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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Interesse ampliado pela diplomacia no Brasil - Revista Fapesp

Gosto pela diplomacia

Cresce o interesse de brasileiros pelos rumos da política externa
CARLOS HAAG
Pesquisa Fapesp, Edição 210 - Agosto de 2013

© CATARINA BESSELL
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Mesmo com um papa argentino, os brasileiros acreditam que o país está muito bem colocado no plano internacional e nem precisa do trono de São Pedro para se projetar: 85% afirmam que o Brasil conseguiu firmar uma imagem de independência perante o mundo. Aliás, o fato de o pontífice vir de uma nação vizinha impressiona pouco, pois menos de 20% dos brasileiros se consideram latino-americanos ou sul-americanos. Além disso, pode-se admirar o lado espiritual, mas cerca de 85% dos brasileiros se animam mesmo é com os resultados econômicos da globalização e com os efeitos da abertura comercial.
Esses são resultados da pesquisa Brasil, as Américas e o mundo, coordenada pela professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, com uma equipe do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IR-USP) composta também pelos professores Janina Onuki e Leandro Piquet Carneiro, e que contou com apoio da FAPESP. Segundo o estudo, cada vez mais cresce o interesse nacional pela política externa, na contramão de consensos passados. “Não se pode mais falar de uma suposta indiferença das lideranças e da população e, apesar do Ministério das Relações Exteriores continuar ocupando uma posição central no comando da política externa do Brasil, é um engano continuar a pensar que o Itamaraty seja um caso bem-sucedido de insulamento burocrático”, explica a pesquisadora. O estudo é parte do projeto colaborativo Las Américas y el mundo, capitaneado por pesquisadores do Centro de Investigación y Docencia Económicos (Cide – México) e reúne vários países latino-americanos para analisar a ligação entre a opinião pública e temas centrais de política externa e relações internacionais.
“Esse estudo é uma resposta às necessidades crescentes de informação numa área estratégica para o desenvolvimento e estabilidade dos países da região que em geral acabam dependendo de dados pouco confiáveis e dispersos. Num contexto democrático, os tomadores de decisões precisam contar com as informações sobre o que pensam os cidadãos para desenhar suas políticas externas”, afirma Guadalupe González González, diretora-geral do projeto do Cide. “O Brasil, no novo cenário mundial, aumentou seu peso dentro e fora da região, se posicionando como o agente de ligação latino-americano com o grupo dos Brics de economias emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), e o principal promotor da cooperação Sul-Sul e da integração sul-americana”, analisa a pesquisadora, para quem Brasil e México se configuram como os líderes potenciais da região latino-americana.
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Nesse novo quadro, para Maria Hermínia, a política estatal para pensar o país e o mundo não pode mais depender apenas da capacidade e disciplina duma elite burocrática como a do Itamaraty, mas também do consenso sobre o mundo e do lugar do país nele por parte de uma comunidade mais envolvida na discussão política. Apesar do crescimento do número de interessados em discussões de questões internacionais, que os pesquisadores denominam de público interessado e informado (PII), o papel ativo na contribuição de ideias cabe à chamada comunidade de política externa (CPE): há um grande diferencial entre o interesse dos seus membros (91%) mesmo se comparado com o PII (22%).
No público “comum”, os quesitos “pouco” e “nenhum” interesse chegam a, respectivamente, 25% e 20%. Em boa parte isso decorre do pouco contato do público comum com o exterior: 88% nunca saíram do país. No caso da amostra brasileira, foram entrevistados 200 líderes políticos e sociais e uma amostra aleatória de 2.400 pessoas representativa da população urbana brasileira entre o final de 2010 e 2011. A equipe pretende repetir a pesquisa em 2014 para comparar os resultados.
“Ninguém havia feito uma pesquisa com o público até então. A novidade é revelar que não se pode mais falar numa política externa insulada no MRE ou na Presidência. Embora não tenham impacto eleitoral, não significa que as relações internacionais não sejam importantes para as pessoas e tema de discussões”, diz Maria Hermínia. Mas a pesquisadora avisa que os resultados mostram percepções e não necessariamente verdades. “Basta ver o entusiasmo exagerado com o papel do Brasil no mundo ou a visão de que países desenvolvidos não vão ter importância no futuro, uma aposta algo exagerada nos emergentes”, fala.
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Prova disso é a comparação entre os dados obtidos nessa pesquisa recente com os conseguidos pelo cientista político Amaury de Souza (falecido em 2012), nas duas versões da pesquisa O Brasil na região e no mundo: percepções da comunidade brasileira de política externa que fez para o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) nos anos de 2001 e 2008.
Para se ter ideia de como a percepção da CPE cresceu, em 2001, 74% acreditavam no crescimento do papel internacional do Brasil em 10 anos; em 2008, o percentual passou para 85%; e, agora, em 2010, chegou aos 97% de visões otimistas. Esse otimismo se estende também ao cenário internacional como um todo. “O otimismo cresce com a informação e o interesse pelas questões mundiais. Por isso a CPE mostra altas porcentagens, 85%, de satisfação com a capacidade do Brasil de se afirmar autonomamente na cena internacional”, nota a autora. Já entre o público dos desinteressados e desinformados, essa satisfação cai para 37%.
Outro dado que chamou a atenção da pesquisadora: menos de 15% dos entrevistados da comunidade e do público informado acreditam que os Estados Unidos serão mais importantes no futuro, enquanto a esmagadora maioria afirma que o futuro pertenceria à China, ao Brasil e à Índia. “Claro que já se pressentia um mundo onde o poder estivesse mais descentralizado, mas eu esperava ao menos da CPE uma visão mais matizada”, analisa Maria Hermínia.
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Outro fato notável para a pesquisadora é a existência de um consenso entre a comunidade de política externa e o público interessado e informado. Na pesquisa de Amaury de Souza, nos anos de 2001 e 2008, os Estados Unidos ainda eram vistos por 49% dos entrevistados da comunidade de política externa como um ator global respeitável na década seguinte, percentual que caiu para 15% em 2008 e permanece o mesmo em 2010. Outros países de peso como Alemanha, Rússia e Japão também perderam força como nações importantes para o Brasil, segundo a percepção da comunidade.
A queda de 30% no caso americano, a despeito das crises financeiras recentes, observa Maria Hermínia, revela uma percepção pouco realista das relações internacionais e do papel que os EUA e seus aliados ocidentais ainda manterão por muito tempo. Além disso, os EUA despertam atitudes e sentimentos complexos de admiração e desconfiança entre todos os grupos de entrevistados e, ainda que a admiração pelos americanos seja mais elevada entre a CPE do que entre os setores do público, existe uma parcela importante de membros da comunidade de política externa que não gosta deles.
“Parece existir um antiamericanismo entranhado nos brasileiros e os dados mostram que ele é inversamente proporcional ao interesse, conhecimento e envolvimento em questões internacionais”, nota Maria Hermínia. Enquanto o país se esforça em se aproximar dos EUA, a comunidade de política externa, na contramão do esperado, ainda mantém ressalvas. Efetivamente o insulamento da política externa vem caindo.“Desde a década de 1990 há indícios importantes na alteração desse padrão tradicional e pressões crescentes para que o processo se torne mais permeável às articulações, interesses e demandas de uma diversidade de outros atores”, observa o cientista político Carlos Aurélio Pimenta de Faria, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e autor do artigo “Opinião pública e política externa: insulamento, politização e reforma na produção da política exterior do Brasil” (2008).
© CATARINA BESSELL
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Para o pesquisador, a falta persistente de preocupação do Itamaraty com a opinião pública não se liga apenas ao caráter público da diplomacia nacional, mas a uma demanda, até há pouco, muito baixa da sociedade brasileira por maior prestação de contas dos agentes estatais. “Era quase uma delegação da produção da política externa ao Itamaraty que, com a globalização, que fazia as relações internacionais impactarem diretamente na sociedade, estaria se convertendo em abdicação”, nota.
Mas, passados os primeiros impactos, o Brasil agora é amplamente favorável à globalização, com a CPE (84%) e o PII (82,1%) muito mais otimistas do que a parcela do público pouco interessada e informada sobre política externa (60%). O mesmo vale para a atração de investimentos como sendo um benefício para o país. A única ressalva é sobre a questão do meio ambiente: 42,2% da CPE considera o livre-comércio bom para o meio ambiente, algo superior aos 58,9% do PII e os 50,3% do público desinformado. “Em função das políticas protecionistas, o país viveu fechado durante muito tempo. Nos anos 1990 isso mudou, abrimos para o mundo e não há volta”, analisa Maria Hermínia. Segundo ela, o ideal que o Brasil está se integrando ao mundo tem apoio quase integral dos brasileiros pesquisados, para além dos discursos que são contrários à globalização.
“Essa atitude afirmativa diante do mundo vem do governo Fernando Henrique e foi reafirmada no governo Lula, que deu corda ao otimismo”, observa a pesquisadora. A visão para fora parece não incluir a vizinhança latino-americana e a identidade regional é ambivalente. “A autoidentificação dos brasileiros como latino-americanos sempre foi tênue. A percepção de pertencer a uma nação diferente da dos seus vizinhos, por causa da experiência colonial distinta, língua e trajetória particular como país independente, sempre caracterizou o pensamento das elites e do público de massas”, fala Maria Hermína.
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Recentemente, a política externa, lembra a professora, definiu a América do Sul, e não a América Latina, como espaço para o exercício da liderança política brasileira. Segundo a pesquisa, apenas um quarto da comunidade de política externa se reconhece como latino-americana, apenas 18,5% como sul-americana e é irrisória a porcentagem daqueles para os quais serem do Mercosul é uma identidade importante (1,5%). A grande maioria (90%) se vê como brasileiros.
Isso se reflete, no caso do comércio, diante de várias estratégias de inserção na economia mundial, a CPE privilegia a atuação multilateral na Organização Mundial do Comércio (OMC) e, secundariamente, a realização de acordos comerciais bilaterais, em detrimento de estratégias envolvendo coordenação regional, no âmbito do Mercosul ou da vizinhança sul-americana. Quando questionados em que região o Brasil deve prestar mais atenção no mundo, pouco menos da metade da CPE (48%) e uma parcela ainda mais reduzida do PPI (32,4%) respondem América Latina.
Sobre o papel do Brasil na América do Sul há uma divisão precisa na CPE: metade afirma que o país deveria liderar sozinho e outra metade que deveria compartilhar a responsabilidade com os vizinhos. A maioria (55,1%) do PII pensa que o Brasil deveria liderar. Embora não vejam problemas futuros com os vizinhos, os brasileiros da PII apontam Venezuela (21%) e Colômbia (24,6%) como países como fonte potencial de conflitos.
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A integração regional, tema importante da agenda internacional, é apoiada por 71,5% da CPE, que quer que ela seja feita de forma aprofundada. Mas quando se vai a fundo nisso os pesquisadores verificaram que o comércio, investimentos e infraestrutura são as dimensões que têm apoio expressivo. Seria até esse ponto que deveriam ir os esforços para aprofundar a integração. “O discurso era de que, justamente por causa dessa distância, o Mercosul era importante para construir uma plataforma de cooperação. Mas os resultados mostram que a região, para o Brasil, é mais uma plataforma para falar para o mundo do que um espaço para manter diálogos ou exercer protagonismo. Essa visão é muito diferente da que se encontrou nas pesquisas feitas em outros países.”
Efetivamente, nota Guadalupe González, para a Colômbia, Equador e México o mundo se limitaria quase exclusivamente ao continente onde concentram suas aspirações internacionais e a sua participação internacional. Apenas Brasil e Peru têm uma visão mais global de seus interesses que abarcam outras regiões do mundo, em especial a Ásia, vista como novo motor da economia mundial.
© CATARINA BESSELL
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Por fim, a surpresa maior da pesquisa feita pelo IR-USP é que o novo interesse vem na forma de um consenso entre especialistas e o público informado. “Assim, apesar de os analistas terem chamado a atenção para uma real ou suposta ‘partidarização’ recente da política externa e, em consequência, para o surgimento de divergências que indicariam a perda de seu caráter de política de Estado, a verdade é que o consenso no interior da CPE e do PII é muito extenso, como é extensa e significativa a convergência entre os dois grupos”, fala a professora.
Naturalmente, observa Maria Hermínia, existem temas mais controversos que afastam os dois, mas, no geral, apesar das críticas abertas às políticas governamentais, a discussão não dividiu os segmentos. “Será necessário verificar isso numa segunda amostra em 2014 para confirmar se essa observação procede”, avisa.
076-081_Relac-Interncaionais_210-6Essa proximidade entre as visões das elites e da população informada e interessada vai na contramão do observado nas pesquisas americanas. “Isso indica uma maior politização do público, ao contrário do que diz a literatura tradicional, ainda que essa nova posição seja resultado do enraizamento das percepções geradas dentro da comunidade de política externa, uma opinião formada, de certa forma, de maneira exógena”, analisa a cientista política Janina Onuki, também do IRI-USP e da equipe do projeto. “Mas estudar essa opinião permite entender o grau de consenso social sobre a política externa e perceber que há uma demanda por uma maior abertura do Ministério das Relações Exteriores”, analisa a pesquisadora.
No geral, seja por visão própria, seja pelo consenso com a CPE, há uma visão de que o Brasil tem condições de ser um ator global, consequência natural da sua inserção no mundo globalizado. “A parcela mais informada da população apresenta um otimismo que não é muito visto no público que possui meios menos reduzidos de acompanhar os noticiários”, diz Maria Hermínia. “Isso revela um desafio para a diplomacia brasileira: fazer com que o sentimento otimista sobre as ações internacionais passe para uma população que as vê como intangíveis, diante de uma situação econômica mais próxima que desnorteia os cidadãos”, avisa a professora.
Projeto
Brasil, as Américas e o Mundo – política externa e opinião pública 2010 (2010/06356-3); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Maria Hermínia Tavares de Almeida/USP; Investimento R$ 242.291,24 (FAPESP).

domingo, 28 de julho de 2013

Um naufragio cientificamente estudado - Carlos Haag (Pesquisa Fapesp)

O império no fundo do mar

Documentos da Royal Society mostram debate entre Estado e ciência a partir de naufrágio no Brasil
Carlos Haag
Revista Pesquisa Fapesp, edição 209, Julho 2013


© NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA
O quadro Death of a ship, H.M.S. Thetis de Owen Stanley (sem data), a única imagem conhecida do navio
O quadro Death of a ship, H.M.S. Thetis de Owen Stanley (sem data), a única imagem conhecida do navio
Após ter lido a versão em inglês da matéria Uma incômoda pitada de magia(edição 199 de Pesquisa FAPESP), Keith Moore, diretor dos arquivos da Royal Society, enviou uma mensagem avisando que havia se deparado com documentos sobre o debate iniciado na instituição após o naufrágio da fragata inglesa HMS Thetis em 1830 em Cabo Frio. Para Moore, não se tratava apenas de um caso curioso ocorrido que calhara acontecer no Brasil, mas de um evento que levantava questões importantes sobre o desenvolvimento da ciência da época.
Com uma tripulação de 300 homens e armada com 46 canhões, a Thetis voltava para a Inglaterra com US$ 810 mil, em valores da época. Para Moore, era um caso que levantava questões importantes sobre o desenvolvimento da ciência. No desastre, não se perdia apenas o tesouro, mas a crença no funcionamento da rede imperial inglesa, vista como infalível, e se colocava em xeque a capacidade dos ingleses de agir a distância. Era urgente descobrir o que acontecera e a ciência foi chamada a intervir, para entender as causas do naufrágio e, depois, recuperar a fortuna enterrada no fundo do mar. Esse processo está registrado nos documentos das discussões na Royal Society. Para Moore, o grande interesse científico que houve pelo desastre da HMS Thetis está relacionado ao início do movimento de união entre Estado e ciência a partir da questão marítima. Incipiente em início do século XIX, essa ligação seria a base para  a expansão imperial britânica do século XX.
A história do naufrágio é conhecida, mas a documentação só foi explorada por dois pesquisadores, ambos da Universidade de Londres: Felix Driver, do Royal Holloway, e Luciana Martins, do Birkbeck, autora de O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (2001). A dupla pesquisou o tema em Shipwreck and salvage in the tropics: the case of the HMS Thetis, 1830-1854, no Journal of Historical Geography. “O estudo da Thetis revela o que acontecia quando a rede de poder e conhecimento se quebrava e de que maneira a ciência foi chamada a reparar e recompor essa estrutura que mantinha em funcionamento o império inglês”, fala Luciana Martins. A pesquisadora brasileira doutorou-se em geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e há 17 anos está radicada em Londres, onde trabalha no Departamento de Estudos Ibero-Americanos no Birkbeck. “O interesse pela Thetis vem do encontro com as pinturas a óleo do resgate do tesouro de John Christian Sketchy no National Maritime Museum, em Londres, com lembranças da minha adolescência, quando passava férias em Arraial do Cabo, onde o naufrágio se tornara parte das lendas locais”, conta. Mais tarde viu que as lembranças do passado tinham uma importância para a história da ciência e, com Felix, foi aos arquivos, incluindo-se o Brasil, onde quase não há material.

© ROYAL MUSEUMS GREENWICH
O pintor e marinheiro John Christian Schetky retratou em Salvage of stores and treasure from HMS Thetis at Cape Frio Brazil, de 1833, o resgate do tesouro. Pode-se ver o sino de mergulho à direita
O pintor e marinheiro John Christian Schetky retratou em Salvage of stores and treasure from HMS Thetis at Cape Frio Brazil, de 1833, o resgate do tesouro. Pode-se ver o sino de mergulho à direita
Felizmente, os ingleses demonstraram um interesse muito maior sobre o desastre, como comprovam os documentos que estão na Royal Society, cujos debates começaram poucos meses após o afundamento da fragata. Em abril do ano seguinte ao acidente, o matemático Peter Barlow já perguntava aos fellows da Royal Society, em On the errors in the course of vessels, occasioned by local attraction: with remarks on the recent loss of His Majesty’s Ship Thetis: “Como entender um navio deixando o porto, com todos os auspícios de uma boa vaigem, arrebentar-se num rochedo distante não mais do que 70 milhas do seu ponto de partida e que se suponha estar milhas a leste?”.
A fragata naufragara em águas tidas como calmas e conhecidas dos marujos britânicos. Saindo do Rio, o capitão da Thetis estabeleceu erradamente a posição da embarcação em relação a Cabo Frio. Esse engano depois seria atribuído às “atrações locais” magnéticas que teriam afetado a bússola do navio, cujo casco era em boa parte feito de ferro, e levado o comandante ao erro (seja como for, na corte marcial, o capitão foi considerado culpado pelo naufráugio). O vento forte, que aumentou a velocidade do navio, só apressou a tragédia. Em pouco tempo, gritos da gávea avisaram da presença de rochas. O mastro projetado na proa se chocou com a ilha de Cabo Frio e o impacto fez cair os três mastros principais, matando marinheiros e destruindo escaleres. A fragata não afundou, mas o mar jogou o costado contra as rochas. O casco foi se arrebentando e o navio foi sugado para dentro de uma enseada, onde continuou sendo arremessado contra as pedras. Os ingleses escalaram para a terra até que a Thetis cedeu e afundou, deixando um saldo de 30 mortos.
O capitão mandou emissários ao Rio para avisar ao comandante da esquadra inglesa na América do Sul. A carga foi dada como perdida. Num relato submetido à Royal Society em março de 1833, cujo sumário sobreviveu, o capitão Thomas Dickinson, que se voluntariou para recuperar o tesouro, deu sua versão dos fatos. “Segundo ele, houve grande consternação no Rio quando se soube da perda da Thetis com uma carga de US$ 810 mil e o capitão lembra de sua determinação ao ver que ninguém parecia disposto a ir em frente para recuperar a propriedade assim perdida. Ele estava convencido de que os obstáculos e dificuldades eram formidáveis, mas poderiam ser superados com o emprego de meios que imaginou seriam praticáveis naquela ocasião”, diz o document hoje na instituição inglesa.

© ROYAL MUSEUMS GREENWICH
O capitão Dickinson. Na outra página, um desenho do sino de mergulho feito por seu rival, capitão De Roos
O capitão Dickinson
Dickinson construiu dois sinos de mergulho a partir de tanques de água que tirou de um navio, reforçando-os e colocando janelas de vidro para iluminar o interior, onde havia tochas. Preparou também uma bomba de ar para fornecer oxigênio, que foi impermeabilizada com alcatrão. “Isso deu a ele muito trabalho em face do atraso do trabalho nativo”, observa o document da Royal Society. A Thetis estava afundada no centro da enseada. Dickinson planejou colocar cabos de um penhasco a outro para descer com o sino. “O capitão conta que passou muitas dificuldades por causa da natureza terrível do trabalho, a insalubridade do clima, dos ataques de insetos, da exposição ao tempo nas cabanas de sapé, e pelos perigos dos mergulhos no mar, uma combinação de terrores que o autor está convencido de que só poderiam ser superados por marinheiros ingleses”, conta o sumário da instituição britânica. Dickinson narra ainda que marujos teriam visto “cinco tigres na praia”. Armados com rifles, os ingleses atiraram nas sombras e verificaram que se tratava de sea-pigs, capivaras. A “visita” de répteis de magnitude assustadora, como uma cobra, atemorizaram seu imediato, um homem “incapaz de se apavorar por bobagens”, mas a serpente, efetivamente, “mexia com os nervos dos mais fortes”, escreveu o comandante inglês.
Foram necessários vários mergulhos e algumas mortes até que se começasse a recolher a fortuna da Thetis do fundo do mar. Moravam em cabanas numa vila que batizaram de St Thomas e onde o capitão cumpria as obrigações de um britânico temente à pátria, celebrando datas como a Batalha de Trafalgar, da qual ele participara. Preocupado em ser roubado, Dickinson vigiava seus homens, e foi essa uma das razões de ter dispensado um grupo de brasileiros, os “caboclos”, que se juntaram a ele no início do resgate. Ainda assim, os marinheiros inventaram códigos entre os que estavam no fundo e os da superfície, avisando da presença ou não do capitão. Eram turnos de 12 horas sem comida ou descanso. Foram obrigados a remover os detritos que cobriam o naufrágio, incluindo-se corpos e a comida estragada da fragata, cujo gás tóxico quase matou um grupo de resgate.
“Foi um trabalho pioneiro. Ao mesmo tempo que Dickinson usava seu sino em condições extremas do mar revolto, Sir Basil Hall, celebrado viajante e pesquisador inglês, elogiava como ‘maravilha’ uma operação semelhante que se fazia em Portsmouth”, conta Luciana. O resgate da Thetis foi também uma das primeiras ocasiões em que foram feitos desenhos do fundo do mar, com os restos da fragata. “No caso da Thetis se investiu mais na história do seu salvamento do que na da sua perda. Na época, isso foi um tributo à perseverança humana diante do poder devastador da natureza”, dizem Felix e Luciana. “O olhar imperial via nesse processo uma rede mais ou menos coerente pela qual a informação circulava até que finalmente se traduzia num conhecimento estabelecido”, observam os pesquisadores.

© ROYAL SOCIETY
Desenho do sino de mergulho feito por seu rival, capitão De Roos
Desenho do sino de mergulho feito por seu rival, capitão De Roos
“O Estado e os cientistas mudaram seu foco das posições coloniais em terra para as vastas áreas inexploradas dos oceanos, um espaço intelectual fértil de significação comercial e imperial. Com isso, elevaram o status do recém-definido ‘cientista’. Da mesma forma que regulavam e manipulavam o oceano no papel, o Almirantado inglês usava o oceano físico para transportar tropas, riqueza e a cultura britânica para os confins do mundo”, observa o historiador americano Michael Reidy, autor deTides of history: ocean science and Her Majesty’s navy (University of Chicago). Segundo Reidy, o domínio naval da Inglaterra foi o resultado de uma colaboração estreita entre o Almirantado e a elite científica. Juntos, eles transformaram a imensidão sem dono do oceano numa rede organizada. Nesse processo emergiu, literalmente, o cientista moderno: um dos elos importantes dessa ligação, William Whewell, cunhou o termo “cientista” em 1833, no auge de seus estudos sobre as marés. “A ciência rompeu os limites de um apoio parcimonioso do Estado para ganhar um financiamento bem mais generoso e global para suas pesquisas”, explica o historiador.
Casos como a da Thetis obrigavam o sistema a melhorar sua rede de conhecimento e mostravam que, quando o assunto era mar, quanto maior a relação Estado e ciência, melhor. Os cientistas envolvidos no projeto imperial sabiam que o financiamento dos estudos sobre o mar eram dispendioso e só um país poderoso como a Inglaterra seria capaz de bancá-lo. “O oceano se transformou na área mais fértil de investigação, com fundos do Estado e um grupo internacional de cientistas. Foi o interesse pelo mar que fez com que a ciência virasse uma tarefa global que dependia pesadamente do apoio e da participação do governo. Isso modificou totalmente a maneira de se fazer e pensar ciência”, nota Reidy. O império foi sutilmente transmutado pela ciência e o cientista moderno, por sua vez, foi moldado pela demanda militar por inteligência e controle dos oceanos.
“O interesse dos fellows da Royal Society sobre o destino da Thetis deve ser visto no contexto desses esforços contemporânos de demonstrar a utilidade prática do pensamento científico e nada melhor para isso do que a  ciência da navegação”, fala Felix. Em seu Preliminary discourse on the study of natural philosophy (1830), o astrônomo John Hershel retratou o observador científico ideal como sendo um oficial naval bem treinado. A rota de um navio, por sua vez, era como uma espécie de hipótese, baseada em observações astronômicas cuidadosas e cálculos matemáticos, testada contra a experiência da chegada a salvo no destino. Se o navio era o instrumento do experimento, seu capitão era o homem de ciências exemplar. “Com a Thetis, ao contrário, a ‘experiência’ de navegação na ausência de pontos de referência falhou, com consequências catastróficas para o capitão e sua tripulação. Nesse contexto, a atribuição de causa e efeito foi inseparável da de responsabilidade e culpa”, observam Felix e Luciana.
Para que a rede do império, rompida momentaneamente pelo naufrágio, voltasse a ganhar a confiança geral, era fundamental se compreender, de forma científica, o que acontecera. Uma das respostas se ligava diretamente a um debate dos anos 1820 e 1830, quando autoridades em magnetismo terrestre alertavam para os efeitos magnéticos nas bússolas dos navios por causa da “atração local”. “Os navios de ferro eram testemunhos do poder da ciência no domínio inglês sobre as correntes magnéticas e oceânicas. Mas o destino dessa indústria estava em jogo com os problemas navegacionais que surgiram com o uso do ferro na construção das embarcações, já que o casco dos navios causava alterações nas bússolas, deixando-as pouco confiáveis”, diz a historiadora Alison Winter, da Chicago University, autora de Compasses all awry: the iron ship and the ambiguities of cultural authority in victorian Britain.
“Quando os navios começaram a se perder por causa das bússolas, a falta de um meio sólido de corrigi-las ameaçou afundar a credibilidade do público nos cientistas.” Segundo Alison, durante a era vitoriana, o tema das bússolas desorientadas e dos navios perdidos era usado para descrever incerteza espiritual e intelectual e falta de convenções claras e estabelecidas de autoridade. “As mesmas forças magnéticas usadas na navegação serviam para retratar como os líderes exerciam seu poder”, explica a historiadora.
A mistura de política e ciência, que dominará o periodo vitoriano, já estava latente no tempo da Thetis e a isso explica por que o Almirantado investiu mais de £ 500 nas pesquisas de Peter Barlow, professor de matemática na Royal Military Academy e membro da Royal Society. Para Barlow, “todo navio carrega em si um mal insidioso”, ou seja, o tal efeito do ferro sobre as bússolas. Na exposição feita em 1831 à Royal Society, Barlow usou como exemplo “o melancólico naufrágio do navio de Sua Majestade, a Thetis” para discutir essa “questão fundamental” e propôs que essa era a causa do desastre. Afinal, o casco do navio, embora de madeira, tinha grande quantidade de ferro na sua estrutura. “Se não se tomaram as precauções para corrigir as distorções da atração local, não hesito em afirmar que essa omissão foi o suficiente para causar o acidente”, afirma perante a plateia da Royal Society. “Se a ciência pode ser trazida para facilitar o progresso da navegação e contribuir para sua segurança, não se pode permitir que seja negligenciada na Marinha britânica”, completou Barlow.
O interesse da comunidade científica na Thetis não se restringiu às causas do naufrágio. Como se viu, relatos das operações de salvamento de Dickinson foram lidos na Royal Society, bem como o do capitão De Roos, seu successor nos destroços e o primeiro a remeter um relato aos fellows em 1833. Segundo o sumário da instituição, “o que sobrou do pobre navio foi submetido à grande pressão do mar, como se fosse um martelo e formou uma massa única que mistura madeira, ouro, prata e ferro”. De Roos também conta que “numa ocasião foram visitados por uma enorme baleia, que se aproximou muito do sino de mergulho, mas, por sorte, mudou seu curso”.
A troca de comando aconteceu a contragosto de Dickinson, que se viu colocado de lado após todo o seu esforço. Ao final, ambos entenderiam que o oportunismo partiu do comandante da esquadra inglesa no Rio, que queria louros e lucros para si, o que não impediria uma disputa entre os dois dentro da Royal Society em busca de reconhecimento pelo pioneirismo científico do resgate. Dickinson também se queixava de que, além das mazelas físicas, fora obrigado a dar conta de questões políticas no trato com os brasileiros. “Sempre tive medo da inveja do governo brasileiro sobre a nossa permanência na ilha. Fui acusado de interromper a pesca e depois de roubar madeira”, escreveu.
A pedidos, a municipalidade de Cabo Frio foi investigar o que fazia o grupo de ingleses em St Thomas. “Quando eles chegaram ficaram embasbacados ao ver uma vila com casas confortáveis. Nenhum falava uma palavra de inglês e depois de me encher com mais ‘ilustríssimos’ do que eu podia aguentar me disseram que tinham vindo ali para ver se eu era uma força de invasão.” Dickinson, gabando-se de ter aprendido português a ponto de não ser superado na quantidade de “ilustríssimos”, mostrou a sua “fortificação”, palavra que usa com ironia. Os brasileiros assustaram-se com um barulho que tomaram por um tiro de canhão e o britânico diverte-se ao narrar sua dificuldade em fazê-los entender que se tratava do barulho do jato de ar da bomba do sino de mergulho. Por fim, todos beberam a William IV, a Pedro I e à municipalidade de Cabo Frio.
“A ilha, no tempo da Thetis, era uma estação de pesca que desde o século XVI crescia regularmente. Assim, não procedem as observações de Dickinson de que a vila cresceu graças aos ingleses. Também não é de supreender que uma força militar acampada por 18 meses tenha inquietado o governo brasileiro”, notam Felix e Luciana. Para Dickinson, não havia por que pagar por madeiras e outros materiais, porque tudo na ilha “estava disponível e não se podia considerar propriedade”, reminiscências das fantasias da abundância e disponibilidade tropical. Mas acabaram tendo que pagar um aluguel pelo uso do espaço. Um preço pequeno a pagar pela redenção da falha implícita no naufrágio da Thetis. Embora até hoje não se saiba o que tenha provocado o fim da fragata, foi numa ilha brasileira que a ciência pôde resgatar a autoimagem do império naval britânico.