Parece que antes era improvisado. Os juizes atuais deram um passo adiante na improvisação...
Paulo Roberto de Almeida
Livro sobre a Justiça em São Paulo na época colonial descreve as raízes dos desmandos públicos no Brasil
MÁRCIO FERRARI |
ED. 234 | AGOSTO 2015
Reconstituir o funcionamento da Justiça no Brasil colonial é, ao
mesmo tempo, mapear as estruturas de poder do período, reconhecer
arraigados maus costumes e observar a formação de uma elite que se
manteria dominante até as primeiras décadas do século XX. Esse recorte
define o livro
Direito e justiça em terras d’el rei na São Paulo colonial 1709-1822,
de Adelto Gonçalves, lançado em julho pela Imprensa Oficial do Governo
do Estado de São Paulo. Verificar e descrever as atribuições dos membros
de uma rede de poder que ocupava cargos de ouvidores, juízes de fora,
provedores, corregedores, juízes ordinários e vereadores foi um dos
objetivos primordiais de Gonçalves, que procurou seguir uma tendência
recente na historiografia brasileira, “que procura privilegiar as
pesquisas sobre as formas de governar”.
O autor, no entanto, não é da área de história e adquiriu
familiaridade com o período que estudou pela porta da literatura.
Jornalista aposentado, Gonçalves é doutor em Letras – Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e até 2014 lecionou
língua portuguesa no curso de direito da Universidade Paulista (Unip),
em Santos, que financiou sua pesquisa sobre a Justiça colonial em São
Paulo. Seu interesse pelo assunto foi despertado por suas pesquisas de
doutorado sobre o poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810)
e pós-doutorado sobre o poeta português Manuel Maria de Barbosa du
Bocage (1765-1805), esta realizada com apoio da FAPESP. Gonzaga foi
ouvidor em Vila Rica e o pai de Bocage fez carreira no Judiciário em
Portugal até ser acusado de desvios e cair em desgraça política. As suas
pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, em Lisboa – complementadas no acervo do Arquivo do
Estado de São Paulo –, permitiram estabelecer as atribuições dos altos
funcionários do estado, começando pela relação completa dos governadores
e capitães-generais (cargos concomitantes) no período estudado,
corrigindo erros de listas anteriores.
“Fui levantando a nobreza da terra, as pessoas que mandavam e
recorriam à Justiça para conseguir privilégios, como cargos e títulos”,
diz o pesquisador. Eram os chamados “homens bons”, “que usufruíam tanto
quanto podiam de suas relações com os representantes do poder”. Dessa
casta saíam os camaristas ou vereadores – membros das câmaras municipais
–, que, até fins do século XVII, acumulavam funções administrativas com
o exercício da Justiça ordinária. Em geral, as vilas, tanto de Portugal
quanto das colônias, mantinham apenas um juiz ordinário e um juiz de
órfãos. No Brasil os casos criminais ficavam a cargo dos primeiros, que
se baseavam, para julgá-los, apenas nos usos e costumes. Muitas vezes as
câmaras nem sequer tinham sede apropriada. “Os julgamentos eram feitos
embaixo de árvores por autoridades que não tinham formação em direito
nem a quem recorrer, porque raramente havia nas colônias alguém formado
em leis”, diz Gonçalves. Essas autoridades eram chamadas de “juízes
pedâneos” porque julgavam de pé.
Já havia nessa época a figura do ouvidor-geral, criada por um
regimento de 1628 que revogava a atribuição concedida aos titulares das
capitanias hereditárias (capitães donatários) a fazer justiça nas terras
de seu domínio. O envio regular de ouvidores e juízes de fora por
Portugal, no entanto, só se deu no século XVIII. “Eram, pela primeira
vez, especialistas em direito vindos da Universidade de Coimbra e tinham
a missão de disciplinar e uniformizar a execução da Justiça”, diz
Gonçalves. Como medida moralizante, os ouvidores não podiam se casar com
mulheres residentes no Brasil sem autorização da Coroa, para não se
envolver com as famílias poderosas e seus interesses econômicos. “Mas
acabavam se envolvendo mesmo assim”, diz o pesquisador. “E, com o tempo,
as famílias abastadas começaram a mandar seus filhos estudar em Coimbra
e voltar aptos a ocuparem o cargo de juiz de fora.”
Na prática, apenas os pobres eram condenados pela Justiça colonial.
Segundo um regimento de 1669, o ouvidor tinha autoridade para executar a
pena de morte, sem apelação, para os crimes cometidos por escravos e
índios. Mas, se um juiz ou ouvidor pretendesse punir um grande
proprietário de terra, estava correndo risco. “Os que tinham prestígio
ou haviam prestado favores à Coroa eram intocáveis.”
O ouvidor não podia ser preso ou suspenso por nenhuma autoridade
local, nem mesmo o capitão-general. Suas decisões não se baseavam
propriamente em leis formalizadas. Somente com o
Regimento dos ouvidores-gerais do Rio de Janeiro, de 1669, e o
Regimento dos ouvidores de São Paulo,
de 1770, surgiram referências explícitas para aplicação geral de
princípios. Foi também com esses decretos que o ouvidor-geral passou a
ter o cargo civil mais alto das possessões portuguesas de ultramar. As
apelações tinham duas instâncias, o Tribunal de Relação da Bahia e a
Casa da Suplicação, em Lisboa, mas raramente os processos passavam da
instância primária.
Os ouvidores tinham enorme poder econômico em mãos, uma vez que cabia
a eles a fiscalização do recolhimento de tributos e outras fontes de
receita. Desde o século anterior, a maior parte dos ingressos
financeiros de Portugal vinha das colônias ou das alfândegas. Também
cabia ao ouvidor fiscalizar os gastos e a atuação de vereadores e juízes
ordinários – embora não pudesse se imiscuir nas funções da Câmara, que,
a essa altura, tinha suas atribuições autônomas reduzidas à execução de
pequenas obras. O poder das Câmaras, ocupado por filhos e netos das
primeiras elites, manteve-se de modo mais ou menos simbólico. “Eram
ocupados por aqueles potentados que viriam décadas depois a ser chamados
de ‘coronéis’”, diz Gonçalves.
O poder nas mãos dos prepostos da Coroa era tal que, para obter e
manter privilégios e recursos indevidos, jogavam com a possibilidade de
estimular a secessão da Colônia. “Portugal era, a rigor, um país pobre
nessa época”, diz Gonçalves. “Não tinha Exército ou outros meios para
reprimir rebeliões pela força.” Foi assim que proliferaram as figuras
dos “grossos devedores”, autoridades locais que desviavam tributos até
que a Coroa, para recuperar essa “dívida”, entrava em acordo com vistas a
um ressarcimento parcial. Segundo Gonçalves, “a questão fundamental
residia na própria fragilidade do reino, que, para sobreviver, sempre
permitia brechas para ações praticadas sob a proteção do próprio
Estado”.
A própria narrativa histórica dominante até há poucas décadas traz
sinais desse modelo – enquanto os posseiros ricos e, até certo ponto,
aliados da Coroa foram identificados como desbravadores, os lavradores
que ocupassem terras eram “invasores” ou “intrusos”. “Como mostram os
documentos, os juízes quase sempre usaram o direito para interpretar
cartas de doação, revogação de sesmarias, sucessões e desmembramentos de
terras de acordo com os interesses dos poderosos locais”, diz o
pesquisador.
© REPRODUÇÃO
Reprodução de documento relativo a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Justiça Eclesiástica
Outro aspecto da Justiça em São Paulo no mesmo período histórico é tema
de um projeto de pesquisa em andamento no Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP. Um grupo de pesquisadores coordenado pelo
professor Marcelo Módolo está às voltas com documentos que registram
processos relativos à suposta prática de feitiçaria. A pesquisa
intitulada
Bruxas paulistas: edição filológica de documentação sobre feitiçaria consiste
no estudo e na transcrição dos 12 processos desse tipo abertos entre
1739 e 1771 pela Justiça eclesiástica, braço do Tribunal do Santo Ofício
(Inquisição) no Brasil, depositados no Arquivo da Cúria Metropolitana
de São Paulo.
A Justiça eclesiástica corria paralelamente à Justiça comum, que, no
entanto, acatava as decisões da primeira, uma vez que o Estado assumia
para si a fé católica. Promotores e juízes eclesiásticos eram membros da
Igreja que avaliavam denúncias, procediam às investigações e proferiam a
sentença. A execução cabia à Justiça comum. “Eram procedimentos
parecidos com o atual inquérito policial”, explica a doutoranda em
Letras Nathalia Reis Fernandes, graduada em Letras e Direito, integrante
do grupo de pesquisa. Entre as penas possíveis estavam a morte e a
perda de bens – nesses casos, o processo era enviado para a sede do
Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Foi o que aconteceu com dois dos
casos estudados, mas não é possível, pela documentação acessível no
Brasil, saber se eles resultaram em execuções.
Os réus eram quase sempre negros e muitas das acusações estavam
ligadas a práticas das religiões de origem africana. Há desde processos
supostamente relacionados a mortes, como a da escrava Páscoa, acusada de
“uso de magia” para causar pelo menos quatro mortes numa mesma família,
até casos banais, como o do escravo Pascoal José de Moura (um dos
poucos réus identificados por nome e sobrenome nos documentos),
processado por confeccionar patuás. “Há também o caso de um grupo de
homens negros que foram presos por participar de um batuque em que havia
uma cabra e um casco de cágado”, conta Módolo.
O estudo coordenado por Módolo está na fase do estudo filológico e
linguístico, começando pela transcrição “semidiplomática” dos documentos
– aquela que procura manter a ortografia e a sintaxe originais. O
trabalho é dificultado por lacunas causadas pela deterioração do
material, caligrafia particularmente complicada e ortografia desafiadora
numa época em que as pessoas letradas eram minoria e não havia
padronização rígida da língua escrita. Uma segunda fase deverá se
debruçar sobre os reflexos historiográficos dos processos relatados nos
documentos.
Leia resenha “Ações do Santo Ofício no Brasil”.
Livro
GONÇALVES, Adelto.
Direito e Justiça em terras d’El Rei na São Paulo colonial 1709-1822. Imprensa Oficial. São Paulo, 2015