Ministros do governo atual, e o próprio presidente, como se sabe, pensam, e agem, como se a história tivesse começado em 2003, e que antes -- antes da História, claro, numa espécie de A.L. e D.L. -- tudo era um desastre, um horror, e que fomos "salvos" por um governo providencial, que tudo fez e tudo providenciou: a estabilização, as políticas sociais, a defesa da soberania nacional, enfim, que se não fosse por este governo, ainda estaríamos num país de botocudos, submissos ao FMI, comendo o pão que o diabo amassou.
Esse tipo de discurso mistificador pode até passar aqui, pois a imprensa raramente contesta, em matérias analíticas ou de opinião, o festival de bobagens que ela mesmo serve, em suas páginas, como matérias informativas, ou descritivas, a partir das declarações desses personagens que nunca antes neste país abusaram tanto da capacidade de enganar os incautos.
Mas essas coisas colam menos em ambientes mais bem informados e menos sujeitos à propaganda governamental, como revela este despacho de Davos...
Brasil falha na defesa da democracia, diz economista
Rolf Kuntz
O Estado de S. Paulo, 30/01/2010
Maior economia da América Latina, o Brasil tem falhado em usar seu peso para defender a democracia na região, segundo o economista Ricardo Hausmann, professor de Harvard, ex-economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ex-ministro do Planejamento da Venezuela (99-93). Moderador dos debates num almoço organizado para discussão das perspectivas brasileiras, Hausmann proporcionou com sua cobrança a grande surpresa do encontro. O Brasil está na moda e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro premiado pelo Fórum Econômico Mundial com o título de Estadista Global.
O almoço, marcado para depois da premiação, poderia ter sido um perfeito evento promocional, se o mestre de cerimônias se limitasse a levantar a bola para as autoridades brasileiras chutarem. Ele cumpriu esse papel no começo da reunião. Deu as deixas para o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, falarem sobre o desempenho brasileiro durante a crise internacional e sobre as mudanças ocorridas no País nos últimos sete anos. Nem tudo saiu barato: pressionado por uma pergunta de Hausmann, o ministro da Fazenda elogiou o trabalho do governo anterior no controle da inflação e na elaboração da Lei de Responsabilidade Fiscal.
"O Brasil", disse Mantega, "teve um bom presidente antes de Lula." Mas acrescentou, como era previsível, uma lista de realizações a partir de 2003, como a elevação do superávit primário, a expansão econômica mais veloz e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Não faltou o confronto: a economia cresceu em média 2,5% no período de Fernando Henrique Cardoso e 4,2% na era Lula.
O almoço poderia ter continuado nesse ritmo se Hausmann não resolvesse enveredar pela política. Quando a Venezuela fechou a fronteira com a Colômbia, disse Hausmann, o Brasil mandou uma missão empresarial para ocupar o mercado antes suprido pelos colombianos. Quando a Colômbia anunciou um acordo militar com os EUA, Lula convocou uma reunião da Unasul.
É uma questão de pragmatismo, respondeu o empresário Luiz Furlan, ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do governo Lula. Elogiou o presidente por seu apoio à exportação - "agiu como um homem de negócios" - e acabou chegando ao ponto mais delicado: "A Venezuela compra do Brasil US$ 5 bilhões por ano. Que fazer?"
"O Brasil é signatário de uma Carta que o obriga a defender a democracia", observou Hausmann. O Brasil, disse ele depois ao Estado, poderia ter feito um trabalho mais importante em defesa da democracia, na região, se a sua ação internacional fosse baseada em princípios e não no pragmatismo descrito pelo ex-ministro Furlan. O governo Lula, segundo o economista, deu à Colômbia um motivo para considerar o Brasil não confiável e uma razão a mais para se aproximar dos EUA.
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
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3 comentários:
Paulo,
Tu concordarias em dizer que há uma confusão - deliberada ou não - entre os termos "pragmatismo" e "oportunismo"? Caraterizando-se como pragmatismo a ação racional voltada para a consecução de objetivos "concretos" previamente definidos e consoantes com o interesse nacional (aqui tido não com misticismo, mas se levando em conta as necessidades para o desenvolvimento e a prosperidade da nação, de maneira objetiva e sem se cegar ante a pluralidade dos interesses presentes na sociedade e das contrariedades entre eles). E de "oportunismo" aquilo que não se sustenta pelo mesmo rigor, dizendo mais respeito aos interesses de certos agentes, carregando um forte componente subjetivo, expressão da vontade e da arbitrariedade de alguns ...
Tomando-se o planejamento de ações militares - talvez dos melhores exemplos de que disponho de atividade pragmática - certos princípios mostraram-se, ao longo do tempo, cruciais para o bom andamento das missões. Sejam eles a unidade de comando, de concentração (massa) e de dispersão, entre outros empregados conforme o caso em questão. Assim, a ação resultante não de princípios testados no decurso do tempo e confrontados com o atual estado de coisas, não me parece ser pragmatismo, mas de uma série de subjetivismos, de interpretações sem correspondência com a realidade...
Um grande abraço!
Prezado Dr. P.R.A.,
Como entender os móbiles da "Three Stooge`s Diplomacy" de estro acaciano dos "Conselheiros" da Casa ao melhor estilo "carpet baggers"!
O Brasil acaba de criar Embaixadas em lugares dos mais inusitados (e.g. Yangon, Myanmar!).
O Cardeal Jules Mazarin nos legou importantes conselhos em seu "Bréviaire des politiciens"; dentre os quais selecionamos os seguintes excertos:
A SABEDORIA
"Na maior parte das circunstâncias, covém ficar calado, escutar os conselhos de outrem e meditá-los longamente. Não superestimes o alcance nem de tuas palavras, nem de tuas ações, e não te encarregues de assuntos que não te ofereçam alguma utilidade, para o momento ou para mais tarde. Tampouco te imiscuas nos assuntos de outrem.(...)"
"(...) Observa de que lado pende a fortuna.Ou de que lado ela vai provavelmente pender.(...)"
AGIR COM PRUDÊNCIA
"(...) Jamais espere que alguém interprete favoravelmente teus atos ou tuas palavras. Diz-te claramente que ninguém no mundo é capaz disso.(...)"
"(...) Não tomes abertamente nenhuma iniciativa que não possas justificar de imediato caso te exigirem, pois te condenariam sem aguardar explicações. No mundo em que vivemos, até mesmos os atos mais indiscutivelmente virtuosos são sençurados; com mais razão ainda, os que se afiguram discutíveis. (...)"
"(...) É importante que tuas janelas se abram para o interior e que as vidraças sejam escuras, a fim de que ninguém possa ver se uma janela está aberta ou fechada.(...)"
NÃO CORRER ATRÁS DAS SATISFAÇÕES DO AMOR-PRÓPRIO
"Quando te ocupas de assuntos importantes com consequências desicivas, deixa aos outros as satisfações fúteis como a gloríola e os aplausos.(...)"
"(...) Deixa aos outros a glória e a fama. Interessate apenas pela realidade do poder.(...)"
Sds
Vale!
Caro Anônimo,
A frase de Lord Acton -- de que o poder corrompe, e que o poder absoluto corrompe absolutamente -- deve ser lida não apenas como um sinal de exacerbaçnao da volúpio do poder, stricto sensu, mas também como uma espécie de embotamento dos sentidos. As pessoas perdem o sentido da realidade, perdem a percepção do que é razoável, e passam a viver num círculo fechado em que apenas cortesãos elogiam os atos dos chefes e os levam às alturas.
Em uma palavra, eles se tornam alienados. Isso é conhecido.
Pior ainda quando ao mais baixo oportunismo se agrega uma total erosão moral...
Paulo Roberto de Almeida
31.01.2010
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