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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A Amazônia nas páginas da revista Pesquisa FAPESP

A revista Pesquisa Fapesp é uma espécie de Nature brasileira, ou seja, de excelente qualidade, com a peculiaridade que, à diferença da Nature, ela também se ocupa de ciências humanas e sociais (o que a Nature o faz episodicamente).
Paulo Roberto de Almeida

A floresta da chuva
O avanço do desmatamento da Amazônia causaria fortes mudanças no clima das regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, além da Bacia do Prata. A probabilidade de redução de chuvas nessas áreas seria grande. Simulações indicam que, se as três grandes florestas tropicais do planeta (Amazônia, da bacia do Congo na África e do Sudeste asiático) fossem totalmente desmatadas, os impactos climáticos poderiam atingir todo o globo, alterando o padrão de chuvas e prejudicando lavouras importantes, como a produção de grãos no centro-oeste dos EUA e os cultivos no sul da França
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As duas Amazônias
Os padrões de temperaturas e de chuvas já mudaram na região. Estudos mostram que a parte sudeste sofre uma extensão das estiagens na estação seca, enquanto a noroeste recebe um volume maior de chuvas no período mais úmido do ano. Mudanças apontam o risco de a Amazônia se tornar uma fonte de carbono, em vez de sumidouro, e de atingir o ponto em que as mudanças são irreversíveis.
Paulo Moutinho, de pé na floresta
O ecólogo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) já viajou por recantos distantes da Amazônia. Ao conversar com garimpeiros, agricultores, índios e ribeirinhos, ele busca elementos que permitam construir uma concepção de desenvolvimento sustentável para a região.
Crescer sem destruir
A Amazônia é uma terra de riquezas naturais cuja população, em boa parte, enfrenta privação de recursos básicos. A região Norte produz 5,4% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e, até hoje, seu crescimento econômico se deu em detrimento da floresta. O desenvolvimento sustentável da região exige mudança na agropecuária tradicional e aprimoramento do extrativismo agroflorestal.
Lauro Barata: A rede da riqueza natural
Estudar o pau-rosa, árvore amazônica que produz um óleo de grande valor na indústria de cosméticos, trouxe ao químico a comprovação dos benefícios de se pensar formas sustentáveis de extrair substâncias produzidas pelas plantas. Hoje, o pesquisador se dedica a conectar produtores, extrativistas em comunidades remotas e empresas centradas no uso de produtos naturais da região.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Mandonismo e patrimonialismo: origens antigas no Brasil - livro de Adelto Goncalves

A coisa vem de longe: nossos mandarins sempre tiveram privilégios nesta terra onde quem é amigo do rei, ou tem um cargo estratégico, nunca fica órfão. A lei só vale para os pobres e desprovidos de influência.
Paulo Roberto de Almeida

Privilégios ancestrais

Livro sobre a Justiça em São Paulo na época colonial descreve as raízes dos desmandos públicos no Brasil



Pesquisa Fapesp, n. 234 | AGOSTO 2015

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© ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
Charge de Manuel  de Araújo Porto-Alegre satirizava, no século XIX, as relações corruptas na Colônia
Charge de Manuel de Araújo Porto-Alegre satirizava, no século XIX, as relações corruptas na Colônia
Reconstituir o funcionamento da Justiça no Brasil colonial é, ao mesmo tempo, mapear as estruturas de poder do período, reconhecer arraigados maus costumes e observar a formação de uma elite que se manteria dominante até as primeiras décadas do século XX. Esse recorte define o livro Direito e justiça em terras d’el rei na São Paulo colonial 1709-1822, de Adelto Gonçalves, lançado em julho pela Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo. Verificar e descrever as atribuições dos membros de uma rede de poder que ocupava cargos de ouvidores, juízes de fora, provedores, corregedores, juízes ordinários e vereadores foi um dos objetivos primordiais de Gonçalves, que procurou seguir uma tendência recente na historiografia brasileira, “que procura privilegiar as pesquisas sobre as formas de governar”.
O autor, no entanto, não é da área de história e adquiriu familiaridade com o período que estudou pela porta da literatura. Jornalista aposentado, Gonçalves é doutor em Letras – Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e até 2014 lecionou língua portuguesa no curso de direito da Universidade Paulista (Unip), em Santos, que financiou sua pesquisa sobre a Justiça colonial em São Paulo. Seu interesse pelo assunto foi despertado por suas pesquisas de doutorado sobre o poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e pós-doutorado sobre o poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), esta realizada com apoio da FAPESP. Gonzaga foi ouvidor em Vila Rica e o pai de Bocage fez carreira no Judiciário em Portugal até ser acusado de desvios e cair em desgraça política. As suas pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa – complementadas no acervo do Arquivo do Estado de São Paulo –, permitiram estabelecer as atribuições dos altos funcionários do estado, começando pela relação completa dos governadores e capitães-generais (cargos concomitantes) no período estudado, corrigindo erros de listas anteriores.
“Fui levantando a nobreza da terra, as pessoas que mandavam e recorriam à Justiça para conseguir privilégios, como cargos e títulos”, diz o pesquisador. Eram os chamados “homens bons”, “que usufruíam tanto quanto podiam de suas relações com os representantes do poder”. Dessa casta saíam os camaristas ou vereadores – membros das câmaras municipais –, que, até fins do século XVII, acumulavam funções administrativas com o exercício da Justiça ordinária. Em geral, as vilas, tanto de Portugal quanto das colônias, mantinham apenas um juiz ordinário e um juiz de órfãos. No Brasil os casos criminais ficavam a cargo dos primeiros, que se baseavam, para julgá-los, apenas nos usos e costumes. Muitas vezes as câmaras nem sequer tinham sede apropriada. “Os julgamentos eram feitos embaixo de árvores por autoridades que não tinham formação em direito nem a quem recorrer, porque raramente havia nas colônias alguém formado em leis”, diz Gonçalves. Essas autoridades eram chamadas de “juízes pedâneos” porque julgavam de pé.
Já havia nessa época a figura do ouvidor-geral, criada por um regimento de 1628 que revogava a atribuição concedida aos titulares das capitanias hereditárias (capitães donatários) a fazer justiça nas terras de seu domínio. O envio regular de ouvidores e juízes de fora por Portugal, no entanto, só se deu no século XVIII. “Eram, pela primeira vez, especialistas em direito vindos da Universidade de Coimbra e tinham a missão de disciplinar e uniformizar a execução da Justiça”, diz Gonçalves. Como medida moralizante, os ouvidores não podiam se casar com mulheres residentes no Brasil sem autorização da Coroa, para não se envolver com as famílias poderosas e seus interesses econômicos. “Mas acabavam se envolvendo mesmo assim”, diz o pesquisador. “E, com o tempo, as famílias abastadas começaram a mandar seus filhos estudar em Coimbra e voltar aptos a ocuparem o cargo de juiz de fora.”
Na prática, apenas os pobres eram condenados pela Justiça colonial. Segundo um regimento de 1669, o ouvidor tinha autoridade para executar a pena de morte, sem apelação, para os crimes cometidos por escravos e índios. Mas, se um juiz ou ouvidor pretendesse punir um grande proprietário de terra, estava correndo risco. “Os que tinham prestígio ou haviam prestado favores à Coroa eram intocáveis.”
O ouvidor não podia ser preso ou suspenso por nenhuma autoridade local, nem mesmo o capitão-general. Suas decisões não se baseavam propriamente em leis formalizadas. Somente com o Regimento dos ouvidores-gerais do Rio de Janeiro, de 1669, e o Regimento dos ouvidores de São Paulo, de 1770, surgiram referências explícitas para aplicação geral de princípios. Foi também com esses decretos que o ouvidor-geral passou a ter o cargo civil mais alto das possessões portuguesas de ultramar. As apelações tinham duas instâncias, o Tribunal de Relação da Bahia e a Casa da Suplicação, em Lisboa, mas raramente os processos passavam da instância primária.
Os ouvidores tinham enorme poder econômico em mãos, uma vez que cabia a eles a fiscalização do recolhimento de tributos e outras fontes de receita. Desde o século anterior, a maior parte dos ingressos financeiros de Portugal vinha das colônias ou das alfândegas. Também cabia ao ouvidor fiscalizar os gastos e a atuação de vereadores e juízes ordinários – embora não pudesse se imiscuir nas funções da Câmara, que, a essa altura, tinha suas atribuições autônomas reduzidas à execução de pequenas obras. O poder das Câmaras, ocupado por filhos e netos das primeiras elites, manteve-se de modo mais ou menos simbólico. “Eram ocupados por aqueles potentados que viriam décadas depois a ser chamados de ‘coronéis’”, diz Gonçalves.
O poder nas mãos dos prepostos da Coroa era tal que, para obter e manter privilégios e recursos indevidos, jogavam com a possibilidade de estimular a secessão da Colônia. “Portugal era, a rigor, um país pobre nessa época”, diz Gonçalves. “Não tinha Exército ou outros meios para reprimir rebeliões pela força.” Foi assim que proliferaram as figuras dos “grossos devedores”, autoridades locais que desviavam tributos até que a Coroa, para recuperar essa “dívida”, entrava em acordo com vistas a um ressarcimento parcial. Segundo Gonçalves, “a questão fundamental residia na própria fragilidade do reino, que, para sobreviver, sempre permitia brechas para ações praticadas sob a proteção do próprio Estado”.
A própria narrativa histórica dominante até há poucas décadas traz sinais desse modelo – enquanto os posseiros ricos e, até certo ponto, aliados da Coroa foram identificados como desbravadores, os lavradores que ocupassem terras eram “invasores” ou “intrusos”. “Como mostram os documentos, os juízes quase sempre usaram o direito para interpretar cartas de doação, revogação de sesmarias, sucessões e desmembramentos de terras de acordo com os interesses dos poderosos locais”, diz o pesquisador.
© REPRODUÇÃO
Reprodução de documento relativo a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Reprodução de documento relativo a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Justiça Eclesiástica
Outro aspecto da Justiça em São Paulo no mesmo período histórico é tema de um projeto de pesquisa em andamento no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Um grupo de pesquisadores coordenado pelo professor Marcelo Módolo está às voltas com documentos que registram processos relativos à suposta prática de feitiçaria. A pesquisa intitulada Bruxas paulistas: edição filológica de documentação sobre feitiçaria consiste no estudo e na transcrição dos 12 processos desse tipo abertos entre 1739 e 1771 pela Justiça eclesiástica, braço do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) no Brasil, depositados no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.
A Justiça eclesiástica corria paralelamente à Justiça comum, que, no entanto, acatava as decisões da primeira, uma vez que o Estado assumia para si a fé católica. Promotores e juízes eclesiásticos eram membros da Igreja que avaliavam denúncias, procediam às investigações e proferiam a sentença. A execução cabia à Justiça comum. “Eram procedimentos parecidos com o atual inquérito policial”,  explica a doutoranda em Letras Nathalia Reis Fernandes, graduada em Letras e Direito, integrante do grupo de pesquisa. Entre as penas possíveis estavam a morte e a perda de bens – nesses casos, o processo era enviado para a sede do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Foi o que aconteceu com dois dos casos estudados, mas não é possível, pela documentação acessível no Brasil, saber se eles resultaram em execuções.
Os réus eram quase sempre negros e muitas das acusações estavam ligadas a práticas das religiões de origem africana. Há desde processos supostamente relacionados a mortes, como a da escrava Páscoa, acusada de “uso de magia” para causar pelo menos quatro mortes numa mesma família, até casos banais, como o do escravo Pascoal José de Moura (um dos poucos réus identificados por nome e sobrenome nos documentos), processado por confeccionar patuás. “Há também o caso de um grupo de homens negros que foram presos por participar de um batuque em que havia uma cabra e um casco de cágado”, conta Módolo.
O estudo coordenado por Módolo está na fase do estudo filológico e linguístico, começando pela transcrição “semidiplomática” dos documentos – aquela que procura manter a ortografia e a sintaxe originais. O trabalho é dificultado por lacunas causadas pela deterioração do material, caligrafia particularmente complicada e ortografia desafiadora numa época em que as pessoas letradas eram minoria e não havia padronização rígida da língua escrita. Uma segunda fase deverá se debruçar sobre os reflexos historiográficos dos processos relatados nos documentos. n
LivroGONÇALVES, Adelto. Direito e Justiça em terras d’El Rei na São Paulo colonial 1709-1822. Imprensa Oficial. São Paulo, 2015

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Goethe e o Brasil - Rodrigo de Oliveira Andrade (Pesquisa Fapesp)

Goethe à brasileira

Produção literária do poeta alemão foi influenciada por obras de naturalistas que viajaram pelo Brasil no século XIX
Revista Pesquisa Fapesp, n. 242 | Abril 2016

© REPRODUÇÃO DO LIVRO LEBENSFLUTEN – TATENSTURM | REPRODUÇÃO DO LIVRO BIS AND DIE STERNE WEIT
Tulipas, prímulas e rosas ilustram o estudo de Goethe A metamorfose das plantas
Tulipas, prímulas e rosas ilustram o estudo de Goethe A metamorfose das plantas
Em 1817, em vista do casamento da arquiduquesa Leopoldina com o príncipe herdeiro e futuro imperador do Brasil, dom Pedro, começou a ser planejado na Áustria o que ficou conhecido como expedição austríaca, investigação científica que trouxe ao país pesquisadores e artistas para estudar e retratar espécies e paisagens próprias da biodiversidade brasileira. Entre os membros da comitiva que acompanhou a arquiduquesa na viagem nupcial ao Brasil, estavam o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martius, que iniciaram no Rio de Janeiro uma longa jornada pelo interior do país. A viagem deu origem à Flora brasiliensis, obra que revelou detalhes do Brasil ao Velho Mundo. Essa história, bem documentada, deu origem a outra, menos conhecida: as literaturas de viagem incluíram o Brasil no círculo de estudos e interesses do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que não só se correspondeu com Martius como também o encontrou várias vezes após seu retorno à Alemanha.
No dia 13 de setembro de 1824, Goethe registrou em seu diário a visita de Martius a sua casa em Weimar, Alemanha. Entre outros detalhes do encontro, o poeta menciona ter pendurado em seu escritório um grande mapa do Brasil para saudar o naturalista, ao qual se referia como “o brasileiro Martius”. “Podemos tomar esse gesto como símbolo do interesse que Goethe demonstrou pelo Brasil em vários momentos de sua vida”, diz o pesquisador Marcus Mazzari, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP). Mazzari estudou os diários de Goethe e consultou suas fichas de empréstimos na biblioteca de Weimar, que registram a retirada de vários livros sobre o Brasil, entre eles Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817, do príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied, primeiro naturalista de renome vindo da Alemanha para estudar o Brasil. Na obra de 1820, Wied-Neuwied apresenta um registro dos locais por onde passou, com descrições sobre geologia, fauna e flora, além dos habitantes e seus costumes. Em outro trecho de seu diário, Goethe assinala a leitura do livro Viagem ao interior do Brasil, publicado em 1812 pelo geólogo inglês John Mawe.
© WIKIPEDIA
Goethe: constante intercâmbio científico com naturalistas alemães
Goethe: constante intercâmbio científico com naturalistas alemães
Mazzari apresentou esses e outros aspectos de suas pesquisas sobre as relações de Goethe com cientistas que viajaram pela América do Sul no século XIX em um colóquio na Biblioteca Brasiliana Mindlin, em março, na USP. Segundo o pesquisador, o poeta alemão começou a se interessar pelo Brasil em 1782, quando escreveu dois poemas, com o subtítulo Brasilianisch, inspirados no ensaio “Dos canibais”, do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592). Nele, Montaigne faz sua interpretação de duas canções em tupi que ouvira em Rouen, França, de três índios brasileiros. A relação de Goethe com o Brasil intensificou-se quatro décadas mais tarde, a partir de seu contato pessoal com Martius e as primeiras versões do que viria a ser a Flora brasiliensis, que o poeta alemão leu e releu enquanto elaborava a conclusão de Fausto II, segunda parte de sua obra clássica. “No Fausto II há diversas metáforas botânicas, que talvez possam ser tributárias do intenso intercâmbio científico que Goethe estabeleceu com Martius”, explica Mazzari.
O naturalista chegou a enviar a Goethe amostras do material recolhido durante a expedição no Brasil, o que teria influenciado as concepções do poeta sobre o formato das plantas e seu processo de metamorfose. Em março de 1831, Goethe retirou mais uma vez da biblioteca de Weimar o atlas da descrição da viagem de Spix e Martius pelo Brasil, enquanto se ocupava com os estudos feitos pelo botânico sobre a vegetação brasileira. Ao estudar o Brasil, o escritor estava interessado em dois assuntos: geologia e botânica, especialmente a teoria de Martius sobre a “tendência espiral das plantas”. Para Mazzari, isso mostra a amplitude dos interesses de Goethe, que pesquisou várias áreas do conhecimento e se correspondeu com os mais influentes cientistas de seu tempo até o fim da vida.
© REPRODUÇÃO DO LIVRO LEBENSFLUTEN – TATENSTURM | REPRODUÇÃO DO LIVRO FLORA BRASILIENSIS
Reprodução de espécie no livro Flora brasiliensis, de Martius, autor de uma teoria sobre a “tendência espiral das plantas”
Reprodução de espécie no livro Flora brasiliensis, de Martius, autor de uma teoria sobre a “tendência espiral das plantas”
As obras de Goethe também ajudaram a aperfeiçoar os recursos literários de Martius. O jovem botânico, em seus anos brasileiros, carregava consigo os livros Fausto I e Metamorfose das plantas, investigação botânica de Goethe publicada pela primeira vez em 1790. “Os escritos de Martius revelam excelentes recursos literários, como demonstra o relato Viagem pelo Brasil 1817-1820”, destaca Mazzari. A leitura das obras de Goethe, principalmente do Fausto I, parece ter sido importante para o Martius escritor. Durante a expedição brasileira, sobretudo na etapa amazônica, o naturalista escreveu poemas sobre os ambientes que visitou e os enviou a Goethe. Outro exemplo do interesse literário de Martius é observado em Frei Apolônio – Um romance do Brasil, escrito em 1831 e ambientado no país.

quinta-feira, 17 de março de 2016

A batalha da Abolicao - Angela Alonso (Pesquisa Fapesp)

A batalha da Abolição

Estudo reconstrói a importância do movimento abolicionista como força social que levou à libertação dos escravos
MÁRCIO FERRARI | Pesquisa FAPESP, Ed. 240 | FEVEREIRO 2016
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Missa campal em celebração à abolição dos escravos e ilustração que representa um abolicionista, escravos e o Parlamento
Missa campal em celebração à abolição dos escravos e ilustração que representa um abolicionista, escravos e o Parlamento
A história da Abolição não se restringe apenas às iniciativas legais do governo imperial, nem à conjuntura econômica internacional, tampouco às rebeliões dos escravos. Foram essas as linhas predominantes que guiaram as interpretações acadêmicas sobre o assunto até agora. Um robusto movimento abolicionista, com sua contrapartida escravista, também teve papel histórico central durante os 20 anos (1868-1888) que precederam a Lei Áurea. É dessa perspectiva pouco conhecida que se alimenta o livro Flores, votos e balas, pela editora Companhia das Letras. A autora é a socióloga Angela Alonso, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A pesquisa, que incluiu um ano na Universidade Yale (EUA), durou seis anos.
“Por ser socióloga e adotar um ângulo interdisciplinar, prestei atenção na mobilização do espaço público, à qual os historiadores talvez não tenham dado a devida importância”, diz Angela, também autora de Joaquim Nabuco (2007), biografia do político abolicionista pernambucano. “Percebi que, por sua estrutura e características, eu estava diante de um movimento social conforme descreve a teoria sociológica e muito semelhante estruturalmente aos que ocorreram na Inglaterra e nos Estados Unidos.” Não por acaso, um dos pontos que a pesquisadora enfatiza em seu estudo é a conexão de parte do movimento abolicionista brasileiro com ativistas da causa no exterior. “Raramente tivemos um estudo de abrangência tão grande sobre o assunto”, diz a professora Lígia Fonseca Ferreira, do Programa de Graduação e Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estudiosa do período e biógrafa do advogado, abolicionista e poeta negro Luiz Gama (1830-1882).
Um dos expoentes da vertente internacionalista da militância contra a escravidão foi o educador Abílio Borges (1824-1891), que, apesar de pertencer à elite imperial, mantinha laços estreitos com associações inglesas e francesas que lutavam contra a escravidão no além-mar. Borges, segundo Angela, “apostou no vexame externo” ao promover uma petição emancipacionista assinada por políticos franceses e entregue ao imperador Pedro II por intermédio do Ministério de Assuntos Estrangeiros da França. “O documento embaraçou dom Pedro”, narra Angela. “Arranhava a reputação do Império aparecer como terra escravista.”
© DIVULGAÇÃO
Confederação abolicionista em 1888, com José do Patrocínio (em pé, primeiro à esq.) e André Rebouças (sentado, primeiro à esq.)
Confederação abolicionista em 1888, com José do Patrocínio (em pé, primeiro à esq.) e André Rebouças (sentado, primeiro à esq.)
Personagens
Borges, que até agora era mais conhecido por ter inspirado Raul Pompeia a criar o personagem do diretor da escola no romance O ateneu, é uma das figuras centrais de Flores, votos e balas, assim como o conhecido abolicionista André Rebouças (1838-1898), engenheiro negro muito requisitado como projetista de obras modernizadoras e interlocutor dos círculos de poder. Do lado dos escravistas, Angela destaca a figura de Paulino Soares de Sousa (1834-1901), fio condutor das táticas e manobras da ala “emperrada” (isto é, inflexível) do Partido Conservador no Parlamento.
O governo (ou o Estado), lembra a socióloga, é o vértice necessário de um triângulo formado pelo movimento abolicionista e seus contramovimentos na sociedade. “Sinal claro desse jogo é que o Estado ora trouxe o abolicionismo para dentro do Parlamento, ora o reprimiu”, diz Angela, referindo-se às sucessivas mudanças de orientação política durante o período estudado, em que se alternaram na chefia do governo, por exemplo, Manuel de Sousa Dantas, abolicionista do Partido Liberal (1884-5), e o Barão de Cotegipe (João Maurício Wanderley), escravista do Partido Conservador (1885-8).
A indecisão política mostra, segundo a pesquisadora, que não faz sentido a ideia, relativamente difundida, de que a abolição foi um processo consensual ou inelutável. A pesquisa indica que a ideia da emancipação dos escravos encerrava ameaças consideráveis à ordem estabelecida. “O Império era fundado na escravidão, não só na economia”, afirma Angela. “A hierarquia social era baseada na posse de bens que davam poder e prestígio, e os bens mais importantes eram os escravos. A escravidão sustentava também o sistema partidário, porque o eleitorado era definido com base na renda.”
O romancista José de Alencar (1829-1877), deputado conservador e um dos porta-vozes mais ativos do antiabolicionismo, diante do quadro que se avizinhava, advertiu em 1867: “Um sopro bastará para […] lançar o Império sobre um vulcão”. Não se tratava, no entanto, de defesa aberta do escravismo, mas de retórica do medo para tentar adiar o processo. É o que Angela chama de “escravismo de circunstância”: setores do Parlamento eram “compelidos pela conjuntura a justificar a situação escravista, sem defender a instituição em si, que, reconheciam, civilização e moral condenavam naquela altura do século”.
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Parlamento durante a votação da Lei Áurea em 1888 e a multidão do lado de fora: texto reduzido ao mínimo necessário
Parlamento durante a votação da Lei Áurea em 1888…
Cenário mundial
Havia-se chegado a esse tenso estado de coisas mediante o processo sobre o qual Angela se debruçou, composto de duas dinâmicas, uma mundial, outra interna. “No âmbito externo, havia um ciclo de abolições pelo mundo e o Brasil se mantinha escravista, chamando a atenção internacional”, diz Angela. O processo tem o ponto de maior tensão em 1850, quando a Inglaterra impõe o tratado do fim do tráfico de escravos, embora o Brasil demore a efetivá-lo. Contudo, até a década de 1860, o Brasil se encontrava mais ou menos protegido pelo fato de haver no mundo ocidental dois outros exemplos escravistas de grande porte, a Espanha, com suas colônias de Porto Rico e Cuba, e os Estados Unidos.
Mas, à medida que esses países avançam rumo ao fim da escravidão, o Brasil foi ficando isolado no cenário mundial. Isso provocou uma inevitável divisão da elite política. “Não se tratava mais de responder ou não à pressão internacional, mas em que velocidade”, ressalta Angela. O processo culmina quando o Parlamento aprova a tramitação da Lei do Ventre Livre, em 1871, como “um sinal de que o Brasil era civilizado”. Nesse momento, observa Angela, já havia uma mobilização articulada na sociedade. “Ressalto que o processo não começa em 1879, quando Nabuco e José do Patrocínio [1854-1905] partem para a atuação no espaço público, e sim na década anterior”, diz a pesquisadora.
Essa trajetória, que culminará na abolição, é dividida por Angela nas três fases enunciadas no título de seu livro: flores, votos e balas. As flores se referem ao símbolo das manifestações abolicionistas promovidas, entre outros, por Borges e Rebouças, que, além de suas atividades de articulação política, criavam associações e cerimônias públicas. “A abolição começou a ser propagandeada em espaços que não eram genuinamente políticos”, diz a socióloga. Em pouco tempo, os teatros passaram a dar abrigo a essas manifestações, intercaladas com números artísticos. Diferentemente do que ocorreu nos EUA, onde os polos de difusão das campanhas abolicionistas civis foram as igrejas quakers, no Brasil o catolicismo era não só credo predominante, mas também religião oficial do Estado. Isso favoreceu a conquista de almas para o abolicionismo entre a elite social e camadas intelectuais, que tinham no teatro sua maior diversão. Os princípios e atividades abolicionistas também se beneficiaram nessa época de avanços que permitiram a impressão e circulação de publicações independentes.
As “conferências-concerto”, como chamavam os ativistas, espalharam-se pelo país. Em 1883, começaram a ser acompanhados por uma adaptação da estratégia norte-americana de organizar rotas de fuga de escravos para territórios livres. A diferença entre o Brasil e os EUA é que aqui não havia territórios oficialmente livres – foram criados pelos abolicionistas, em ruas ou bairros. Aos poucos, os ativistas vão liberando territórios, contando com a aceitação dos proprietários ou recorrendo a campanhas de arrecadação para pagar a alforria dos escravos.
© DIVULGAÇÃO
... e a multidão do lado de fora: texto reduzido ao mínimo necessário
… e a multidão do lado de fora: texto reduzido ao mínimo necessário
Ativismo jurídico
A estratégia tornou-se campanha nacional e deu certo principalmente no Ceará e no Amazonas, que tinham relativamente poucos escravos e contavam com presidentes de província abolicionistas. No caso do Ceará, a movimentação gerou a abolição da escravidão dentro dos limites da província em 1884 – que passou a ser um destino para escravos fugidos e libertos de todo o país. Também de inspiração estrangeira foi a estratégia de Luiz Gama ao buscar inconsistências na lei para pedir a libertação de escravos nos tribunais. “Gama fazia parte de uma facção do abolicionismo que defendia o ativismo jurídico, divergindo de Nabuco, para quem a reforma deveria ser feita no Parlamento”, diz Lígia Fonseca. Angela argumenta que “não havia propriamente divergência entre eles, mas complementaridade de estratégias, cada um recorrendo a um estilo de ativismo”.
A libertação dos escravos no Ceará abre a fase dos “votos”, quando a classe política decide reagir. Com a indicação de Sousa Dantas para a chefia do governo imperial, em 1884, os abolicionistas colaboraram na redação do programa de governo e lançaram 51 candidaturas em apoio a ele. No entanto, os abolicionistas perdem, “menos nas urnas do que na apuração”, segundo Angela. Com a queda de Dantas, sobe o governo escravista de Cotegipe e começa o período das “balas”, com repressão aberta e acirrada às atividades abolicionistas, posta em prática pela polícia ou por milícias à paisana. “É nesse momento que o processo de desobediência civil ganha escala”, afirma a pesquisadora. José do Patrocínio diz que “os abolicionistas sinceros estão preparados para morrer”. Para o historiador Carlos Castilho, professor da Universidade Vanderbilt (EUA), essa é uma evidência da importância dos movimentos sociais no processo estudado. “As lutas pela participação política e cívica têm as próprias histórias e precisam ser repensadas pela historiografia”, diz Castilho.
Em grande parte graças ao movimento social abolicionista, a causa ganhou adesão ou tolerância na sociedade. “No final do processo, o abolicionismo contava com apoio tácito da população urbana, que se calava diante das fugas”, diz Angela. “A escravidão foi sendo comida por todos os lados.” O re-sultado do processo foi, contudo, um empate. Os escravistas cederam, mas os abolicionistas não conseguiram implementar seu programa com extensão de direitos aos libertos. Venceu o empenho do gabinete de João Alfredo em fazer da Lei Áurea uma simples declaração de dois parágrafos, sem as indenizações aos proprietários, mas também sem garantias de vida digna aos ex-escravos.
Projetos
1. Circulação de ideias e estratégias de ação no movimento abolicionista (nº 2009/05921-1); Modalidade Bolsa no Exterior – Regular – Novas Fronteiras; Pesquisadora responsável Angela Maria Alonso (FFLCH-USP/Cebrap); Investimento R$ 78.689,12.
2. Abolicionismo como movimento social (nº 2012/08495-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Angela Maria Alonso (FFLCH-USP/Cebrap); Investimento R$ 116.566,11.
Livro
ALONSO, A. Flores, votos e balas – O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 568 p.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

As primeiras revistas cientificas (ou porque a Europa saiu na frente) - Carlos Fioravanti (Pesquisa Fapesp)

Os primeiros journals

Publicações especializadas em ciência começaram a circular há 350 anos na França e Inglaterra
CARLOS FIORAVANTI | 
Pesquisa Fapesp, n. 227 | Janeiro de 2015
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© JOURNAL DES SAVANTS
Capa da primeira edição da revista francesa depois chamada Journal des Savants
Capa da primeira edição da revista francesa depois chamada Journal des Savants

Um boletim de 12 páginas com o título de Journal des Sçavans chegou às mãos dos moradores de Paris no dia 5 de janeiro de 1665. Dois meses depois, em 6 de março, saía em Londres o primeiro número da Philosophical Transactions. Eram as primeiras revistas científicas da Europa – mais tarde chamadas genericamente de journals –, que desde então sofreram numerosas mudanças para se adequar às circunstâncias, ao tempo e às transformações da ciência. As duas circulam até hoje.
O primeiro número de Le Journal des Sçavans, com oito itens, dos quais sete eram resenhas de livros, foi publicado quase dois anos antes da fundação da Academia Real de Ciências da França. Depois chamada Journal des Savants (savant significa estudioso ou sábio), a revista oferecia notícias sobre avanços da ciência – a exemplo da primeira transfusão de sangue na França, em 1667 – e das artes, decisões do governo e da Igreja, resenhas de livros e obituários, entre outros tópicos. Seu primeiro editor foi Denis de Sallo, conselheiro do Parlamento de Paris, advogado, escritor e homem de confiança de Jean-Baptiste Colbert, ministro das Finanças do rei Luís XIV.

© ROYAL SOCIETY
Capa da primeira Philosophical Transactions, da Royal Society
Capa da primeira Philosophical Transactions, da Royal Society

Le Journal des Savants viveu com o patrocínio real até 1701, parou de circular em 1792 – durante a Revolução Francesa (1789-99) – e foi retomado e reorganizado em 1816, centrando-se em literatura. A revista foi mantida com recursos do governo federal e depois do Instituto de França, que reúne as principais instituições acadêmicas francesas. Uma das integrantes do instituto, a Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, assumiu a publicação a partir de 1909. Nesse mesmo ano a revista publicou um relato do geógrafo francês Paul Vidal de La Blache, mencionando as regiões montanhosas do sul do Brasil. Inicialmente semanal, o periódico é semestral desde 1992.
A inglesa Philosophical Transactions, desde o início maior e mais abrangente que a similar francesa, depois também mudou de nome para Philosophical Transactions of the Royal Society. O uso da palavra Philosophical se refere a natural philosophy (filosofia da natureza), o equivalente ao que depois se tornaria conhecido como ciência. Portanto, o título poderia ser traduzido livremente, hoje, como transactions of science ou “operações de ciência”. O primeiro número – de 16 páginas e 11 itens, entre eles relatos sobre lentes, anéis de Júpiter, um minério de chumbo da Alemanha, um bezerro deformado e o uso de relógios de pêndulos para determinar a longitude no mar – foi editado por Henry Oldenburg, primeiro secretário da Royal Society, criada quatro anos antes. Diplomata e filósofo, Odenburg iniciou a prática da revisão por pares (peer review), enviando um artigo para análise de especialistas antes de publicá-lo.

© ROYAL SOCIETY
Ilustração de um eclipse lunar relatado em 1665
Ilustração de um eclipse lunar relatado em 1665

Desde o início com periodicidade mensal, a revista se propunha a registrar, certificar (por meio da revisão por pares), disseminar e arquivar os avanços da ciência. O plano editorial deu certo, e o periódico publicou alguns trabalhos fundamentais para a ciência, como a teoria de Isaac Newton sobre a luz e as cores, em 1672. Os trabalhos de outros cientistas ingleses importantes, como Robert Boyle, James Clerk Maxwell, Charles Darwin e, mais recentemente, Stephen Hawking, também saíram na Philosophical Transactions. Em 1887 a revista cresceu e foi dividida em duas. A primeira trata das ciências físicas, a Philosophical Transactions of the Royal Society A: Physical, Mathematical and Engineering Sciences; a segunda, das biológicas, Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences.
A revista mais antiga da Royal Society publicava as cartas entre os membros da associação ou a eles encaminhadas. O primeiro relato sobre o Brasil foi uma carta, com a data de 1º de janeiro de 1731. Tinha sido escrito por Jacob de Castro Sarmento, médico judeu português que havia se refugiado em Londres, para o então secretário da Royal Society, Cromwell Mortimer, descrevendo os diamantes encontrados em Serro do Frio, em Minas Gerais. Uma exposição aberta em dezembro de 2014, em cartaz até junho de 2015, é uma das atividades promovidas pela Royal Society para marcar os 350 anos da revista.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Patentes: uma cultura que recem desponta no Brasil - Pesquisa Fapesp

Caminhos para a proteção intelectual

Especialistas recomendam busca em bases de patentes antes mesmo do início de projetos de pesquisa
Pesquisa FAPESP, Edição 217 - Março de 2014

© DANIEL BUENO
Quanto mais patentes tem um pesquisador, maior é a possibilidade de ele deixar a academia para comercializar os resultados dos estudos e ser mais bem recompensado. Pelo menos é o que mostra um artigo da revista Nature, de 2 de janeiro, que comenta um estudo realizado com pesquisadores belgas no período de 1996 a 2005. No Brasil ainda não existe uma tendência como essa, mas sim um aumento do cuidado entre os pesquisadores e universidades em depositar patentes antes da publicação em periódicos científicos. É uma cultura que está se formando. Para os pesquisadores que ao final de um projeto acreditam que os resultados obtidos são passíveis de proteção intelectual, especialistas recomendam, como primeiro passo, a análise de três itens: saber se a invenção constitui realmente uma novidade, se ela se enquadra em uma atividade inventiva e se pode ser aplicada industrialmente.
Os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) vinculados a universidades e institutos de pesquisa, também chamados de agência de inovação ou coordenadoria de propriedade intelectual, são os responsáveis pela avaliação dos requisitos de patenteabilidade e pela interação entre o setor público e privado.“O comunicado de invenção preenchido pelo pesquisador contém as informações necessárias para que nossos especialistas compreendam a tecnologia, façam a busca em bases públicas de patentes do Brasil e do exterior e, se for o caso de proteção, definam a estratégia mais adequada”, diz Patrícia Leal Gestic, diretora de Inovação e Propriedade Intelectual da Agência de Inovação (Inova) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Quando faço a comunicação de invenção, a Inova recomenda que eu também faça uma busca de anterioridade nas bases de patentes internacionais, como Derwent e USPTO [United States Patent and Trademark Office]”, diz o professor Oswaldo Alves, coordenador do Laboratório de Química do Estado Sólido e do Laboratório de Síntese de Nanoestruturas e Interação com Biossistemas da Unicamp. Alves fala com conhecimento de causa – ele já teve 25 patentes depositadas, 3 delas internacionais, e 5 cartas-patentes concedidas, além de ter fechado um contrato de transferência de tecnologia com a empresa Contech, de Valinhos, no interior paulista.
Patrícia ressalta que a agência recomenda aos pesquisadores usar as bases públicas de patentes não só para analisar tecnologias com potencial de patenteamento, mas também antes de iniciar um novo projeto de pesquisa. “Quando essa consulta é feita antes, o pesquisador já começa a planejar a sua pesquisa com foco no ineditismo e na possível aplicação da tecnologia”, diz Vera Crósta, consultora na área de inovação e transferência de tecnologia na VC Consultoria e da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei).“O foco é o avanço do conhecimento, ir além do que já foi feito”, aconselha Vera, graduada em farmácia industrial e especializada em qualidade e gestão da inovação. “Se a busca ficar restrita a bancos de artigos acadêmicos, o pesquisador estará um ou dois anos defasado no estado da técnica”, diz Vera. Em muitos países já existe a cultura de que o depósito da patente deve anteceder a publicação de artigos científicos principalmente em áreas tecnológicas. “O artigo científico só deve ser submetido para publicação quando já existir um número de protocolo de depósito concedido pelo INPI [Instituto Nacional da Propriedade Industrial]”, diz Alves.
Vera ressalta que é importante que os NITs tenham pessoal qualificado para avaliar a tecnologia e seu potencial, “porque é preciso ter um olhar de mercado para saber quais suas possíveis aplicações”. Tudo aquilo que precisa ser protegido em uma patente está descrito no quadro reivindicatório do pedido.“Se as reivindicações forem feitas só com um olhar acadêmico, o escopo de abrangência possivelmente estará restrito”, diz. É preciso entender as possibilidades de aplicação também no mercado. Tecnologias com vários usos diferentes, para atender a setores distintos, ampliam o leque de aplicações e normalmente têm maior potencial para serem comercializadas. Sigilo, propriedade intelectual e participação nos resultados são, na avaliação da consultora, os pontos nevrálgicos em uma negociação. “Quando os especialistas decidem que a invenção não se enquadra nas regras da proteção, ainda assim buscamos estabelecer estratégias para comercialização do know-how”, diz Patrícia, da Inova.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A FEB, os pracinhas e o legado de cidadania dos "pracinhas" - Pesquisa Fapesp

Em busca da “guerra boa” dos pracinhas

Historiadores advertem que a FEB deixou legado de cidadania
CARLOS HAAG
Pesquisa Fapesp, Edição 210 - Agosto de 2013

© ACERVO ICONOGRAPHIA
A FEB parte para a Itália e soldados se despedem de suas famílias, em foto de abril de 1944
A FEB parte para a Itália e soldados se despedem de suas famílias, em foto de abril de 1944
Há exatos 70 anos, no dia 13 de agosto de 1943, foi criada a Força Expedicionária Brasileira (FEB). As tropas saíram para o combate no dia 2 de julho de 1944. Pouco antes de o navio-transporte General Mann partir, com 5.075 soldados a bordo, Getúlio Vargas despediu-se dos “pracinhas”: “Soldados da Força Expedicionária. O chefe do governo veio trazer-vos uma palavra de despedida, em nome de toda a nação. O destino vos escolheu para essa missão histórica de fazer tremular nos campos de luta o pavilhão auriverde. É com emoção que aqui vos deixo os meus votos de pleno êxito. Não é um adeus, mas um ‘até breve’, quando ouvireis a palavra da pátria agradecida”.
No retorno, em 1945, a promessa não foi cumprida. “A gestão da desmobilização dos pracinhas foi politicamente conservadora a fim de evitar a participação dos expedicionários nos conflitos de poder do Estado Novo com um progressivo esquecimento social dos expedicionários. Os veteranos foram abandonados pelas autoridades civis e militares e a legislação de benefícios foi apenas praticamente ignorada e houve uma apropriação crescente dos benefícios destinados apenas aos combatentes por não expedicionários”, explica o historiador Francisco César Alves Ferraz, da Universidade Estadual de Londrina e pesquisador visitante da University of Tennessee. Ferraz trabalhou a reintegração social dos pracinhas em A guerra que não acabou (Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2012) e, mais recentemente, nas pesquisas A preparação da reintegração social dos combatentes estadunidenses da Segunda Guerra Mundial (1942-1946) e A reintegração social dos veteranos da Segunda Guerra Mundial: estudo comparativo dos ex-combatentes do Brasil e dos Estados Unidos (1945-1965).
Segundo o pesquisador, diferentemente dos ex-combatentes da Europa e da América do Norte, que fizeram de suas expressões públicas movimentos sociais organizados (o que tornou possível a conquista de benefícios e de reconhecimento social), os veteranos, também pelo seu pequeno número, tiveram pouco sucesso em chamar a atenção da sociedade e do aparelho estatal para seus problemas. Ferraz, que analisou a diferença da reintegração dos ex-combatentes americanos e brasileiros, lembra que, já em 1942, foram encomendados estudos, realizados por diversos órgãos do governo dos EUA, Forças Armadas, comissões do Congresso e iniciativa privada. “Um dos resultados mais expressivos foi o conjunto de leis chamado de G.I. Bill of Rights, que concedia estudo técnico e superior gratuito aos veteranos, transformava o governo federal em fiador de empréstimos bancários e concedia auxílio-desemprego e assistência médica gratuita para os que estiveram em serviço ativo em guerra por pelo menos 90 dias.
Por isso o Departamento de Guerra americano enviou, em 6 de abril de 1945, correspondência ao general comandante das forças do Exército dos EUA no Atlântico Sul, sob as quais os brasileiros estavam subordinados, alertando para a inconveniência da desmobilização imediata da FEB quando do seu retorno ao Brasil. “Uma vez que é a única unidade do Exército brasileiro, inteiramente treinada pelos EUA, considera-se que tem grande valor como um núcleo para o treinamento de outros elementos do Exército brasileiro e como uma contribuição potencialmente valiosa do Brasil à defesa hemisférica”, observa o documento. O aviso já refletia os rumores, iniciados a partir de março de 1945, de que as autoridades militares brasileiras pretendiam desmobilizar sumariamente a FEB, o que aconteceu efetivamente.
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Tomada de Monte Castelo pelo Regimento Sampaio, em imagem de fevereiro de 1945
Tomada de Monte Castelo pelo Regimento Sampaio, em imagem de fevereiro de 1945
“O Exército fez o possível para marginalizar e desconsiderar quem esteve na linha de frente. Havia enorme preconceito e inveja daqueles que estiveram com a FEB. Toda a experiência adquirida foi desprezada, contrariando o conselho dos EUA para que se vissem os expedicionários como núcleo de um esforço de modernização e renovação do nosso Exército”, analisa o historiador Dennison de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que trabalha o tema, entre outros, na pesquisa atual Reintegração social do ex-combatente no Brasil: o caso da Legião Paranaense do Expedicionário (1945-1980). “Na ânsia de se livrarem da FEB, tida como politicamente não confiável pelo Estado e pelos militares, os pracinhas foram rapidamente desmobilizados sem que tivessem se submetido a exames médicos, que mais tarde seriam fundamentais para que obtivessem pensões e auxílios no caso de doenças ou ferimentos adquiridos no front, lembra o professor. Havia temores políticos: a ameaça que representava para o Exército de Caxias esse novo tipo de força militar, mais profissional, liberal e democrático; o medo de que os oficiais febianos pudessem se tornar o fiel da balança político-eleitoral e fossem cooptados pelos comunistas; acima de tudo, temia-se que os expedicionários, entre os quais Vargas tinha grande popularidade, pudessem apoiá-lo e empolgar a população para soluções diferentes daquelas do pacto conservador das elites políticas para a sucessão do antigo líder do Estado Novo.
O Comando Brasileiro, no Aviso Reservado de 11 de junho, emitido pelo Ministério da Guerra e assinado pelo ministro Dutra, observava que: “Não obstante reconhecer o interesse do público, fica proibido, por motivo de interesse militar, aos oficiais e praças da FEB fazer declarações ou conceder entrevistas sem autorização do Ministério da Guerra”. Para Ferraz, a proibição de falar sobre o histórico das ações é um ato de censura, não de segurança. O objetivo parece ter sido “quebrar o impacto” da chegada da FEB, evitar as declarações que pudessem embaraçar a instituição militar ou envolvê-la nas questões políticas que fermentavam naquele momento.
Isso, segundo ele, fica mais evidente quando se compara com as instruções emitidas ao Grupo de Caça da FAB, enviadas pelo Comando Americano: “Quando você chegar à sua cidade natal, provavelmente a imprensa local desejará entrevistá-lo. Você terá liberdade de falar de suas atividades aos jornalistas, mas não deve especular sobre o futuro de nossas unidades. A guerra continua no Oriente Próximo. Estamos interessados, porém, que a sua história seja contada várias vezes, nos EUA e no Brasil. Boa sorte no futuro”, assinado Charles Myers, brigadeiro do ar.
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A luta que levou à vitória de Monte Castelo
A luta que levou à vitória de Monte Castelo
A FEB não era bem-vinda também por boa parte dos membros do Exército, os militares de carreira que conseguiram, de alguma forma, escapar da ida à guerra. “O envio de expedicionários, os cidadãos-soldados, era motivo de piada nos quartéis. Quando eles voltaram com prestígio popular, muitos sentiram que poderiam ‘ficar para trás’ em suas carreiras e se iniciou uma conspiração surda da maioria que temia ser ultrapassada em suas promoções e cargos”, observa Dennison Oliveira.
Ferraz, na comparação entre americanos e brasileiros, mostra como um dos pontos importantes na reintegração de veteranos dos dois países foi como lidar com o passado, que trazia justamente essas questões políticas associadas aos ex-combatentes. No caso nacional, a última guerra externa em que houve mobilização de jovens que não eram militares regulares foi a Guerra da Tríplice Aliança (1856-1870), cujo retorno à sociedade foi longe do satisfatório, com a maioria dos veteranos indo parar no Asilo de Inválidos da Pátria. “Uma consequência não planejada pelo Império foi o crescimento da participação ativa de oficiais, inclusive de baixa patente, na política do país. O legado disso foi mais o receio das autoridades pelo protagonismo político dos combatentes do que o reconhecimento dos deveres da sociedade e do Estado com os veteranos de guerra, nota Ferraz. Nos EUA, as mobilizações da Guerra Civil e, em especial, na Primeira Guerra Mundial”, quando os veteranos tiveram suas questões potencializadas com a Depressão e explodiram distúrbios nas ruas americanas, ensinaram as autoridades como fazer a reintegração de seus jovens.
“Eles viram que o perfil dos combatentes recrutados influi diretamente na reintegração social: as chances de sucesso na reentrada da vida profissional e da cidadania aumentam com o maior grau de formação escolar e qualificações profissionais. E também quanto mais igualitário e socialmente distribuído for o recrutamento, melhores as condições de uma recepção positiva da sociedade”, explica Ferraz. No caso da FEB, lembra o pesquisador, todo um arsenal de “jeitinhos” foi utilizado para tirar da unidade filhos de classes mais abastadas. Mesmo assim, apesar da maioria pobre e de baixa escolaridade, a força brasileira exibiu uma amostragem melhor que a média do país.
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Desfile de pracinhas na Itália, em 1945
Desfile de pracinhas na Itália, em 1945
“Sargentos, cabos e soldados eram majoritariamente de origem urbana, alfabetizados, e apresentavam robustez e resistência física, a ponto de a FEB precisar confeccionar uniformes maiores que os do fardamento normal do Exército”, observa o historiador Cesar Campiani Maximiano, pesquisador do Núcleo de Estudos de Política, História e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), autor, entre outros, de Barbudos, sujos e fatigados: soldados brasileiros na Segunda Guerra (Grua, 2010). “Do total de praças, 80,7% eram originários das regiões Sul e Sudeste do país. Os convocados oriundos do Nordeste, escolhidos por suas ótimas condições de saúde e grau de instrução, eram, na maioria, estudantes que serviram como cabos e sargentos, incorporados para suprir a deficiência de graduados experientes”, nota o autor.
Nos EUA, dos primeiros 3 milhões convocados, 47% estavam abaixo dos padrões; entre 1942 e 1943, dos 15 milhões de examinados, 32,4% foram rejeitados por causas físicas ou psiquiátricas e um terço considerado “inaptos para aproveitamento em qualquer grau”. Os americanos queriam apenas o melhor e adotaram critérios rigorosos para isso. A diferença mais gritante, porém, é que não houve distinção de classe no recrutamento para a guerra e um rigoroso controle no sistema de insenções, ao lado de campanha de mobilização da opinião pública, fez com que se recrutassem até o final da guerra mais de 16 milhões de soldados. “Praticamente cada ramo familiar americano tinha um combatente entre os seus, o que ajudou na compreensão dos deveres da sociedade para com aqueles que lutaram”, avalia Ferraz.
No Brasil, apesar das festas, os expedicionários foram rapidamente desmobilizados. “A razão foi política: tanto as autoridades do Estado Novo em decadência quanto as forças políticas de oposição temiam o pronunciamento político dos expedicionários, no que poderia ser a repetição do envolvimento político dos militares no século anterior após a Guerra da Tríplice Aliança”, fala Ferraz. A pressa foi tão grande em acabar com a FEB que os pracinhas já saíram da Itália com seus certificados de baixa e quando chegaram ao Brasil já não estavam mais sob a autoridade do comandante da FEB, mas do comandante militar do então Distrito Federal, não exatamente simpatizante dos febianos.
“A partir de então estavam à própria sorte. Traumas psicológicos de todo o tipo e rotina da luta de sobrevivência no mercado de trabalho dificultaram o retorno dos milhares de brasileiros que estiveram nos campos de batalha. As primeiras leis de amparo só foram aprovadas em 1947”, afirma Dennison de Oliveira. A maioria delas não foi sequer cumprida. Algumas, por sua vez, caíram mal entre os ex-combatentes, como o decreto-lei assinado por Vargas em julho de 1945 que concedia anistia aos militares da FEB, cujo efeito prático foi anistiar aqueles que desertaram no Brasil ao período anterior à campanha militar. Para Oliveira, o ápice foi a chamada Lei da Praia, assinada em 1949 por Dutra. “De acordo com ela, qualquer pessoa enviada à ‘zona de guerra’ tinha direito aos auxílios e pensões. A lei incluía vias navegáveis e cidades no litoral brasileiro que se encontravam nessa ‘zona de guerra’. Assim, seja o soldado que corria perigo e lutava no frio dos Apeninos, seja o bancário que fora transferido para uma cidade litorânea, todos recebiam o mesmo”, diz o historiador.
“Claro que nos EUA também houve dificuldades de reintegração, mas houve um esforço da sociedade em receber os milhões de retornados da guerra. Os seus combatentes seriam conhecidos como a ‘boa geração’, aquela que garantiu a vitória contra a barbárie. Para os veteranos brasileiros, esse reconhecimento não aconteceu”, observa Ferraz. Segundo o historiador, a busca por apoio institucional às necessidades dos veteranos levou-os à aproximação com as Forças Armadas e, logo, com suas práticas políticas, inclusive o golpe de 1964. Transformados em símbolos e apoiadores do regime militar, viraram alvo dos críticos da ditadura do pós-64. “Ao invés de colocar em questão essa identidade entre Exército, governo militar e FEB, esses críticos preferiram investir contra a memória expedicionária, o que só reforçou os laços entre o Exército e os veteranos”, observa Ferraz.
Não se pode negar, é claro, que muitos pracinhas apoiaram o regime militar, até porque na primeira geração dos golpistas tinha alguns febianos, como o primeiro presidente do regime militar, Castello Branco, cuja ascensão ao poder deu a esperança aos veteranos de que seriam “vingados”. Mas as memórias desses combatentes revela outras histórias, como verificou o historiador e brasilianista israelense radicado nos EUA Uri Rosenheck, da Emory University, que pesquisou a FEB em Fighting for home abroad: remembrance and oblivion of World War II in Brazil. Entre os seus objetos de estudo estão as memórias dos ex-combatentes e os monumentos que celebram os expedicionários em “espaços cívicos” das cidades.
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As tropas da FEB são recebidas na avenida São João em 1945
As tropas da FEB são recebidas na avenida São João em 1945
“No caso dos pracinhas, as memórias são apenas lembranças do passado, mas, por meio de um olhar analítico, elas se revelam como instrumentos de crítica política contemporânea. No caso brasileiro, ler as memórias de guerra é ver como esses homens desafiavam a ditadura militar e condenavam a política armada”, explica Rosenheck, que passou em revista as 150 memórias escritas sobre a FEB. Segundo ele, apesar de publicamente defenderem as suas lideranças, os cidadãos-soldados criticam os militares.
“A maioria das observações tem a ver com a ineficiência do Exército brasileiro, comparado com o similar americano, e o contraste entre os oficiais regulares e reservistas. Critica-se a falta de logística, como eles sofriam no frio por falta de uniformes apropriados, como tiveram que pagar por suas passagens de trem enquanto esperavam para embarcar para o Rio e mesmo a carência de identificações, as dog-tags, que não eram dadas a eles”, conta o brasilianista. As críticas mais ácidas vão para os oficiais do Exército regular, ou seja, o Exército de Caxias em oposição aos voluntários combatentes da FEB. “Eles lembram como esses primeiros tinham percepções antiquadas sobre as relações entre pracinhas e oficiais, sobre a ética e a moral do corpo de oficiais e sobre o profissionalismo em combate real.” Alguns recordam que foram roubados por seus superiores e que decisões eram arbitrárias e baseadas em que tipo de presente poderiam dar para seus oficiais.
O mesmo acontecia quando o assunto era racismo. “Em muitas memórias, os soldados se dizem horrorizados com o racismo dos militares americanos, mas em muitos casos nessas memórias se pegam ‘lapsos’ em que se percebe o racismo dos próprios pracinhas. Mas o importante é se perceber que eles preferem atribuir casos de preconceito a ‘ordens de superiores’. Assim, tudo fica como sendo ‘coisa de americano’ ou ‘dos superiores’, separando ‘os soldados’, ‘a FEB’ e por extensão ‘os brasileiros’ dos outros responsáveis por tais atos horríveis, seja pessoas domésticas ou estrangeiras.” Para Rosenheck, as acusações contra comandantes como racistas e incompetentes podem ser entendidas como um ataque implícito sobre as Forças Armadas e seu papel na sociedade. “A crítica não precisa ser explícita para ser efetiva. O fato de que veteranos da maior força de combate militar desde a Guerra do Paraguai critiquem o Exército dá a suas observações credibilidade e força. Tudo está centrado nos militares, não no governo político, na sociedade civil, o que só reforça essa leitura.”
Rosenheck também estudou os monumentos dedicados à FEB, com conclusões semelhantes. “Apesar de dizerem que os pracinhas foram esquecidos, há 192 monumentos dedicados à FEB, com 451 mortos, ou seja, quase três monumentos para cada sete mortos”, conta. São construções que não celebram mortos, mas celebram os vivos, os que voltaram, uma visão pouco militarista. As Forças Armadas estão quase ausentes nos textos que acompanham esses monumentos, com escritos que destacam a democracia, a liberdade, o civismo. Dos 192, 120 foram construídos entre 1945 e 1946, e 32 antes da instalação da ditadura militar. São poucos os que mostram soldados (a maioria é de obeliscos) e a representação visual deles não é de combate. “A narrativa não comunica a importância do Exército ou seu papel na construção da nação, mas os valores de uma sociedade civil”, diz o historiador. “Temos que reconhecer que as ligações da FEB com a história militar são importantes, mas há outras narrativas. É preciso criar ligações entre a história da FEB e outros aspectos da história e sociedade brasileira como um todo”, avisa.