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segunda-feira, 12 de março de 2018

Hipolito da Costa: judeus perseguidos na Alemanha, 200 anos atras - Correio Braziliense


Transcrevo, abaixo, matéria do primeiro jornalista brasileiro, ou braziliense, como ele gostava de dizer, Hipólito da Costa, em seu Correio Braziliense de 1819, a propósito de perseguições a judeus na Alemanha, quase 200 anos atrás. Ele se refere a uma possível atração de judeus ao Brasil, então Reino Unido ao de Portugal, mas não deixa de registrar a existência de "prejuízos", ou seja, preconceitos, por parte dos ministros de D. João.
Aqui o trecho selecionado, mais abaixo, a matéria completa:

O Governo do Brasil está ainda muito atrasado em princípios de política, para que julguemos, que ele saiba tirar partido desta perseguição dos Judeus na Alemanha. Mas suponhamos, que El Rey podia vencer os prejuízos [preconceitos] de seus Conselheiros, e da parte ignorante do Clero, e que, por meio de boas leis abria no Brasil um asilo seguro a todos os perseguidos Judeus da Alemanha. A emigração, não só importante em número, levaria ao Brasil um imenso capital, que seria bastante para fazer aparecer as produções daquele fértil país; e que precisa de novos capitais, para os avanços de fundos necessários em limpar as terras, lavrar as minas, abrir as comunicações, etc.
Quaisquer, pois, que fossem as causas destas perseguições dos Judeus, a Alemanha perderia um imenso fundo de riquezas, que se transferiria ao Brasil. Mas disto, pela razão que demos acima, não tem a Alemanha, que se temer.

Paulo Roberto de Almeida

CORREIO BRAZILIENSE
ou
ARMAZÉM LITERÁRIO
Julho – Dezembro, 1819

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil):
Costa, Hipólito José da
Correio Braziliense, ou, Armazém literário, vol. XXIII/Hipólito
José da Costa. – São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado:
Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002
“Edição fac-similar”

Vol. XXIII, julho-dezembro de 1819, p. 314-317

Perseguição Contra os Judeus

As noticias de Alemanha continuam a informar-nos dos mais vergonhosos atos de opressão contra os Judeus. Em Warteburg, Darmstadt, Hamburgo, Frankfort, Hanau, Bamberg, Bayreuth e Dusseldorff, tem a populaça cometido os maiores excessos contra os Judeus residentes naqueles lugares. Como estes ataques foram quase simultâneos, conjecturou-se que eram execução de algum plano concertado.
Conjecturando as causas de tão inesperada perseguição, custa a atirar com alguma razão suficiente de tal fenômeno? Será ódio contra a religião dos             Judeus, diferente da maioridade dos habitantes dos países, aonde eles residem? Será isto efeito das agitações políticas, que existem na Alemanha? Será efeito da rivalidade do Comércio?
Quanto à diferença de religião, as perseguições por esta causa são diametralmente opostas às ideias tolerantes do nosso século, como tem acontecido em todos os tempos e em todos os países, em que as luzes tem efeito esconder o fanatismo. Os poucos religiosos furiosos, que ainda existem, e que desejariam propagar os seus princípios pelo ferro e fogo, como os Mahometanos, ou como a Inquisição, ano se atrevem a propor hoje em dia tais planos, que os faria objeto do desprezo público. Em uma palavra, estas perseguições da Alemanha, nem se quer mencionam a diferença de religião, como causa acidental.
Quanto a causas políticas, os Judeus, há muitos séculos, vivem nos diferentes Estados da Europa, como estrangeiros, a quem se não permite exercício algum ativo dos direitos de cidadão, nem empregos públicos; sendo meramente protegidos pelas leis, como pessoas de uma residência temporária: com esta mera faculdade de existir, se tem eles contentado, satisfeitos de que os deixem seguir, na obscuridade, as práticas de sua religião. As mais atrozes e injustas perseguições, não tem oposto senão a paciência e o retiro. Não é logo possível atribuir agora estes seus novos males, a inimizades políticas, em que não consta, que eles tenham a menor parte.
Resta, pois, a rivalidade mercantil, a que alguns escritores imputam os atuais sofrimentos dos Judeus, supondo que as suas riquezas e a sua indústria tem excitado a inveja dos mais negociantes Alemães. Não se pode negar a possibilidade desta hipótese; mas nem ainda nela achamos razão cabal, para explicar o mal em toda a sua extensão.
As riquezas dos Judeus, assim como as de todo o outro capitalista, que não tem outra pátria senão aquela em que reside deve redundar em beneficio do país, dando emprego a muitos habitantes, e servindo de produzir novas riquezas. Logo o ódio contra as riquezas dos Judeus, seria dirigido contra o beneficio, que delas resulta a toda a Sociedade: um ou outro negociante individual poderia entreter este ódio contra o rico negociante Judeu e seu vizinho, pelo espirito de rivalidade; mas isto não se podia estender a toda a populaça; nem abranger tantas cidades, desde a margem do Rheno até Copenhaguen, como são aquelas por que esta perseguição se tem difundido.
Suponhamos que os Judeus Alemães se retiravam, com seus haveres, daqueles países em que são perseguidos: nesse caso, não só a população sofreria, mas a falta de seus capitães traria a ruina a muitas fábricas, e até a mesma agricultura; como bem palpavelmente se experimentou em Portugal, que com a expulsão dos Judeus, perdeu os seus cabadaes, e estes foram enriquecer a Holanda, tornando-se ali rivais e ao depois inimigos dos capitais e comércio de Portugal. Daqui concluímos, que a generalidade desta perseguição se não explica pelo ódio contra as riquezas dos Judeus, pois elas são de grande beneficio aos países, em que eles residem.
Quaisquer, pois, que fossem as causas destas perseguições dos Judeus, a Alemanha perderia um imenso fundo de riquezas, que se transferiria ao Brasil. Mas disto, pela razão que demos acima, não tem a Alemanha, que se temer.
Voltando, porém, as causas da perseguição, que parecem tão geral na Alemanha, parece que a proteção dos respectivos Governos não tem sido tão eficaz como devera ser.
Sobre esta matéria achamos um curioso artigo, datado de Carlsbad aos 24 de Agosto; em que se diz, que os Ministros nas conferências, que se faziam naquela cidade, tomaram em consideração a perseguição contra os Judeus; e que notificaram aos respectivos Governos, que deviam obrigar os magistrados a prestar eficaz proteção aos Judeus, como todo o Governo é obrigado a fazer, aos que vivem em seus territórios, sem distinção de classes. Pretende mais este artigo, que os Ministros intimaram, que se aqueles Governos não castigassem os Magistrados, pela falta de proteção dos Judeus, se fariam acessórios e correos dos mesmos crimes; e que seria preciso que os seus territórios fossem ocupados militarmente por tropas da Áustria ou da Prússia.
Assim parece, que estas perseguições populares contra os Judeus, vem cheias de consequências, que não aparecem à primeira vista: pois no mesmo artigo se insinua, que será preciso ceder os territórios, aonde tais ultragens se tem cometido, a algum Estado vizinho, que tenha a vontade e o poder de coibir tais excessos.


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Diario da viagem para a Filladelfia - Hipolito da Costa





Diário da minha viagem para Filadélfia: Hipólito da Costa; edição crítica: Tânia Dias
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016, 260 p.; ISBN: 978-85-7004-339-9;
Índice: 

Permito-me recordar um artigo (tenho outros) que fiz sobre o nosso grande viajante e primeiro jornalista independente:
Intérpretes do Brasil: ensaios de cultura e identidade , 2004
Relação de Publicados n. 479. Relação de Trabalhos n. 1243.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Um Tocqueville avant la lettre: Hipolito da Costa em Filadelfia - Paulo Roberto de Almeida

Acaba de ser publicada mais uma edição do famoso (mas durante muito tempo desconhecido) diário da viagem do jovem Hipólito da Costa aos Estados Unidos, no final do século 18, para uma missão de prospecção econômica que também poderia ser chamada, na linguagem atual, de "espionagem industrial".
Tendo lido esse diário em sua primeiríssima edição, a da Academia Brasileira de Letras de 1955, preparei uma análise, muitos anos atrás, que reproduzo abaixo, para conhecimento dos interessados.
Existe uma edição mais recente, anotada, esta aqui (mas ainda não tive acesso):


Diário da minha viagem para Filadélfia, de Hipólito da Costa
Edição crítica: Tânia Dias
(Fundação Casa de Rui Barbosa, Editora UFMG, Edições Sesc SP e Ubu Editora, 2016)

Meu texto foi publicado originalmente na revista eletrônica Achegas, onde ainda se encontra, neste link: http://www.achegas.net/numero/nove/paulo_almeida_09.htm
Paulo Roberto de Almeida

UM TOCQUEVILLE AVANT LA LETTRE:
Hipólito da Costa como founding father do americanismo

Paulo Roberto de Almeida *

O francês Alexis de Tocqueville é geralmente considerado como um dos founding fathers da moderna ciência política, assim como dessa vertente especial das ciências sociais (que usualmente adota o método comparativo, mesmo se de forma inconsciente), voltada para o estudo das formações nacionais, no seu caso o “americanismo”. Com efeito, seu De la démocratie en Amérique tornou-se um clássico praticamente desde a publicação de sua primeira parte, poucos anos depois de sua viagem exploratória ao novo mundo, em 1831-32, a ponto de suscitar as maiores expectativas quanto à divulgação da segunda parte, vários anos depois. Esse trabalho sobre os fundamentos sociais da igualdade na jovem nação americana granjeou-lhe uma reputação de primeira grandeza, não apenas em sua França natal (onde ele logo galgou os degraus da Academia), mas igualmente nos países anglo-saxônicos.
Poucos sabem, no entanto, que uma geração antes de Tocqueville, Hipólito José da Costa, muito antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar seu Correio Braziliense, viajou pela costa leste dos Estados Unidos, tendo deixado um pouco conhecido Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799, encontrado inédito na Biblioteca de Évora por Alceu Amoroso Lima e publicado pela Academia Brasileira de Letras em 1955. Não se tratou, propriamente, de um estudo de especialista, uma vez que o jovem (24 anos) português nascido na Colônia do Sacramento, criado no território do Rio Grande do Sul e formado em Coimbra, viajou a serviço do cortesão dom Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, futuro ministro dos negócios estrangeiros, tendo produzido um relatório específico e detalhado sobre suas observações agrícolas, industriais e botânicas nos Estados Unidos.
Tratou-se, contudo, da primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria de fato. Não destinado à publicação, mas sumamente adaptado ao formato do ensaismo bem informado, seu Diário poderia ser comparado, sem nenhum deslustro, a uma espécie de Baedecker de alto vôo, um ensaio intelectual que ainda hoje surpreende pela pertinência e acuidade das observações sociológicas, bem como pela atualidade dos seus julgamentos certeiros, a começar pelos hábitos e características da população, pela proliferação de sua “indústria religiosa” e por uma certa “rusticidade” de sua classe dirigente.
Recém formado em direito por Coimbra em meados de 1798, Hipólito José da Costa recebe do conde de Linhares, menos de três meses depois, o encargo de fazer no território da América do Norte (Estados Unidos e México) o que se poderia designar, na moderna linguagem dos negócios, de comissão de prospecção econômica. Grande estadista português da transição para o século XIX, dom Rodrigo de Souza Coutinho ostentava uma concepção essencialmente econômica da administração pública, preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as novas práticas industriais. Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas questões econômicas, inclinação que ele manteve durante toda a sua vida, aliás revelada de maneira cabal nas páginas do seu “armazém literário”. Com efeito, a rubrica “commercio” (geralmente acompanhada das “artes”) vinha logo após a importante seção inaugural dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de Hipólito pelo estudo das questões econômicas que, em 1819, já no auge de sua carreira jornalística, ele protestava solenemente contra a velha proibição dos estudos de economia política na Universidade de Coimbra (“Os estudos de Economia Política são proibidos na Universidade de Coimbra e não sabemos que haja no Reino escolas em que se aprendam”; cf. Correio Braziliense, janeiro de 1819, vol. XXII, p. 84, citado por Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense”, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957, tomo I, p. 44).
Na verdade, a missão nos Estados Unidos comportava um caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo ao comércio. Tratava-se de levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem nação independente da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros termos, o encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser equiparados à “espionagem industrial ou tecnológica”, numa etapa histórica na qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção absoluta como na atualidade. O futuro “pai da imprensa” brasileira estava amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, ele tinha sido formado em outras matérias que simplesmente filosofia e direito. Os estudos de filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o ensino de botânica, agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro “pai da independência”, José Bonifácio, freqüentador das academias européias.
Quando Hipólito partiu para os Estados Unidos e o México, no final de 1798, ele era, portanto, nada mais do que um recém formado, alguém que de certa forma completou seu “mestrado” numa missão de trabalho, mais do que na forma de estudos suplementares, virtualmente inexistentes aliás. As instruções de Linhares eram no sentido de se obter informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte nos terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, nos anos finais do século XVIII.
Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem autorização para tanto ou diploma legal, por motivo da ausência do representante português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a provável adesão de Hipólito, nessa estada, à maçonaria, possivelmente mais relevante na determinação de seu futuro destino político do que a missão de “espionagem industrial” pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção técnico-científica na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada para a informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico das indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência das nações.
Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano. Como se vê, nada de muito novo em termos de funcionamento do sistema econômico, particularmente no que toca a “infectious greed” (apud e copyrightAlan Greenspan) que não parece ter contaminado apenas recentemente os executivos das empresas americanos.
Os Estados Unidos do final do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o “modo inventivo” americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam o país de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que não descritas com tal estilo “sociológico” em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade americana – mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX – devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários “brazilienses”.
Lido à distância de mais de dois séculos, não tanto pela sua forma, mas pelo conteúdo efetivo, o Diário de Viagem de Hipólito sustenta muito bem a comparação com o bem mais cuidadosamente elaborado ensaio de Tocqueville, este sim feito para expor aos franceses os contornos sociais e políticos do imenso laboratório humano e societal que então constituía a América do Norte. Justamente por não pretender, primariamente, à divulgação, as anotações e observações de Hipólito adquirem um caráter de ensaísmo sociológico avant la lettre, possuindo todos os requisitos literários para figurar como obra fundadora do americanismo brasileiro, e quiçá universal. Seu diário é uma mina de boas trouvailles e de desconcertantes antecipações da sociedade americana, numa espécie de “planejamento utópico do futuro” (a expressão pertence ao filósofo da história Reinhart Koselleck) que confirma, também por antecipação, a densidade analítica e o gênio de “escrevinhador” do futuro jornalista (aliás único) do Correio Braziliense.

Recomendação de leitura:

Hipólito José Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955. O livro possui uma segunda edição (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974), mas mereceria, de todo modo, ser traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos. Como a Embaixada do Brasil criou, juntamente com as editoras das universidades de Duke e Carolina do Norte, uma coleção Brasiliana, destinada a facilitar a tradução e a publicação de títulos brasileiros naquele país, trata-se de uma mais que bem-vinda sugestão para inclusão nesse empreendimento editorial conjunto.

Resumo:
Ensaio sobre o "Diário de Minha Viagem para a Filadélfia, 1798-1799", de Hipólito José da Costa, mostrando suas características pioneiras de primeira obra representativa do americanismo brasileiro.

Palavras-chave: Imprensa, pioneirismo, americanismo.

* O autor é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia. Diplomata, Professor do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. Autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (Senac, 2001) e diversas outras obras de relações internacionais e política externa do Brasil.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Hipolito da Costa e o nascimento do pensamento economico no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho meu que parece estar sendo requisitado novamente, e que já foi publicado num volume de estudos na série fac-similar que republicou todos os números do Correio Braziliense, editado por Hipólito em Londres, de 1808 a 1822.


Hipólito da Costa e o nascimento do pensamento econômico brasileiro

Paulo Roberto de Almeida *
* Doutor em Ciências Sociais, diplomata.
Pesquisador nas áreas de relações internacionais e política externa do Brasil.
Autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil
(São Paulo: Editora Senac, 2001). www.pralmeida.org
in Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou, Armazém Literário
(São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002;
reedição facsimilar, volume XXX; ISBN: 85-7060-103-4, pp. 323-369).


Sumário:

A economia política pelo método empírico: a viagem de Hipólito aos Estados Unidos
A economia política pelo método teórico: leituras e escritos de Hipólito
A abertura dos portos e as indústrias do Brasil: Hipólito olha o futuro
Relações comerciais com a Grã-Bretanha: Hipólito antecipa o prejuízo
O tratado de 1810 e o interesse nacional: Hipólito e a historiografia brasileira
A controvérsia liberalismo-protecionismo no Brasil: um debate que vem de 1810
Hipólito finaliza sua missão: a separação de Portugal e o problema da mão-de-obra
Influência de Hipólito no debate econômico do século XIX
O legado de Hipólito: humanismo, patriotismo, sentido da educação, tino econômico

Resumo:
Análise da influência dos escritos e da obra jornalística de Hipólito José da Costa no pensamento econômico brasileiro, com destaque para os temas da abertura comercial de 1808, do tratado comercial de 1810 e outras questões tópicas correlatas, como as das políticas liberal ou protecionista, ademais dos problemas da escravidão e da colonização.

Leia a íntegra neste link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/834HipolCostaPensamEconBr3.pdf

domingo, 22 de novembro de 2015

Erico Verissimo, americanista brasileiro - Arnaldo Godoy

Embargos Culturais

O gaúcho Erico Veríssimo foi um verdadeiro americanista brasileiro

Consultor Jurídico,
O escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975) viveu nos Estados Unidos da América em duas ocasiões: uma estada curta (por dois meses, em 1941) e uma estada mais alongada (por dois anos, de 1943 a 1945). Nesta segunda oportunidade, ao lado de esposa e filhos, Verissimo viveu na Califórnia (primeiramente na Universidade de Berkeley, em Oakland) e depois em Los Angeles. Suas impressões de viagem, e da vida norte-americana, na etapa final da segunda guerra mundial, estão gravadas em delicioso livro, A volta do gato preto[1].
Esse livro tem páginas memoráveis, relativas à vida norte-americana, na impressão de um brasileiro culto. Nesse sentido, o deslumbramento de Verissimo com aspectos centrais da vida norte-americana qualificam-no, de algum modo, como um Alexis de Tocqueville brasileiro[2]. Exemplifico com corajosa passagem sobre a vida religiosa do norte-americano. Para Verissimo, o tema religioso nos Estados Unidos (na época em que lá esteve, bem entendido) não era assunto substancialmente metafísico; o norte-americano, segundo Veríssimo, não se interessava pela questão da alma e pelas qualidades intrínsecas da fé e da devoção, enquanto problemas centrais na existência. Para Verissimo, em audaciosa passagem, a religião era para o norte-americano da época “(...) um tipo de gadget, de engenhoca (...) uma espécie de máquina de ir para o céu”[3].
Ainda que Veríssimo admitisse que fixava uma caricatura, o que não excluía a “parecença”, em suas próprias palavras, porquanto caricaturas e parecenças “têm sempre sua dose de verdade”[4]. Reconhecendo que não era sociólogo ou ensaísta ou mesmo homem de ciência[5], Verissimo experimentava instrumentos de ficção para examinar problemas da realidade[6]; algumas passagens do livro são entabuladas em forma de diálogos epistolares.
Veríssimo entendia que os norte-americanos eram “extrovertidos, objetivos, arejados e práticos, de sorte que querem [queriam] ver o problema da outra vida posto sobre bases deste mundo”[7]. Indagando se havia algum santo norte-americano, o que relatava desconhecer[8], Verissimo impressionava-se com uma cultura não inclinada ao êxtase religioso[9]. O escritor gaúcho nos dava conta do pragmatismo e do realismo, enquanto filosofias nacionais dos Estados Unidos.
O modo como os norte-americanos se relacionavam com o tempo também intrigava nosso célebre escritor. Para Veríssimo “o problema do tempo é muito sério num país que descobriu tantas formas de divertimentos, tantas atividades, e que não encontra tempo suficiente para gozar desses divertimentos e exercer essas atividades”[10]. Essa curiosa questão também atormentou Max Weber, calcado no mote de Franklyn, para quem o tempo seria também expressão do dinheiro.
Assim, para Veríssimo, os norte-americanos inventavam coisas que simplificavam a vida e que espichavam o tempo[11]. Ilustrava essa premissa com a máquina de lavar roupa: “Você compra uma dessas engenhocas, pega o livro que traz as instruções para o seu manejo, coloca a roupa suja no lugar indicado, aperta o botão, tudo de acordo com as recomendações do livrete, e a máquina começa a funcionar: você pode ir tratar doutra coisa, na certeza de que no momento devido a roupa sairá lá do outro lado, alva, limpa, imaculada, numa economia de tempo, esforço e preocupação”[12].
Religião, administração do tempo, cultura cívica, cinema, literatura, gastronomia, estética, relações interpessoais, política, guerra, são vários os tópicos que ocuparam a privilegiada especulação de Erico Verissimo, em livro absolutamente atemporal, porquanto captou no efêmero, no contingente e no fato diverso transitório, o que imanente, permanente e marcante numa civilização. Essa constatação realça a importante posição de Erico Verissimo em nossa história literária.
 
[1] Verissimo, Erico, A Volta do Gato Preto, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[2] Esse pequeno ensaio foi inspirado após rápida conversa em Brasília com Paulo Roberto de Almeida, diplomata, um dos mais preparados intelectuais brasileiros da atualidade, que me chamou a atenção para outras expressões culturais brasileiras, que se revelariam como americanistas, a exemplo de Hipólito da Costa Pereira e Oliveira Lima. Hipólito deixou-nos “Diário da Minha Viagem para Filadélfia (1798-1799) e Oliveira Lima escreveu “Nos Estados Unidos- Impressões Políticas e Sociais”. Esse último livro conta com prefácio de Paulo Roberto de Almeida, cuja leitura é imprescindível introdução para compreensão das opiniões e idiossincrasias de Oliveira Lima, também diplomata e americanista.
[3] Verissimo, Erico, cit., p. 259.
[4] Verissimo, Erico, cit., loc. cit.
[5] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.
[6] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.
[7] Verissimo, Erico, cit., loc. cit.
[8] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.
[9] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.
[10] Verissimo, Erico, cit., p. 260.
[11] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.
[12] Verissimo, Erico, cit., loc. cit.