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Mesmo com um papa argentino, os brasileiros acreditam que o país está muito bem colocado no plano internacional e nem precisa do trono de São Pedro para se projetar: 85% afirmam que o Brasil conseguiu firmar uma imagem de independência perante o mundo. Aliás, o fato de o pontífice vir de uma nação vizinha impressiona pouco, pois menos de 20% dos brasileiros se consideram latino-americanos ou sul-americanos. Além disso, pode-se admirar o lado espiritual, mas cerca de 85% dos brasileiros se animam mesmo é com os resultados econômicos da globalização e com os efeitos da abertura comercial.
Esses são resultados da pesquisa Brasil, as Américas e o mundo, coordenada pela professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, com uma equipe do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IR-USP) composta também pelos professores Janina Onuki e Leandro Piquet Carneiro, e que contou com apoio da FAPESP. Segundo o estudo, cada vez mais cresce o interesse nacional pela política externa, na contramão de consensos passados. “Não se pode mais falar de uma suposta indiferença das lideranças e da população e, apesar do Ministério das Relações Exteriores continuar ocupando uma posição central no comando da política externa do Brasil, é um engano continuar a pensar que o Itamaraty seja um caso bem-sucedido de insulamento burocrático”, explica a pesquisadora. O estudo é parte do projeto colaborativo Las Américas y el mundo, capitaneado por pesquisadores do Centro de Investigación y Docencia Económicos (Cide – México) e reúne vários países latino-americanos para analisar a ligação entre a opinião pública e temas centrais de política externa e relações internacionais.
“Esse estudo é uma resposta às necessidades crescentes de informação numa área estratégica para o desenvolvimento e estabilidade dos países da região que em geral acabam dependendo de dados pouco confiáveis e dispersos. Num contexto democrático, os tomadores de decisões precisam contar com as informações sobre o que pensam os cidadãos para desenhar suas políticas externas”, afirma Guadalupe González González, diretora-geral do projeto do Cide. “O Brasil, no novo cenário mundial, aumentou seu peso dentro e fora da região, se posicionando como o agente de ligação latino-americano com o grupo dos Brics de economias emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), e o principal promotor da cooperação Sul-Sul e da integração sul-americana”, analisa a pesquisadora, para quem Brasil e México se configuram como os líderes potenciais da região latino-americana.
Nesse novo quadro, para Maria Hermínia, a política estatal para pensar o país e o mundo não pode mais depender apenas da capacidade e disciplina duma elite burocrática como a do Itamaraty, mas também do consenso sobre o mundo e do lugar do país nele por parte de uma comunidade mais envolvida na discussão política. Apesar do crescimento do número de interessados em discussões de questões internacionais, que os pesquisadores denominam de público interessado e informado (PII), o papel ativo na contribuição de ideias cabe à chamada comunidade de política externa (CPE): há um grande diferencial entre o interesse dos seus membros (91%) mesmo se comparado com o PII (22%).
No público “comum”, os quesitos “pouco” e “nenhum” interesse chegam a, respectivamente, 25% e 20%. Em boa parte isso decorre do pouco contato do público comum com o exterior: 88% nunca saíram do país. No caso da amostra brasileira, foram entrevistados 200 líderes políticos e sociais e uma amostra aleatória de 2.400 pessoas representativa da população urbana brasileira entre o final de 2010 e 2011. A equipe pretende repetir a pesquisa em 2014 para comparar os resultados.
“Ninguém havia feito uma pesquisa com o público até então. A novidade é revelar que não se pode mais falar numa política externa insulada no MRE ou na Presidência. Embora não tenham impacto eleitoral, não significa que as relações internacionais não sejam importantes para as pessoas e tema de discussões”, diz Maria Hermínia. Mas a pesquisadora avisa que os resultados mostram percepções e não necessariamente verdades. “Basta ver o entusiasmo exagerado com o papel do Brasil no mundo ou a visão de que países desenvolvidos não vão ter importância no futuro, uma aposta algo exagerada nos emergentes”, fala.
Prova disso é a comparação entre os dados obtidos nessa pesquisa recente com os conseguidos pelo cientista político Amaury de Souza (falecido em 2012), nas duas versões da pesquisa O Brasil na região e no mundo: percepções da comunidade brasileira de política externa que fez para o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) nos anos de 2001 e 2008.
Para se ter ideia de como a percepção da CPE cresceu, em 2001, 74% acreditavam no crescimento do papel internacional do Brasil em 10 anos; em 2008, o percentual passou para 85%; e, agora, em 2010, chegou aos 97% de visões otimistas. Esse otimismo se estende também ao cenário internacional como um todo. “O otimismo cresce com a informação e o interesse pelas questões mundiais. Por isso a CPE mostra altas porcentagens, 85%, de satisfação com a capacidade do Brasil de se afirmar autonomamente na cena internacional”, nota a autora. Já entre o público dos desinteressados e desinformados, essa satisfação cai para 37%.
Outro dado que chamou a atenção da pesquisadora: menos de 15% dos entrevistados da comunidade e do público informado acreditam que os Estados Unidos serão mais importantes no futuro, enquanto a esmagadora maioria afirma que o futuro pertenceria à China, ao Brasil e à Índia. “Claro que já se pressentia um mundo onde o poder estivesse mais descentralizado, mas eu esperava ao menos da CPE uma visão mais matizada”, analisa Maria Hermínia.
Outro fato notável para a pesquisadora é a existência de um consenso entre a comunidade de política externa e o público interessado e informado. Na pesquisa de Amaury de Souza, nos anos de 2001 e 2008, os Estados Unidos ainda eram vistos por 49% dos entrevistados da comunidade de política externa como um ator global respeitável na década seguinte, percentual que caiu para 15% em 2008 e permanece o mesmo em 2010. Outros países de peso como Alemanha, Rússia e Japão também perderam força como nações importantes para o Brasil, segundo a percepção da comunidade.
A queda de 30% no caso americano, a despeito das crises financeiras recentes, observa Maria Hermínia, revela uma percepção pouco realista das relações internacionais e do papel que os EUA e seus aliados ocidentais ainda manterão por muito tempo. Além disso, os EUA despertam atitudes e sentimentos complexos de admiração e desconfiança entre todos os grupos de entrevistados e, ainda que a admiração pelos americanos seja mais elevada entre a CPE do que entre os setores do público, existe uma parcela importante de membros da comunidade de política externa que não gosta deles.
“Parece existir um antiamericanismo entranhado nos brasileiros e os dados mostram que ele é inversamente proporcional ao interesse, conhecimento e envolvimento em questões internacionais”, nota Maria Hermínia. Enquanto o país se esforça em se aproximar dos EUA, a comunidade de política externa, na contramão do esperado, ainda mantém ressalvas. Efetivamente o insulamento da política externa vem caindo.“Desde a década de 1990 há indícios importantes na alteração desse padrão tradicional e pressões crescentes para que o processo se torne mais permeável às articulações, interesses e demandas de uma diversidade de outros atores”, observa o cientista político Carlos Aurélio Pimenta de Faria, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e autor do artigo “Opinião pública e política externa: insulamento, politização e reforma na produção da política exterior do Brasil” (2008).
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Para o pesquisador, a falta persistente de preocupação do Itamaraty com a opinião pública não se liga apenas ao caráter público da diplomacia nacional, mas a uma demanda, até há pouco, muito baixa da sociedade brasileira por maior prestação de contas dos agentes estatais. “Era quase uma delegação da produção da política externa ao Itamaraty que, com a globalização, que fazia as relações internacionais impactarem diretamente na sociedade, estaria se convertendo em abdicação”, nota.
Mas, passados os primeiros impactos, o Brasil agora é amplamente favorável à globalização, com a CPE (84%) e o PII (82,1%) muito mais otimistas do que a parcela do público pouco interessada e informada sobre política externa (60%). O mesmo vale para a atração de investimentos como sendo um benefício para o país. A única ressalva é sobre a questão do meio ambiente: 42,2% da CPE considera o livre-comércio bom para o meio ambiente, algo superior aos 58,9% do PII e os 50,3% do público desinformado. “Em função das políticas protecionistas, o país viveu fechado durante muito tempo. Nos anos 1990 isso mudou, abrimos para o mundo e não há volta”, analisa Maria Hermínia. Segundo ela, o ideal que o Brasil está se integrando ao mundo tem apoio quase integral dos brasileiros pesquisados, para além dos discursos que são contrários à globalização.
“Essa atitude afirmativa diante do mundo vem do governo Fernando Henrique e foi reafirmada no governo Lula, que deu corda ao otimismo”, observa a pesquisadora. A visão para fora parece não incluir a vizinhança latino-americana e a identidade regional é ambivalente. “A autoidentificação dos brasileiros como latino-americanos sempre foi tênue. A percepção de pertencer a uma nação diferente da dos seus vizinhos, por causa da experiência colonial distinta, língua e trajetória particular como país independente, sempre caracterizou o pensamento das elites e do público de massas”, fala Maria Hermína.
Recentemente, a política externa, lembra a professora, definiu a América do Sul, e não a América Latina, como espaço para o exercício da liderança política brasileira. Segundo a pesquisa, apenas um quarto da comunidade de política externa se reconhece como latino-americana, apenas 18,5% como sul-americana e é irrisória a porcentagem daqueles para os quais serem do Mercosul é uma identidade importante (1,5%). A grande maioria (90%) se vê como brasileiros.
Isso se reflete, no caso do comércio, diante de várias estratégias de inserção na economia mundial, a CPE privilegia a atuação multilateral na Organização Mundial do Comércio (OMC) e, secundariamente, a realização de acordos comerciais bilaterais, em detrimento de estratégias envolvendo coordenação regional, no âmbito do Mercosul ou da vizinhança sul-americana. Quando questionados em que região o Brasil deve prestar mais atenção no mundo, pouco menos da metade da CPE (48%) e uma parcela ainda mais reduzida do PPI (32,4%) respondem América Latina.
Sobre o papel do Brasil na América do Sul há uma divisão precisa na CPE: metade afirma que o país deveria liderar sozinho e outra metade que deveria compartilhar a responsabilidade com os vizinhos. A maioria (55,1%) do PII pensa que o Brasil deveria liderar. Embora não vejam problemas futuros com os vizinhos, os brasileiros da PII apontam Venezuela (21%) e Colômbia (24,6%) como países como fonte potencial de conflitos.
A integração regional, tema importante da agenda internacional, é apoiada por 71,5% da CPE, que quer que ela seja feita de forma aprofundada. Mas quando se vai a fundo nisso os pesquisadores verificaram que o comércio, investimentos e infraestrutura são as dimensões que têm apoio expressivo. Seria até esse ponto que deveriam ir os esforços para aprofundar a integração. “O discurso era de que, justamente por causa dessa distância, o Mercosul era importante para construir uma plataforma de cooperação. Mas os resultados mostram que a região, para o Brasil, é mais uma plataforma para falar para o mundo do que um espaço para manter diálogos ou exercer protagonismo. Essa visão é muito diferente da que se encontrou nas pesquisas feitas em outros países.”
Efetivamente, nota Guadalupe González, para a Colômbia, Equador e México o mundo se limitaria quase exclusivamente ao continente onde concentram suas aspirações internacionais e a sua participação internacional. Apenas Brasil e Peru têm uma visão mais global de seus interesses que abarcam outras regiões do mundo, em especial a Ásia, vista como novo motor da economia mundial.
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Por fim, a surpresa maior da pesquisa feita pelo IR-USP é que o novo interesse vem na forma de um consenso entre especialistas e o público informado. “Assim, apesar de os analistas terem chamado a atenção para uma real ou suposta ‘partidarização’ recente da política externa e, em consequência, para o surgimento de divergências que indicariam a perda de seu caráter de política de Estado, a verdade é que o consenso no interior da CPE e do PII é muito extenso, como é extensa e significativa a convergência entre os dois grupos”, fala a professora.
Naturalmente, observa Maria Hermínia, existem temas mais controversos que afastam os dois, mas, no geral, apesar das críticas abertas às políticas governamentais, a discussão não dividiu os segmentos. “Será necessário verificar isso numa segunda amostra em 2014 para confirmar se essa observação procede”, avisa.
Essa proximidade entre as visões das elites e da população informada e interessada vai na contramão do observado nas pesquisas americanas. “Isso indica uma maior politização do público, ao contrário do que diz a literatura tradicional, ainda que essa nova posição seja resultado do enraizamento das percepções geradas dentro da comunidade de política externa, uma opinião formada, de certa forma, de maneira exógena”, analisa a cientista política Janina Onuki, também do IRI-USP e da equipe do projeto. “Mas estudar essa opinião permite entender o grau de consenso social sobre a política externa e perceber que há uma demanda por uma maior abertura do Ministério das Relações Exteriores”, analisa a pesquisadora.
No geral, seja por visão própria, seja pelo consenso com a CPE, há uma visão de que o Brasil tem condições de ser um ator global, consequência natural da sua inserção no mundo globalizado. “A parcela mais informada da população apresenta um otimismo que não é muito visto no público que possui meios menos reduzidos de acompanhar os noticiários”, diz Maria Hermínia. “Isso revela um desafio para a diplomacia brasileira: fazer com que o sentimento otimista sobre as ações internacionais passe para uma população que as vê como intangíveis, diante de uma situação econômica mais próxima que desnorteia os cidadãos”, avisa a professora.
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