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domingo, 28 de julho de 2013

Alquimia persistente na veneravel Royal Society - Carlos Haag (PesquisaFapesp)

Uma incômoda pitada de magia

Pesquisadoras brasileiras descobrem pó alquímico em arquivo da Royal Society, sede da revolução científica
CARLOS HAAG
Revista Pesquisa Fapesp, Edição 199 - Setembro de 2012
de Londres

© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY

Original da carta enviada por Boutens a Oldenburg mostrando o pequeno envelope fechado
Não é fácil abalar a fleuma britânica. Daí a sintomática reação de Keith Moore, diretor dos arquivos da Royal Society, ao ser questionado sobre a importância do achado das pesquisadoras Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cesima PUC-SP) [ouça entrevista com elas]. Com a sobrancelha levantada e cauteloso, Moore respondeu: “Estava debaixo de nossos narizes, mas em 350 anos ninguém encontrou”. Trata-se de uma pitada de pó amarelado e com odor fortemente pungente, embalado num pequeno envelope colado em uma carta de 1675 endereçada ao primeiro-secretário da Royal Society, Henri Oldenbrug (1515-1677), vinda de Antuérpia e enviada por um apotecário e alquimista chamado Augustin Boutens. Embora não tenha chamado a atenção até agora, é uma valiosa e concreta amostra doLudus, um material secretíssimo, que, juntamente com o alkahest, famigerado solvente universal foi alvo de buscas que movimentaram gerações de alquimistas e mesmo filósofos naturais como Robert Boyle e Isaac Newton.
Após revelarem, em 2010, num projeto temático apoiado pela FAPESP, a única receita curta e completa conhecida do alkahest (“A agenda secreta da química, Pesquisa FAPESP 154), de 1661, a dupla encontrou agora, afirmam, “uma amostra real de ‘Luduscomposto’, com o que poderia ser um tipo de alkahest, de que se tem notícia desde o século XVII”. O que é o pó?
Certamente a Royal Society quer que a amostra seja analisada por um de seus fellows, provavelmente Martyn Poliakoff (ver entrevista na página 26), vice-presidente da instituição. “Apesar da curiosidade pessoal, como pesquisadoras em história da ciência, não pretendemos ir ao laboratório procurando saber o que seria pelos moldes de hoje o tal pó, pois estaríamos impondo, de forma anacrônica, nossas ideias a estudiosos do século XVII”, fala Márcia. “O que importa é a descoberta de mais uma evidência forte de que uma boa porção das ciências antigas, como a alquimia, persiste mesmo após o surgimento de uma nova visão de ciência (e até fizeram parte na formação desta), mantendo-se na agenda das figuras que supostamente promoveram a revolução científica que originou a química moderna. Há uma história pouco conhecida que conta que essa passagem foi mais suave e coerente e só se encerrou no século XIX”, afirma Ana.
Acima de tudo, confirma o credo das pesquisadoras de que fazer a história da ciência é arregaçar as mangas e enfrentar a poeira secular dos documentos originais para dar vida a eles. Prova disso, para surpresa de Moore, é que o documento passou pelas mãos da historiadora Marie Boas-Hall, responsável, nos anos 1960, pela imaculada catalogação da correspondência de Oldenburg, por 15 anos o “faz-tudo” da Royal Society. Diante do pequeno envelope, Marie Boas apenas anotou: “Amostra do que parece ser pirita, anexada ao texto”.
“A obra de Marie Boas é impecável, mas, pensando como muitos em sua época, ignorou possíveis interesses alquímicos dos ‘novos cientistas’ e, assim, terminou por não investigar o caráter hermético das cartas de Oldenburg. Então, como alguns ainda fazem agora, era importante manter a ideia de uma ‘revolução científica’, o que incluía, por vezes, a ‘limpeza’ do passado e, por vezes, intervenções pouco recomendáveis”, avalia Ana. “Esse achado amplia a visão de que a filosofia química não morreu com o triunfo da visão mecânica e corpuscular. Saber que ainda se perseguiam materiais como o Ludus e o alkahest comprova isso e inclui mais nomes importantes na lista dos que praticavam essas buscas, mesmo alguns que se pensava convertidos ao racionalismo e, mais ainda, ao mecanicismo do século XVII”, explica Pyio Rattansi, professor emérito da University College London, que revelou a importância do hermetismo e da Bíblia nas obras científicas de Newton, até então visto como “santo padroeiro” da ciência moderna. “Além dele, outros ‘homens de razão’ tinham ‘segundas agendas’ que discretamente continham processos alquímicos”, conta Ana.
Essa revisão da história da ciência só veio à tona quando as pesquisadoras, apesar do “canto de sereia” da tecnologia, viram a limitação dos catálogos e das bases de dados digitais e se enfurnaram diretamente nos “fundos fechados” do arquivo, enfrentando a incredulidade inicial dos ingleses. “Tínhamos claro que era preciso procurar entender o pensamento dos homens de ciência daquela época. Havia uma espécie de dualidade diante de qualquer descoberta ou fato novo: por um lado, havia a necessidade de manter sigilo, pois, em especial quando se tratava de materiais ou processos de laboratório, muitos eram verdadeiros segredos de Estado; por outro lado, estava uma das máximas (que, aliás, se mantém até hoje) da nova ciência, que defendia o saber elaborado por muitos e ao alcance de todos”, conta Ana. “Muitos estão se coçando para pôr as mãos nesse conhecimento e sabe-se lá o que farão para vê-lo publicado”, escreveu Newton a Oldenburg em 1676. Os meandros “rocambolescos” que as pesquisadoras precisaram vencer para encontrar a receita do alkahest é fruto dessa visão.
“Depois das descobertas iniciais de documentos, consideramos que tudo relacionado aoalkahest na Royal Society estava claro e vísivel”, lembra Márcia. Até encontrarem a misteriosa carta de Boutens para Oldenburg. “Já se passaram anos desde que enviei ao senhor uma boa quantidade do Ludus helmontiano, a partir do qual eu produzi o material sulfuroso que anexo abaixo. Confio na sua sabedoria para entender que efeitos ele produz.” A referência ao mineral argiloso chamou a atenção de Ana e Márcia. Afinal, o Ludus era base, juntamente com o “liquour alkahest”, de uma receita produzida pelo médico belga Van Helmont (1579-1644), que dedicou sua vida a estudar os obscuros trabalhos de Paracelso para produzir o que seria o “remédio para todas as doenças”. Capaz de dissolver qualquer substância sem deixar resíduos, reduzindo-a a seus constituintes primários, o alkahest seria fonte de remédios poderosos, em especial contra os “males da pedra”, a litíase renal, causadora incurável de muitas mortes até o século XIX.
“Segundo Van Helmont, era possível, por exemplo, fazer um remédio contra o cálculo urinário pela dissolução do Ludus com o alkahest. Não tanto pelo mineral, mas pela capacidade do alkahest em transformá-lo em fonte de cura. Tudo era fruto de um pensamento milenarista: o solvente seria um presente de Deus quando o mundo se aproximasse do fim”, explica o historiador Paulo Porto, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). O Ludus 
funcionaria como a cápsula plástica que, hoje, envolve as pílulas, permitindo a difusão gradual do medicamento no organismo. O dilema dos alquimistas era justamente garantir que a solvência doalkahest acontecesse aos poucos, não matando o paciente ao tentar curá-lo. “Desde os anos 1640, o objetivo central da ciência inglesa era prolongar a vida das pessoas e oalkahest preparado com Ludus helmontiano seria o remédio indicado para isso”, diz Paulo. Para muitos contemporâneos, o rei Charles II criara a Royal Society, acima de tudo, para reunir as maiores cabeças da época a fim de que produzissem “o grande remédio”.

© REPRODUÇÃO

Henri Oldenburg: secretário da Royal Society centralizava toda a informação para a Instituição e foi um dos pioneiros nos padrões científicos
Por isso, a carta levantou suspeitas nas pesquisadoras. Como entender que após procurarem por anos o “grande remédio” não houvesse registros nas atas da Royal Society da chegada de uma amostra de seus componentes? Tudo indicava que estávamos diante de um ‘segredo’ valioso para os fellows da instituição”, diz Márcia. Era preciso, então, entender melhor a relação de Oldenburg e Boutens. A primeira pista foi uma carta de setembro de 1667, escrita para Boyle logo após o secretário sair da prisão, onde foi encarcerado pelos seus contatos “excessivos” com o exterior. Logo se descobriu que a correspondência intensa era parte de seu trabalho. Oldenburg trocava cartas com quem pudesse ter ou conhecer informações sobre ciência, incluindo algum segredo sobre a “Arte”. E os vários espiões espalhados pela Europa o informavam de qualquer experiência.
Sintomaticamente, a carta para Boyle foi a primeira coisa que fez após sair da prisão. “O senhor menciona uma caixa que, creio, foi endereçada a mim. É Ludus da Antuérpia. Sinta-se livre para abri-la e depois enviá-la a mim, com sua opinião se é oLudus genuíno.” Várias cartas mais tarde, com o mesmo teor de súplica humilde, não foram suficientes para Boyle atender a seu pedido e parece que Oldenburg nunca pôs as mãos na preciosa caixa. Os arquivos foram revelando aos poucos os elos do secretário e Boutens, o alquimista da Antuérpia. Em novembro de 1667, Oldenburg escreveu ao alquimista: “Soube por um amigo de Paris (certamente um de seus espiões) de sua grande predisposição para a curiosidade e sua inclinação especial pela sólida filosofia que se fundamenta na observação e nos experimentos que estamos tentando estabelecer aqui na Royal Society. Também fui informado de suas tentativas infatigáveis de descobrir os segredos da natureza pelo bom caminho da química”.
A sedução epistolar vai adiante. “Gostaria que o senhor soubesse como os ingleses admiram operações químicas feitas por homens de bom senso que são livres dos preconceitos vulgares impostos pelo mundo por algumas pessoas que pretendem falar dogmaticamente sem nenhuma experimentação crítica preliminar, como o excelente senhor Boyle achou necessário fazer em seu Sceptical Chymist (1661)”, continua. “Sabemos que há Ludus helmontiano em abundância na sua região: peço ardentemente que nos envie para Londres por mar.” Em dezembro, chegou a resposta de Boutens: “Vou enviar mais de 70 quilos do Ludus com a descrição do método que utilizo para fazer o remédio”. O pagamento da empobrecida Royal Society foi feito em livros, cobiçados por alquimistas. A carta foi recebida com grande entusiasmo pelos membros da Royal Society, assim como outra carta escrita por Boutens alguns meses depois descrevendo os lugares onde era possível encontrar o Ludus. Essa correspondência, no entanto, não teve continuidade e apenas em junho de 1675 aparece uma nova carta de Boutens justamente aquela em que está afixada a amostra do “pó secretíssimo”.
Oldenburg, porém, não respondeu à carta. De início, as pesquisadoras atribuíram a atitude nada típica do secretário ao excesso de trabalho. Mas descobriram outra razão. Francis Mercurius, filho de Van Helmont, estava no mesmo período na Inglaterra e, sabidamente, tinha conhecimento dos muitos segredos do pai… até mesmo amostras de seus materiais. Junior, como era conhecido, aproximou-se rapidamente de grandes estudiosos ingleses. Através de Henri More, tornou-se mentor de Lady Anne Conway, vítima de terríveis enxaquecas que o próprio Harvey não conseguiu curar. Por sua vez o circulo de Lady Conway incluía, além de Henry More e Ralph Cudworth, líderes dos Platonistas de Cambridge, e também um experiente homem de laboratório como Ezekiel Fox-croft que, por sua vez, era íntimo amigo e colaborador do grande Newton. “O que os unia era a preocupação com o ceticismo radical da época, que tentaram combater com a aceitação ‘racional’ de profecias bíblicas mescladas com visões milenaristas. Para justificar o novo universo científico cético, assumiram o ideal de que viviam tempos como os descritos nos livros de Daniel e Revelação”, observa Rattansi. Para Daniel, o conhecimento aumentaria à medida que a humanidade se aproximasse de seu final. Isso era a realidade cotidiana do século XVII e estava presente no forte diálogo de Junior com Lady Conway. E os dois acabaram se convertendo à seita dosquakers, notórios milenaristas adeptos desses ideais.

© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY

Salão de pesquisa da Royal Society, com as pesquisadoras brasileiras sentadas
Além disso e como seria de esperar, Junior levou para a Inglaterra não apenas as receitas do pai, mas também amostras de seus materiais secretíssimos, entre estes pedaços do precioso Ludus. Um desses pedaços foi dado por ele a Foxcroft, que o repassa a Newton, que, por sua vez, o repassa ao naturalista John Woodward. “Newton me deu um pedaço do material trazido da Alemanha pelo jovem Helmont como o verdadeiro Ludusde seu pai, que, na minha visão não é em nada diferente do achado aqui mesmo na Inglaterra”, anotou descrente. O interesse de Newton no Ludus e outros materiais semelhantes, como o alkahest, era profundo e isso agora aparece de forma visível. E a caixa enviada a Oldenburg anos antes? “Boyle a tomou para si, entregando a Locke, que era um de seus homens favoritos no laboratório, para que ele analisasse”, conta Ana.
“Tais revelações ampliam o espectro da ligação complexa do círculo inglês com a ciência nascente, e debates como aquele entre empiristas e racionalistas começam a perder sentido”, acredita Rattansi. Segundo o professor, os achados obrigam a uma revisão das origens intelectuais da ciência dos séculos XVI e XVII. “A ciência aristotélica estava desacreditada como estéril. Houve então uma cisão entre a ‘filosofia mecanicista’, baseada em Galileu e Descartes, e grupos heterogêneos de ‘filósofos da natureza’, em especial neoplatonistas e herméticos. As diferenças entre os grupos não eram tão acentuadas: eles eram antiaristotélicos; defendiam a observação, a experimentação e a experiência em detrimento da razão abstrata; preconizavam que ciência e religião apoiavam-se uma na outra; ambos sonhavam em elevar e espalhar o conhecimento sobre a natureza para fins práticos”, analisa o professor.
Mas enquanto um grupo entendia que por trás de todas as mudanças na natureza havia o mecanismo da matéria em movimento, os outros viam essas alterações como o jogo de simpatias e antipatias secretas, agindo a distância. “Para os mecanicistas havia uma divisão entre o mundo inanimado da matéria e aquele da alma e da inteligência. Já os herméticos criam que tudo possuía vida e entendimento. Em resumo: as crenças se dividiam entre os que tinham uma cosmovisão mágica e encantada, plena de acontecimentos prodigiosos, enquanto os mecanicistas optaram pela visão de um mundo sóbrio, desencantado e preocupado principalmente com o curso cotidiano da natureza.” As novas descobertas mostram, de forma mais contundente, semelhanças entre as duas vertentes e obrigam a relativizar esse quadro, explica Rattansi.
Pouco antes da Revolução Gloriosa, a ciência hermética tomou conta da Inglaterra, por conter o ideal de uma nova filosofia natural como parte de um grande projeto reformista, o que explica a harmonia inicial entre correntes poderosas da revolução e os herméticos, e os puritanos foram em parte responsáveis pela divulgação dessa visão encantada e reformadora. Em tempos de guerra, fome e miséria, uma corrente que preconizava a realização de feitos para melhorar a vida cotidiana, a agricultura, a educação e a saúde de todos tinha grande apelo popular. Logo, alguns grupos começaram a pregar reformas intensas, como o de Samuel Hartlib e seu Colégio Invisível, apoiado nas máximas do tcheco Jan Comenius, que foi convidado a ir à Inglaterra, onde escreveu extensamente sobre educação com ideias que combinavam, às vezes, alquimia e filosofia natural. Entre as propostas estava a criação de universidades em todas as cidades. Mesmo Boyle e outros que viriam a fundar a Royal Society, simpatizantes da causa de Comenius, começaram a temer pela ordem e estabilidade nesse clima de sectarismo.


Decreto de criação da Royal Society com a efígie do rei Charles II
A Inglaterra passou a ser invadida desta vez pelas novas doutrinas “sóbrias” de Descartes e de Gassendi, com um número notável de conversões à ciência mecanicista, que passou a ser apreciada como a mais apropriada, uma grande síntese entre teologia e filosofia natural: se o universo era como uma máquina, a doutrina aponta para o seu criador. “Na Inglaterra do século XVII era usual o estudo da filosofia natural se harmonizar com a visão mística e teológica do mundo. Daí a reverência de Newton, mas não apenas dele, como sabemos agora, à prisca sapientia, o conhecimento dos clássicos que ele e outros acreditavam ser verdades reveladas por Deus aos primeiros habitantes da Terra”, diz Rattansi.
Assim, continua o professor, os achados das pesquisadoras reforçam essa perspectiva revisionista da revolução científica, pois, mesmo após a aceitação das explicações mecanicistas, os problemas que chamavam a atenção de figuras racionais como Newton e Boyle eram os mesmos que preocupavam os herméticos: a transmutação e o alkahest; a ação do pó de simpatia; a influência das constelações sobre os homens e o uso de fórmulas magistrais com fins medicinais. “O que se encontra nos arquivos da Royal Society são lembranças salutares das muitas correntes que concorreram para a revolução científica do século XVII. São lembranças de em que medida criadores da ciência moderna, como Newton, ainda usavam a tradição hermética junto à nova filosofia natural.”
“Os problemas médicos sempre lideraram os interesses, e os médicos sempre foram uma comunidade abrangente. As pessoas que olhavam para um contexto maior, como Isaac Newton, sempre existiram em menor número, mesmo nos séculos xvii, xviIi e xix. Por exemplo, em 1820, havia apenas 100 pessoas nessa ilha para realizar pesquisa. A ciência não era vista como algo que pudesse resolver os problemas da tecnologia ou da medicina, por isso não havia investimento em capital humano para trabalhar nessas áreas”, lembra o historiador da ciência Frank James, presidente da Royal Institution.
“Está claro que o trabalho de Newton relacionado à força e à gravitação está associado às experiências com a alquimia, exatamente porque esses conceitos não estavam contemplados no pensamento filosófico daquele período. E esse é o motivo que faz com que outros autores tenham problema com as ideias de Newton, posto que eles não necessariamente reconhecem como legítimas as origens de seus postulados. Somente Newton sabia da validade de seus estudos porque muito se baseava nos seus trabalhos como alquimista”, analisa James. “Newton só fez as descobertas que realizou ao lançar mão de todas as maneiras de conhecimento, o que permitiu que visse o que pensadores ‘racionais’ não conseguiram enxergar”, concorda Rattansi.

© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY

Selo da instituição com a frase Nullius in verba: não se confia apenas nas palavras, mas nos experimentos
O historiador Michael Hunter, do Birbeck College, em Londres, vê “exagero nessas afirmações”. “Alguns membros individuais podem até ter se aventurado na alquimia ou na busca por curas milagrosas, mas deixavam isso de lado quando se reuniam na Royal Society, que marginalizava buscar mágicas em detrimento do estudo da filosofia natural, da qual a instituição foi a maior propagadora publicamente”, fala Hunter. “É preciso lembrar que a Royal Society funcionava como uma entidade corporativa e teve um papel fundamental em estabelecer as fronteiras do que era ou não ciência”, observa. Segundo ele, nos artigos do Philosofical Transactions tais alquimias eram tratadas de forma tangencial, quando se falava delas. Era um ponto de honra para o seu editor, Henri Oldenburg, que rejeitava “magias”. “Encontramos raramente investigações de laboratório ligadas à alquimia, até mesmo porque o público intelectual da época rejeitava coisas sobrenaturais e entrar nessa seara significaria sujar a reputação de quem o fizesse”, analisa Hunter. Vale lembrar, no entanto, que as pesquisadoras encontraram também um documento, de punho e letra de Oldenburg, listando “as experiências feitas na Royal Society da Inglaterra durante a presidência de Sir Murray”, entre as quais se encontra a que foi realizada com o alkahest.
Seja como for, o ponto mais importante nessa história que, hoje, pode passar desapercebido é a padronização dos modos de pensar e operar no laboratório. “Num mundo em que a alquimia trabalhava com teorias e receituários sigilosos, cada grupo de estudiosos tinha diferentes formas de pensar e operar sobre a matéria. O trabalho da Royal Society e de Oldenburg, então, pode ser visto como uma forma de reunir esses grupos dispersos e estabelecer padrões de trabalho no laboratório que pudessem ser repetidos como reza a ciência moderna”, diz Ana.
Isso está presente na correspondência do secretário com o médico hermético veneziano Francesco Travagino. Oldenburg descobre que o amigo italiano convertera mercúrio comum em prata pura e desejava ter a receita. Ao enviá-la, Travagino lamenta ser incapaz de repetir o feito. A resposta de Oldenburg revela os anseios da época em encontrar um rumo moderno para a ciência do laboratório: para ele, uma das maiores dificuldades em qualquer procedimento era ter como um dos raros parâmetros a origem do material. “Assim como Boyle, Oldenburg pensava em estabelecer padrões claramente definidos de forma que o experimento pudesse ser reproduzido e universalmente aceito”, observa Márcia. As cartas revelam que o primeiro secretário da Royal Society, talvez, tenha sido bem mais do que um intelligencer trocando ideias com grandes figuras como Boyle. Um imigrante sempre visto com desconfiança e ciente de sua posição como secretário, Oldenburg preferiu compartir suas ideias e possível experiência de laboratório com outros membros dessa sociedade. Com isso teria obtido, em troca, posto oficial e um salário mais digno.
Partimos, então, para um novo mistério, relacionado à possível ingestão de sigilosos preparados herméticos, com consequências muitas vezes dramáticas, envolvendo novamente várias figuras do cenário inglês. Uma história ainda sob investigação, mas que as pesquisadoras prometem será muito bem fundamentada em documentos.
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Um naufragio cientificamente estudado - Carlos Haag (Pesquisa Fapesp)

O império no fundo do mar

Documentos da Royal Society mostram debate entre Estado e ciência a partir de naufrágio no Brasil
Carlos Haag
Revista Pesquisa Fapesp, edição 209, Julho 2013


© NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA
O quadro Death of a ship, H.M.S. Thetis de Owen Stanley (sem data), a única imagem conhecida do navio
O quadro Death of a ship, H.M.S. Thetis de Owen Stanley (sem data), a única imagem conhecida do navio
Após ter lido a versão em inglês da matéria Uma incômoda pitada de magia(edição 199 de Pesquisa FAPESP), Keith Moore, diretor dos arquivos da Royal Society, enviou uma mensagem avisando que havia se deparado com documentos sobre o debate iniciado na instituição após o naufrágio da fragata inglesa HMS Thetis em 1830 em Cabo Frio. Para Moore, não se tratava apenas de um caso curioso ocorrido que calhara acontecer no Brasil, mas de um evento que levantava questões importantes sobre o desenvolvimento da ciência da época.
Com uma tripulação de 300 homens e armada com 46 canhões, a Thetis voltava para a Inglaterra com US$ 810 mil, em valores da época. Para Moore, era um caso que levantava questões importantes sobre o desenvolvimento da ciência. No desastre, não se perdia apenas o tesouro, mas a crença no funcionamento da rede imperial inglesa, vista como infalível, e se colocava em xeque a capacidade dos ingleses de agir a distância. Era urgente descobrir o que acontecera e a ciência foi chamada a intervir, para entender as causas do naufrágio e, depois, recuperar a fortuna enterrada no fundo do mar. Esse processo está registrado nos documentos das discussões na Royal Society. Para Moore, o grande interesse científico que houve pelo desastre da HMS Thetis está relacionado ao início do movimento de união entre Estado e ciência a partir da questão marítima. Incipiente em início do século XIX, essa ligação seria a base para  a expansão imperial britânica do século XX.
A história do naufrágio é conhecida, mas a documentação só foi explorada por dois pesquisadores, ambos da Universidade de Londres: Felix Driver, do Royal Holloway, e Luciana Martins, do Birkbeck, autora de O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (2001). A dupla pesquisou o tema em Shipwreck and salvage in the tropics: the case of the HMS Thetis, 1830-1854, no Journal of Historical Geography. “O estudo da Thetis revela o que acontecia quando a rede de poder e conhecimento se quebrava e de que maneira a ciência foi chamada a reparar e recompor essa estrutura que mantinha em funcionamento o império inglês”, fala Luciana Martins. A pesquisadora brasileira doutorou-se em geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e há 17 anos está radicada em Londres, onde trabalha no Departamento de Estudos Ibero-Americanos no Birkbeck. “O interesse pela Thetis vem do encontro com as pinturas a óleo do resgate do tesouro de John Christian Sketchy no National Maritime Museum, em Londres, com lembranças da minha adolescência, quando passava férias em Arraial do Cabo, onde o naufrágio se tornara parte das lendas locais”, conta. Mais tarde viu que as lembranças do passado tinham uma importância para a história da ciência e, com Felix, foi aos arquivos, incluindo-se o Brasil, onde quase não há material.

© ROYAL MUSEUMS GREENWICH
O pintor e marinheiro John Christian Schetky retratou em Salvage of stores and treasure from HMS Thetis at Cape Frio Brazil, de 1833, o resgate do tesouro. Pode-se ver o sino de mergulho à direita
O pintor e marinheiro John Christian Schetky retratou em Salvage of stores and treasure from HMS Thetis at Cape Frio Brazil, de 1833, o resgate do tesouro. Pode-se ver o sino de mergulho à direita
Felizmente, os ingleses demonstraram um interesse muito maior sobre o desastre, como comprovam os documentos que estão na Royal Society, cujos debates começaram poucos meses após o afundamento da fragata. Em abril do ano seguinte ao acidente, o matemático Peter Barlow já perguntava aos fellows da Royal Society, em On the errors in the course of vessels, occasioned by local attraction: with remarks on the recent loss of His Majesty’s Ship Thetis: “Como entender um navio deixando o porto, com todos os auspícios de uma boa vaigem, arrebentar-se num rochedo distante não mais do que 70 milhas do seu ponto de partida e que se suponha estar milhas a leste?”.
A fragata naufragara em águas tidas como calmas e conhecidas dos marujos britânicos. Saindo do Rio, o capitão da Thetis estabeleceu erradamente a posição da embarcação em relação a Cabo Frio. Esse engano depois seria atribuído às “atrações locais” magnéticas que teriam afetado a bússola do navio, cujo casco era em boa parte feito de ferro, e levado o comandante ao erro (seja como for, na corte marcial, o capitão foi considerado culpado pelo naufráugio). O vento forte, que aumentou a velocidade do navio, só apressou a tragédia. Em pouco tempo, gritos da gávea avisaram da presença de rochas. O mastro projetado na proa se chocou com a ilha de Cabo Frio e o impacto fez cair os três mastros principais, matando marinheiros e destruindo escaleres. A fragata não afundou, mas o mar jogou o costado contra as rochas. O casco foi se arrebentando e o navio foi sugado para dentro de uma enseada, onde continuou sendo arremessado contra as pedras. Os ingleses escalaram para a terra até que a Thetis cedeu e afundou, deixando um saldo de 30 mortos.
O capitão mandou emissários ao Rio para avisar ao comandante da esquadra inglesa na América do Sul. A carga foi dada como perdida. Num relato submetido à Royal Society em março de 1833, cujo sumário sobreviveu, o capitão Thomas Dickinson, que se voluntariou para recuperar o tesouro, deu sua versão dos fatos. “Segundo ele, houve grande consternação no Rio quando se soube da perda da Thetis com uma carga de US$ 810 mil e o capitão lembra de sua determinação ao ver que ninguém parecia disposto a ir em frente para recuperar a propriedade assim perdida. Ele estava convencido de que os obstáculos e dificuldades eram formidáveis, mas poderiam ser superados com o emprego de meios que imaginou seriam praticáveis naquela ocasião”, diz o document hoje na instituição inglesa.

© ROYAL MUSEUMS GREENWICH
O capitão Dickinson. Na outra página, um desenho do sino de mergulho feito por seu rival, capitão De Roos
O capitão Dickinson
Dickinson construiu dois sinos de mergulho a partir de tanques de água que tirou de um navio, reforçando-os e colocando janelas de vidro para iluminar o interior, onde havia tochas. Preparou também uma bomba de ar para fornecer oxigênio, que foi impermeabilizada com alcatrão. “Isso deu a ele muito trabalho em face do atraso do trabalho nativo”, observa o document da Royal Society. A Thetis estava afundada no centro da enseada. Dickinson planejou colocar cabos de um penhasco a outro para descer com o sino. “O capitão conta que passou muitas dificuldades por causa da natureza terrível do trabalho, a insalubridade do clima, dos ataques de insetos, da exposição ao tempo nas cabanas de sapé, e pelos perigos dos mergulhos no mar, uma combinação de terrores que o autor está convencido de que só poderiam ser superados por marinheiros ingleses”, conta o sumário da instituição britânica. Dickinson narra ainda que marujos teriam visto “cinco tigres na praia”. Armados com rifles, os ingleses atiraram nas sombras e verificaram que se tratava de sea-pigs, capivaras. A “visita” de répteis de magnitude assustadora, como uma cobra, atemorizaram seu imediato, um homem “incapaz de se apavorar por bobagens”, mas a serpente, efetivamente, “mexia com os nervos dos mais fortes”, escreveu o comandante inglês.
Foram necessários vários mergulhos e algumas mortes até que se começasse a recolher a fortuna da Thetis do fundo do mar. Moravam em cabanas numa vila que batizaram de St Thomas e onde o capitão cumpria as obrigações de um britânico temente à pátria, celebrando datas como a Batalha de Trafalgar, da qual ele participara. Preocupado em ser roubado, Dickinson vigiava seus homens, e foi essa uma das razões de ter dispensado um grupo de brasileiros, os “caboclos”, que se juntaram a ele no início do resgate. Ainda assim, os marinheiros inventaram códigos entre os que estavam no fundo e os da superfície, avisando da presença ou não do capitão. Eram turnos de 12 horas sem comida ou descanso. Foram obrigados a remover os detritos que cobriam o naufrágio, incluindo-se corpos e a comida estragada da fragata, cujo gás tóxico quase matou um grupo de resgate.
“Foi um trabalho pioneiro. Ao mesmo tempo que Dickinson usava seu sino em condições extremas do mar revolto, Sir Basil Hall, celebrado viajante e pesquisador inglês, elogiava como ‘maravilha’ uma operação semelhante que se fazia em Portsmouth”, conta Luciana. O resgate da Thetis foi também uma das primeiras ocasiões em que foram feitos desenhos do fundo do mar, com os restos da fragata. “No caso da Thetis se investiu mais na história do seu salvamento do que na da sua perda. Na época, isso foi um tributo à perseverança humana diante do poder devastador da natureza”, dizem Felix e Luciana. “O olhar imperial via nesse processo uma rede mais ou menos coerente pela qual a informação circulava até que finalmente se traduzia num conhecimento estabelecido”, observam os pesquisadores.

© ROYAL SOCIETY
Desenho do sino de mergulho feito por seu rival, capitão De Roos
Desenho do sino de mergulho feito por seu rival, capitão De Roos
“O Estado e os cientistas mudaram seu foco das posições coloniais em terra para as vastas áreas inexploradas dos oceanos, um espaço intelectual fértil de significação comercial e imperial. Com isso, elevaram o status do recém-definido ‘cientista’. Da mesma forma que regulavam e manipulavam o oceano no papel, o Almirantado inglês usava o oceano físico para transportar tropas, riqueza e a cultura britânica para os confins do mundo”, observa o historiador americano Michael Reidy, autor deTides of history: ocean science and Her Majesty’s navy (University of Chicago). Segundo Reidy, o domínio naval da Inglaterra foi o resultado de uma colaboração estreita entre o Almirantado e a elite científica. Juntos, eles transformaram a imensidão sem dono do oceano numa rede organizada. Nesse processo emergiu, literalmente, o cientista moderno: um dos elos importantes dessa ligação, William Whewell, cunhou o termo “cientista” em 1833, no auge de seus estudos sobre as marés. “A ciência rompeu os limites de um apoio parcimonioso do Estado para ganhar um financiamento bem mais generoso e global para suas pesquisas”, explica o historiador.
Casos como a da Thetis obrigavam o sistema a melhorar sua rede de conhecimento e mostravam que, quando o assunto era mar, quanto maior a relação Estado e ciência, melhor. Os cientistas envolvidos no projeto imperial sabiam que o financiamento dos estudos sobre o mar eram dispendioso e só um país poderoso como a Inglaterra seria capaz de bancá-lo. “O oceano se transformou na área mais fértil de investigação, com fundos do Estado e um grupo internacional de cientistas. Foi o interesse pelo mar que fez com que a ciência virasse uma tarefa global que dependia pesadamente do apoio e da participação do governo. Isso modificou totalmente a maneira de se fazer e pensar ciência”, nota Reidy. O império foi sutilmente transmutado pela ciência e o cientista moderno, por sua vez, foi moldado pela demanda militar por inteligência e controle dos oceanos.
“O interesse dos fellows da Royal Society sobre o destino da Thetis deve ser visto no contexto desses esforços contemporânos de demonstrar a utilidade prática do pensamento científico e nada melhor para isso do que a  ciência da navegação”, fala Felix. Em seu Preliminary discourse on the study of natural philosophy (1830), o astrônomo John Hershel retratou o observador científico ideal como sendo um oficial naval bem treinado. A rota de um navio, por sua vez, era como uma espécie de hipótese, baseada em observações astronômicas cuidadosas e cálculos matemáticos, testada contra a experiência da chegada a salvo no destino. Se o navio era o instrumento do experimento, seu capitão era o homem de ciências exemplar. “Com a Thetis, ao contrário, a ‘experiência’ de navegação na ausência de pontos de referência falhou, com consequências catastróficas para o capitão e sua tripulação. Nesse contexto, a atribuição de causa e efeito foi inseparável da de responsabilidade e culpa”, observam Felix e Luciana.
Para que a rede do império, rompida momentaneamente pelo naufrágio, voltasse a ganhar a confiança geral, era fundamental se compreender, de forma científica, o que acontecera. Uma das respostas se ligava diretamente a um debate dos anos 1820 e 1830, quando autoridades em magnetismo terrestre alertavam para os efeitos magnéticos nas bússolas dos navios por causa da “atração local”. “Os navios de ferro eram testemunhos do poder da ciência no domínio inglês sobre as correntes magnéticas e oceânicas. Mas o destino dessa indústria estava em jogo com os problemas navegacionais que surgiram com o uso do ferro na construção das embarcações, já que o casco dos navios causava alterações nas bússolas, deixando-as pouco confiáveis”, diz a historiadora Alison Winter, da Chicago University, autora de Compasses all awry: the iron ship and the ambiguities of cultural authority in victorian Britain.
“Quando os navios começaram a se perder por causa das bússolas, a falta de um meio sólido de corrigi-las ameaçou afundar a credibilidade do público nos cientistas.” Segundo Alison, durante a era vitoriana, o tema das bússolas desorientadas e dos navios perdidos era usado para descrever incerteza espiritual e intelectual e falta de convenções claras e estabelecidas de autoridade. “As mesmas forças magnéticas usadas na navegação serviam para retratar como os líderes exerciam seu poder”, explica a historiadora.
A mistura de política e ciência, que dominará o periodo vitoriano, já estava latente no tempo da Thetis e a isso explica por que o Almirantado investiu mais de £ 500 nas pesquisas de Peter Barlow, professor de matemática na Royal Military Academy e membro da Royal Society. Para Barlow, “todo navio carrega em si um mal insidioso”, ou seja, o tal efeito do ferro sobre as bússolas. Na exposição feita em 1831 à Royal Society, Barlow usou como exemplo “o melancólico naufrágio do navio de Sua Majestade, a Thetis” para discutir essa “questão fundamental” e propôs que essa era a causa do desastre. Afinal, o casco do navio, embora de madeira, tinha grande quantidade de ferro na sua estrutura. “Se não se tomaram as precauções para corrigir as distorções da atração local, não hesito em afirmar que essa omissão foi o suficiente para causar o acidente”, afirma perante a plateia da Royal Society. “Se a ciência pode ser trazida para facilitar o progresso da navegação e contribuir para sua segurança, não se pode permitir que seja negligenciada na Marinha britânica”, completou Barlow.
O interesse da comunidade científica na Thetis não se restringiu às causas do naufrágio. Como se viu, relatos das operações de salvamento de Dickinson foram lidos na Royal Society, bem como o do capitão De Roos, seu successor nos destroços e o primeiro a remeter um relato aos fellows em 1833. Segundo o sumário da instituição, “o que sobrou do pobre navio foi submetido à grande pressão do mar, como se fosse um martelo e formou uma massa única que mistura madeira, ouro, prata e ferro”. De Roos também conta que “numa ocasião foram visitados por uma enorme baleia, que se aproximou muito do sino de mergulho, mas, por sorte, mudou seu curso”.
A troca de comando aconteceu a contragosto de Dickinson, que se viu colocado de lado após todo o seu esforço. Ao final, ambos entenderiam que o oportunismo partiu do comandante da esquadra inglesa no Rio, que queria louros e lucros para si, o que não impediria uma disputa entre os dois dentro da Royal Society em busca de reconhecimento pelo pioneirismo científico do resgate. Dickinson também se queixava de que, além das mazelas físicas, fora obrigado a dar conta de questões políticas no trato com os brasileiros. “Sempre tive medo da inveja do governo brasileiro sobre a nossa permanência na ilha. Fui acusado de interromper a pesca e depois de roubar madeira”, escreveu.
A pedidos, a municipalidade de Cabo Frio foi investigar o que fazia o grupo de ingleses em St Thomas. “Quando eles chegaram ficaram embasbacados ao ver uma vila com casas confortáveis. Nenhum falava uma palavra de inglês e depois de me encher com mais ‘ilustríssimos’ do que eu podia aguentar me disseram que tinham vindo ali para ver se eu era uma força de invasão.” Dickinson, gabando-se de ter aprendido português a ponto de não ser superado na quantidade de “ilustríssimos”, mostrou a sua “fortificação”, palavra que usa com ironia. Os brasileiros assustaram-se com um barulho que tomaram por um tiro de canhão e o britânico diverte-se ao narrar sua dificuldade em fazê-los entender que se tratava do barulho do jato de ar da bomba do sino de mergulho. Por fim, todos beberam a William IV, a Pedro I e à municipalidade de Cabo Frio.
“A ilha, no tempo da Thetis, era uma estação de pesca que desde o século XVI crescia regularmente. Assim, não procedem as observações de Dickinson de que a vila cresceu graças aos ingleses. Também não é de supreender que uma força militar acampada por 18 meses tenha inquietado o governo brasileiro”, notam Felix e Luciana. Para Dickinson, não havia por que pagar por madeiras e outros materiais, porque tudo na ilha “estava disponível e não se podia considerar propriedade”, reminiscências das fantasias da abundância e disponibilidade tropical. Mas acabaram tendo que pagar um aluguel pelo uso do espaço. Um preço pequeno a pagar pela redenção da falha implícita no naufrágio da Thetis. Embora até hoje não se saiba o que tenha provocado o fim da fragata, foi numa ilha brasileira que a ciência pôde resgatar a autoimagem do império naval britânico.