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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 16 de maio de 2022

Empresas do agronegócio se distanciam da política ambiental destrutiva do governo Bolsonaro

 Congresso deveria apoiar iniciativa em prol da Amazônia

Editorial do jornal O Globo
16/05/2022

Numa iniciativa rara, 23 empresas e organizações da agroindústria e agropecuária, representando mais de 300 entidades, remeteram carta ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com o pedido de acesso ao fundo Amazon21, de US$ 9 bilhões, criado pelo Legislativo americano para projetos de preservação de florestas tropicais. Também enviada à presidente da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, a iniciativa é a prova do isolamento do governo Bolsonaro em sua desastrosa política ambiental, que se resume a franquear o acesso de madeireiros e garimpeiros ilegais à Amazônia.

Empresas e entidades empresariais já haviam formalizado um pedido ao governo Bolsonaro para recuperar seu protagonismo na questão ambiental, antes da COP26, em Glasgow, na Escócia. A iniciativa foi em vão. Restou o apelo direto ao governo americano para obter recursos destinados a projetos para conter o desmatamento, com a participação de comunidades indígenas, pressionadas pelo avanço ilegal do garimpo em suas reservas sem nenhuma punição por parte do governo.

A iniciativa de enviar a carta a Biden e Pelosi é a demonstração concreta de que a antipolítica ambiental do governo prejudica os interesses de grandes empresas nacionais e globais exportadoras de alimentos. Dará trabalho ao Itamaraty e aos ministérios da Agricultura e Meio Ambiente desfazer a imagem de inimigo do planeta que Bolsonaro construiu com afinco durante quatro anos. Ainda mais se o segundo semestre na Amazônia for mesmo o que as piores previsões esperam.

O mais novo avanço do projeto bolsonarista de liberar a floresta para madeireiros e garimpeiros ilegais gerou no mês passado um desmatamento de 1.012 quilômetros quadrados, esquadrinhados por satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), equivalente a dois terços da área da cidade de São Paulo. Foi uma destruição recorde para um mês de abril, quando ainda chove na região. O pior pode estar por vir.

Com a chegada do verão amazônico a partir de julho e o fim da temporada de chuvas, madeireiros e garimpeiros poderão ampliar a devastação com menos dificuldade. Como pode ser o último ano do governo Bolsonaro, e as pesquisas não se mostram favoráveis ao projeto continuista do presidente, a conjuntura é um estímulo a quem vive da exploração predatória da Amazônia. Os desmatadores tentarão destruir (e faturar) o máximo que puderem, antes da chegada de um novo governo.

Se sair vitorioso nas eleições de outubro, Bolsonaro encontrará um ambiente internacional ainda mais inóspito para prosseguir com sua política de devastação. Mantido o ritmo do desmatamento, novas marcas serão alcançadas, com novas e inevitáveis reações nos Estados Unidos e na Europa, e o consequente fortalecimento de propostas de boicote a produtos brasileiros oriundos de áreas de desmatamento.

Um novo governo, em contrapartida, terá um enorme e decisivo trabalho para remontar as estruturas de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de modo a reduzir da maneira mais rápida possível os danos da gestão Bolsonaro, e não apenas na Amazônia. Por tudo isso, o apelo a Biden e Pelosi precisa ser apoiado no Congresso brasileiro.

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/congresso-deveria-apoiar-iniciativa-em-prol-da-amazonia.html

segunda-feira, 28 de março de 2022

Mapa da Amazônia dividida é mentira deliberada, diz diplomata brasileiro (2010) - Daniel Buarque (G1)

Milicos paranoicos do pijama – não muito diferentes de colegas da ativa, que ainda estão por aí – ajudados por uma esquerda burra, estupidamente antiamericana, espalharam, duas décadas atrás, uns mapas falsos da Amazônia "internacionalizada", que ainda chamavam a atenção doze anos atrás. Eu me diverti denunciando os idiotas...

Paulo Roberto de Almeida

Mapa da Amazônia dividida é mentira deliberada, diz diplomata brasileiro

Mapa adulterado da floresta circula na rede há uma década.
Governos dos EUA e do Brasil já investigaram e detectaram a montagem.

Daniel BuarqueDo G1, em São Paulo

G1, 12/08/2010 08h00 - Atualizado em 12/08/2010 12h46


O falso mapa de livro didático que circula desde o ano 2000 com boato sobre internacionalização da AmazôniaO falso mapa de livro didático que circula desde o ano
2000 com boato sobre internacionalização da
Amazônia (Foto: Reprodução)

Na origem de um longo debate em que os brasileiros acham que os Estados Unidos querem invadir a Amazônia, e os americanos acham que o Brasil é paranoico está uma lenda urbana de mais de uma década, espalhada pela internet e reciclada periodicamente com popularidade surpreendente. Trata-se da história de que escolas dos EUA usam livros didáticos de geografia com um mapa da América do Sul adulterado, em que a região a amazônica aparece como “território internacional”. Por mais que a história já tenha sido desmentida oficialmente uma dúzia de vezes, muitos brasileiros ainda mencionam este caso sem saber exatamente se era verdade ou não, e até políticos brasileiros volta e meia pedem explicações oficiais do Ministério das Relações Exteriores sobre o assunto.

Desde as primeiras menções ao caso, ainda no ano 2000, representantes diplomáticos brasileiros nos Estados Unidos começaram a investigar as origens do que aparecia como mais um boato, uma lenda da internet. O diplomata Paulo Roberto de Almeida, que então trabalhava como ministro conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington, averiguou rapidamente que a história circulava em listas universitárias de discussão, mas que suas bases factuais eram frágeis, praticamente inexistentes. Logo em seguida, ao pesquisar em bases de dados e examinar os materiais disponíveis, concluiu por uma montagem feita no próprio Brasil.”"Esta 'notícia' aparentemente tão alarmante não tem base", diz, em um longo dossiê que publicou sobre os boatos. "Posso, sem hesitar, afirmar que os Estados Unidos não querem amputar um pedaço da nossa geografia nas escolas do país e que os supostos mapas simplesmente não existem."

Em entrevista concedida nesta semana ao G1, direto de Shangai, na China, Almeida confirma o que já tinha constatado anos atrás: reiterou que os boatos lançados a esse respeito sempre foram nacionais, criados inteiramente no Brasil. Segundo ele, os americanos nunca tiveram nada a ver com o caso e, de certa forma, foram vítimas dele, tanto quanto os milhares de brasileiros enganados. “É preciso deixar claro que o mapa não é uma questão estrangeira. Ele foi feito por brasileiros e para brasileiros”, disse. “É uma construção, uma mentira deliberada”, completou. Segundo ele, que investigou o caso enquanto viveu nos Estados Unidos, é possível traçar a origem desses rumores a grupos de extrema direita militar no Brasil, interessados em preservar a soberania brasileira sobre a Amazônia, "supostamente ameaçada por alguma invasão estrangeira. Neste caso, recorreram à fraude deliberada para reforçar seu intento", explicou. Curiosamente, disse, a causa acabou abraçada pela extrema esquerda antiamericana, e a histórica cresceu com a ajuda da internet.

É preciso deixar claro que o mapa não é uma questão estrangeira. Ele foi feito por brasileiros e para brasileiros. É uma construção, uma mentira deliberada"
Paulo R. de Almeida, diplomata brasileiro

Almeida é doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata, autor de mais de uma dúzia de livros sobre o Brasil e relações internacionais, como "Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas". Em sua página pessoal na internet, ele reproduz seu dossiê sobre o caso, trazendo inclusive trechos da comunicação formal do então embaixador Rubens Antonio Barbosa negando a existência do mapa, que havia sido publicada no boletim da "Ciência Hoje" em maio do mesmo ano. A carta do embaixador, de junho de 2000, acusa um site brasileiro de criar a história. "Tudo parece ter originado, não de uma suposta 'conspiração americana' de desmembrar a floresta tropical amazônica, mas de desinformação 'made in Brazil' por setores ainda não identificados."

Repercussão
A negativa oficial não foi suficiente, e o caso continuou crescendo e chegou até mesmo ao Congresso Brasileiro. Primeiro foi a Câmara de Deputados, que em junho de 2000 fez um requerimento formal pedindo ao ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, informações a respeito da "matéria veiculada na internet na qual o Brasil aparece em mapas dividido." Depois disso, em 2001, foi no Senado. A página na internet do Senado traz um pronunciamento do senador Mozarildo Cavalcanti, do PFL de Roraima, de 29 de novembro de 2001, em que chama a internacionalização da Amazônia de "processo inteligentemente armado para anestesiar as camadas formadoras de opinião e evitar reação". Depois de ler todo o texto da denúncia que circulava pela internet, o senador apelou ao ministro das Relações Exteriores para que investigasse a fundo o assunto o "atentado à soberania do país".

A ideia é tão hilária que me sinto bobo de falar sobre ela."
Anthony Harrington, ex-embaixador dos EUA no Brasil

Segundo o diplomata brasileiro ouvido pelo G1, o mapa se transformou em um refúgio para quem busca teorias da conspiração. "Quem quer acreditar, acredita em qualquer coisa", disse Paulo R. Almeida, explicando o porquê de o caso continuar tão popular mesmo depois de ser rebatido com fatos. "Os americanos nem deram atenção ao caso, foram pegos de surpresa e de forma involuntária. Só o Brasil dá importância a esta invenção."

Resposta americana 
Logo que o caso surgiu, no ano 2000, Anthony Harrington, então novo embaixador dos Estados Unidos no Brasil, tentou dar uma resposta oficial e final ao assunto. "Existem aqueles no Brasil que acreditam que os Estados Unidos querem dominar o mundo. Eles vêm o Tio Sam como o grande abusador. Típico desta forma de pensar é a crença de que os Estados Unidos têm um plano secreto de invadir a Amazônia em nome de salvar a Floresta Tropical. A ideia é tão hilária que me sinto bobo de falar sobre ela. Mas em nome de seguir adiante, de permitir que americanos e brasileiros possam passar aos assuntos sérios que enfrentamos juntos, deixe-me deixar isso claro: A Amazônia pertence ao Brasil. Sempre vai pertencer. E o mito de que os Estados Unidos invadiria é simplesmente ridículo. Ponto Final."

Segundo o embaixador, os americanos são fascinados pela floresta, tanto quanto a maioria das pessoas em todo o mundo, mas o interesse do país é apenas em colaboração com o Brasil, ajudando a desenvolver a região de uma maneira que seja inócua para o meio ambiente e faça justiça aos formidáveis recursos naturais que os brasileiros possuem. "A idéia de que tropas americanas possam intervir na Amazônia é ridícula. Sinceramente, não merece comentários."

Mesmo assim foi preciso voltar a tocar oficialmente no assunto, e a própria Embaixada Americana no Brasil manteve por algum tempo uma página de desmentido da história do mapa no ar. A página não existe mais no mesmo endereço. Entretanto, o site America.gov, que traz informações sobre política externa dos Estados Unidos e é produzido pelo Departamento de Estado, mantém no ar o texto do desmentido e os argumentos. A data da divulgação é de 2005, cinco anos depois do início da propagação do mito e três após a reportagem no principal jornal dos Estados Unidos.

Rebatendo o mito
A resposta oficial diz que o e-mail forjado surgiu em 2000. "Não há indicação de que tal livro exista. A Biblioteca do Congresso dos EUA, com mais de 29 milhões de livros e outros materiais impressos, não tem registro dele. O banco de dados online do centro de estudo WorldCat, o maior banco de dados de informação bibliográfica, com mais de 47 milhões de livros, não tem registro do livro. Tal livro também não é encontrado em buscas na internet na Amazon e no Google" .

O primeiro argumento usado para refutar a veracidade do livro é gramatical: "Muitos erros de grafia, gramática, tom inapropriado e linguagem" que são evidentes para um falante nativo de inglês. A resposta oficial do governo americano, apesar de ter demorado quase meia década, parte na mesma direção do embaixador brasileiro Rubens Antonio Barbosa, indicando que o trabalho aparenta ser uma invenção "made in Brazil" para criar "desinformação". O Birô Internacional de Programas de Informação continua seu texto apontando que "alguns dos erros de grafia nesta falsificação indicam que o falsificador era um falante nativo de português", diz, citando exemplo como a palavra "vegetal", que aparecia na mensagem original no lugar de "vegetable".

A criação da 'Prinfa' foi um presente para o mundo todo visto que a posse destas terras tão valiosas nas mãos de povos e países tão primitivos condenariam os pulmões do mundo ao desaparecimento e à total destruição em poucos anos"
Texto falso divulgado junto com lenda urbana sobre livro didático

O mapa
Esta duradoura mentira circula há anos pela rede trazendo a imagem de um suposto mapa de livro de geografia usado nas escolas dos Estados Unidos em que aparece um pedaço da Amazônia como sendo um território sob “responsabilidade dos Estados Unidos e das Nações Unidas”. Esta área, que inclui partes do Brasil e de outros países da região, teria sido renomeada, ainda nos anos 1980, para Finraf (Former International Reserve of Amazon Forest), traduzida, na mensagem de alerta que dizia se tratar de uma história real, para Prinfa (Primeira Reserva Internacional da Floresta Amazônica).

A mensagem, que circulou por e-mails e blogs, é sempre a mesma. Um “alerta”, algo “para ficar indignado”, incluindo uma página copiada do suposto livro “An Introduction to Geography”, onde aparece o referido mapa do Brasil “amputado” e um texto sobre a “reserva internacional”.

O texto do livro é preconceituoso e ofensivo, e foi traduzido de um inglês pobre para um português cheio de erros de grafia e gramática: “Desde meados dos anos 80 a mais importante floresta do mundo passou a ser responsabilidade dos Estados Unidos e das Nações Unidas. (...) Sua fundação [da reserva] se deu pelo fato de a Amazônia estar localizada na América do Sul, uma das regiões mais pobres do mundo e cercada por países irresponsáveis, cruéis e autoritários. Fazia parte de oito países diferentes e estranhos, os quais, em sua maioria, são reinos da violência, do tráfego de drogas [sic], da ignorância, e de um povo sem inteligência e primitivo. A criação da Prinfa foi apoiada por todas as nações do G-23 e foi realmente uma missão especial para nosso país e um presente para o mundo todo visto que a posse destas terras tão valiosas nas mãos de povos e países tão primitivos condenariam os pulmões do mundo ao desaparecimento e à total destruição em poucos anos” .

Para dar credibilidade à história, a mensagem alega que a fonte da informação foi um jornal, sem muitos detalhes sobre a publicação do caso. Mesmo sem uma base de informação mais forte, a história se espalhou pelo Brasil e ganhou atenção até nos próprios Estados Unidos, onde foi rechaçada repetidas vezes, como em 2002, quando foi ironizada pelo "New York Times" como "claro, pura imaginação. A imaginação brasileira" . O título da matéria era algo como "No fundo do Brasil, uma viagem de paranoia".

Ainda em 2010, o Google tem mais de 1.200 retornos para a busca internacional pela sigla Finraf. Traduzindo a sigla para Prinfa, são mais de 3.000 páginas registrando alguma informação a respeito dessa história. São dezenas de blogs pessoais, páginas de jornais de diferentes lugares do Brasil, perguntas em fóruns. Muitos já tratam o assunto como mito, lenda urbana, e dizem que o mapa se tornou apenas uma curiosidade na internet. Não faltam, entretanto, as páginas que ainda reproduzem o assunto (algumas com datas tão recentes quanto 2009) com tom indignado e alegando se tratar de uma denúncia real.


segunda-feira, 14 de março de 2022

As loucuras e paranoias amazônicas dos militares brasileiros - Marcelo Godoy (OESP)

 Transcrevo a partir de postagens de Carmen Licia Palazzo:

"Sempre comentei que essa visão dos militares era absurda. O Villas Bôas a essas alturas poderia se privar de passar vexame. É o que eu acho, SIM, e não é de agora."

Carmen Lícia Palazzo


"Villas Bôas usa canção antifascista para provocar Macron às vésperas de eleição

General faz publicação sobre a Amazônia em meio à campanha eleitoral francesa; bolsonaristas se identificam com a extremista de direita Marine Le Pen

Marcelo Godoy

O Estado de S.Paulo, 14 de março de 2022 | 10h43

Ex-comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas tuitou no dia 11 de março a seguinte frase: "O que espera Macron na Amazônia". Em seguida, postou um vídeo em que militares brasileiros – guerreiros de selva – cantam uma versão verde-oliva da música Bella Ciao, o famoso canto partigiano nascido durante a 2.ª Guerra, nos Apeninos Modenenses, região onde lutou a Força Expedicionária Brasileira. 

A canção da resistência italiana conta a história de um jovem que acorda pela manhã, encontra o invasor nazista e decide seguir os guerrilheiros. Ele diz à sua amada, que, se morrer, deve ser enterrado num alto de montanha ao lado de uma flor para que digam os que passarem por ali: "essa é flor do partigiano, morto pela liberdade". A versão verde-oliva fala dos guerreiros de selva que devem pegar suas armas para "se for preciso, matar ou morrer pela Nação e liberdade". 

O paralelo entre os partigiani e a estratégia de defesa para a Amazônia é evidente. Os militares brasileiros – sobretudo os do Exército – dedicaram-se a desenvolver uma teoria de defesa para a região em grande parte baseada na percepção de que as principais ameaças ao Brasil estão no hemisfério Norte. Os pesquisadores Celso Castro e Adriana Marques acrescentam um ponto nessa equação ao associarem "a crescente importância simbólica da batalha de Guararapes para o Exército à percepção institucional de que a Amazônia é alvo da cobiça internacional e deve ser defendida".

Assim, se a campanha de Guararapes, com suas emboscadas, "remete implicitamente à doutrina de resistência que foi desenvolvida pelo Exército na década de 1990", a música dos partigiani tem o mesmo papel simbólico, ainda que a memória oficial da FEB, como escreveu Teresa Isenburg, em sua obra O Brasil na Segunda Guerra Mundial, tenha quase apagado da história o papel dos guerrilheiros italianos que lutaram ao seu lado. Para quem já esqueceu, 69 mil deles – liberais, socialistas, democratas-cristãos e comunistas – morreram na luta contra os nazi-fascistas; outros 62 mil desapareceram no conflito. 

Foi a Divisão Modena/Armando, chefiada por Mario Ricci, que libertou a cidade de Porretta Terme, localidade que serviu depois de quartel-general para a FEB. Ricci, o Comandante Armando, era um comunista veterano da guerra civil espanhola. Sua unidade foi enquadrada no 5.º Exército Americano e acabou reconhecida como força beligerante. Bella Ciao é desde então canção presente em toda comemoração do 25 de abril, o Dia da Libertação da Itália.

O general Villas Bôas comandou na Amazônia. É dado a polêmicas no Twitter. Em 2018, teve Lula e a impunidade como alvo. Fez coro em 2019 com Jair Bolsonaro, escalando a crise com a França, quando Emmanuel Macron sugeriu um status internacional para a floresta diante do recorde de queimadas registrado no primeiro ano do governo do capitão. Agora, resolve voltar à carga contra o francês, no momento em que Macron se prepara para disputar o primeiro turno da eleição presidencial, em 10 de abril. 

O francês tem sua reeleição praticamente garantida. Sua popularidade cresce nas pesquisas desde a invasão da Ucrânia, levada a cabo por Vladimir Putin, um aliado de Bolsonaro. Enquanto isso, a candidata in pectore do bolsonarismo na França – Marine Le Pen – patina e luta para se desvencilhar da incômoda proximidade com o líder russo. Diante de tudo isso, o que faz Villas Bôas? Tuíta. O general parece ter predileção por períodos eleitorais para lançar suas declarações polêmicas.

Emmanuel Macron, França

A França mantém com o Brasil uma fronteira terrestre de 730 quilômetros, próxima da foz do Amazonas. Na Guiana, está estacionado, desde 1973, o 3.º Regimento Estrangeiro de Infantaria (3.º REI), que protege a base de lançadores de foguetes em Kourou. É tropa especializada em guerra na selva. O Estado brasileiro mantém acordos militares com os franceses, como o projeto para a construção de quatro submarinos da classe Scorpène para a Marinha. Trata-se, portanto, de países aliados. 

Em vez de se prestar a fazer provocações que servem apenas para excitar a base bolsonarista nas redes sociais, generais do Planalto, como Villas Bôas, contribuiriam mais para o País se lembrassem que as principais características dos conflitos de hoje são a letalidade seletiva e efetiva, o maior alcance e a precisão das armas e a robotização do campo de batalha. Para não falar das ações no espaço cibernético, do domínio aéreo e espacial e de conflitos nas áreas urbanas, como a Rússia mostra na Ucrânia. O Raymond Aron de Pensar a Guerra, Clausewitz, explica mais o momento atual do que David Galula, com seu Contrainsurreição, Teoria e Prática. 

Há perguntas sobre dissuasão de ameaças extrarregionais que um tuíte não responde. Os Comandos Militares da Amazônia e do Norte são dotados de capacidade dissuasória convencional, segundo o conceito estratégico A2/AD – antiacesso e negação de área – usado pelas maiores potências militares do planeta? O Brasil tem em suas Forças de Prontidão (FORPRON) brigadas de emprego estratégico e geral. Mas apenas duas das seis brigadas de infantaria de selva fazem parte desse sistema. É necessário acrescentar outras? Os comandos da Amazônia têm defesa antiaérea de média e grande altura? Vão receber no futuro os mísseis AV-TM 300? 

Submarino Riachuelo

De origem francesa, o Riachuelo, de 75 metros, 2.200 toneladas, é alto como um prédio de quatro andares e tem grande poder de fogo; primeiro de uma frota de quatro novos submarinos da Marinha do Brasil, foi ao mar pela primeira vez em dezembro de 2018 

A Defesa do Brasil não precisa de provocações tolas aos seus aliados, mas de um debate que explique à população por que o País tem 80 mil homens em sua Marinha e menos da metade dos navios e submarinos do Reino Unido, que mantém 35 mil homens na Armada de Sua Majestade. É preciso discutir a qualidade, onde e como são gastos os recursos do Ministério da Defesa. Assim como reconhecer que a melhor dissuasão que o Brasil pode ter é se livrar da política ambiental negacionista, que se acumplicia com criminosos florestais, garimpeiros ilegais e oportunistas em busca de botim nas terras indígenas.

Em vez disso, o bolsonarismo cria o fantasma do porta-aviões Charles de Gaulle para espantá-lo com um tuíte. Macron se torna o símbolo de uma tal Nova Ordem Mundial, que reuniria degenerados, apóstolos do politicamente correto, ateus, gays, feministas, ambientalistas, intelectuais, jornalistas, liberais, comunistas e... George Soros. A extrema direita é assim: trata Putin como aliado, o homem que vende armas a Nicolás Maduro e bombardeia a Ucrânia, mas vota contra a securitização do meio ambiente na ONU. Quem sabe se um dia vai achar 'cool' invadir a Guiana? Jânio quis o mesmo em agosto de 1961; a renúncia nos poupou dessa aventura."

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"Mais um artigo que se relaciona com o anterior, que postei. Vale MUITO a leitura."(CLP)

"O que a Ucrânia e Putin têm a ver com a Amazônia e Bolsonaro

Presidente brasileiro viu na discussão sobre a securitização das mudanças climáticas uma ameaça ao seu governo; resolução defendida por EUA, Reino Unido e França foi vetada pela Rússia

Marcelo Godoy

O Estado de S.Paulo, 07 de março de 2022

Caro leitor, 

o presidente Jair Bolsonaro acredita que "alguns chefes de Estado muito conhecidos" querem discutir a soberania da Amazônia. Ele repete um velho hábito da extrema direita: criar fantasmas para assustar o País e passar a acreditar em suas criaturas. É por isso que Bolsonaro se disse grato a Vladimir Putin. Não só pelo russo ser um modelo para a extrema direita europeia – da francesa Marine Le Pen ao italiano Matteo Salvini, ao menos até a invasão da Ucrânia–, mas também pelo voto daquele país na sessão, de 13 de dezembro de 2021, do Conselho de Segurança da ONU. 

Naquele dia, o vice-embaixador da Rússia nas Nações Unidas, Dmitry Polyanskiy, vetou uma resolução proposta pela Irlanda e pelo Níger, que contava com os apoio dos EUA, do Reino Unido e da França. Diante da ameaça global representada pelas mudanças climáticas, os países ocidentais queriam que o tema fosse securitizado, ou seja, passasse a ser tratado não só nos fóruns ambientais, mas também no conselho. O argumento era simples: eventos extremos, secas, inundações e outras catástrofes afetam a paz e a guerra entre as nações e a segurança de territórios e de populações. 

Preocupada em ver sua expansão na região do Ártico ser barrada em razão dos efeitos que traria para o mundo, a Rússia, por meio de seu diplomata, afirmou que achava "contraproducente incluir o componente climático nos mandatos de manutenção da paz e missões políticas especiais": "A avaliação dos riscos relacionados ao clima, a condução das análises e as medidas como resposta devem ser feitas em fóruns especializados".

Esses fóruns têm a sua legitimidade constantemente atacada por Bolsonaro. Candidato à Presidência, cogitou seguir o exemplo de seu guru, Donald Trump, e retirar o Brasil do Acordo de Paris. Mas uma coisa é ter saliva para criticar o Acordo, outra seria ter pólvora para enfrentar uma resolução do Conselho de Segurança. O capitão vê por trás das ONGs e dos ecologistas a ação de potências estrangeiras e dos progressistas do Ocidente. Eis a sua lógica. Ela é igual à de Putin. Mas o russo tem maioria no Parlamento. E força para fechar as organizações e botar na cadeia – ou no cemitério – a oposição. 

É verdade que Emmanuel Macron defendeu a discussão sobre um estatuto internacional da floresta. É também verdade que alguns  acadêmicos viram na ação de madeireiros criminosos, apoiados em uma política ambiental inconsequente, um atentando à responsabilidade de proteger um bioma, cuja destruição ameaçaria a segurança da humanidade. E, quando se fala em responsabilidade de proteção em organismos como o Conselho de Segurança, abre-se o caminho para sanções ao país ou aos grupos de um futuro eixo do mal climático. 

Para além de sua ética do potássio, de esconder com o biombo de uma suposta razão econômica – a dependência do Brasil de fertilizantes russos – suas simpatias pelo presidente Putin, Bolsonaro vê no amigo russo um aliado para seguir sua política ambiental, responsável pelo maior nível de desmatamento da Amazônia em dez anos. Governa-se com ideologia. É ela que vê a proteção do meio ambiente como um atentado à soberania da Nação, em vez de enxergar na sustentabilidade e na economia verde uma oportunidade de desenvolvimento, com sua promessa de riqueza para o País. 

O Brasil perdeu a revolução industrial. Decidiu manter a escravidão por quase todo o século 19 em vez de apostar no trabalho assalariado. Escolheu-se o atraso em vez da indústria em nome de uma soberania em desacordo com a humanidade, que não interessava ao País, mas somente a uns poucos que patrocinavam a cena infame do tráfico negreiro e do estalar do chicote que nos embrutecia a alma. O atraso se manifesta ainda assim agora. 

Em vez de incentivar a exploração do potássio em São Gotardo (MG), onde a empresa responsável diz ter reservas suficientes para abastecer o País pelos próximos 60 anos, Bolsonaro usou a crise na Ucrânia para defender outro ponto de sua ideologia: a liberação de mineração nas terras indígenas. Candidato em 2018, o capitão dizia não se importar de ser chamado de capitão Custer, uma referência ao militar americano que travou uma guerra inglória contra os Sioux. No mesmo dia em que retomava sua velha ideia, a mineradora divulgava em Minas que ia dobrar a produção de siltito glauconítico, rocha de cor esverdeada usada há 200 anos nos EUA como fertilizante potássico, mas desconhecida no Brasil.

Isso acontece porque o presidente tem para a Amazônia uma lógica de séculos passados – a ocupação e a integração –, dos tempos em que a rapina se confundia com a empresa colonial. Mas não se deve tratar a autoridade do governo sobre a floresta como a de um imperador, acima das leis e de qualquer responsabilização republicana. Se alguém não sabe a razão disso, pode-se compreender com um exemplo: o dono de um apartamento não pode incendiá-lo, pois, ao fazê-lo, coloca em risco a vida de todos no prédio.

Para ter mãos livres na Amazônia, Bolsonaro sabe que não pode depender nem mesmo de Putin. Em sua live do dia 3 de março, disse: "A Amazônia é nossa e sua soberania não pode ser relativizada. A melhor maneira de não ter sua soberania relativizada é ter Forças Armadas cada vez mais capazes para inibir uma possível agressão ou uma possível interferência externa".  Tem razão. Mas então a a Marinha do Brasil, por exemplo, não poderia ter 80 mil homens, mais que o dobro da Armada britânica, com menos da metade de navios e submarinos do Reino Unido. 

Há muito existe entre os militares brasileiros um sentimento de desconfiança sobre as intenções de nações desenvolvidas a respeito da Amazônia. E uma preocupação enorme com a sua proteção. É, por exemplo, em razão da análise da característica da região que o Brasil não assinou a convenção internacional que baniu as bombas de fragmentação. Para os militares, essa munição – que os russos despejaram na Síria e agora são acusados de fazer o mesmo na Ucrânia – violaria o direito humanitário internacional apenas se usada em áreas urbanas, onde seus efeitos não distinguiriam alvos civis de militares, o que não seria o caso da floresta.  

Mas não é rearmando um País ou mudando o perfil de seus gastos com Defesa – hoje altamente comprometidos com os pagamentos de salários, aposentadorias e pensões – que se afastará a ameaça ligada à securitização do meio ambiente. Não será muito menos escondendo dados sobre desmatamento que o Brasil combaterá suas vulnerabilidades nos fóruns internacionais. O País, como disse ao Estadão o coronel do Exército e especialista em geopolítica Paulo Gomes Filho, precisa ter "uma posição madura": "Não podemos negar as mudanças climáticas. Elas podem ser instrumentalizadas contra nossos interesses e servir ao protecionismo agrícola? Podem. É uma realidade. Mas elas também têm efeitos que devem ser combatidos".


Amazônia

Sobrevoo mostra imagem de região entre Sinop e Brasnorte, no Estado do Mato Grosso. O Brasil vem sendo pressionado internacionalmente para reduzir os indicadores de desmatamento da floresta amazônica

Eis o problema do governo. Bolsonaro e os que o cercam negam a realidade do clima e expõem o Brasil à reação internacional. Depois, o capitão sai mundo afora em busca de "apoios". E os encontra na comunidade de extremistas internacionais da qual faz parte. Nela estão déspotas africanos, árabes e europeus, populistas reacionários e todo tipo de ultraconservador capaz de invadir o Capitólio. A extrema direita virou um movimento internacional. Ela quer ter mãos livres para construir um mundo segundo sua ideologia. Putin entende Bolsonaro. Afinal, ele também quer ter as mãos livres no que pensa ser o seu pedaço do planeta."


quinta-feira, 13 de maio de 2021

Entrevista sobre questões de meio ambiente e sobre a Amazônia - Paulo Roberto de Almeida (Radio Sputnik)

 3911. “Entrevista sobre questões de meio ambiente e sobre a Amazônia”, Brasília, 13 maio 2021, 7 p. Entrevista gravada, concedida à Radio Sputnik, em torno das declarações do enviado especial para Meio Ambiente do governo americano John Kerry. Enviada ao jornalista Arnaldo Risemberg, via WhatsApp. Colocado no SoundCloud, com a seguinte chamada: ‘Diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida analisa as declarações de John Kerry, enviado especial do presidente Joe Biden para o Clima, convocando o governo brasileiro para uma discussão conjunta em torno da preservação da Amazônia.’Entrevista com Paulo Roberto de Almeida By Sputnik Brasil; (link: https://soundcloud.com/sputnikbrasil/entrevista-com-paulo-roberto-de-almeida).

Matéria escrita neste link:  br.sputniknews.com: https://br.sputniknews.com/opiniao/2021051317517034-se-brasil-mantivesse-politica-ambiental-nao-haveria-pressao-dos-eua-opina-especialista/


Entrevista sobre Amazônia para a Radio Sputnik

  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoresponder a questões de jornalistafinalidadedivulgação de áudio gravado] 

 

Introdução: 

ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM O DIPLOMATA E PROFESSOR PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

Amigos da Rádio Sputnik, ao participar de audiência com o Comitê de Relações Exteriores do Congresso dos Estados Unidos, o enviado especial do presidente Joe Biden para o clima, John Kerry, declarou que é preciso discutir com o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe de governo a questão da preservação da Amazônia porque, do contrário e de acordo com suas palavras, “a floresta vai desaparecer.”

Sobre estes assunto, vamos conversar com o diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida, Professor de Economia Política nos Programas e Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub), ex-professor do Instituto Rio Branco e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais dentre vários outros títulos.  

 

Boa tarde, prezado professor Paulo Roberto de Almeida. É um imenso prazer recebê-lo no programa da Rádio Sputnik.

Professor Paulo Roberto de Almeida, como o Sr., experiente diplomata, professor responsável pela formação de diplomatas, analisa estas palavras de John Kerry?

1) O Sr. entende que os Estados Unidos estão exercendo pressão sobre o Brasil na questão ambiental? E se a estão exercendo, quais são os objetivos do governo Biden?

2) O que o governo do Brasil pode fazer para se livrar destas pressões?

3) O Sr. acredita que, após a recente Cúpula do Clima conduzida e recepcionada pelo presidente dos Estados Unidos, o governo do Brasil mudará sua postura em relação à política ambiental? O presidente Jair Bolsonaro assumiu o compromisso internacional de controlar o desmatamento ilegal até 2030.

4) Do ponto de vista da preservação ambiental interna e das Relações Internacionais qual deve ser a postura correta do governo brasileiro, Professor Paulo Roberto de Almeida?

5) A questão ambiental tornou-se o norte das Relações Internacionais, Professor Paulo Roberto de Almeida?

Professor Paulo Roberto de Almeida, muito obrigado por esta entrevista para a Rádio Sputnik Brasil.

 

Link: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/05/enviado-de-biden-diz-que-precisa-discutir-com-brasil-para-amazonia-nao-desaparecer.shtml

 

 

Respostas de Paulo Roberto de Almeida: 

1) O Sr. entende que os Estados Unidos estão exercendo pressão sobre o Brasil na questão ambiental? E se a estão exercendo, quais são os objetivos do governo Biden?

PRA: Sim, inquestionavelmente o governo do presidente Joe Biden está exercendo uma clara pressão sobre o governo do presidente Bolsonaro, e não se trata de uma pressão do tipo egoísta, para atender a interesses próprios do governo americano ou dos Estados Unidos enquanto país ou enquanto economia, visando qualquer resultado ou vantagem bilateral, no caso unilateral, para os Estados Unidos, advinda dessa pressão visando conquistar qualquer benefício exclusivo e em benefício dos Estados Unidos. 

Trata-se de uma postura que pode ser enquadrada na categoria dos bens comuns, a defesa do meio ambiente, uma política com respeito às mudanças climáticas, a busca por um tipo de crescimento sustentável que desde muitos anos integra o que se chama de agenda global da comunidade internacional. Essa consciência emergiu nos anos 1980, no processo preparatório da Segunda Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; a primeira tinha sido realizada em Estocolmo em 1972, quando os temas ainda tinham um tratamento preliminar e muito incipiente; foi quando a primeira-ministra da Noruega Gro Brundtland apresentou o seu relatório Nosso Futuro Comum, Our Common Future, que tive a oportunidade de ler ainda em 1987 em Genebra, em meados daquele ano. 

Em 1992 se realizou no Rio de Janeiro essa Conferência, com a participação praticamente universal dos membros da ONU, quando o Brasil acolheu mais de cem chefes de Estado que vieram para os compromissos finais; eu estive no Rio, como um dos diplomatas brasileiros encarregados de acompanhar um chefe de Estado. Essa conferência representou um marco nos compromissos internacionais, de cada um dos países, com obrigações diferenciadas para países avançados e em desenvolvimento, e criou, se se pode dizer, um novo clima na consciência universal quanto à responsabilidade humana, social, nacional, no campo das mudanças climáticas; o conceito de sustentabilidade passou a ser, a partir de então a palavra-chave nos esforços feitos a partir de então para enfrentar os desafios lançados ao mundo. 

Nestas últimas três décadas, com altos e baixo, avanços e recuos, avançou-se bastante não apenas na consciência dos efeitos dramáticos das mudanças climáticas e das pressões sobre os ambientes naturais, mas igualmente no conhecimento científico a respeito da natureza dessas pressões e dos esforços concertados que se deveria fazer para enfrentá-los ou pelo menos contorná-los, notadamente por meio das Conferências das Partes, que se reúnem regularmente com o apoio de uma comunidade inteira de pesquisadores e especialistas, e a participação de representantes diplomáticos e responsáveis setoriais de cada um dos países.

O que os Estados Unidos do governo Biden está fazendo desde que assumiu, em janeiro último, nada mais é, portanto, do que traduzir na prática os compromissos assumidos pelo país no contextos dos inúmeros acordos concluídos desde então, notadamente o Acordo de Paris de 2015, sobre mudanças climáticas, no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas nessa área, com o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa a partir de 2020. Assinado pelo presidente Obama, esse tratado foi “desassinado”, digamos assim, pelo presidente Donald Trump, assim que assumiu em 2017, derrogando, portanto, às obrigações assumidas pelos Estados Unidos naquela ocasião. O presidente Biden está honrando as obrigações assumidas pelo seu ex-chefe, e fazendo a sua parte no contexto de uma assunção de responsabilidades globais em face do problema, como um dos maiores países emissores de gases de efeito estufa. Não se pode dizer, portanto, que as pressões exercidas agora pelo governo Biden sobre o Brasil se devam a qualquer objetivo nacional, unilateral, mas à consciência de que todos os países têm uma responsabilidade pelo nosso futuro comum. 

No caso do Brasil, justamente, o maior peso das emissões de gases de efeito estufa responsáveis pelo aquecimento global se deve ao desmatamento, à destruição da floresta amazônica, o maior repositório mundial de reservas naturais do planeta, responsável em grande medida por equilíbrios, ou desequilíbrios climáticos que afetam todo o planeta. Essa preocupação dos Estados Unidos é igualmente partilhada pela maior parte dos países que assumiram de boa fé suas obrigações no contexto da sustentabilidade planetária. 

 

2) O que o governo do Brasil pode fazer para se livrar destas pressões?

PRA: Vamos deixar bastante claro uma coisa. O Brasil tinha deixado de ser, desde muito tempo, uma espécie de “vilão ambiental”, o que talvez tenha sido o caso dos argumentos defendidos em prol do nosso desenvolvimento industrial por ocasião da primeira conferência, a de Estocolmo em 1972, e por isso vinha sendo apontado como um mau exemplo na questão da sustentabilidade. Desde os anos 1980 mudamos radicalmente nossa postura, e na segunda conferência, a Rio-92, assumimos plenamente nossa parte de responsabilidade na correção dos desequilíbrios apontados, sob a forma de esforços nacionais ambiciosos na contenção do desmatamento e de outras formas de degradação dos recursos naturais. Nosso conceito se elevou enormemente no cenário internacional, e por ocasião da assinatura do Tratado de Paris o Brasil era reconhecido como um país líder no tratamento da questão do meio ambiente e do desenvolvimento. Não havia, portanto, nenhuma pressão indevida, unilateral ou multilateral, contra o Brasil no cenário internacional, ao contrário, éramos considerados um protagonista chave na conciliação dos interesses de economias avançadas e países em desenvolvimento no trato da questão. 

O que houve, nos Estados Unidos do governo Trump, e no Brasil do governo Bolsonaro, não apenas um recuo em relação aos compromissos assumidos solenemente ao abrigos dos instrumentos anteriormente acordados, mas uma negação em toda linha da agenda da sustentabilidade e da ação em torno da mudança climática, uma espécie de negacionismo político sem apoio em qualquer evidência científica quanto a esses desafios. As pressões agora advindas do governo Biden – mas elas já existiam anteriormente por parte de países europeus e de ONGs ambientalistas – devem, portanto, ser colocadas nesse contexto das preocupações legítimas da comunidade internacional com a postura do governo Bolsonaro. 

Não tem nada a ver com esses fantasmas da “internacionalização da Amazônia” e outras bobagens do gênero – cobiça de multinacionais sobre supostos recursos fabulosos existentes naquela região – e sim com uma preocupação legítima quanto ao papel que a Amazônia exerce nos equilíbrios ambientais globais. Em outros termos: se o Brasil tivesse dado continuidade às políticas ambientalistas e preservacionistas implementadas desde o governo Collor, passando por Fernando Henrique Cardoso e os governos do PT, inclusive o de Michel Temer, não haveria nenhuma pressão sobre o Brasil, qualquer que fosse o governo.

 

3) O Sr. acredita que, após a recente Cúpula do Clima conduzida e recepcionada pelo presidente dos Estados Unidos, o governo do Brasil mudará sua postura em relação à política ambiental? O presidente Jair Bolsonaro assumiu o compromisso internacional de controlar o desmatamento ilegal até 2030.

PRA: A Cúpula do Clima, uma iniciativa unilateral dos Estados Unidos e pessoal do presidente Joe Biden, que é um ambientalista e um multilateralista – totalmente diferente, portanto, do seu predecessor – se dá num contexto muito importante: a volta do seu país ao Acordo de Paris e a busca de novos compromissos ambiciosos em favor de seus objetivos, até de ampliá-los ou de acelerar sua implementação. O discurso do presidente Bolsonaro não corresponde, manifestamente, ao que ele próprio pensa a respeito do assunto, mas sim ele procedeu a uma leitura burocrática, e pouco convincente, de um texto preparado pelo pessoal competente do Itamaraty, mas sem qualquer intenção de cumprir o que prometia. Aliás, o controle do desmatamento ilegal até 2030 já era um compromisso assumido anteriormente, apenas reafirmado agora, mas no mesmo dia o presidente fez exatamente aquilo que disse que não faria, ou seja, retirou recursos dos mecanismos de controle e de repressão às práticas ilegais de desmatamento na Amazônia. Ou seja, compromisso zero com o seus discurso. O que leva a crer que a postura não mudou, apenas o discurso mudou na superfície.

 

4) Do ponto de vista da preservação ambiental interna e das Relações Internacionais qual deve ser a postura correta do governo brasileiro, Professor Paulo Roberto de Almeida?

PRA: A resposta é muito simples, em teoria, ainda que complicada na prática. Seguir o consenso científico em torno das razões das mudanças climáticas, elevar o grau de consciência a respeito da importância da Amazônia para a nossa própria economia, e não apenas para o agronegócio, atentar para os efeitos dramáticos do desmatamento e da degradação ambiental para nosso abastecimento em água e até alimentar. Nós já tínhamos enveredado por esse caminho, teria bastado dar continuidade aos esforços feitos desde os anos 1990. O que o governo Bolsonaro fez nessa área não foi apenas um crime contra nós mesmos, mas um atentado contra nossos vizinhos e toda a comunidade internacional, que tem o direito legítimo de questionar nossa responsabilidade sobre recursos naturais que podem até ser juridicamente nossos, situados sob nossa soberania nacional, mas que moralmente e politicamente também dizem respeito ao resto da Humanidade. 

 

5) A questão ambiental tornou-se o norte das Relações Internacionais, Professor Paulo Roberto de Almeida?

PRA: Eu não diria o norte, pois questões de paz e segurança internacional, de desenvolvimento, de pobreza, de imigração por causa de guerras e da miséria, da fome, da criminalidade transnacional – lavagem de dinheiro, tráficos de toda sorte – continuam a preocupar os países e os organismos internacionais, mas sem dúvida que desequilíbrios ambientais, desastres naturais cada vez mais frequentes, dado o assalto das comunidades humanas aos recursos naturais, assim como as pandemias causadas por essa invasão da natureza e a captura de espécies animais aparecem como um dos problemas globais, ao lado dos grandes espaços relativamente indevassados nos mares e nos espaços supra terrestres. Cada vez mais o tema ocupa diplomatas, especialistas, cientistas e líderes políticos. A questão ambiental, está aí para permanecer pelo futuro previsível.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3911, 13 de maio de 2021

Colocado no SoundCloud, com a seguinte chamada: ‘Diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida analisa as declarações de John Kerry, enviado especial do presidente Joe Biden para o Clima, convocando o governo brasileiro para uma discussão conjunta em torno da preservação da Amazônia.’Entrevista com Paulo Roberto de Almeida By Sputnik Brasil; (link: https://soundcloud.com/sputnikbrasil/entrevista-com-paulo-roberto-de-almeida).

 

 

Matéria da imprensa: 

Enviado de Biden diz que precisa dialogar com Brasil para Amazônia não desaparecer 

Em audiência no Congresso americano, John Kerry considerou positivas as conversas iniciais 

Folha de S. Paulo, 12.mai.2021 às 17h33 

Em audiência no Comitê de Relações Exteriores do Congresso americano, o enviado de Joe Biden para o clima, John Kerry, disse nesta quarta-feira (12) que, se não discutir a preservação da Amazônia com o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), "a floresta vai desaparecer".

"Estamos dispostos a conversar com eles, não com tapa-olhos, mas sabendo onde já estivemos", afirmou o ex-secretário de Estado americano, que chamou de positivas as conversas, iniciadas semanas atrás. "Esperamos que a intenção possa ser traduzida em ação efetiva e verificável."

John Kerry, enviado dos EUA para o clima
John Kerry, enviado dos EUA para o clima - Brendan Smialowski-22.abr.21/AFP

Kerry reconheceu que o Brasil vinha diminuindo os níveis de desmatamento entre 2004 e 2012 e disse que o país estava "fazendo progressos". Mas pontuou que as proteções ao ambiente foram revertidas sob o que chamou de "regime Bolsonaro" —o termo "regime" é usualmente aplicado a ditaduras e governos autoritários.

Sobre o avanço das negociações com o governo brasileiro, o ex-secretário de Estado durante a administração de Barack Obama afirmou que o objetivo americano é conseguir montar uma nova estrutura de fiscalização das ações na floresta em que todos "possam confiar". "Tivemos essa conversa. Eles dizem que estão comprometidos em aumentar o orçamento e montar uma nova estrutura."

Um dia depois de prometer mais verba para fiscalização na Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada por Biden, em abril, Bolsonaro oficializou um corte de recursos para a área relacionada a mudanças do clima, controle de incêndios florestais e fomento a projetos de conservação do meio ambiente.

Em seu discurso no encontro virtual, o líder brasileiro afirmou ter determinado a duplicação dos recursos destinados a ações de fiscalização ambiental. De acordo com interlocutores de Bolsonaro, estimava-se que o aumento de recursos para a fiscalização ambiental ficasse em torno de R$ 115 milhões.

No entanto, o Orçamento de 2021 sancionado por ele não incluiu o incremento prometido e ainda cortou quase R$ 240 milhões da pasta do Meio Ambiente. Há duas semanas, o governo americano questionou o Brasil sobre o corte de recursos e, durante reunião com os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Carlos França (Relações Exteriores), no dia 30, Kerry mostrou preocupação com as notícias sobre a diminuição do orçamento e quis saber o que havia acontecido.

Segundo relatos à Folha, os brasileiros argumentaram que a tesourada tinha sido inevitável porque a cúpula ocorrera às vésperas da sanção do Orçamento de 2021 e não houvera tempo hábil para evitá-la. Salles e França, porém, argumentaram que uma recomposição orçamentária do Ministério do Meio Ambiente deve ocorrer em breve.

No Congresso americano, o enviado de Biden citou a preocupação com pesquisas científicas que dizem que a Amazônia já libera mais carbono do que consome e que há risco de que ela deixe de ser uma floresta tropical. "Precisamos resolver isso."

Questionado pela deputada Susan Wild, democrata da Pensilvânia, se os EUA estavam negociando diretamente com indígenas brasileiros, além de com o governo, Kerry disse que ainda não houve encontros diretos, mas que representantes deles estão sendo consultados pelos americanos.

"As preocupações deles são primordiais. Eles têm muita voz e precisam ser ouvidos", afirmou.

 

 

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Bolsonaro faz Brasil perder dinheiro internacional para Amazônia, diz analista Natalie Unterstell - João Fellet (BBC Brasil)

 Bolsonaro faz Brasil perder dinheiro internacional para Amazônia, diz analista

João Fellet - @joaofellet

Da BBC News Brasil em São Paulo

A postura do governo Jair Bolsonaro em relação ao meio ambiente está fazendo com que o Brasil perca espaço e recursos em negociações internacionais sobre o clima, diz à BBC News Brasil Natalie Unterstell, fundadora e diretora do think tank (centro de pesquisas e debates) Talanoa, voltado a políticas ambientais e climáticas.

Já países como Colômbia e Indonésia, segundo ela, estão aproveitando as oportunidades que se abrem para nações com grandes florestas tropicais — cuja preservação é considerada crucial para o combate à mudança do clima.

"Se o Brasil deixar, e o Brasil está deixando, esse espaço será ocupado por outros países", afirma Unterstell em entrevista à BBC News Brasil.

As negociações globais sobre a proteção de florestas ganharam um impulso com a posse de Joe Biden como presidente dos EUA, em janeiro. Na campanha, Biden propôs que países ricos se reúnam para fornecer US$ 20 bilhões para a preservação da Amazônia.

O americano convocou na semana passada uma reunião virtual sobre as mudanças climáticas com líderes de 40 países, entre os quais o Brasil. No encontro, foi anunciada uma iniciativa entre EUA, Reino Unido, Noruega e empresas privadas para canalizar doações voltadas à preservação de florestas mundo afora.

A iniciativa, que já conta com US$ 1 bilhão, foi comparada ao Fundo Amazônia — mecanismo paralisado no governo Bolsonaro e que tinha o Brasil como único beneficiário. Agora, se quiser participar da nova iniciativa, o Brasil terá de concorrer com outras nações.

Unterstell afirma ainda que, embora o governo federal cobre recursos internacionais para a preservação da Amazônia, há hoje cerca de R$ 3,4 bilhões em caixa que poderiam ser usados para esse fim.

O valor é a soma de recursos do Fundo Amazônia (R$ 2,9 bilhões) e do Fundo Verde do Clima (R$ 522 milhões) que foram doados ao Brasil, mas jamais gastos.

Até que os impasses que travam os pagamentos sejam sanados, diz ela, é improvável que o país receba novas doações.

Formada em administração de empresas pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), Unterstell acompanhou como observadora da sociedade civil a negociação do acordo que criou o Fundo Amazônia, em 2008.

Abastecido principalmente pela Noruega (93,8%) e Alemanha (5,7%), o fundo busca estimular ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento na Amazônia brasileira.

Os doadores suspenderam o funcionamento do fundo quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tentou reduzir o papel da sociedade civil no conselho que gere os repasses.

Unterstell trabalhou ainda no governo do Amazonas e, entre 2011 e 2013, foi negociadora do Ministério do Meio Ambiente em debates internacionais sobre a proteção de florestas. Em 2018, candidatou-se a deputada federal pelo Podemos, mas não se elegeu.

Neste ano, Unterstell se candidatou outra vez — agora a uma vaga no conselho de supervisores (Board of Overseers) da Universidade Harvard, onde fez mestrado em Administração Pública entre 2015 e 2016.

Formado por ex-alunos, o conselho é responsável por aprovar a escolha do presidente da universidade e seus dirigentes.

Unterstell integra um movimento que cobra a universidade a deixar de investir em empresas de combustíveis fósseis.

Uma das mais renomadas universidades do mundo, Harvard tem cerca de US$ 41 bilhões em investimentos, usados para financiar a instituição. A eleição se encerra em 18 de maio.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Qual o saldo para o mundo do evento sobre o clima convocado por Biden?

Natalie Unterstell - Segundo a Convenção-Quadro da ONU sobre Clima, estamos em uma rota que nos levará a um aumento de 3,6 graus da temperatura até o final do século.

Seria um cenário catastrófico, em que todos os recifes de corais ficariam esbranquiçados, haveria degelo da calota polar e uma grande instabilidade climática.

Essa cúpula foi marcada pra tentar melhorar as ofertas dos grandes emissores. Dos 18 maiores emissores, só dois tinham colocado metas mais progressistas na mesa: o Reino Unido e a União Europeia.

Foi um bom começo principalmente porque os EUA colocam uma meta muito, muito ambiciosa — de reduzir entre 50 e 52% suas emissões até 2030 (em relação a 2005). E isso fez o ponteiro mexer, criou-se uma efeito dominó positivo.

O Japão melhorou de 26% para 46% a sua oferta de redução de emissões para 2030. O Canadá também melhorou.

Os EUA muito habilmente colocaram sua diplomacia para trabalhar com os países que mais dependem de carvão: Japão, China, Índia, Coreia do Sul. E foram bem sucedidos.

A Coreia do Sul anunciou que não vai mais financiar a extração de carvão no exterior. A própria China disse que vai reduzir o consumo de carvão. Então acho que se começou a asfixiar realmente essa tecnologia decadente.

BBC News Brasil - Os anúncios são suficientes para evitarmos o aumento de 3,6 graus?

Unterstell - Não. Dados preliminares do Climate Action Tracker (organização de cientistas que calcula o impacto das metas de emissões dos países) mostram que as novas metas reduziram em 12% a 14% a previsão de emissões globais até 2030.

É insuficiente. Vamos precisar de novas rodadas até o final do ano para que países que não colocaram novidades na mesa, como a China e a Índia, melhorem suas metas.

BBC News Brasil - Biden diz que o combate às mudanças climáticas será um dos eixos de seu governo. Qual o impacto disso para o resto do mundo?

Unterstell - Um é a mobilização do setor privado americano para a transição energética (rumo a fontes menos poluentes). Isso gera novos padrões e tem um efeito cascata para o resto do mundo.

Os EUA estão usando o setor privado para conversar com os outros países. Com a Índia, por exemplo, estão tentando mobilizar investidores e financiadores privados americanos para a transição energética naquele país. Poucos países têm uma alavanca com essa dimensão e capilaridade.

O outro ponto é em relação a comércio. Em seu plano de governo, Biden disse que levaria em conta riscos climáticos ao estabelecer acordos comerciais. Eles estão numa via de alinhamento com a União Europeia nesse sentido.

Vamos começar a ver uma convergência de padrões tanto de investimento quanto de comércio levando em conta a questão da mudança do clima. Isso muda tudo.

BBC News Brasil - E qual foi o saldo para o Brasil do evento de Biden?

Unterstell - O saldo não é positivo. Bolsonaro claramente mudou o tom — aquele tom mais ofensivo que existiu, por exemplo, nas últimas assembleias gerais da ONU — para um tom bastante defensivo.

Mas não apresentou nenhuma meta nova para 2030. Vários países firmaram acordos bilaterais com os Estados Unidos na agenda de clima. O Brasil não firmou nada bilateral, isso também é notável.

Outro ponto é que a conferência anunciou um mecanismo global para florestas, indicando que a gente perdeu a oportunidade de ter um mecanismo só para a gente.

BBC News Brasil - Você se refere à LEAF (sigla em inglês para "diminuindo o desmatamento por meio da aceleração do financiamento florestal", iniciativa anunciada por EUA, Noruega, Reino Unido e empresas privadas). O que achou do mecanismo?

Unterstell - Vejo-o com muitos bons olhos porque ele vai buscar recursos privados para fazer um pagamento por resultado. A ideia foi concebida aqui no Brasil (no Fundo Amazônia).

Tem várias grandes empresas envolvidas, como Amazon, Nestlé e Airbnb. Isso vai possibilitar que jurisdições que consigam demonstrar resultados de redução do desmatamento recebam recompensas.

Também acho muito interessante que a LEAF não mire só governos nacionais, mas também governos subnacionais, como estados e municípios.

A gente ainda não sabe quem vai operar o mecanismo, há muitos detalhes a serem esclarecidos, mas me parece um novo boost de energia para a questão da redução do desmatamento.

BBC News Brasil- Governadores de Estados amazônicos têm tentado sem sucesso destravar os repasses do Fundo Amazônia. O LEAF poderia ser uma alternativa para eles?

Unterstell - Acho que essa é a melhor chance de acessarmos o LEAF. Vinte e quatro governos estaduais — exceto Rondônia, Roraima e Santa Catarina — enviaram uma carta ao Biden indicando sua disposição e interesse em atrair investimentos diretamente para zerar as emissões e zerar o desmatamento.

Acho bastante positivo. Porém, esses governos não têm jurisdição total sobre seus territórios. Há neles terras que são de competência da União, como terras indígenas, parques nacionais e terras devolutas federais.

Mesmo que existam recursos para esses governos estaduais, eles não vão poder resolver o problema nas terras federais, então a gente não pode esquecer da responsabilidade da União em fazer a lição de casa.

BBC News Brasil - Por mais que estejam se mobilizando para atrair recursos, vários Estados amazônicos estão hoje sob forte influência de políticos que defendem reduzir unidades de conservação, privatizar terras públicas e anistiar grileiros. Qual a chance de prevalecer a visão conservacionista?

Unterstell - De fato tem um jogo de forças, e estamos vendo esse jogo pender para o desmatamento em regiões que antes eram conservadas, como o sul do Amazonas.

É muito preocupante. Isso diz respeito a algo que ainda precisa ser melhor elaborado na sociedade brasileira, que é a tradução das oportunidades de conservação no local.

Isso ainda não está claro em todos os lugares, e acho que esse é o grande desafio que a gente tem agora. Vamos imaginar que venham recursos vultuosos para governos subnacionais na Amazônia no próximo ano. Como que isso vai fazer com que o jogo vire localmente?

Sou relativamente otimista porque no passado a gente já viu esse jogo acontecer. A gente teve momentos de enfrentamento dessas forças e, por algum tempo, foi possível que forças mais reformistas e pró-conservação vencessem. Então é uma questão de equilibrar o jogo, que hoje está muito balanceado para o lado da destruição.

Também é sempre bom lembrar que o resto do mundo está adotando novos padrões de comércio e de investimento. Fala-se de um mundo livre de desmatamento. Isso cada vez mais vai fazer pressão no âmbito nacional, cada vez vai percolar mais e vai chegar mais na ponta. E aí acho que algumas dessas forças vão ser moderadas.

BBC News Brasil - Há outros países ocupando hoje o espaço que o Brasil já ocupou nos debates sobre a proteção das florestas?

Unterstell - Com certeza. Países vizinhos, como a Colômbia, estão percebendo a oportunidade e um vácuo que o Brasil está deixando em relação à proteção da Amazônia e se posicionando super bem para estabelecer acordos bilaterais para participar de vários mecanismos.

Lá fora, a Indonésia tem muitos problemas, mas está muito ciente das oportunidades que existem. Não à toa, tem feito inúmeros projetos para captar recursos públicos internacionais para a questão de clima e tentado criar mecanismos privados.

Se o Brasil deixar, e o Brasil está deixando, esse espaço será ocupado por outros países.

BBC News Brasil - O governo federal diz que o Brasil deve ser pago pela comunidade internacional por resultados já alcançados no passado. Qual sua opinião?

Unterstell - Essa é uma polêmica que foi instalada pelo próprio governo federal. Sim, existe um mecanismo para ser pago por resultados, o Green Climate Fund (Fundo Verde do Clima).

O Brasil pegou US$ 96 milhões desse mecanismo, e só não pegou mais porque não executou o recurso.

O governo federal diz que temos resultados do passado a receber, e temos, mas a gente só não recebeu ainda porque não gastamos o que já recebemos.

Isso é bastante contraditório com o discurso do governo atual. E tem uma outra questão também, que é a do próprio Fundo Amazônia continuar travado há dois anos. A governança foi desestabelecida.

A gente não tem mais o Comitê Orientador do Fundo Amazônia e, com isso, existem R$ 2,9 bilhões parados no fundo.

O sinal que isso gera para qualquer outro potencial parceiro internacional é muito ruim. Primeiro porque não há confiança na governança. Não se tem certeza se o Brasil, se entrar num acordo, não vai quebrá-lo como fez com a Noruega e a Alemanha no caso do Fundo Amazônia.

E se o Brasil tem R$ 2,9 bilhões parados, por que grandes empresas e outros governos vão priorizar dar recursos ao Brasil? Esse fechamento do espaço é baseado em evidências muito concretas de que o Brasil não está a fim, está mal posicionado nesse jogo.

Não é que esteja faltando recurso. Tem novas promessas vindo aí, o Biden disse que vai colocar aquilo que tinha prometido, a França dobrou sua contribuição. Então as perspectivas são de que quem chegar com bons projetos, com boas justificativas vai conseguir levar.

BBC News Brasil - Muito se fala sobre a necessidade de remunerar as pessoas na ponta que preservam a floresta. Há discussões internacionais sobre esse tema?

Unterstell - Elas nunca chegam nesse nível, porque isso tem a ver com a soberania nacional de cada país. Cada país é livre para estabelecer seus mecanismos.

Mas eu acho que cada vez mais se vê isso como um serviço que precisa ser pago. Afinal, existe um trabalho em torno de manter uma floresta em pé além do que está na lei, cuidar de terra indígena, garantir vigilância. Tudo isso tem um valor para a sociedade brasileira e global.

Estamos começando a pensar nisso como empregos. Tem uma coisa muito legal no plano do Biden que poderia nos inspirar. É a ideia de ter o que eles se chamam de Civilian Conservation Corps (brigadas civis de conservação).

Foi assim que o (ex-presidente Franklin Delano) Roosevelt, lá no New Deal (1933-1937), conseguiu empregar 3 milhões de pessoas nos Estados Unidos fazendo-os restaurar a vegetação e cuidar de parques.

Biden colocou isso no programa dele, e essa seria uma discussão superinteressante aqui, e prática.

Digamos que existam recursos — e existem — para a gente captar a cooperação internacional. Para onde vai isso? Por que não pensar, por exemplo, que o Pantanal precisa ser restaurado?

Isso geraria emprego na ponta, faria as pessoas serem pagas por um serviço, por alguma entrega concreta. Mas infelizmente o nosso nível de discussão no Brasil está muito opaco, a gente ainda não consegue nem pensar em sair da pandemia.

BBC News Brasil - O que achou do programa Floresta +, lançado recentemente pelo governo Bolsonaro, e que também prevê remunerar quem preserva o meio ambiente?

Unterstell - Pode ser um programa interessante, mas ainda tem pouca informação pública a respeito dele — sobre sua governança, por exemplo.

A gente precisaria entender com mais clareza quem está de fato o guiando, e se a sociedade participa. Por exemplo: eles falam em pagar povos indígenas. Quem são os povos indígenas que estão sendo chamados para essa conversa?

BBC News Brasil - Temos visto muitas grandes empresas anunciando medidas contra as mudanças climáticas. O quanto disso é marketing, e o quanto isso realmente muda o jogo?

Unterstell - Tem as duas coisas. Alguns segmentos estão sob muita pressão — o dos frigoríficos, por exemplo. E ele sabem muito bem que não vai bastar fazer um serviço de relações públicas. Não é à toa que uma grande empresa do setor anunciou recentemente o compromisso de chegar ao net zero (equilíbrio entre emissão e absorção de carbono em suas atividades) em 2040.

Depois uma concorrente anunciou a mesma coisa, e outra foi mais ambiciosa e puxou a meta para 2035.

Há razões muito concretas para essa corrida, que é o acesso a mercados internacionais, a questão da reputação, e também motivos financeiros. O desinvestimento (retirada de recursos por parte de investidores) já é um risco material para alguns desses setores.

Metas anunciadas em conferência climática foram ambiciosas, mas será preciso mais para evitar catástrofe, diz analista; acima, protesto em Washington por ações contra mudanças climáticas

Mas isso precisa ser para valer. Precisamos pensar no Brasil na accountability, no monitoramento desses compromissos.

O grande risco que eu vejo hoje é que tem uma corrida para o net zero no mundo inteiro, mas no Brasil muitos acham que basta fazer a conta de emissões e comprar créditos para compensar.

Só que os créditos foram criados para serem transitórios. É preciso investir para trocar tecnologias e zerar as emissões.

BBC News Brasil - O que acha do movimento de grandes empresas brasileiras que, diante da alta no desmatamento na Amazônia, têm se manifestado publicamente e cobrado o governo a agir? Isso é novo?

Unterstell - É bem novo. Me chamou muito a atenção que, em agosto de 2019, 230 investidores e asset managers (administradores de fundos de investimento) globais, incluindo dois brasileiros, tenham mandado uma carta ao presidente da República sobre controlar as queimadas.

Nunca tinha visto uma carta de investidores endereçada ao chefe de Estado, e depois dessa arrancada começou uma onda de ativismo corporativo aqui no Brasil bastante relevante. A gente vê uma mobilização, e isso elevou bastante a percepção de que a pauta ambiental também é econômica.

O empresariado já se ligou que a gente está vivendo num mundo em que meio ambiente, a mudança do clima impõem riscos financeiros, não só reputacionais. É positivo.

Agora, isso vai controlar o desmatamento? Não. Se a gente não tiver ação de Estado para regular e fazer cobrança das empresas, pode ser que tudo isso só fique no plano retórico.

BBC News Brasil- O clima e o meio ambiente são hoje temas centrais na política da Europa e dos EUA. Como compara esse cenário ao da política no Brasil?

Unterstell - O que vem acontecendo nesses países é uma espécie de insurgência verde para além dos partidos verdes. Nos EUA, a questão ambiental se conectou com demandas de saúde e com demandas de emprego locais.

Não é à toa que Biden se elege prometendo criar empregos na transição climática, porque é isso que as pessoas querem, empregos de boa qualidade.

No Brasil, não estamos ainda formando um pipeline de políticos e de partidos com capacidade de disputar espaço com essa mesma leitura.

A gente produziu uma Constituinte nos anos 80 com um capítulo de meio ambiente e um capítulo de povos indígenas. Houve uma construção superbonita em relação à democracia, à participação, então a nossa democracia conseguiu produzir uma coisa fantástica lá atrás.

Mas a gente até hoje não viu de nenhum partido qualquer proposta de Green New Deal (plano de investimentos governamentais focado em tecnologias verdes; o termo é inspirado no New Deal, programa que tirou os EUA da grande recessão de 1929).

E, mesmo com todos os desafios que a gente teve nesses últimos dois anos, como Brumadinho, o vazamento de óleo no Nordeste, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, a gente não viu uma produção legislativa para dar resposta.

É preocupante. Não vejo o mesmo nível de interesse e de compreensão sobre o tema entre os políticos brasileiros.

BBC News Brasil- Nem na esquerda?

Unterstell - Nem na direita, nem na esquerda. Seria muito importante que o PT, que possivelmente vai ter um candidato majoritário na próxima eleição, olhasse a questão do pré-sal e a questão do petróleo à luz dos desafios da mudança do clima.

Essa discussão precisa ser feita, já que o partido e seu maior expoente continuam falando desse mundo e apostando nele, sem reconhecer os desafios que a gente tem na pauta climática.

E a Petrobrás precisa ter uma visão estratégica em relação à transição, de como ela vai voltar a investir em fontes renováveis — os investimentos dela hoje são pífios nessa área.

Pensar qual é a vida útil dessas reservas e como o país pode melhor utilizar esses recursos. Como as regiões hoje dependentes das arrecadações do petróleo vão ficar? Esses planos de transição são inevitáveis.

https://www.bbc.com/portuguese/institutional-56906691