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terça-feira, 4 de junho de 2024

Quem compete com o Brasil pela liderança do 'Sul Global'? - Julia Braun (BBC Brasil)

 Quem compete com o Brasil pela liderança do 'Sul Global'?

Julia Braun

 Role, Da BBC Brasil em Londres

 Twitter, @juliatbraun

BBC-Brasil, 28 maio 2024, Atualizado 31 maio 2024

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0kl44720r5o


Em seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sido apontado como um dos principais candidatos para liderar o chamado 'Sul Global' em sua busca por mais prestígio para países em desenvolvimento, principalmente da América do Sul, África e Ásia. 

Ao longo do segundo semestre de 2023, o Brasil ocupou a presidência temporária do Mercosul. Até novembro deste ano, o país também ocupa a liderança rotativa do G20, grupo que reúne as 19 principais economias do mundo, além da União Europeia e União Africana.


Em 2025, o governo brasileiro ainda assumirá a presidência do Brics e sediará a 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP-30).

Todas essas plataformas são vistas como oportunidades para que o país avance sua agenda — e de seus aliados. 

Essa imagem, entretanto, tem sido desafiada por um cenário internacional marcado por guerras e disputas geopolíticas e um contexto doméstico que requer cada vez mais atenção.

E críticos apontam que posicionamentos recentes de Lula, em especial sobre a guerra na Ucrânia, podem ser travas para a ambição do Brasil em se tornar uma ponte entre os países em desenvolvimento e as superpotências.

Nesse contexto, qual a força do Brasil nessa batalha pela liderança do 'Sul Global'? E quem são os outros concorrentes ao posto de 'capitão' desse grupo tão heterogêneo e etéreo?


O que é o 'Sul Global'?

Apesar do nome, o 'Sul Global' nada tem a ver com uma divisão geográfica, mas sim com as estruturas socioeconômicas, aponta Sara Stevano, professora da Universidade de Londres e economista especializada em desenvolvimento.

Eu consideraria como parte do 'Sul Global' um país que tem uma estrutura econômica típica de contextos pós-coloniais, o que significa que a economia é normalmente baseada na exportação de commodities primárias ou mesmo bens manufaturados considerados de menor valor agregado", diz.

O conceito também inclui as nações consideradas parte da "periferia da economia global" ou que mantêm uma certa dependência em relação aos países do 'Norte Global', em especial, Estados Unidos e Europa. 

"O espaço que os tomadores de decisões políticas têm nos países do 'Sul Global' tende a ser mais estreito do que nos países do 'Norte Global'", afirma Stevano. 

O termo é muito usado no contexto da mobilização de alguns países em torno de preocupações e interesses comuns, especialmente diante da relação com as grandes potências em questões como comércio ou mudanças climáticas. 

Na prática, atualmente tais interesses se manifestam principalmente por meio do Grupo dos 77 (G77) nas Nações Unidas. 

Formado por 134 países, o grupo afirma fornecer os meios "para os países do Sul articularem e promoverem os seus interesses econômicos coletivos e reforçarem a sua capacidade de negociação conjunta em todas as principais questões econômicas internacionais dentro do sistema das Nações Unidas e promover a cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento".

China e Brasil, por exemplo, estão entre os que defendem uma reforma da ONU para aumentar a representatividade e o direito à voz das nações do 'Sul Global'. 

Sara Stevano ressalta, porém, que há diferenças muito grandes entre os países que pertencem ao grupo que não devem ser ignoradas.

Brasil e Moçambique, por exemplo, são ambos considerados parte do 'Sul Global' e possuem economias baseadas na exportação de commodities.

Mas enquanto o Brasil é um ator de influência no grupo, cujo PIB (produto interno bruto) chegou a US$ 2,17 trilhões em 2023, o país africano terminou o ano com US$ 20,8 bilhões, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI).

"Há países que estão na periferia da periferia", diz Stevano. 

Da mesma forma, os interesses e as bases das relações cultivadas por cada uma das nações com seus parceiros do Sul — e as potências do Norte — diferem profundamente. 

Essa heterogeneidade está no cerne dos argumentos dos críticos ao termo, que temem que seu uso possa reforçar dicotomias e estereótipos imprecisos e ultrapassados.

Antes do termo 'Sul Global', a expressão '3º Mundo' era usada com frequência. 

O conceito surgiu durante a Guerra Fria e englobava as nações que não pertenciam nem ao chamado '1º Mundo' (nações ocidentais e desenvolvidas) nem ao '2º Mundo' (composto pelas nações socialistas e comunistas).

Outros conceitos, como 'país desenvolvido' ou 'em desenvolvimento', também ganharam mais espaço nas discussões internacionais. 

No entanto, segundo Sara Stevano, são expressões associadas a uma ideia de desenvolvimento linear que raramente é verdadeira. 

"Essa linguagem tem um ponto cego muito significativo, que é o fato de existirem relações de poder em jogo na economia global", diz. "De certa forma, a terminologia 'Sul Global' deixa isso mais claro."

Quais são, então, os países que se destacam no 'Sul Global' — e por quê?


China: força econômica e política

A China, segunda maior economia do mundo, é um caso bastante único — e por isso está no foco de muitos dos críticos da expressão 'Sul Global'.

O país passou por acelerado crescimento econômico a partir da década de 80. Entre 1994 a 2022, teve uma alta média anual de 8,7% no PIB, com um pico em 2007 (+14,2%).

Há quem aponte que não só a posição econômica da China diante da economia global, mas também os níveis de influência geopolítica exercidos pelo país atualmente, são incompatíveis com os conceitos do 'Sul Global'. 

Mas para Nikita Sud, professora da Universidade de Oxford (Reino Unido) e especialista no tema, as experiências passadas com o imperialismo justificam a inclusão no grupo. 

O grande período de influência europeia na China começou com as chamadas Guerras do Ópio entre 1839 e 1860, travadas contra o Império Britânico e motivadas principalmente pelo comércio do ópio. 

"As ideias pregadas (pelo colonialismo) de dominação racial e civilização continuam até hoje. E é por isso que a China se vê como parte do 'Sul Global' apesar de competir economicamente com os EUA atualmente", diz Sud. 

"Mas a política local, a origem do país e a hierarquia baseadas no racismo alinham a China mais com o Sul do que com o Norte."

O próprio governo chinês só passou a falar com mais frequência sobre o assunto e a se definir como parte do grupo recentemente (antes usava o termo "família de países em desenvolvimento").

Em setembro de 2023, durante o discurso anual na Assembleia Geral das Nações Unidas, o vice-presidente chinês, Han Zheng, disse que a China é um membro natural do Sul Global pois "respira o mesmo ar que outros países em desenvolvimento e partilha com eles o mesmo futuro".

Há quem veja nesse posicionamento mais uma estratégia para se opor à "hegemonia do Oeste" e disseminar uma imagem de grandeza. 

"Para concretizar o sonho do presidente Xi de rejuvenescer a grande nação chinesa, a China precisa assumir um papel de liderança no mundo e o Sul Global serve de veículo para isso (...)", afirmou Robin Schindowski, analista do think tank Bruegel, em um artigo de 2023. 

No entanto, segundo o especialista em China, "preocupações internas" do governo Xi também levaram o governante a impulsionar essa agenda. 

"Embora os fatores estratégicos não devam ser negligenciados, as preocupações internas mais humildes desempenham um papel igualmente importante na procura da China por mais oportunidades nas economias emergentes, especificamente os problemas de longa data do país com o excesso de capacidade industrial."

Mas são justamente a força econômica e política da China que colocam o país como uma das lideranças do 'Sul Global'.

Em uma reportagem publicada em abril, a revista inglesa The Economist utilizou um índice produzido pelo Centro Pardee para Futuros Internacionais (PCIF, na sigla em inglês), da Universidade de Denver, nos Estados Unidos, para comparar o nível de influência de alguns países entre os membros do G77.

Os Estados Unidos têm se destacado como o país com maior influência nas nações do grupo desde a década de 1970, mas a China aparece cada vez mais como um rival de peso, de acordo com o levantamento.

Segundo o Índice Formal de Capacidade de Influência Bilateral (FBIC) do PCIF, a influência chinesa começou a crescer a partir dos anos 2000 e deve ultrapassar a americana nas próximas décadas. 

Ainda de acordo com o índice, a "capacidade de influência" da China sobre o G77 é aproximadamente o dobro da exercida pela França, o terceiro país mais influente entre o grupo, e cerca de três vezes a do Reino Unido, da Índia ou dos Emirados Árabes Unidos. 

O índice é calculado com base em dados que abrangem as dimensões econômica, política e de segurança da influência bilateral formal. Isso inclui interações como intercâmbio diplomático, transferências de armas e comércio de mercadorias, mas não ações menos transparentes, como o financiamento de atores não estatais ou tentativas de interferir em eleições.

Os dados do FBIC apontam maior influência chinesa em 31 países do G77, com destaque para Paquistão, Bangladesh, Rússia e outros Estados do Sudeste Asiático. 

Outro foco da influência chinesa é a África. 

A China apoiou vários movimentos de independência africanos durante a Guerra Fria e, atualmente, a presença da potência asiática no continente se manifesta principalmente por meio de investimentos externos diretos, ajuda financeira, projetos de infraestrutura e empréstimos. 

Em 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China foi lançada por Xi Jinping, apresentando a ambição de revigorar a antiga rota comercial da seda ao longo de parte da costa da África Oriental. 

Teoricamente, isso deveria ter concentrado o investimento chinês na África Oriental, mas muitos outros Estados africanos também procuraram oportunidades através da BRI, fazendo com que a iniciativa se expandisse rapidamente.

Desde então, a BRI assistiu à construção de inúmeros projetos de infraestruturas em toda a Ásia e África, financiados por empréstimos chineses.

O projeto também chegou a países latino americanos: atualmente, 22 nações da América Latina e Caribe fazem parte da BRI.

O comércio entre a China e os países latino-americanos, aliás, bateu um recorde histórico em 2023.

A troca de mercadorias entre a região e o gigante asiático ultrapassou US$ 480 bilhões, segundo cálculos da BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, com base em dados da Administração Aduaneira da República Popular da China (AGA, na sigla em inglês).

A balança comercial foi relativamente equilibrada, com um ligeiro superávit favorável à América Latina, de US$ 2 bilhões.

O novo recorde no comércio de mercadorias com a China constitui mais um passo em uma tendência ascendente que tem sido registrada ao longo deste século. 

O intercâmbio bilateral do país asiático com a América Latina e o Caribe (ALC) mal girava em torno de US$ 14 bilhões no ano 2000, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

A China também assinou nos últimos anos tratados de livre comércio com Chile, Costa Rica, Equador, Nicarágua e Peru, e já negocia com outras nações da região. 


Índia e a 'ponte entre o Sul e o Ocidente'

No bloco informal, a Índia é a grande concorrente da China e aparece no Índice Formal de Capacidade de Influência Bilateral (FBIC) como o país mais influente para seis nações do G77 — entre elas, vizinhos como Sri Lanka e Butão. 

Mas assim como Pequim, Nova Déli também tem buscado expandir sua influência para além de seus arredores, com foco especial na África. 

O número de embaixadas indianas no continente passou de 25 para 43 entre 2012 e 2022, segundo a The Economist.

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, afirma ainda que o país é o quarto maior parceiro comercial africano e a quinta maior fonte de investimento direto estrangeiro na região.

O país também se destaca na área da tecnologia, com importação de sistemas e plataformas digitais, incluindo tecnologias de identidade biométrica.

Segundo um relatório do Centro de Investigação Econômica e Empresarial (CEBR, na sigla em inglês), uma empresa de consultoria com sede em Londres, a Índia deverá manter um forte crescimento de cerca de 6,5% ao ano entre 2024 e 2028, e tornar-se a terceira maior economia do mundo até 2032, ultrapassando o Japão e a Alemanha.

Apesar da ascensão meteórica de sua economia, a Índiacontinua a se classificar como parte do 'Sul Global' e impulsiona sua posição de liderança no bloco informal. 

O país organizou e presidiu em 2023 dois encontros da cúpula Voz do Sul Global, criada por Modi para realizar encontros online sobre desenvolvimento financeiro, crise climática e outros temas de interesse.

A abordagem indiana, porém, é distinta da chinesa. 

Enquanto Pequim se projeta como uma alternativa clara aos Estados Unidos, Nova Déli busca angariar influência se posicionando como um intermediário ou uma ponte entre seus aliados do Sul e o Ocidente.

O governo Modi mantém uma relação especialmente próxima com os EUA, mas, ao mesmo tempo, adota posições bastante pragmáticas em política externa, se recusando, por exemplo, a condenar a Rússia pela invasão à Ucrânia

"Só porque o país se identifica com o 'Sul Global' e é conveniente formar um bloco de aliados para negociar, por exemplo, questões climáticas, não significa que na hora de fazer comércio, atrair investimentos ou contrair empréstimos, ele não possa procurar um país do Norte", diz Nikita Sud.

Quando se trata da defesa por reformas no sistema internacional, a posição indiana também reflete sua postura pragmática. 

Na última reunião anual do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), realizada em outubro passado, China e Índia tomaram posições opostas na discussão sobre a reforma das instituições financeiras multilaterais e as cotas de voto dos países-membros no FMI. 

Enquanto o governo indiano apoiou a proposta dos EUA para um aumento "equiproporcional" das cotas de contribuição financeira sem alteração no poder de voto dos países-membros, a China defendeu um aumento de ambas as cotas como forma de refletir a crescente participação dos países em desenvolvimento na economia global.

Em tese, as cotas dos países no FMI estão relacionadas à participação de cada um deles na economia mundial. Essas cotas determinam, entre outros fatores, o poder de voto dos países dentro do organismo internacional e a possibilidade de acesso a financiamentos de emergência.

Atualmente, China e Índia possuem, respectivamente, 6,4% e 2,75%. O Brasil detém 2,32% das cotas. Os Estados Unidos têm 17,43% das cotas, enquanto Alemanha e Reino Unido detêm 5,59% e 4,23%, respectivamente.


Brasil e as agendas prioritárias de Lula

Para muitos analistas, o Brasil também é um candidato forte ao posto de "líder" do 'Sul Global'.

A ideia foi bastante debatida durante os dois primeiros governos do presidente Lula, que sempre teve essa como uma de suas agendas prioritárias em termos de política externa. 

Com a volta do petista para um terceiro mandato, o país voltou a ser apontado pela imprensa internacional como uma voz nesse debate. 

"Lula está se autodenominando o novo líder do Sul Global – e desviando a atenção do Ocidente", diz uma matéria de abril do jornal britânico The Guardian.

A reportagem afirma que 2024 será um teste para a ambição do presidente, já que o Brasil está na presidência rotativa do G20 e sediará a reunião de cúpula do grupo em novembro (além da COP30 em 2025).

Um dos pontos principais da política de Lula para o 'Sul Global' é a reforma do Conselho de Segurança da ONU, com a criação de assentos permanentes para nações em desenvolvimento, além de equilíbrio do poder de veto.

Em uma entrevista no início do mês, Lula advogou por uma ampla reforma nos organismos financeiros multilaterais, como o FMI. E que os países que têm grandes dívidas externas possam pagar apenas parte delas, usando o restante em investimentos em suas infraestruturas nacionais.

"Uma coisa que queremos defender (no G20) é a mudança no sistema financeiro, criado após a Segunda Guerra. Aquelas instituições não funcionam mais. Elas sufocam os países", afirmou o presidente.

O petista também defende que os países mais ricos e desenvolvidos colaborem mais e financeiramente com os países pobres na luta contra o aquecimento global e desmatamento. 

Essa ideia é apoiada por outras nações do 'Sul Global', mas tem encontrado obstáculos nas últimas negociações. 

Os países industrializados têm se mostrado relutantes em se comprometer financeiramente, preocupados especialmente com a possibilidade de serem responsabilizados legalmente pelos impactos da mudança climática no processo.

Em um artigo publicado no final de 2023, os pesquisadores Christopher S. Chivvis e Beatrix Geaghan‑Breiner, do think tank Fundo Carnegie para a Paz Internacional, afirmaram que apesar da tradição brasileira de independência e não-alinhamento em termos de política externa, a autonomia do país se fortalece à medida que o impasse entre EUA e a China se amplia e o peso político e econômico da nação cresce.

"O Brasil quer evitar uma ordem mundial estruturada apenas pela competição entre grandes potências e, em vez disso, espera uma ordem multipolar onde os Estados do seu tamanho tenham mais voz nas instituições internacionais e maior influência em geral. Na opinião do Brasil, o surgimento de novas potências, especialmente a China, promete uma era de 'multipolaridade benigna', na qual o poder do Ocidente será reduzido e a influência das nações em ascensão será reforçada", argumentaram os pesquisadores. 

Mas para Laura Trajber Waisbich, diretora do programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, falta ao Brasil protagonismo e capacidade de liderança em algumas áreas.

"O Brasil tem capacidade de liderar em algumas agendas, mas em outras não", diz a especialista. "E em quais áreas apostar deve ser uma decisão estratégica e pragmática".

Para Waisbich, o país se destaca quando o assunto é a agenda ambiental e a reforma das organizações ambientais, dois temas que fazem parte do programa de política externa brasileiro há anos. Por outro lado, quando assuntos de segurança com menor proximidade ao Brasil estão em discussão, o país pode escorregar ao tentar se colocar como protagonista.

"Existe capacidade de liderança, de articulação e de ser uma fonte de inspiração para discussões sobre problemas globais, mas [o Brasil] não deveria ter a pretensão de ser um modelo ou líder para tudo", diz. 

Leonardo Ramos, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), explica que o desafio de Lula em avançar com a agenda relativa ao Sul é maior hoje do que no passado.

"O mundo mudou e muitas questões delicadas surgiram desde a última presidência do Lula, como as tensões entre Estados Unidos e China, a guerra na Ucrânia, o conflito em Gaza e a ascensão da nova direita", diz.

Segundo o especialista, em alguns momentos a política externa obriga os países a se alinharem ou condenarem um dos lados envolvidos nos confrontos, causando constrangimentos e prejudicando a ideia de não alinhamento defendida por muitas das nações do Sul.

"E as próprias tensões domésticas e a polarização extrema têm ocupado mais a atenção hoje do que no passado. Com tudo isso, ele tinha mais margem de manobra e respaldo interno."

Para Nikita Sud, nos últimos meses, dois países chamaram a atenção por seu posicionamento mais assertivo do que o normal frente à guerra em Gaza: Brasil e África do Sul.

Enquanto o governo sul-africano apresentou uma acusação de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ), a diplomacia brasileira tem sido bastante crítica à atuação de Israel no enclave palestino e chegou a votar a favor de uma resolução da ONU que conclama o fim da venda e transferência de armamentos aos israelenses.

Segundo a professora da Universidade de Oxford, por terem se posicionado de forma distinta daquela incentivada pelos Estados Unidos, as nações se projetaram como "vozes" mais relevantes na disputa pela liderança de uma nova ordem global, apesar de terem sido alvo de muitas críticas.

Mas para o diplomata Paulo Roberto de Almeida, ex-ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington e ex-assessor especial do núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, os posicionamentos pouco neutros do Brasil têm justamente o efeito contrário e prejudicam sua busca por liderança. 

Segundo Almeida, o governo do presidente Lula tem investido em uma política externa excessivamente "partidária e personalista" que causa fricções com as grandes potências do Ocidente.

O diplomata cita, em especial, a posição em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia.

Apesar de defender uma mediação pela paz, o presidente brasileiro fez declarações que foram entendidas como uma forma de apoio brando à Rússia. 

Em janeiro de 2023, durante visita do chanceler alemão Olaf Scholz ao Brasil, Lula chegou a dizer que a Rússia estava errada em invadir a Ucrânia, mas também sinalizou para culpa do próprio país invadido. “Continuo achando que quando um não quer, dois não brigam”, afirmou. Em maio do ano passado, ao participar do G-7, no entanto, Lula disse que condenava a violação da integridade territorial da Ucrânia.

"A insistência do Brasil em considerar todas as partes legítimas e a falta de neutralidade recente têm minado a posição do Brasil como líder", diz Almeida. 

Ainda segundo Paulo Roberto de Almeida, a busca por uma maior cooperação com outros países em desenvolvimento não deve vir em detrimento da relação com Estados Unidos e Europa - algo que tem acontecido, segundo ele.

"Essa aproximação de Lula com os países proponentes de uma nova ordem global tem causado alguns problemas com os tradicionais parceiros do Brasil no Ocidente, Estados Unidos e Europa Ocidental basicamente."

Laura Trajber Waisbich, de Oxford, discorda. "Não precisa ser um ou outro", diz. "Às vezes pode haver uma decepção ou um desacordo mútuo, mas na minha percepção é um desacordo que afeta apenas partes da relação bilateral, não o todo."

Segundo a especialista, países como Reino Unido, EUA, Japão e Noruega, por exemplo, têm demonstrado confiança em relação à liderança do Brasil na área ambiental, apesar de tomarem posições distintas em relação a temas como a guerra na Ucrânia. 

Para além da política externa, o cenário econômico mundial mudou profundamente desde os primeiros governos de Lula. 

Entre 2002 e 2010, o PIB brasileiro teve um crescimento médio de 4,1%, ancorado, sobretudo, no crescimento das exportações de matérias-primas e commodities do Brasil para nações em vertiginoso crescimento, como a China.

Já em 2023, Lula assumiu em um momento de crescimento menor, inflação persistente e contas públicas afetadas pela pandemia de covid-19.

Ao mesmo tempo, há sinais de que o legado construído pelo atual presidente e pelo Brasil de forma geral ainda garante uma boa posição, segundo analistas. 

"O Lula foi o único chefe de Estado de país emergente que participou das reuniões de cúpula do G77, do G20 e do Brics ano passado, certamente já pensando em reforçar essa posição de liderança", diz Leonardo Ramos, professor da PUC-Minas. 

Os dados do índice elaborado pelos pesquisadores da Universidade de Denver mostram que o Brasil é o campeão de influência em três países do G77: Bolívia, Paraguai e Uruguai. O cálculo considera o ano de 2022 como referência.

O Brasil foi o país com maior influência sobre a Argentina até 1997, segundo o FBIC, mas ficou atrás dos Estados Unidos nos últimos anos. 


África do Sul: 'líder moral'

Correndo nas margens da disputa, está mais um dos membros "mais antigos" dos Brics, a África do Sul. 

O país se juntou em 2011 ao grupo que começou com Brasil, Rússia, Índia e China em 2008, mas é atualmente considerado um dos integrantes mais antigos, já que Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita foram convidados a aderir ao bloco.

A aliança, aliás, tem papel central no avanço da ideia do 'Sul Global' atualmente. 

A própria expansão do grupo após a 15ª Cúpula do Brics, em 2023, foi considerada um enorme passo para que o 'Sul Global' tome o centro do palco da política global.

O presidente da África do Sul e anfitrião daquela reunião de cúpula, Cyril Ramaphosa, disse à imprensa que uma ampliação ainda maior é esperada para os próximos anos.

Segundo ele, os Brics "embarcaram em um novo capítulo no seu esforço para construir um mundo que seja mais justo, honesto, inclusivo e próspero".

Sob a liderança de Ramaphosa, a segunda maior economia da África (atrás apenas da Nigéria, segundo dados de abril de 2024 do FMI) tem expandido sua força de liderança. 

Para Anthoni van Nieuwkerk, professor da Universidade da África do Sul, o presidente "está restaurando a posição e o papel do país como líder moral global".

"As mensagens e o tom usado por Ramaphosa sugerem um líder assertivo do Sul que compreende como o mundo funciona. Ele não tem medo de desafiar a narrativa dominante e está preparado para colocar sobre a mesa as exigências do Sul Global", afirmou, em um artigo publicado no portal The Conversation em dezembro de 2023.

Essa ideia foi reforçada especialmente pela apresentação da denúncia à Corte Internacional de Justiça em Haia contra Israel e pelo posicionamento da diplomacia sul-africana frente ao conflito na Ucrânia. 

Segundo Van Nieuwkerk, quando se trata da guerra travada no Leste Europeu, a África do Sul é especialmente motivada a advogar pela paz diante das consequências econômicas do confronto na África, que já sofre com a insegurança alimentar e energética.

Ramaphosa liderou uma missão de paz africana para o confronto, que apesar de ter fracassado em seus esforços de negociação, foi interpretada como um sinal da busca por liderança regional e global do presidente sul-africano, diz. 

Ao lado do Brasil, a África do Sul também é uma voz importante nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre agricultura e um intermediário entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.


Rússia: o debate sobre o 'R' dos Brics

Em agosto de 2023, durante o Fórum Empresarial do Brics em Joanesburgo, na África do Sul, o presidente Lula destacou a importância do bloco para o avanço dos países em desenvolvimento, classificando o grupo como a "força motriz" do 'Sul Global'. 

Mas há grande discussão em torno do papel do 'R' dos Brics entre os países em desenvolvimento.

Apesar de sua clara oposição às potências do Ocidente, há quem questione a inclusão da Rússia entre os países do 'Sul Global'.

"Assim como a China, a Rússia se encaixava nas leituras de potência média ou potência emergente quando esses conceitos se popularizaram. Mas vai ficando cada vez mais claro que são potências 'reemergentes' — foram grandes no passado, tiveram problemas e depois voltaram a crescer", diz Leonardo Ramos, da PUC-Minas.

O especialista ressalta, porém, que enquanto a China se alinhou mais ao 'Sul Global' por muitos anos — por sua política de não interferência —, a tensão da Rússia com o chamado "mundo Ocidental" sempre foi mais inflamada. 

Ao mesmo tempo, o governo russo parece interessado em promover a ideia de uma aliança contra o 'Norte Global' e usar alianças com o Sul a seu favor. 

"A Rússia vem se engajando de maneira explícita com alguns países do Sul Global nas últimas décadas, de forma a tentar desempenhar algum papel importante para que esses países votem com a Rússia em fóruns internacionais", diz Ramos. 

Em fevereiro, Moscou organizou o primeiro "Fórum pela Liberdade das Nações", com 400 delegados de 60 nações, para reunir os países do 'Sul Global' contra o que chamou de "neocolonialismo Ocidental".

No ano anterior, sediou uma reunião de cúpula entre Rússia e África, durante a qual o presidente Vladimir Putin anunciou o cancelamento de mais de US$ 20 bilhões em dívidas históricas de nações africanas, segundo a agência de notícias estatal Tass. 

O governo russo também fez lobby pela expansão dos Brics e enviou o ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, em várias viagens pelo 'Sul Global'.

Mas quando o tema é o confronto com a Ucrânia, o alinhamento absoluto não é a realidade.

China, Índia e Brasil adotaram uma posição mais neutra. Mas outros integrantes do 'Sul Global' têm demonstrado inclinação maior a apoiar o lado ucraniano, especialmente em votações nas Nações Unidas. 

Ainda assim, segundo o professor da PUC-Minas, os países do sul não deixam de ter um papel importante na política externa russa por representarem uma alternativa para importações e exportações em um momento de tensão e sanções internacionais. 

Os dados compilados pelo Índice Formal de Capacidade de Influência Bilateral (FBIC) também mostram um crescimento da influência de Moscou sob o G77 nas últimas décadas, com previsão de expansão ainda maior até 2035.

 

terça-feira, 25 de julho de 2023

Antiamericanismo na política externa brasileira? - Mariana Sanches (BBC Brasil, Wahington)

 Há antiamericanismo na relação do governo Lula com os EUA?

Lula e Biden

CRÉDITO, REUTERS

Legenda da foto, 

Lula e Biden em encontro na Casa Branca em fevereiro de 2023

Trinta e cinco minutos. A julgar pela rapidez com que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022, a relação entre os dois países prometia entusiasmo e entrosamento. 

A mensagem pública da Casa Branca ainda na noite do domingo do pleito era também o desfecho da estratégia que os americanos adotaram ao longo dos meses que antecederam a eleição brasileira. 

Seja por meio de diplomatas, de autoridades militares, de enviados da Casa Branca ou até mesmo do chefe da CIA (Central Intelligence Agency), eles expressaram apoio às instituições democráticas do Brasil e sinalizaram a militares e civis brasileiros que nenhuma ruptura institucional contaria com o apoio dos EUA. E esperavam que o comportamento geraria conexão, e até mesmo gratidão, do novo governo brasileiro.

Até por isso, os americanos demonstraram confusão e frustração quando, em diferentes ocasiões nos últimos seis meses, foram também confrontados com declarações duras de Lula (veja exemplos abaixo). Onde alguns analistas e diplomatas em Washington ouviram ecos de antiamericanismo, a diplomacia brasileira e outros especialistas argumentam haver independência, busca por multipolaridade e até mesmo resquícios de uma desconfiança histórica. 

"É claro que existem ressentimentos históricos e questões ideológicas, mas o que alguns chamariam hoje de 'antiamericanismo' parece mais uma questão de senso de oportunidade no contexto de um mundo com novos líderes (leia-se, China), do que qualquer outra coisa", diz Fernanda Magnotta, professora de Relações Internacionais na FAAP. "Eu resumiria o nosso antiamericanismo como um mix de agir com o cérebro e agir com o fígado. Bastante cérebro e pitadas de fígado", afirma.

Fim do Matér

Já Ryan Berg, diretor do programa Américas do Center for Strategic & International Studies, vê o governo Biden numa armadilha. “Eles (governo Biden) pintaram Lula como um democrata salvador e agora estão presos a isso. Lula está obviamente contrariando interesses americanos, mas não podemos criticá-lo como normalmente faríamos, por todo o endosso que foi dado", disse Berg à BBC News Brasil.

"E era bastante óbvio de saída que Celso Amorimnão era o maior fã dos EUA”, segue ele, citando o ex-chanceler e assessor especial de Lula. 

Seis intensos meses

Fim do Podcast

Por dizer que os EUA deveriam “parar de incentivar a guerra” na Ucrânia, Lula foi acusado por John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, de “papagaiar” o discurso sino-russo. 

Ao receber o líder venezuelano Nicolás Maduro em Brasília, o brasileiro argumentou que havia “uma narrativa” sobre as condições não democráticas da Venezuela, declaração recebida pelos americanos como crítica à atuação deles na região. 

E ao expressar a intenção de desalojar o dólar da posição de moeda de transações internacionais ("Quem é que decidiu que era o dólar a moeda?"), Lula foi visto como entusiasta da redução do protagonismo global americano. 

Embora tenha se alinhado repetidas vezes aos EUA em condenar a invasão russa no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil contrariou os americanos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ao se recusar a transferir armamentos à Ucrânia, um pedido primeiro feito a Lula pelo chanceler alemão Olaf Scholz em janeiro. 

O governo brasileiro também permitiu, no começo do ano, a atracagem de navios militares iranianos sob sanção americana em um porto do Rio de Janeiro, o que levou congressistas mais exaltados a sugerir que a gestão Biden deveria estender ao Brasil as sanções (o que não aconteceu). 

A gestão Lula também não endossou o texto final da Cúpula da Democracia de Biden, em março, que trazia uma condenação à invasão da Rússia pela Ucrânia. E aos olhos dos americanos, Lula precisou ser cobrado a enviar um emissário brasileiro à Kiev, após remeter Celso Amorim para um encontro com Vladimir Putin em Moscou — o próprio Amorim acabou indo à Ucrânia depois.

John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA

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John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, disse que 'Brasil está papagueando a propaganda russa e chinesa'

Em abril, o jornal americano Washington Post listou as rusgas em um texto intitulado: “O Ocidente acreditou que Lula seria um parceiro. Mas ele tinha seus próprios planos”. 

"A política externa brasileira não é anti-ninguém, é pró Brasil", responde a nova embaixadora brasileira em Washington, Maria Luiza Viotti, ao ser questionada pela BBC News Brasil sobre os que apontam possível antiamericanismo na política externa brasileira. “E o Brasil valoriza as relações com os EUA (...). O presidente Lula deu demonstração clara nesse sentido ao visitar os EUA apenas quarenta dias após ter tomado posse”, completa.

Viotti relembra que, na tradição diplomática brasileira, a regra foi uma postura independente em relação a superpotências. Getúlio Vargas, por exemplo, mantinha relações aquecidas com a Alemanha, de Adolf Hitler, e a Itália, de Benito Mussolini, logo antes de aderir à Segunda Guerra ao lado dos aliados. Jânio Quadros e João Goulart fizeram fortes aproximações com a China, mesmo contra os interesses americanos. 

Nem mesmo o regime militar brasileiro se alinhou por completo aos EUA, salvo no início, sob a batuta de Castelo Branco: manteve relações diplomáticas com a União Soviética — apesar de o golpe de 1964 ter sido patrocinado pelos americanos. 

Exceções à trajetória foram o governo Dutra (1946-1951), no pós-guerra imediato, e, mais recentemente, o período Jair Bolsonaro - Donald Trump, em que o Brasil experimentou um alinhamento automático em relação aos americanos. Em 2019, pela primeira vez na história, o Brasil votou contra a condenação ao embargo americano em Cuba, ao lado apenas de EUA e Israel (em um total de 193 países). 

"Hoje Brasil e EUA se reconhecem como duas grandes democracias, que compartilham valores e um considerável patrimônio de interesses comuns, de presença recíproca e de cooperação", diz Viotti.

Lula e Biden em encontro na Casa Branca

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Ao expressar a intenção de desalojar o dólar da posição de moeda de transações internacionais, Lula foi visto como entusiasta da redução do protagonismo global americano

O que querem e o que oferecem os americanos?

Publicamente, a diplomacia americana nega ver sinais de antiamericanismo em Lula e calibra suas declarações entre críticas duras e palavras de apreço ao aliado. 

Questionado diretamente sobre o assunto pela BBC News Brasil, o secretário adjunto para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, afirmou que “Lula é um grande aliado em tantas áreas”. 

“Nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo é melhor com o Brasil nele”, disse Nichols à BBC News Brasil em junho

Posicionamento que alguns analistas, especialmente os americanos, veem com ceticismo.

"Acho que o governo Biden lida bem com a situação, mas há pessoas no governo americano muito desapontadas, sugerindo que Lula seja um falso amigo. Não concordo completamente com isso, mas há elementos de verdade", afirma Brian Winter, editor da revista americana America’s Quarterly.

“Lula e Celso Amorim acreditam em uma ordem multipolar, com vários países poderosos, e que isso seria melhor para o Brasil. E eu entendo e respeito isso. Não acho que Lula odeie os EUA, mas, na prática, ele claramente quer ver os americanos não tão poderosos quanto são hoje”, resume Winter, que conclui: “Todo mundo em Washington percebe que ele torce contra os EUA. Então, é constrangedor”. 

Para analisar a equação da relação bilateral, é preciso colocar outro elemento no xadrez: a China. Os EUA assistem ao avanço contínuo da influência de Pequim, sua maior antagonista global, na América Latina na última década, seja por meio do comércio ou por investimento direto, e o Brasil é o principal parceiro chinês em ambos os quesitos.

Já são 21 os países latinos ou caribenhos a assinarem o acordo de desenvolvimento econômico chinês conhecido como Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês). E embora o Brasil não tenha assinado o BRI, tampouco é signatário do Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica, a tentativa de resposta dos EUA ao BRI que patina em injetar recursos na região.

O Brasil também tem enviado recados de que não pretende ter de escolher entre China e EUA, em rota de tensão crescente, em temas como a tecnologia de semicondutores.

"Não temos nenhuma preferência por uma fábrica de semicondutores chinesa. Mas se eles (chineses) oferecerem boas condições, não vejo porque a gente recusar. Não temos medo do lobo mau", disse Celso Amorim à Reuters.

Neste contexto, o Brasil é um país com o qual os EUA precisariam aprofundar relações. A visita de Lula à capital americana, em fevereiro, poderia ter servido para avançar, mas organizada em clima de correria, frustrou o presidente brasileiro, que esperava ser recebido para uma visita de Estado, não apenas de trabalho, e ter a oportunidade de falar ao Congresso dos EUA, o que não aconteceu. Em comparação, o líder indiano Narendra Modi, cujo país se abstém de endossar as críticas americanas à invasão da Rússia à Ucrânia na ONU, foi recebido recentemente com a solenidade que Lula não recebeu.

Ainda durante a visita do brasileiro, em fevereiro, os americanos ofereceram seu ingresso ao Fundo Amazônia, algo desejado e celebrado pelo Brasil. Mas o baixo valor do aporte inicialmente disponibilizado, US$50 milhões, causou mal-estar no lado brasileiro a ponto de ser excluído da declaração conjunta dos países. Meses depois, Biden anunciou a intenção de enviar US$ 500 milhões à Amazônia — remessa que o Congresso dos EUA ainda não aprovou.

Antes mesmo do pleito de 2022, no entanto, ao menos um diplomata americano ouvido reservadamente pela BBC News Brasil expressou preocupação com as simpatias de Lula a regimes como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense. Embora a relação entre Bolsonaro e Biden fosse, na prática, inexistente, este diplomata dizia que os americanos apreciavam o modo como Bolsonaro alinhou o Brasil em temas ideológicos caros aos americanos e expressava desconfiança ao que seria a relação com Lula. 

"Depois de 30 anos do fim da Guerra Fria, pessoas em Washington, republicanos e democratas, ainda acham difícil trabalhar com um país latino-americano que fica a meio caminho entre amigo e inimigo. Querem perguntar: 'Ei, Brasil, você é amigo ou não?' Ninguém pergunta isso à França, por exemplo", afirma Brian Winter.

Recentemente, Washington demonstrou insatisfação diante de iniciativas brasileiras para suavizar um texto crítico a violações de direitos humanos do governo de Daniel Ortega, na Nicarágua, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). 

“Lula tem amizade pessoal com todos os esquerdistas da América Latina. A razão pela qual o Brasil quis diluir a resolução da OEA sobre a Nicarágua é justamente a relação de Lula com Ortega. Eles se conheceram nos anos 80, relacionamentos são importantes e impactam a política, mesmo décadas depois. A outra parte disso é o Brasil tentando se posicionar para uma maior autonomia estratégica e, para isso, precisa manter os EUA a certa distância”, diz Berg, do programa Américas do Center for Strategic & International Studies.

Regionalmente, este não é um ponto isolado de discordância. Embora os americanos tenham dito publicamente que gostariam de ter com o Brasil um diálogo para promover eleições livres na Venezuela no ano que vem, as autoridades dos dois países não têm discutido o assunto. Em vez disso, há poucos dias, Lula se uniu ao presidente francês Emmanuel Macron para tratar o tema em uma reunião com representantes do governo e da oposição venezuelana. 

Apesar da grande pressão de americanos para que o Brasil compusesse uma força militar para ser enviada ao Haiti, onde o país liderou por mais de uma década uma missão de paz da ONU, o governo Lula já os fez saber que não embarcará na proposta.

O líder venezuelano Nicolás maduro e o presidente brasileiro Lula

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O líder venezuelano Nicolás Maduro e o presidente brasileiro Lula se encontraram em maio, em Brasília

Interesses brasileiros e multipolaridade

Em um artigo para edição de maio/junho da publicação Foreign Affairs, o professor de Relações Internacionais da FGV Matias Spektor afirma que, ao evitar se alinhar com posicionamentos americanos na guerra da Ucrânia, por exemplo, países como o Brasil não estão sendo amorais ou acríticos, estão apenas mantendo necessária flexibilidade de compromissos para se adaptar a possíveis novos cenários geopolíticos. 

“Os países do Sul global estão preparados para abrir caminho em meados do século 21. Eles se protegem não apenas para obter concessões materiais, mas também para elevar seu status, e abraçam a multipolaridade como uma oportunidade de subir na ordem internacional. Se quiser permanecer em primeiro lugar entre as grandes potências em um mundo multipolar, os Estados Unidos devem enfrentar o Sul global em seus próprios termos”, conclui Spektor.

É exatamente isso o que dizem três diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil sobre o assunto. 

Segundo eles, ao retomar a proximidade com a Venezuela em termos que desagradam os americanos, Lula está cuidando do que interessa ao país: manter boas relações com vizinho de fronteira e reaver dinheiro de empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para o país. 

Os próprios americanos, recordam eles, flexibilizaram sanções ao petróleo venezuelano quando isso atendia ao interesse de baixar o preço da commodity, diante da guerra na Ucrânia. 

Do mesmo modo, ao advogar por transações em outras moedas que não o dólar, Lula estaria buscando facilitar trocas comerciais com qualquer parceiro, já que o Brasil não está em condição de escolher de quem comprar ou para quem vender. 

Com os EUA, interessa aos brasileiros tocar as agendas em comum: democracia, meio ambiente, comércio bilateral. 

"Toda política externa tem componente ideológico, tem motivações normativas, morais. Sempre tem uma visão de mundo ali. Mas é preciso olhar para a política externa a partir de indicadores objetivos: atração de investimentos, facilitação de fluxo de pessoas, atração de eventos de porte ao país. Isso é o que interessa", argumenta Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. 

Segundo Belém Lopes, se quer liderar a região e exercer protagonismo global, Lula tem que se comportar de maneira distinta da defendida pelo presidente do Chile, Gabriel Boric, que não refreia críticas às esquerdas na América Latina e expressou forte apoio à Ucrânia. Esta semana, Lula disse que Boric é jovem e apressado em seus posicionamentos. 

"O Brasil tem que lidar com Maduro e Ortega. O Brasil é metade da América do Sul, tem que lidar com muito mais gente do que o Chile, precisa se relacionar com muitos se quiser liderar a região, o que é a nossa proposta. Para a gente conseguir ter aspirações globais, a gente tem que se cacifar como líder regional", afirma Belém Lopes, que completa: "Tem custos? Tem. A forma como Lula faz é a melhor? Não sei. Mas certamente é melhor do que havia antes". 

Há quem, no entanto, veja riscos na estratégia de Lula até agora. 

"O grande projeto diplomático de uma nova 'ordem mundial' de Lula vai causar problemas para o Brasil nas suas relações com os países ocidentais, com repercussões sobre interesses militares em equipamento e cooperação", afirma o embaixador aposentado Paulo Roberto de Almeida. 

Recentemente a Alemanha bloqueou a exportação para as Filipinas dos tanques Guarani, fabricados pelo Brasil, com componentes alemães. A negativa veio depois que o Brasil se recusou a repassar munições para a Alemanha que chegariam à Ucrânia. A justificativa oficial alemã foi a de que o governo filipino comete violações aos Direitos Humanos. Produtos da Embraer também podem ser afetados nesta dinâmica.

Os americanos têm expressado que, embora defendam uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, pleito histórico do Brasil, não endossarão uma eventual candidatura brasileira. Para o embaixador Rubens Ricupero, as ações de Lula podem reduzir a disposição dos americanos de cooperar em temas centrais para o Brasil, como o meio ambiente e a democracia. Ele não vê vantagens estratégicas no comportamento do presidente.

"Só posso atribuir isso ao ressentimento (alguns dizem que Lula culpa em parte os americanos pela Lava Jato e sua condenação) e, em parte, ao cálculo, com vistas talvez a agradar setores mais radicais do PT e de apoiadores acaso insatisfeitos com a política econômica e outras orientações do governo", diz Ricupero, recordando a aprovação recente do arcabouço fiscal na Câmara, que não contou com o apoio de setores da esquerda que compõem a base do governo Lula. 

"Não acho que essa linha vá gerar apoio interno, pois a opinião pública brasileira em geral é simpática aos EUA fora os setores de esquerda e nacionalistas mais radicais", afirma o embaixador.

O assessor presidencial Celso Amorim e o vice-chanceler da Ucrânia, Andrii Melnyk

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O assessor presidencial Celso Amorim e o vice-chanceler da Ucrânia, Andrii Melnyk, em encontro em Kiev 

Desconfianças recentes e históricas

Ricupero não é o único a citar o histórico da Operação Lava Jato para explicar possíveis desconfianças de Lula com os EUA. Houve colaboração formal e informal do Departamento de Justiça dos EUA com investigadores e autoridades brasileiras no caso que levou Lula à prisão e à inelegibilidade em 2018. Os processos contra Lula acabaram anulados pelo Supremo Tribunal Federal.

“Não vejo Lula como antiamericano. Eu acho que o que se percebe por parte dele é uma desconfiança, mas não hostilidade. Isso tem a ver primeiramente com a sensação pessoal do presidente de que Washington — especialmente o Departamento de Justiça — teria contribuído de alguma forma para sua prisão”, diz André Pagliarini, professor de História do Hampden-Sydney College, na Virgínia, e colaborador do Washington Brazil Office, organização que faz a interface entre parte da sociedade civil brasileira e o Congresso americano. 

Para ilustrar o que considera um “trauma” de Lula com os americanos, Pagliarini conta uma anedota. 

“Há dois anos, conversei com uma pessoa do círculo de Lula que me contou da tentativa de planejar uma viagem aos EUA (ainda antes das eleições brasileiras). Mas parte deles temia que Lula seria preso ao descer do avião. Eu e outros falamos que isso era um absurdo, não aconteceria de jeito nenhum. Eles não confiavam e a visita não rolou. Sempre achei isso emblemático e acho que ajuda a explicar uma certa visão equivocada sobre os EUA hoje”, diz Pagliarini. 

Em junho de 2021, a BBC News Brasil revelou que 23 deputados democratas pediram ao governo Biden que tornasse públicas as informações sobre cooperações na investigação. Dois anos mais tarde, o Departamento de Justiça jamais respondeu aos deputados. A demanda tinha sido feita em uma articulação com a sociedade civil brasileira, representada pelo Washington Brasil Office na capital americana. 

Se o governo Biden não tem colaborado pra esclarecer o passado recente das relações entre o Departamento de Justiça e as autoridades brasileiras, coube ao próprio Joe Biden, então vice de Obama, realizar uma das maiores aberturas de arquivos americanos sobre o Brasil, em 2014. 

Em visita a Brasília, Biden entregou pessoalmente à então presidente Dilma Rousseff 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977 sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil. O material abasteceu a Comissão Nacional da Verdade, estabelecida no governo Dilma.

O gesto dos americanos, no entanto, não era desinteressado. Era, na verdade, uma tentativa de reaquecer relações abaladas depois que se tornou pública a espionagem do país contra Dilma. Vazamentos de documentos diplomáticos americanos pelo site Wikileaks, em 2013, apontavam que a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) tinha grampeado até mesmo a linha telefônica usada pela presidente no avião presidencial. Como retaliação, Dilma cancelou uma visita de Estado que faria a Barack Obama em Washington D.C. 

Em julho, o jornal El País revelou uma nova suposta espionagem levada a cabo por uma agência espanhola a pedido dos EUA, em 2018, e que tinha como alvo reuniões do ex-presidente do Equador Rafael Correa (2007-2017) com os ex-presidentes da Argentina, Brasil e Uruguai, Cristina Fernández de Kirchner , Lula, Dilma e José Mujica, em 2018. 

Nos últimos dias, deputados democratas da ala à esquerda do partido tentaram passar uma emenda legislativa para forçar os EUA a abrir supostos arquivos adicionais sobre a ditadura brasileira. A emenda não foi aprovada. Uma fonte do Departamento de Estado dos EUA especializada em América Latina disse à BBC News Brasil que já não há material relevante disponível ainda sob sigilo no arquivo americano. 

Dilma Rousseff e Joe Biden em Brasília

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Dilma Rousseff recebeu documentos americanos sobre a ditadura do então vice-presidente dos EUA Joe Biden

“O ápice do antiamericanismo no Brasil veio com o golpe militar, que completará 60 anos no ano que vem. Temos que lembrar que os EUA participaram ativamente da derrubada do governo João Goulart, o que gerou uma profunda desconfiança, justificada, nos americanos a partir daí. Os americanos foram nefastos em 1964”, afirma o historiador James Green, da Brown University, um dos maiores especialistas americanos em ditadura militar no Brasil. 

O golpe no Brasil foi apenas uma das ações dos americanos na região durante a Guerra Fria que mobilizaram sentimentos contra os EUA não só nas esquerdas, mas nas lideranças políticas latinas em geral. 

No período, os americanos tentaram, com maior ou menor sucesso, suprimir revoluções ou governos democráticos socialistas na região, em sua disputa por hegemonia econômica e geopolítica com a socialista União Soviética.

Da Cuba de Fidel Castro ao Chile de Salvador Allende, a interferência política americana em assuntos domésticos na região era palpável no século 20 e os governos americanos também sabiam e acobertaram violações de direitos humanos cometidas sistematicamente pelo regime brasileiro (e também pelos demais) contra seus opositores políticos e chegaram a oferecer treinamento para militares brasileiros com aulas teóricas e práticas de técnicas de tortura e de estratégias de combate a guerrilhas. 

Essas informações foram descritas pelos próprios americanos em documentos oficiais tornados públicos nos últimos anos. 

“Historicamente, o antiamericanismo passou a ser uma força enorme e capaz de aglutinar a esquerda da América Latina, animar a militância, gerar identidade ideológica. O problema é que ele faz cada vez menos sentido concreta e estrategicamente”, afirma Felipe Krause, professor do Centro de Estudos Latino Americanos da Universidade Cambridge.

Segundo Krause, a partir da década de 1990, progressivamente, os americanos entenderam que a estabilidade da região era mais facilmente atingida se os ritos democráticos fossem respeitados em cada país — o que reduziu o intervencionismo. 

Além disso, setores da esquerda latina aumentaram sua interlocução com a sociedade civil americana, que adotou um eficiente sistema de pressão sobre os congressistas e a própria Casa Branca. Em certa medida, foi exatamente isso o que se viu nas repetidas manifestações críticas da gestão Biden e do parlamento americano à política ambiental e indigenista do governo de Jair Bolsonaro, ou na estratégia americana de apoio à democracia do Brasil. 

Mas enquanto parte da esquerda latina passou a atuar por dentro da política dos EUA, outra segue recusando iniciativas americanas, mesmo quando os interesses são coincidentes.

“Uma parte da esquerda brasileira não consegue atualizar o quadro geopolítico. Desconfia até mesmo dos supostos reais interesses de Biden ao defender a democracia no Brasil, como se fosse uma fachada para controlar o país, tomar a Amazônia. Quando a explicação é muito simples, os americanos passaram por algo semelhante com Trump e conseguem entender a gravidade da situação e ter empatia”, diz James Green.