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sábado, 8 de março de 2025

O Itamaraty na ditadura militar - Ismara Izepe de Souza, Bruno Fabricio Alcebino da Silva (Brasil De Fato)

 O Itamaraty na ditadura militar

 

Por ISMARA IZEPE DE SOUZA & BRUNO FABRICIO ALCEBINO DA SILVA*


Brasil De Fato, 8/03/2025

https://www.brasildefato.com.br/colunista/observatorio-de-politica-externa/2025/03/07/entre-a-resistencia-e-a-conivencia-o-itamaraty-e-a-ditadura-militar/


A ideia de que o Itamaraty é uma instituição pouco permeável às interações com o universo político interno, é insustentável diante das evidências

 

A ascensão da extrema direita no Brasil, nos últimos anos, veio acompanhada de recorrentes tentativas de alterar a narrativa sobre a ditadura militar (1964-1985). Se no período imediato à redemocratização do país, na década de 1980, se evidenciou junto à sociedade brasileira a herança negativa deixada pelos militares, a partir do governo de Jair Bolsonaro, junto às constantes ameaças à democracia, se acentuaram as investidas para promover uma imagem positiva daquele período.

As polêmicas que envolvem o inegável sucesso de Ainda estou aqui se constituem em um exemplo eloquente disso. O filme retrata, sob a perspectiva de Eunice Paiva, o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, morto pelo regime autoritário. No dia 2 de março, o longa-metragem fez história ao ganhar o Oscar de melhor filme internacional, fato inédito para o Brasil. Entre efusivas comemorações do campo progressista e da direita moderada e a produção de fake news pela extrema direita, o fato é que a memória sobre esse período continua sendo alvo de disputas.

A política externa parece ser exceção quando se trata das distintas narrativas sobre o regime autoritário, pois existe uma percepção quase generalizada sobre os seus acertos neste período. Nos 21 anos de governos militares, o perfil da inserção internacional brasileira se alterou bastante, não sendo possível falar de uma “política externa do regime militar”. Afinal, o alinhamento automático aos EUA promovido pelo governo de Castelo Branco (1964-1967) foi paulatinamente sendo substituído por uma política externa de teor desenvolvimentista, culminando no pragmatismo responsável do governo de Ernesto Geisel (1974-1979), que guarda, em seu caráter autônomo e altivo, similaridades com a política externa dos primeiros dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011).

O Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty, tem características específicas junto à administração pública brasileira. O espírito de corpo que marca a sociabilidade entre os diplomatas fez com que a instituição preservasse uma memória positiva acerca de sua atuação durante os governos militares, veiculando a ideia de que o Ministério das Relações Exteriores esteve alheio aos aspectos mais abjetos da ditadura. A ideia veiculada e corroborada por estudiosos, diplomatas e imprensa foi a de que o Itamaraty continuou a pautar suas ações pelos interesses do desenvolvimento nacional, sem se deixar influenciar pelo que ocorria na política doméstica.

No entanto, na última década, pesquisas realizadas no âmbito acadêmico e àquelas que resultaram no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade demonstraram que o suposto distanciamento do Itamaraty da política doméstica e particularmente do aparato repressivo não existiu. Se a postura oficial foi a de alheamento ao que se passava no âmbito interno, nos bastidores o Itamaraty participou da engrenagem repressiva, auxiliando na vigilância e repressão de brasileiros exilados.

Mas também existiu o outro lado da moeda, ou seja, diplomatas indesejados e perseguidos pelo regime ditatorial, seja por não apresentarem uma postura condizente com o perfil ideal do diplomata, ou por ameaçarem os esquemas de corrupção envolvendo militares e o alto escalão do governo, como denuncia o caso de José Pinheiro Jobim.

Entre a conivência e o apoio

Inspirada nas experiências do Chile e Argentina, a Comissão Nacional da Verdade foi instituída no Brasil durante o governo da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) com o objetivo de investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura militar (1964-1985), sendo a própria ex-presidenta uma sobrevivente que foi presa e torturada durante o regime. Entre suas contribuições mais relevantes, a Comissão Nacional da Verdade dedicou um capítulo específico aos crimes cometidos no exterior com o apoio do Ministério das Relações Exteriores, demonstrando o envolvimento direto do Itamaraty na repressão transnacional e na perseguição de opositores políticos fora do Brasil.

relatório final, divulgado em 2014, fornece provas documentais e testemunhais fundamentais para o reconhecimento institucional dessas violações, reforçando a necessidade de preservação da memória histórica e responsabilização dos agentes envolvidos.

O Centro de Informações do Exterior (CIEX), criado em 1966, foi um dos principais mecanismos de espionagem e repressão utilizados pela ditadura militar brasileira contra opositores do regime que haviam deixado o país devido à perseguição política. Vinculado ao Ministério das Relações Exteriores e ao Serviço Nacional de Informações (SNI), o CIEX foi um centro clandestino que desempenhou papel crucial no monitoramento de exilados políticos brasileiros e na cooperação repressiva com outros regimes autoritários do Cone Sul, especialmente no âmbito da Operação Condor.

Pesquisadores brasileiros da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de São Paulo (USP), junto ao Instituto Norueguês de Relações Internacionais, realizaram pesquisas que resultaram em um banco de dados com cerca de 8 mil documentos que demonstram que o Itamaraty monitorou mais de 17 mil brasileiros no exterior. Apesar da diplomacia brasileira tradicionalmente se apresentar como neutra diante das políticas de segurança interna, esses documentos revelam que o Itamaraty estava diretamente envolvido na repressão, fornecendo informações detalhadas sobre atividades de exilados, dificultando a emissão de passaportes e concedendo dados estratégicos a outros serviços de inteligência (PENNA FILHO, 2009, p. 44-45).

O CIEX não operava de forma isolada. Ele era parte da Comunidade de Informações do Ministério das Relações Exteriores (CI/MRE), interligado a outros órgãos repressivos do Estado brasileiro, como o CIE (Centro de Informações do Exército), o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 179). Esses centros trocavam dados sobre a localização, atividades e contatos de exilados brasileiros na Europa e na América Latina.

A existência do órgão de espionagem evidencia que o regime militar possuía um aparato repressivo sistemático e estruturado, com o Itamaraty como peça-chave na perseguição política dentro e fora do país. Segundo Balbino (2023, p. 11), o Ministério das Relações Exteriores não apenas colaborou com o regime militar, mas integrou-se ao aparato repressivo, fornecendo suporte logístico e burocrático para ações de vigilância e repressão.

Dentre os alvos do CIEX estavam figuras conhecidas, como o ex-presidente deposto João Goulart e o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. O caso de João Goulart é um dos mais emblemáticos. Documentos apontam que ele foi monitorado de perto pelo CIEX e por serviços de inteligência de países vizinhos, como Uruguai e Argentina. A preocupação do regime autoritário era que o ex-presidente estivesse articulando um retorno político ao Brasil, o que levou à sua constante vigilância e ao cerceamento de suas movimentações (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 192).

Leonel Brizola, por sua vez, tornou-se alvo prioritário da espionagem brasileira no exterior, especialmente no Uruguai. Registros indicam que agentes brasileiros acompanharam suas atividades, enviando relatórios detalhados sobre suas reuniões políticas e discursos públicos (PENNA FILHO, 2009).

Outro aspecto relevante foi a repressão aos exilados de menor expressão pública, mas igualmente considerados “subversivos” pelo regime. Documentos do CIEX revelam que estudantes, artistas e sindicalistas também eram alvo de monitoramento constante. Muitos tiveram passaportes negados e foram impedidos de retornar ao Brasil, enquanto outros foram presos e entregues às autoridades brasileiras em operações conjuntas com os regimes militares da região (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 194).

O CIEX também desempenhou um papel fundamental na chamada Operação Condor, a rede de cooperação repressiva entre as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), que permitia a troca de informações sobre exilados e facilitava sequestros e assassinatos (PENNA FILHO, 2009, p. 48-49). Segundo documentos analisados pela Comissão Nacional da Verdade, o Brasil participou ativamente desse esquema, fornecendo dados sobre refugiados políticos e auxiliando na captura de opositores nos países vizinhos (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 220).

Além disso, o apoio do Brasil ao golpe no Chile, em 1973, foi articulado por meio do Itamaraty e outros órgãos do aparato repressivo. O embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto desempenhou um papel crucial nesse processo, fornecendo informações estratégicas e apoio logístico aos militares brasileiros que planejavam a deposição de Salvador Allende. Segundo Roberto Simon (2021), o Brasil, sob o comando do presidente militar Emílio Garrastazu Médici, não apenas auxiliou os conspiradores chilenos nos meses que antecederam o golpe, mas também contribuiu ativamente para consolidar o regime ditatorial de Augusto Pinochet.

Assim, o CIEX representou um dos pilares da repressão política no exterior, demonstrando que a ditadura militar brasileira não limitou sua ação ao território nacional, mas expandiu sua vigilância e perseguição a nível internacional. Ao colaborar ativamente com outros regimes autoritários e ao vigiar ininterruptamente seus opositores, o CIEX contribuiu para a perpetuação de um sistema de terror que marcou a história recente do Brasil. A análise de seus arquivos e de suas atividades é essencial para compreender a extensão da repressão política no período e reforça a importância de preservar a memória histórica para evitar que tais episódios se repitam. A ditadura não é “página virada”.

Diplomatas indesejáveis

Existiu o outro lado da moeda: a repressão sofrida por muitos diplomatas que não se adequaram ao comportamento considerado ideal pela ditadura. Menor em termos quantitativos se comparada a outros ministérios, a depuração também ocorreu no MRE. Logo após o golpe militar, os ministérios foram autorizados a iniciar investigações internas para identificar suspeição ideológica e afastar os servidores críticos ao novo regime.

Em 1964, o Itamaraty obteve especificidade ao poder criar uma comissão própria, sendo a Comissão de Investigação Sumária (CIS) conduzida por Vasco Leitão da Cunha, diplomata escolhido por Castelo Branco para chefiar o MRE. A CIS resultou em 97 diplomatas investigados e 20 exonerados (CARMO, 2018, p. 60).

Em 1968, no auge da repressão política interna, uma nova comissão foi formada, incidindo sobre condutas consideradas desviantes e recomendando a exoneração dos homossexuais. Segundo Gessica Carmo, houve a obrigatoriedade de exames médicos para atestar hábitos e ações íntimas, colocando esses diplomatas em condições vexatórias (2018, p. 65). Outros foram afastados por serem boêmios demais e por terem comportamentos avaliados como inadequados. O caso mais conhecido talvez seja o de Vinicius de Moraes, que foi afastado e posteriormente integrado aos quadros do Ministério da Educação e Cultura.

Cabem também algumas considerações sobre o diplomata José Pinheiro Jobim, vítima do regime militar por esboçar a intenção de registrar um esquema de corrupção relacionado à construção da Usina de Itaipu. No início da década de 1960, José Pinheiro Jobim foi designado pelo presidente João Goulart para conversar com autoridades paraguaias sobre o aproveitamento hidrelétrico do rio Paraná. O projeto saiu do papel durante os governos militares, mas os valores empenhados na suntuosa obra foram absurdamente maiores do que inicialmente se previa.

Em 1979, já aposentado, José Pinheiro Jobim afirmou junto a um círculo pequeno de conhecidos que estava preparando um livro sobre as irregularidades na construção da hidrelétrica binacional. Dias depois seu corpo foi encontrado e mesmo com indícios da farsa montada, a versão oficial foi a de suicídio. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, ao reavivar o caso, reconheceu que o regime foi responsável pela tortura e a morte de José Pinheiro Jobim. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em 2018, determinou que sua certidão de óbito fosse retificada, reconhecendo a morte violenta causada pelo Estado brasileiro.

O Ministério das Relações Exteriores entre a política de governo e a de Estado

Servidores de carreira do Ministério das Relações Exteriores contribuíram com o aparato repressivo através de uma estrutura burocrática de proporções grandiosas, no entanto, muitos deles foram vítimas das arbitrariedades cometidas pela ditadura militar. Os casos aqui apresentados evidenciam que as explicações polarizadas, que apontam toda a diplomacia brasileira genericamente como vítima ou como partícipe do aparato repressivo, não dão conta de uma realidade complexa e multifacetada.

Sendo assim, não se trata de demonizar ou enaltecer de forma exagerada o Ministério das Relações Exteriores. Como ocorre em qualquer instituição, os diplomatas são suscetíveis a assimilar interesses provenientes de espectros políticos e ideológicos distintos, havendo certamente entre eles os que ficaram satisfeitos em contribuir com a repressão e os que se indignaram e se arriscaram a combater as arbitrariedades cometidas pelos militares.

 O Itamaraty é reconhecido internacionalmente por formar excelentes quadros que já demonstraram capacidade de representar com maestria os interesses brasileiros. Nesse sentido, a instituição tem seus méritos na seta do tempo, ao preservar algumas tradições, como a defesa do multilateralismo e da solução pacífica de controvérsias. Mas junto às ações próprias de uma política de Estado caminham decisões condizentes com as prioridades dos governos de plantão, o que comprova que a política externa é também uma política de governo. A ideia de que o Itamaraty é uma instituição pouco permeável às interações com o universo político interno, é insustentável diante das evidências.

 

*Ismara Izepe de Souza é professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

*Bruno Fabricio Alcebino da Silva é graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

 

Referências:


BALBINO, Camila Estefani de Andrade Simphrônio. O Itamaraty e suas conexões com o aparato repressivo durante a Ditadura Militar (1964-1985). Trabalho de Conclusão de Curso (Relações Internacionais) – Universidade Federal de São Paulo, Osasco, 2023.

CARMO, Gessica Fernanda do. Os soldados de terno? Ruptura, crise e reestruturação da diplomacia brasileira (1964-1969). Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, SP, 2018.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final. Brasília: CNV, 2014.

PENNA FILHO, Pio. O Itamaraty nos anos de chumbo – o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a repressão no Cone Sul (1966-1979). Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 52, núm. 2, 2009, p. 43-62.

SIMON, Roberto. O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

sábado, 23 de novembro de 2024

Os novos acordos fechados entre Brasil e China - Mauro Ramos (Brasil de Fato)

 O que apontam alguns dos novos acordos fechados entre Brasil e China

Analistas coincidem na importância da elevação do patamar da relação, mas consideram que há espaço para mais cooperação

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
 

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta - Ricardo Seitenfus (Brasil de Fato)

O Haiti é um Estado falido, em todos os planos. Acontece...

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
  

Após meses de tergiversações o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por treze votos favoráveis e duas abstenções (China e Rússia), no início desta semana, uma Resolução autorizando o envio de uma missão multinacional de apoio à segurança no Haiti.

Apesar do ruído da grande imprensa internacional, dos políticos e dos diplomatas, a decisão não constitui novidade alguma pois o Haiti se tornou, para sua infelicidade, desde o início dos anos 1990, um dos principais clientes do Conselho de Segurança. Desde então nada menos de dez « Missões » da ONU foram enviadas ao país. Com distintos propósitos e instrumentos de ação.

A existência de um « rosário missioneiro » como no caso haitiano, indica e tende a comprovar que o aporte destas missões foi nulo. Mal pensadas e conduzidas, seus reiterados fracassos levam à necessidade de retornar periodicamente ao Caribe. Exatamente o que estáo correndo atualmente.

O teor da Resolução indica que a missão reunirá componentes policial e militar de países voluntários. Seu financiamento idem. Se trata de uma original e pouco comum missão « não-onusiana ». Embora autorizada pelo Conselho de Segurança, a responsabilidade será de um grupo de países, ainda indefinidos, capitaneados pelo Quênia.

Paralelamente há indicação sobre a necessidade de um acerto político entre os haitianos. Para tanto o Conselho de Segurança confia nos esforços diplomáticos e de mediação da Comunidade do Caribe  (Caricom), da qual o Haiti é membro.

Sempre é aconselhável observar e analisar o conteúdo, o contexto e a semântica das Resoluções do Conselho de Segurança. Todavia um texto é o que ele diz e também o que ele cala. Neste sentido há silêncios que falam por si. O mais importante deles é a subjacente crítica à ação da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah) (2004-2017) cujo braço armado foi permanentemente comandado por generais brasileiros.os sucessivos governos brasileiros, o fato é que sob nosso comando, militares à serviço da Minustah e sob a bandeira das Nações Unidas, levaram ao Haiti, pela primeira vez em outubro de 2010, o vírus da cólera que infectou 800 mil pessoas e vitimou 30 mil, sobretudo camponeses da região rizícola de Artibonite, na região central do Haiti. Ainda hoje, a epidemia provoca mortes.

A máquina política, diplomática, burocrática, militar e jurídica das Nações Unidas tentou acobertar o escândalo. A presente Resolução do Conselho de Segurança ao aprovar uma missão « nao-onusiana » condena a todos, inclusive o poderoso Departamento de Operações de Paz.

Um segundo silêncio diz respeito à Organização dos Estados Americanos. Sequer mencionada, a OEA paga tributo à atuação pífia de seu Secretário Geral e aos equívocos decorrentes de seu alinhamento automático à posições equivocadas e frontalmente contrárias ao seu protagonismo em crises anteriores.

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir : fazer transitar seus propósitos para o terreno dos fatos. As recorrentes crises haitianas devem servir de alerta. Não é por acaso que o país recebeu a alcunha de « cemitério de projetos ». Considero que a antiga « Pérola das Antilhas » como o país das ilusões e inocências perdidas. Aconselho à todos cautela, prudência e caldo de galinha.

Ricardo Seitenfus foi Representante da OEA no Haiti (2009-2011) e autor de Haiti: dilemas e fracassos
internacionais
 e A ONU e epidemia de cólera no Haiti.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Governo brasileiro pode estar relacionado com invasão paramilitar na Venezuela - Brasil de Fato

 
TENTATIVA DE GOLPE
Governo brasileiro pode estar relacionado com invasão paramilitar na Venezuela
O Brasil de Fato elaborou uma linha do tempo com ações do governo brasileiro que coincidem com planos golpistas
Michele de Mello
Brasil de Fato | Blumenau (SC) |
 21 de Maio de 2020 às 13:47

Brasil de Fato, 21/05/2020

O contrato assinado pelo deputado venezuelano Juan Guaidó com a empresa paramilitar estadunidense Silvercorp para tentar tomar o poder na Venezuela também tinha a previsão de cooperação de autoridades do Brasil. Segundo o documento, os militares dos Estados Unidos envolvidos na Operação Gedeón teriam livre acesso ao território brasileiro em caso de confronto com forças hostis ao novo regime, que seria presidido por Guaidó.
texto detalha que o espaço aéreo, terrestre e marítimo da Colômbia e do Brasil poderiam ser invadidos até mesmo sem consentimento prévio das autoridades de ambos países. 
Questionado pelo Brasil de Fato sobre a relação do governo brasileiro com a operação, o Ministério de Relações Exteriores brasileiro não respondeu até a publicação desta reportagem.

Trecho do contrato entre Guaidó e Silvercorp em que o Brasil é citado / Captura de Tela
No entanto, a citação do Brasil no contrato não é a única evidência que sugere a relação do Estado brasileiro com os planos golpistas da oposição venezuelana. 
Outubro de 2018
Segundo a reportagem da BrasilWire, representantes da Silvercorp teriam visitado o Brasil durante as eleições presidenciais de 2018. O indício seriam publicações nas redes sociais Twitter e Instagram dez dias antes do segundo turno.
Os agentes da Silvercorp teriam feito parte da segurança pessoal do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Setembro de 2019
Nos dias 6 e 7 de setembro do ano passado, o departamento federal de investigação dos Estados Unidos, FBI, ofereceu um treinamento de combate à corrupção e suborno transnacional com agentes do Ministério Público Federal (MPF) e da Corregedoria Geral da União, como revelou reportagem da Agência Pública
As articulações entre o FBI e organismos de segurança brasileiros foram fortalecidas a partir da gestão de Sérgio Moro como ministro de Justiça e Segurança Pública. 
Em seguida, já no dia 11 de setembro de 2019, representantes do Brasil, da Colômbia e dos Estados Unidos junto a outros países do chamado Grupo de Lima (Paraguai, Honduras, Costa Rica, Guatemala, Chile, entre outros) aprovaram a ativação de mecanismos do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) contra a Venezuela.
Ao total foram 12 países do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) que pactuaram sancionar ex e atuais funcionários do governo do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, supostamente envolvidos em crimes de lavagem de dinheiro e narcotráfico. Além de compartilhar informações de inteligência militar e financeira, e também criar uma rede de cooperação jurídica para combater supostos crimes internacionais do gabinete do governo bolivariano.
Outubro de 2019
Pouco mais de um mês depois da ativação do TIAR, no dia 16 de outubro, foi assinado o contrato entre o deputado venezuelano Juan Guaidó, seus assessores JJ Rendón e Sergio Vergara com Jordan Goudreau, CEO da Silvercorp.
O documento teria validade de 495 dias, podendo sofrer um adendo de até 90 dias, e garantia o pagamento de US$ 212 milhões aos militares contratados para, entre outras coisas, sequestrar o presidente Nicolás Maduro e instaurar um governo comandando por uma "Junta Patriótica Restauradora".
Janeiro de 2020
No dia 20 de janeiro deste ano, foi celebrada na Colômbia a III Conferência Ministerial Hemisférica de Luta contra o Terrorismo, com a participação do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e de Guaidó, que havia iniciado uma nova viagem internacional em busca de apoio para seus planos desestabilizadores. 
No encontro, também estiveram representantes da Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, República Dominicana, Panamá, Paraguai, Peru, Santa Lúcia, Israel, México, Uruguai, Venezuela, o Comitê das Nações Unidas contra o Terrorismo e da Interpol.
Desde 2015, durante a gestão do presidente Barack Obama, a Venezuela entrou na lista dos Estados Unidos de países que contribuem com o terrorismo, junto com Cuba, Irã, Iraque, entre outras nações que sofrem sanções econômicas impostas pela Casa Branca.
Nessa Conferência, novamente Guaidó e Pompeo acusaram o governo de Nicolás Maduro de patrocinar grupos considerados terroristas, como a organização política libanesa Hezbollah e a guerrilha Exército de Liberação Nacional (ELN), da Colômbia.
Na declaração final, foi feito um acordo de redobrar esforços para combater as fontes de financiamento do que chamam de terrorismo, a partir da lavagem de dinheiro. Também renovaram o compromisso de fortalecer o controle das fronteiras, formando equipes conjuntas inclusive de investigação e inteligência financeira, a fim de localizar, rastrear, recuperar e apreender os bens de organizações consideradas criminosas em suas jurisdições.

Militares brasileiros participaram como observadores em exercícios conjuntos com forças armadas da Colômbia e dos EUA / Reprodução
Já uma semana depois, no dia 27 de janeiro, a 120 km de Bogotá, na base militar estadunidense de Tolemaida, os exércitos colombiano e estadunidense realizaram exercícios militares conjuntos. As forças armadas brasileiras também estiveram presentes como observadores.
As práticas simulavam uma operação de reforço aéreo entre paraquedistas estadunidenses e militares colombianos.
Não por acaso, uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro foi buscar ceder a Base Aeroespacial de Alcântara, no Maranhão, para o Pentágono.
Março de 2020
Desde o início de 2019, Bolsonaro passou a reconhecer o autoproclamado presidente Juan Guaidó como chefe de Estado legítimo da Venezuela. No entanto, a ruptura completa das relações diplomáticas foi anunciada no dia 5 de março de 2020, com o encerramento da missão diplomática brasileira em território venezuelano.
Já no dia 7 de março, o presidente Jair Bolsonaro viajou aos Estados Unidos cumprindo uma agenda que incluiu uma reunião com o chefe da Casa Branca, Donald Trump.
No regresso, além de trazer na sua comitiva 23 pessoas infectadas com a covid-19, Bolsonaro voltou a animar manifestações para o dia 15 de março, que exigiam o fechamento do Congresso Nacional. 
No dia 26 de março, o procurador geral dos Estados Unidos William Barr acusou o presidente Nicolás Maduro e outros 13 cidadãos venezuelanos por supostos crimes de narcotráfico, lavagem de dinheiro e tráfico de armas. A denúncia foi apresentada ao Departamento de Justiça estadunidense e incluiu a oferta de uma recompensa de US$ 10 milhões pela captura do ex-militar venezuelano, Clíver Alcalá Cordones; o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Diosdado Cabello; Hugo Carvajal, ex-diretor de inteligência da Fanb; e Tarek El Aisami, vice-presidente de Economia da Venezuela.     
Também foi março o mês previsto para o início da Operação Gedeón, de acordo com os documentos confiscados pela Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb) e pelo depoimento de um dos mentores do plano, o ex-capitão Cliver Alcalá Cordones.
No entanto, o plano teve de ser adiado para maio, depois que um veículo com 26 fuzis AR-15 – de fabricação estadunidense e sem número de série –, 28 visores noturnos e silenciadores foram encontrados em uma caminhonete na rodovia que liga Barranquilha à Santa Marta, na Colômbia, cerca de 100 km da fronteira com a Venezuela.
Até o momento, 67 pessoas já foram detidas pelas autoridades venezuelanas por participar da conspiração. O Ministério Público do país emitiu acusações formais a 22 pessoas envolvidas, entre elas, dois cidadãos estadunidenses, Airan Berry e Luke Denman, contratados pela Silvercorp e denunciados por terrorismo, conspiração, associação criminosa e tráfico ilícito de armas de guerra.
Além disso, o governo bolivariano denunciou a invasão paramilitar numa sessão do Conselho de Segurança das Nações Unidas, no último dia 20 de maio.
Edição: Vivian Fernandes