igual ou semelhante, dos benefícios decorrentes do processo de integração.
27.   Vinte anos depois do Tratado de Assunção há uma aceitação generalizada de todos os Governos da importância e das consequências de toda ordem das assimetrias entre os Estados e da necessidade de enfrentá-las com programas eficazes, cujo montante de recursos até agora alocados são absolutamente insuficientes para a dimensão da tarefa.
28.   Algumas afirmações básicas podem ser feitas sobre a possibilidade de êxito no enfrentamento do desafio de redução das assimetrias, indispensável para a coesão e o futuro econômico e político do Mercosul:
a. sem a compreensão generosa (e, aliás, de seu próprio interesse, econômico e político) dos Estados maiores, que deve se refletir em suas contribuições financeiras para os diversos programas, em especial para o FOCEM (Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul) pode-se continuar a enfatizar retoricamente a importância das assimetrias mas elas não se reduzirão;
b. sem a construção da infra-estrutura de energia e de transportes nos Estados menores as assimetrias não se reduzirão e
c. nenhum programa ou política comunitária em nenhuma das diversas áreas de integração poderá ir adiante sem a a criação de instrumentos financeiros assimétricos de financiamento desses  programas e políticas.

Ampliação geográfica do Mercosul
29.   Em um cenário internacional caracterizado pela ampliação de grandes blocos de países fortalecidos, a despeito da crise do euro, a capacidade do Mercosul de defender e de promover os interesses de seus Estados depende de seu fortalecimento econômico e político.
30.   Do ponto de vista econômico e social, o fortalecimento do Mercosul  resultará do desenvolvimento produtivo de cada uma das quatro economias nacionais, de sua  integração física e comercial, da redução significativa das disparidades em cada uma das sociedades, de seu dinamismo tecnológico, da redução das vulnerabilidades externas de cada um de seus membros.
31.   Do ponto de vista político, o fortalecimento do Mercosul como bloco depende de um lado de uma coordenação cada vez mais estreita de seus membros e, de outro lado, do número de Estados soberanos que o integram, Estados que, por esta razão, tem interesse em coordenar suas ações, como membros de um bloco, nas negociações e foros internacionais e diante de crises e iniciativas de terceiros Estados, em especial daqueles mais poderosos.
32.   A ampliação geográfica do Mercosul significa a adesão de novos membros. Por causa de decisões que tomaram no passado, não podem, no momento atual, fazer parte do Mercosul Estados que assinaram acordos de livre comércio com outros Estados ou blocos, tais  como a União Européia, e que, por esta razão, aplicam tarifa zero às importações provenientes daqueles Estados ou blocos e que, assim, não poderiam adotar e aplicar a Tarifa Externa Comum do Mercosul.
33.   A ampliação geográfica do Mercosul teve início com o processo de adesão da Venezuela. A participação integral da Venezuela no Mercosul é da maior importância política e econômica, dada a riqueza de recursos minerais e energéticos do país e de sua decisão de desenvolver industrialmente sua economia. Depende ela agora somente de decisão do Senado Paraguaio, já tendo sido aprovada pela Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela.
34.   Além da Venezuela, poderiam, em princípio, ingressar no Mercosul a Bolívia, o Equador, o Suriname e a Guiana. A possibilidade de Estados extra-regionais, isto é, situados fora da América do Sul,  ingressarem no Mercosul é reduzida.
35.   É de todo o interesse dos Estados do Mercosul criar as condições as mais favoráveis possíveis ao ingresso da Bolívia, do Equador, do Suriname e da Guiana como membros plenos no Mercosul e de fortalecer as relações com todos os demais países da América do Sul que, aliás, já são Estados associados, para que, no futuro, caso desejem ingressar no Mercosul, este ingresso seja mais fácil e eficaz, política e economicamente.

O Mercosul como mecanismo de desenvolvimento regional  
36.   À época da criação do Mercosul, existia a convicção nos  governos  dos Presidentes Menem, Collor, Rodrigues e Lacalle, de que a execução das políticas preconizadas pelo Consenso de Washington, isto é,  de desregulamentação, de privatização,  de abertura ao capital estrangeiro e de remoção das barreiras ao comércio, seriam suficientes para promover o desenvolvimento econômico e social.
37.   O Mercosul foi criado em 1991 para ser um esquema de liberalização comercial, como uma etapa de um processo “virtuoso” de eliminação de barreiras ao comércio e de plena inserção na economia internacional, e não para ser um organismo de promoção do desenvolvimento econômico nem dos Estados isolados nem em conjunto.
38.   A implementação do Tratado de Assunção, ao não levar em conta de forma adequada as diferenças entre os países e o impacto econômico e político dos deslocamentos econômicos causados pela redução de tarifas, levou a todo tipo de esquemas “provisórios”, tais como o acordo automotivo e as exceções à TEC, periodicamente renovadas, para bens da capital e de tecnologia de informação, e os acordos, muitas vezes informais, de organização do comércio  em certos setores empresariais.
39.   A transformação do Mercosul de uma simples união aduaneira e área de livre comércio imperfeitas em um esquema de desenvolvimento regional equilibrado e harmonioso dos quatro Estados, o que significa a eliminação das assimetrias e a gradual construção de uma legislação “comum”, exigiria:
a) o reconhecimento enérgico das assimetrias, cuja realidade se verificaria pela constituição de fundos comuns assimétricos, com recursos adequados, em cada área de integração, para financiar projetos, inclusive de harmonização gradual da legislação;
b)   a garantia de condições para permitir políticas de promoção do desenvolvimento industrial de cada Estado;
c) a celebração de acordos em setores industriais relevantes, semelhantes ao acordo automotivo;
d)   a criação de mecanismos que impeçam a “desorganização dos mercados” nacionais e, ao mesmo tempo, evitem o desvio de comércio em favor de países não-membros do Mercosul;
e) o acesso das empresas de capital nacional, sediadas nos quatro Estados, aos organismos nacionais de financiamento de qualquer um dos quatro Estados do Mercosul;
f) a harmonização da legislação dos quatro Estados em todas as áreas de integração.
40.   A crise econômica internacional, a estratégia e as políticas de desenvolvimento implementadas pela China, os programas implementados pelos países industrializados para enfrentar a crise e a verdadeira “suspensão”, na prática, das normas incluídas nos diversos acordos da OMC, “negociados” à época da hegemonia do pensamento neo liberal, criam um ambiente propício à adoção deste elenco de medidas.
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