Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
A escravidão na história humana e o comércio de escravos
O Brasil: relutante em extinguir o tráfico
O lento e delongado processo abolicionista
Um país notável pela ausência de qualquer sentido de política de capital humano
Família brasileira sendo servida por escravos no século XIX: Pintura porJean-Baptiste Debret.
O presente ensaio tem o objetivo principal de argumentar que a eterna relutância do Brasil em abolir o tráfico e, depois, a escravidão, constitui um dos mais poderosos fatores que podem explicar, ainda hoje, a persistente dificuldade do país em elevar os padrões e o próprio ritmo de um processo sustentado de crescimento econômico, com destaque para a área da produtividade do capital humano. Essa delonga na adoção de reformas sociais também está na raiz do grau anormalmente elevado das desigualdades sociais e da distribuição de renda, que estão vinculadas, por sua vez, à ausência de reforma agrária, ainda no século XIX, e em especial a completa ausência de uma política de educação de massa, uma deficiência permanente, praticamente desde antes da independência, que atravessa toda a fase monárquica e que se prolonga por boa parte do regime republicano. O tráfico negreiro e a escravidão foram formalmente abolidos em 1850 e em 1888, respectivamente, mas seus efeitos delongados na estrutura econômica e no tecido social nunca foram efetivamente superados em toda a trajetória da nação independente. A ausência de políticas consistentes nos terrenos da propriedade fundiária e da educação de massas é responsável, por sua vez, pelos baixos níveis de renda per capita, pela persistência da pobreza, assim como da enorme concentração de renda.
Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador
Amanda RossiDa BBC Brasil em São Paulo
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Em 13 de maio de 1888, há 130 anos, o Senado do Império do Brasil aprovava uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão. Não era apenas a liberdade que estava em jogo, diz o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um dos maiores pesquisadores da escravidão no Brasil. Outro tema na mesa era a reforma agrária.
O debate sobre a repartição das terras nacionais havia sido proposto pelo abolicionista André Rebouças, engenheiro negro de grande prestígio. Sua ideia era criar um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuir as terras para ex-escravos. O político Joaquim Nabuco, também abolicionista, apoiou a ideia. Já fazendeiros, republicanos e mesmo abolicionistas mais moderados ficaram em polvorosa.
"A maior parte do movimento republicano fechou com os latifundiários para não mexer na propriedade rural", diz Alencastro. Foi aí que veio a aprovação da Lei Áurea, sem nenhuma compensação ou alternativa para os libertos se inserirem no novo Brasil livre. "No final, a ideia de reforma agrária capotou."
Nesta entrevista para a BBC Brasil, o historiador fala ainda sobre a origem da violência do Estado atual contra os negros, afirma que a escravidão saiu da pauta e passou a ser vista como um passado distante, apesar de não ter acabado há tanto tempo assim, e critica o uso da palavra "diversidade" para se referir aos negros. "Falar de diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria. É muito mais que diversidade, é democracia".
Alencastro é hoje professor da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. É também professor emérito da universidade de Paris Sorbonne, onde lecionou por 14 anos, e autor do livro O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul . Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Como entender que o Brasil tenha sido o último país a abolir a escravidão nas Américas?
Luiz Felipe de Alencastro - O Brasil foi o último porque foi o que mais importou africanos - 46% de todos que foram trazidos coercitivamente para as Américas. Esse volume assombroso de africanos que chegou aqui acorrentado era considerado como uma propriedade privada. Isso cria uma dinâmica em que a propriedade escrava era muito importante. Muita gente tinha escravos. Nas cidades havia gente remediada que tinha um ou dois escravos. Os estudos mostram que a propriedade escrava no Brasil era muito mais difundida que na Jamaica ou no Sul dos Estados Unidos. Assim, muita gente, e não só os fazendeiros, achava que o país ia se arruinar se parasse de trazer africanos. Quase tudo dependia do trabalho escravo e da chegada dos africanos.
O Haiti é um caso limite, porque é primeiro país americano que chega à independência, com uma revolução feita pelos escravos (iniciada em 1791). É a única insurreição de escravos que chega ao poder no mundo. Já nos outros países em volta do Brasil, a escravidão não era importante. E era importante no Sul dos Estados Unidos.
BBC Brasil - Qual a diferença do processo de abolição no Brasil e nos Estados Unidos, em 1863?
Alencastro - No Brasil, a escravidão não era como nos Estados Unidos. Lá, a escravidão era regional, no Sul. No restante do país, havia uma economia agrícola independente e movimentos abolicionistas. Já no Brasil a escravidão era nacional, no país inteiro, e não havia um setor camponês independente. Por isso, o abolicionismo não tinha como crescer em regiões circunvizinhas às zonas escravistas. Como foi nos Estados Unidos? O norte do país, não escravista, elegeu Abraham Lincoln, do partido republicano, e que era contrário à expansão do escravismo nos novos territórios dos EUA e buscava uma solução negociada para extingui-lo nos estados onde ele existia. Isso causou a ruptura dos estados sulistas com a União. Ocorreu então uma guerra civil para acabar com a escravidão, uma guerra sangrenta, que traumatiza até hoje o país. Aqui não existia nenhuma parte do território em que a escravidão fosse ilegal. Então, mesmo que houvesse 60 escravos no Amazonas na mão de alguns senhores, esse grupo fechava com o partido escravocrata no Parlamento. Havia uma espécie de união nacional em torno do tráfico negreiro e da escravidão.
BBC Brasil - Já se disse que as grandes transformações do Brasil ocorreram sem participação popular, pelas mãos da elite política e econômica. A independência, a abolição, a República. Mas isso é verdade para a abolição?
Alencastro - José Bonifácio de Andrada, que era uma espécie de primeiro-ministro logo depois da independência do Brasil, mandou um projeto para a Assembleia Constituinte, prevendo a abolição progressiva do tráfico e da escravidão. Já naquele momento, a classe dirigente, o corpo da administração imperial tinham perfeita noção de que manter o tráfico de escravos criaria um impasse. Porque a Inglaterra deixara claro que só reconheceria a independência se o Brasil acabasse com o tráfico. E o governo inglês, nessa época, tinha uma importância enorme. Era como se fosse a ONU (porque garantia o reconhecimento diplomático internacional), o FMI (porque emprestava dinheiro para o governo) e a OIT (porque vetava a importação de africanos, mão-de-obra essencial no Brasil) juntos, com uma força naval que desde a batalha de Trafalgar (1805) mandava em todos os mares.
Quando a Inglaterra começou a pressionar mais fortemente, os dirigentes brasileiros cederam, prometendo acabar com o tráfico a médio prazo. Em 1831 é votado o fim do tráfico. Porém, sobretudo no Rio, e em menor medida na Bahia e no Recife, se organizam redes de comércio semiclandestino de escravizados africanos. Só em 1850, o comércio de africanos acabou de fato. Acabou de uma vez. Caiu de 60 mil africanos desembarcados em 1849 para 6 mil em 1851. Como? Porque houve um conchavo entre traficantes e governo. Se amanhã acabar o tráfico de cocaína na Colômbia, não é porque o consumo de cocaína acabou e de um dia para o outro os policiais ficaram virtuosos.
BBC Brasil - Que conchavo foi esse?
Os traficantes foram prevenidos antes que o tráfico ia acabar e foram tirando o dinheiro. Houve uma negociação entre a classe dirigente (a administração imperial) e a classe dominante (os fazendeiros, as oligarquias regionais). O governo propôs uma lei de imigração para trazer trabalhadores rurais, uma estrada de ferro na região cafeeira - porque o transporte era feito em lombo de mula - e a redução das tarifas de exportação de café.
BBC Brasil - Depois que o tráfico acabou, qual passou a ser a estratégia do Império?
Alencastro - Quando acaba o tráfico de escravos, acaba a fonte externa de reprodução do sistema escravista. Depois há a Lei do Ventre Livre em 1871 (que declarou livres os filhos de mães escravas que nascessem a partir daquela data). Isso estanca outra fonte de reprodução da escravidão, que é a reprodução demográfica interna. Dessa forma, houve uma estratégia gradualista para acabar com a escravidão.
Este gradualismo se resume nesta ideia: a escravidão acaba quando o último escravo morrer. Essa era a estratégia do Império. Aí ninguém perde dinheiro. Mas surge então o abolicionismo. É um movimento como as Diretas já!: Abolição já! Não tem que esperar até o último escravo morrer para acabar com a escravidão. Vamos abolir já, e sem indenização para os proprietários de escravos. Joaquim Nabuco (político abolicionista) afirmou que o Brasil não tinha dinheiro para pagar pelos crimes que cometeu.
BBC Brasil - Qual foi a participação do movimento abolicionista? E o povo, participou?
Alencastro - O abolicionismo se acentuou na década de 1880. Há importante liderança negra. Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, que se batiam nos tribunais e nos jornais. Esses são os heróis. Também há muita gente anônima que participou. Houve movimentos organizados para dar fuga a escravos, por exemplo. Aqui em São Paulo, havia o grupo do Antônio Bento, os Caifazes. Havia um grupo em Recife, que ajudava os escravos a fugirem para o Ceará, onde a maioria dos municípios já não tinha mais escravos desde 1884 e onde os escravocratas eram minoritários. Já o Rio de Janeiro era a província onde o escravismo era mais renitente. Em São Paulo, o oeste do Estado já estava apostando na imigração porque havia muita fuga, e a fuga é uma forma de revolta, dos escravos comprados no Nordeste. Essas ações acentuaram a crise do escravismo.
BBC Brasil - Também se falava de reforma agrária, dar terras para os ex-escravos.
Alencastro - A reforma agrária não estava na pauta da maioria dos abolicionistas. Foi uma radicalização de uma parte minoritária. André Rebouças, um engenheiro negro com muito prestígio, tinha um programa para criar um imposto territorial sobre as fazendas improdutivas e fundar cooperativas de pequenos camponeses. Nabuco, nos anos 1880, foi porta-voz dessas reinvindicações. Mas no final, a ideia de reforma agrária capotou.
BBC Brasil - Por quê?
Alencastro - A maior parte do movimento republicano fechou com os latifundiários para trazer imigrantes que trabalhassem nas fazendas e não mexer na propriedade rural. Essa virada dos republicanos jogou Nabuco, Rebouças e outros no escanteio e os fez apoiar a monarquia até o fim. Depois disso, (no livro) Minha Formaçã o(1900), Nabuco renega sua juventude abolicionista e faz uma declaração monarquista que constitui uma das frases mais infames da história da política brasileira: "Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de novembro (data da proclamação da República), lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio".
BBC Brasil - O projeto de reforma de Rebouças e Nabuco poderia ter ido para frente?
Alencastro - A relação de forças não era favorável. Não havia um movimento camponês a favor da reforma agrária, ou uma base popular lutando pelo o direito à terra. No final das contas, o Brasil é um dos únicos grandes países agroexportadores que nunca fez reforma agrária.
BBC Brasil - Além do campo, também havia muita escravidão nas cidades?
Alencastro - Se você somar a proporção de escravos do Rio com a de Niterói, você tem uma concentração urbana de escravos que não existiu em nenhum outro lugar no mundo, só no Império Romano. No Brasil, a escravidão também tinha essa característica urbana, em uma escala que não ocorreu nas Américas. A escravidão marcava as cidades. Em 1849, o Rio tinha 260 mil habitantes, 110 mil dos quais eram escravos. Isso dá 42% da população.
BBC Brasil - Como foi o dia seguinte à abolição? O que aconteceu com os escravos que se viram livres em 13 de maio de 1888, mas sem compensações, sem apoio do Estado para começar uma vida nova?
Alencastro - Na sequência da abolição, a mão de obra imigrante vai aumentando. Muitos ex-escravos ficam fora do mercado de trabalho na zona rural e, em parte, nas cidades. Mesmo sendo brasileiros, os ex-escravos não tiveram cidadania plena, porque a sua quase totalidade era analfabeta, e o voto do analfabeto foi proibido em 1882, ainda no Império. Este ferrolho para excluir os negros livres e os ex-escravos também atingiu os brancos pobres e analfabetos, como é óbvio. Até 1985, quando o voto deles foi permitido.
BBC Brasil - A escravidão foi um processo de muita violência. Essa violência usada contra os negros acabou quando a escravidão chegou ao fim?
Alencastro - A Constituição brasileira de 1824, no art. 179, proibiu punir crimes com castigo físico. A partir daquele momento, não se podia mais torturar - a inquisição portuguesa havia institucionalizado a tortura como prova, até a pessoa confessar. Vem então o Código Criminal de 1830 que especifica no art. 30: se o condenado for escravo ele não vai para a cadeia, a pena é transformada em açoite. Isso porque se o escravo fosse para cadeia, causaria uma perda de mão-de-obra e dinheiro para o seu senhor. Assim, o escravo era açoitado publicamente, humilhado, torturado. Depois, semanas depois, quando estivesse reestabelecido (do açoitamento), o escravo voltava a trabalhar. Então, a tortura foi legal no Brasil até 1888, mas só para os escravos. Quando a abolição ocorre, a polícia já estava habituada a bater neles. Neles e nos brancos desfavorecidos. Como no caso do voto do analfabeto citado acima, os mecanismos da repressão escravista contaminam a sociedade inteira.
BBC Brasil - Cerca de 4,8 milhões de africanos aportaram como escravos no Brasil. É muito mais que em qualquer outro lugar no mundo. Nos Estados Unidos, foram menos de 400 mil. Por que a vinda de escravos para o Brasil foi tão grande?
Alencastro - São vários fatores. Do ponto de vista da navegação, há um sistema de correntes e ventos que aproxima muito o Brasil da África. A viagem de ida e volta para os portos brasileiros era 40% mais curta do que a dos navios saindo das Antilhas ou dos Estados Unidos, os quais enfrentavam turbulências na ida e na volta, quando atravessavam a zona equatorial. O Brasil também tinha mercadorias que eram trocadas por escravos, como tabaco e cachaça. Outro fator importante são as conexões do Brasil com os portos africanos. Quando a Corte portuguesa veio para cá, o Rio de Janeiro se tornou a capital do império português - isso incluía Angola, Moçambique... Também havia bases mercantis de interesse brasileiro lá - muito mais associadas ao Brasil do que a Portugal. Isso os americanos nunca tiveram. O negócio negreiro dos Estados Unidos era muito mais controlado pelos ingleses.
O terceiro fator é o boom do café, que aumentou muito o tráfico negreiro para o Centro-Sul do Brasil. Quem estava financiando isso em última instância? O operário e a classe média inglesa, francesa, russa, que estavam tomando café mais frequentemente. O café do Brasil não tinha concorrência. A partir de 1840, o Brasil vira o maior produtor mundial de café - e é o maior até hoje. Não foi assim com o ciclo do açúcar, que sofria concorrência das Antilhas.
BBC Brasil - Os próprios africanos participaram do comércio de escravos, não?
Alencastro - Os africanos desenvolviam comércio de escravos localizado, limitado aos circuitos regionais das zonas econômicas africanas. A articulação desse comércio interno ao comércio Atlântico - que era um dos setores mais dinâmicos da economia mundial, com companhias formadas, com acionistas investindo pesado - criou uma demanda de escravos que exacerbou o tráfico interno africano. Também houve a importação de armas europeias, dando maior impacto aos conflitos internos, que eram os mecanismos de criação mercantil de escravos. O comércio atlântico negreiro era um comércio totalmente europeu e brasileiro. Nunca houve um navio africano vendendo escravo nos portos das Américas.
BBC Brasil - Como a escravidão explica o país e a sociedade que o Brasil se tornou?
Alencastro - O tráfico negreiro em si explica muita coisa. Explica a unidade nacional, por exemplo. Quem quisesse se separar do governo do Rio de Janeiro, da Coroa, já sabia por antecipação que ia sofrer pressão da Inglaterra quando ficasse independente e teria que acabar com o tráfico. Quem estava melhor posicionado para moderar a pressão inglesa contra o tráfico transatlântico de africanos? O governo do Rio de Janeiro. Uma monarquia que tinha corpo diplomático bem plantado na Europa e era a única representante do sistema monárquico europeu nas Américas. A unidade nacional brasileira é um fenômeno inédito nas Américas. Falava-se a mesma língua. Mas da Patagônia até a Califórnia também se falava a mesma língua, o espanhol, e os quatro vice-reinos espanhóis se fragmentaram virando 19 países.
Mas não é só. O tráfico também explica boa parte da diferença entre o Centro-Sul e o Nordeste do Brasil. O sucesso do primeiro não é porque teve mais espírito comercial. É por causa do café, mas também porque a rede negreira fluminense era mais extensa e mais eficaz na África que a dos negreiros pernambucanos ou baianos. Por isso, o café pode se expandir tanto.
BBC Brasil - 130 anos é pouco tempo, só cerca de quatro gerações. Mesmo assim, parece muito distante. Por que temos a impressão de que a escravidão é um passado tão longínquo?
Alencastro - Eu conheci gente em Goiás que falava do tempo da escravidão. E há depoimentos de ex-escravos colhidos no Paraná, nos anos 1950. Por que parece que é tão longe? Logo depois da abolição o assunto saiu de pauta. Salvo para se ensinar que a abolição foi uma generosidade da Coroa, do governo, da redentora princesa Isabel. Daí o motivo do movimento negro ter proposto a troca do 13 de maio pelo 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), da princesa Isabel por Zumbi - numa luta política significativa. E depois veio também a imigração, criou-se uma outra história popular que não deixava muito espaço para a história dos afro-brasileiros.
BBC Brasil - A abolição foi uma farsa?
Alencastro - A abolição teve limites. Mas ela ocorreu, não foi farsa. Seria como dizer que a República foi uma farsa, que não acabou com a monarquia. A abolição acabou com a aberração gerada por um quadro institucional e legal que permitia uma pessoa ter como propriedade outra pessoa e seus descendentes, de maneira perpétua. A abolição também não foi uma benevolência da princesa ou do governo. A monarquia já estava caindo, fez uma última manobra e caiu ao tentar captar a plataforma abolicionista para enfraquecer o movimento republicano
BBC Brasil - O senhor é defensor das cotas...
Alencastro - O meu argumento das cotas é que elas são fundamentais para os negros, para os índios e para os pobres e os brasileiros em geral. São elas que vão consolidar a democracia plena no Brasil, com acesso à educação e ao trabalho.
BBC Brasil - Há quem defenda cotas por renda, não por cor...
Alencastro - A cota social apareceu como um argumento substitutivo dos que não queriam apoiar a cota racial. Ninguém falava em cota social no Brasil antes do movimento negro levantar a bandeira da política afirmativa racial - a favor dos negros e também dos índios, é importante lembrar. Trata-se de uma política baseada nas estatísticas étnicas dos Estados. Na região amazônica a proporção de jovens de origem indígena é importante, e as cotas favoreceram a entrada deles nas universidades federais.
O Supremo Tribunal Federal votou unanimemente pela constitucionalidade das cotas, em 2012. Raras decisões do Supremo são unânimes. Juridicamente, a situação estava definida: os negros não sofrem descriminação legal, mas há mecanismos informais que os descriminam e desqualificam de forma óbvia.
O censo de 2010 mostrou que a maioria da população é negra. Esse dado deve ser bem observado pela maioria dos progressistas e por setores do movimento negro que consideram a política afirmativa como um instrumento em favor da diversidade. É muito mais do que isso. É um instrumento em favor da democracia, do funcionamento do Estado, que favorece o país inteiro. Achar que ela garante a diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria.
BBC Brasil - O senhor também defende o ensino de história da África nas escolas.
Alencastro - A maioria das pessoas que chegaram aqui são africanos. É esse o dado que os professores têm que dar em reunião de pais e mestres, quando perguntam por que perder tempo com história da África. Ora, porque a África é mais importante para a formação do povo brasileiro do que a Ásia e boa parte da Europa e das Américas.
Estudo reconstrói a importância do movimento abolicionista como força social que levou à libertação dos escravos
MÁRCIO FERRARI |
Pesquisa FAPESP, Ed. 240 | FEVEREIRO 2016
Missa campal em celebração à abolição dos escravos e ilustração que representa um abolicionista, escravos e o Parlamento
A história da Abolição não se restringe apenas às iniciativas legais
do governo imperial, nem à conjuntura econômica internacional, tampouco
às rebeliões dos escravos. Foram essas as linhas predominantes que
guiaram as interpretações acadêmicas sobre o assunto até agora. Um
robusto movimento abolicionista, com sua contrapartida escravista,
também teve papel histórico central durante os 20 anos (1868-1888) que
precederam a Lei Áurea. É dessa perspectiva pouco conhecida que se
alimenta o livro Flores, votos e balas, pela editora Companhia
das Letras. A autora é a socióloga Angela Alonso, professora do
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e presidente do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A pesquisa, que incluiu
um ano na Universidade Yale (EUA), durou seis anos.
“Por ser socióloga e adotar um ângulo interdisciplinar, prestei
atenção na mobilização do espaço público, à qual os historiadores talvez
não tenham dado a devida importância”, diz Angela, também autora de Joaquim Nabuco
(2007), biografia do político abolicionista pernambucano. “Percebi que,
por sua estrutura e características, eu estava diante de um movimento
social conforme descreve a teoria sociológica e muito semelhante
estruturalmente aos que ocorreram na Inglaterra e nos Estados Unidos.”
Não por acaso, um dos pontos que a pesquisadora enfatiza em seu estudo é
a conexão de parte do movimento abolicionista brasileiro com ativistas
da causa no exterior. “Raramente tivemos um estudo de abrangência tão
grande sobre o assunto”, diz a professora Lígia Fonseca Ferreira, do
Programa de Graduação e Pós-graduação em Letras da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), estudiosa do período e biógrafa do advogado,
abolicionista e poeta negro Luiz Gama (1830-1882).
Um dos expoentes da vertente internacionalista da militância contra a
escravidão foi o educador Abílio Borges (1824-1891), que, apesar de
pertencer à elite imperial, mantinha laços estreitos com associações
inglesas e francesas que lutavam contra a escravidão no além-mar.
Borges, segundo Angela, “apostou no vexame externo” ao promover uma
petição emancipacionista assinada por políticos franceses e entregue ao
imperador Pedro II por intermédio do Ministério de Assuntos Estrangeiros
da França. “O documento embaraçou dom Pedro”, narra Angela. “Arranhava a
reputação do Império aparecer como terra escravista.”
Confederação abolicionista em 1888, com José do Patrocínio (em pé, primeiro à esq.) e André Rebouças (sentado, primeiro à esq.)
Personagens
Borges, que até agora era mais conhecido por ter inspirado Raul Pompeia a criar o personagem do diretor da escola no romance O ateneu, é uma das figuras centrais de Flores, votos e balas,
assim como o conhecido abolicionista André Rebouças (1838-1898),
engenheiro negro muito requisitado como projetista de obras
modernizadoras e interlocutor dos círculos de poder. Do lado dos
escravistas, Angela destaca a figura de Paulino Soares de Sousa
(1834-1901), fio condutor das táticas e manobras da ala “emperrada”
(isto é, inflexível) do Partido Conservador no Parlamento.
O governo (ou o Estado), lembra a socióloga, é o vértice necessário
de um triângulo formado pelo movimento abolicionista e seus
contramovimentos na sociedade. “Sinal claro desse jogo é que o Estado
ora trouxe o abolicionismo para dentro do Parlamento, ora o reprimiu”,
diz Angela, referindo-se às sucessivas mudanças de orientação política
durante o período estudado, em que se alternaram na chefia do governo,
por exemplo, Manuel de Sousa Dantas, abolicionista do Partido Liberal
(1884-5), e o Barão de Cotegipe (João Maurício Wanderley), escravista do
Partido Conservador (1885-8).
A indecisão política mostra, segundo a pesquisadora, que não faz
sentido a ideia, relativamente difundida, de que a abolição foi um
processo consensual ou inelutável. A pesquisa indica que a ideia da
emancipação dos escravos encerrava ameaças consideráveis à ordem
estabelecida. “O Império era fundado na escravidão, não só na economia”,
afirma Angela. “A hierarquia social era baseada na posse de bens que
davam poder e prestígio, e os bens mais importantes eram os escravos. A
escravidão sustentava também o sistema partidário, porque o eleitorado
era definido com base na renda.”
O romancista José de Alencar (1829-1877), deputado conservador e um
dos porta-vozes mais ativos do antiabolicionismo, diante do quadro que
se avizinhava, advertiu em 1867: “Um sopro bastará para […] lançar o
Império sobre um vulcão”. Não se tratava, no entanto, de defesa aberta
do escravismo, mas de retórica do medo para tentar adiar o processo. É o
que Angela chama de “escravismo de circunstância”: setores do
Parlamento eram “compelidos pela conjuntura a justificar a situação
escravista, sem defender a instituição em si, que, reconheciam,
civilização e moral condenavam naquela altura do século”.
Parlamento durante a votação da Lei Áurea em 1888…
Cenário mundial
Havia-se chegado a esse tenso estado de coisas mediante o processo sobre
o qual Angela se debruçou, composto de duas dinâmicas, uma mundial,
outra interna. “No âmbito externo, havia um ciclo de abolições pelo
mundo e o Brasil se mantinha escravista, chamando a atenção
internacional”, diz Angela. O processo tem o ponto de maior tensão em
1850, quando a Inglaterra impõe o tratado do fim do tráfico de escravos,
embora o Brasil demore a efetivá-lo. Contudo, até a década de 1860, o
Brasil se encontrava mais ou menos protegido pelo fato de haver no mundo
ocidental dois outros exemplos escravistas de grande porte, a Espanha,
com suas colônias de Porto Rico e Cuba, e os Estados Unidos.
Mas, à medida que esses países avançam rumo ao fim da escravidão, o
Brasil foi ficando isolado no cenário mundial. Isso provocou uma
inevitável divisão da elite política. “Não se tratava mais de responder
ou não à pressão internacional, mas em que velocidade”, ressalta Angela.
O processo culmina quando o Parlamento aprova a tramitação da Lei do
Ventre Livre, em 1871, como “um sinal de que o Brasil era civilizado”.
Nesse momento, observa Angela, já havia uma mobilização articulada na
sociedade. “Ressalto que o processo não começa em 1879, quando Nabuco e
José do Patrocínio [1854-1905] partem para a atuação no espaço público, e
sim na década anterior”, diz a pesquisadora.
Essa trajetória, que culminará na abolição, é dividida por Angela nas
três fases enunciadas no título de seu livro: flores, votos e balas. As
flores se referem ao símbolo das manifestações abolicionistas
promovidas, entre outros, por Borges e Rebouças, que, além de suas
atividades de articulação política, criavam associações e cerimônias
públicas. “A abolição começou a ser propagandeada em espaços que não
eram genuinamente políticos”, diz a socióloga. Em pouco tempo, os
teatros passaram a dar abrigo a essas manifestações, intercaladas com
números artísticos. Diferentemente do que ocorreu nos EUA, onde os polos
de difusão das campanhas abolicionistas civis foram as igrejas quakers,
no Brasil o catolicismo era não só credo predominante, mas também
religião oficial do Estado. Isso favoreceu a conquista de almas para o
abolicionismo entre a elite social e camadas intelectuais, que tinham no
teatro sua maior diversão. Os princípios e atividades abolicionistas
também se beneficiaram nessa época de avanços que permitiram a impressão
e circulação de publicações independentes.
As “conferências-concerto”, como chamavam os ativistas, espalharam-se
pelo país. Em 1883, começaram a ser acompanhados por uma adaptação da
estratégia norte-americana de organizar rotas de fuga de escravos para
territórios livres. A diferença entre o Brasil e os EUA é que aqui não
havia territórios oficialmente livres – foram criados pelos
abolicionistas, em ruas ou bairros. Aos poucos, os ativistas vão
liberando territórios, contando com a aceitação dos proprietários ou
recorrendo a campanhas de arrecadação para pagar a alforria dos
escravos.
… e a multidão do lado de fora: texto reduzido ao mínimo necessário
Ativismo jurídico
A estratégia tornou-se campanha nacional e deu certo principalmente no
Ceará e no Amazonas, que tinham relativamente poucos escravos e contavam
com presidentes de província abolicionistas. No caso do Ceará, a
movimentação gerou a abolição da escravidão dentro dos limites da
província em 1884 – que passou a ser um destino para escravos fugidos e
libertos de todo o país. Também de inspiração estrangeira foi a
estratégia de Luiz Gama ao buscar inconsistências na lei para pedir a
libertação de escravos nos tribunais. “Gama fazia parte de uma facção do
abolicionismo que defendia o ativismo jurídico, divergindo de Nabuco,
para quem a reforma deveria ser feita no Parlamento”, diz Lígia Fonseca.
Angela argumenta que “não havia propriamente divergência entre eles,
mas complementaridade de estratégias, cada um recorrendo a um estilo de
ativismo”.
A libertação dos escravos no Ceará abre a fase dos “votos”, quando a
classe política decide reagir. Com a indicação de Sousa Dantas para a
chefia do governo imperial, em 1884, os abolicionistas colaboraram na
redação do programa de governo e lançaram 51 candidaturas em apoio a
ele. No entanto, os abolicionistas perdem, “menos nas urnas do que na
apuração”, segundo Angela. Com a queda de Dantas, sobe o governo
escravista de Cotegipe e começa o período das “balas”, com repressão
aberta e acirrada às atividades abolicionistas, posta em prática pela
polícia ou por milícias à paisana. “É nesse momento que o processo de
desobediência civil ganha escala”, afirma a pesquisadora. José do
Patrocínio diz que “os abolicionistas sinceros estão preparados para
morrer”. Para o historiador Carlos Castilho, professor da Universidade
Vanderbilt (EUA), essa é uma evidência da importância dos movimentos
sociais no processo estudado. “As lutas pela participação política e
cívica têm as próprias histórias e precisam ser repensadas pela
historiografia”, diz Castilho.
Em grande parte graças ao movimento social abolicionista, a causa
ganhou adesão ou tolerância na sociedade. “No final do processo, o
abolicionismo contava com apoio tácito da população urbana, que se
calava diante das fugas”, diz Angela. “A escravidão foi sendo comida por
todos os lados.” O re-sultado do processo foi, contudo, um empate. Os
escravistas cederam, mas os abolicionistas não conseguiram implementar
seu programa com extensão de direitos aos libertos. Venceu o empenho do
gabinete de João Alfredo em fazer da Lei Áurea uma simples declaração de
dois parágrafos, sem as indenizações aos proprietários, mas também sem
garantias de vida digna aos ex-escravos. Projetos 1. Circulação de ideias e estratégias de ação no movimento abolicionista (nº 2009/05921-1); Modalidade Bolsa no Exterior – Regular – Novas Fronteiras; Pesquisadora responsável Angela Maria Alonso (FFLCH-USP/Cebrap); Investimento R$ 78.689,12. 2. Abolicionismo como movimento social (nº 2012/08495-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Angela Maria Alonso (FFLCH-USP/Cebrap); Investimento R$ 116.566,11. Livro
ALONSO, A. Flores, votos e balas – O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 568 p.