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quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Arnaldo Godoy relê o discurso de posse na ABL de Pontes de Miranda (Conjur)

EMBARGOS CULTURAIS

Discurso de posse de Pontes de Miranda na Academia Brasileira de Letras

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Conjur, 28/07/2024

O jurista alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979) deixou-nos portentosa obra. Eu levaria uma vida para lê-la. E mais do que dez vidas para escrevê-la, isto é, se conseguisse. Eu não tenho competência para tanto. Nem mesmo em dez vidas, que é um número cabalístico para o Tiradentes, creio que conseguiria. Quem não se lembra? Tiradentes, marca certa tradição, teria afirmado que dez vidas tivesse, dez vidas daria, pelo ideal pelo qual morria. Para as pessoas comuns, precisamos mais do que dez vidas para escrevermos uma obra tão vasta e profunda.

Pontes de Miranda era um polímata (no sentido que Peter Burke dá ao termo, isto é, interessava-se por todos os campos do saber). Foi empossado na Academia Brasileira de Letras, em 8 de março de 1979. Tinha 87 anos. Nos embargos culturais dessa semana comento o discurso de posse de Pontes de Miranda na ABL. É uma contribuição aos trabalhos de Fábio Coutinho, que estuda a presença dos juristas no “Petit Trianon”. Pontes de Miranda ocupou a Cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves.

Um estudo biográfico de Pontes de Miranda (e o grande especialista no assunto hoje é o jovem advogado e pesquisador Ednardo Benevides) revela que o jurista nunca se candidatou a cargos ou funções, embora tenha sido desembargador no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. No entanto, e quando se falava de cultura desinteressada a coisa muda, candidatou-se à ABL, mais de uma vez. Foi preterido em duas ocasiões. A escolha ocorreu na terceira tentativa. É o que lemos no discurso:

Nunca, em toda a minha vida, me candidatei a qualquer cargo ou função, aqui ou no estrangeiro. Os que exerci no Poder Judiciário e no Ministério das Relações Exteriores, de que sou aposentado, me foram excepcionalmente destinados, sem concurso e sem pedido meu. Nas próprias Academias de que faço parte, ou fui um dos fundadores, ou incluído apenas mediante consulta que me fizeram. (…). Estou a dizer-vos isso, eminentes acadêmicos, para frisar que só me candidatei, em toda a vida, a esta Academia. Nela fui preterido, uma vez, há mais de meio século, quando era jovem, e recentemente, de novo estimulado por alguns amigos, voltei a concorrer e, pela segunda vez perdi. Quando ia atingir os 87 anos, candidatei-me, espontaneamente, pela terceira vez, e fui eleito. (…)”

Pontes de Miranda enfatizou a missão histórica e intelectual da ABL

Reafirmou compromissos com valores fundamentais, a exemplo da democracia, da liberdade e da igualdade. Tenho comigo um livro de Pontes de Miranda, publicado em 1933, com o sugestivo título de “Os Novos Direitos do Homem”. O autor discutia a crise do Estado, o problema das autocracias (Hitler ascendia na Alemanha), uma certa incapacidade de a democracia representativa fixar uma ordem que reputava necessária, a relação da liberdade com a lei. Discutia nesse precioso livro a confusão do lógico com o justo, que reputava como um vício recorrente nos juristas.

Seguindo o padrão de discurso do acadêmico que toma posse, Pontes de Miranda elogiou o patrono da cadeira que passaria a ocupar. Homenageou Castro Alves. Fez uma referência ao poema “A Cachoeira de Paulo Afonso”. O poema narra a história de Maria e Lucas. Lucas buscava vingança contra o senhor dos escravos, mas descobre que este é seu irmão. Maria e Lucas acabam se suicidando na cachoeira. Pontes de Miranda reputava Castro Alves como uma das maiores inteligências do Brasil. E perguntava o que mais ele poderia ter feito se tivesse vivido mais tempo.

Pontes de Miranda também reverenciou aos demais ocupantes da Cadeira 7: Costa Magalhães, Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Afonso Pena Júnior e o próprio Hermes de Lima, a quem se referiu da forma que copio em seguida:

Nascido em 1902, Hermes Lima estudou profundamente e ingressou na Faculdade de Direito em 1920 (…) Em 1924, antes de completar os 23 anos, Hermes Lima foi eleito deputado da Assembleia Legislativa da Bahia. (…) No ano de 1925, já em São Paulo, candidatou-se à Cátedra de Direito Constitucional, com duas brilhantes teses, Princípios Constitucionais e Direito da Revolução. (…) Vindo para o Rio de Janeiro disputou, em 1933, a cátedra de Introdução à Ciência do Direito, com a tese “Material para um Conceito de Direito”. O brilho das aulas e a maneira de ajustar-se aos estudantes e de ajustá-los à sua missão levaram-no a criar admiradores e adversários. (…) Com o motim de 1935, injustamente foi preso. (…) Quero apenas acrescentar que este foi o homem, o intelectual, que os ilustres acadêmicos conheceram, e o homem, o intelectual, o amigo, que conheci. (…)”

Na parte final do discurso Pontes de Miranda revela e comprova cultura enciclopédica aludindo às várias academias, de todos os tempos. Lembrou inicialmente a Academia da História Portuguesa, criada em 1720 e a Academia de Ciências de Lisboa, de 1779. Chamou a memória que no século III vários acadêmicos se reuniam no Museu de Alexandria. Mencionou os acadêmicos de Granada e de Córdoba.

Fez referências à Academia de Nápoles (1433); à Academia Platônica (fundada em 1474 por Lorenzo de Médici); à Academia Científica, de 1603, de que foi membro Galileu; à Real Academia de Ciências, de 1757; à Academia Francesa, de 1635; à Real Academia de Ciências fundada na Alemanha, em 1700, planejada por Leibniz; à Academia Imperial de Ciência de São Petersburgo, Rússia, que Catarina I instalou em 1725.

Lembrou que os norte-americanos fundaram a Sociedade Filosófica de Filadélfia, em 1727, a Academia de Artes e Ciências de Boston, em 1780, entre outras. Fechou esse ponto fazendo referências à experiência brasileira:

No Brasil, houve e há, felizmente, muitas Academias. A Academia Brasileira da Bahia foi criada em 1724, dita dos Esquecidos, e a do Rio de Janeiro, a dos Felizes, em 1736, bem como a dos Seletos, em 1751. Em 1791, teve o Rio de Janeiro a Academia Científica; em 1786, a Sociedade Literária. Em 1896, criou-se a Academia Brasileira de Letras em que nos achamos. Todos nós, seres humanos, somos mortais; a Academia, não. O que se deve aos patronos das Cadeiras, aos fundadores e aos sucessores, inclusive aos atuais ocupantes, bem mostra o que o Brasil fez pela Academia.

O discurso é simples, curto, objetivo, preciso. Pontes de Miranda encerrou registrando que ali estava para uma convivência intelectual e afetuosa, bem como agradecia os presentes pela atenção para com a sessão de posse. Um discurso marcado pelo afeto e pela adesão incondicional à cultura e ao pensamento, exatamente como foi a vida desse jurista incomparável.

domingo, 24 de abril de 2022

Pontes de Miranda: mirandianas, por Marcos Vasncelos Filho

 Pontes de Miranda: uma recordação e três teses nos seus 130 anos [*] 

por Marcos Vasconcelos Filho 

22/04/2022

 

(I) Janeiro, 2008. Rio. Estada. Pesquisa. Ipanema. Prudente de Moraes, 1.356. No chalé suíço, de perto dum século, moldado em pedra, sob inspiração eclética, espólio de desacordos entre as filhas dos dois consórcios do mestre Pontes de Miranda (1892-1979), conheço sua viúva, a embaixatriz Amneris Cardilli. 

 

Sentada, a consciência já se lhe ausentara. Acompanha-a, naquele aposento, seu filho Sílvio de Piro. É ele, auxiliado por uma bengala, por conta de uma neoplasia, quem nos ciceroneia por corredores sombrios e empoeirados. Nos fundos da residência, mostra-me o fichário de seu notável padrasto, ademais de pastas coloridas; leio haicais inéditos; noutras pilhas se depositam projetos — um deles, nunca mais se me desgrudou da memória: os rascunhos dos planos com fito à ampliação do »Tratado de direito privado« e um extenso sumário, quase uma régua, a um »Tratado de direito penal«. (Pontes acreditava viver 200 anos?). 

 

Ao depois, à principal biblioteca do anfitrião morto, o enteado me pasma: »amanhã, venha e escolha o que quiser«. »O quê?«, espanto-me no automático: »Eu vou levar é agora!« Porém, logo me restabeleço: pondero não ser leal privar outros curiosos daquelas fontes; seria preferível se destinassem menos ao doméstico, sim ao institucional. Só por fraqueza, confesso, traria comigo na bagagem umas duas peças. Uma: encadernação anotada de »Introducção á sociologia geral« (1926) — dentro dela, sem ciência prévia, descobriria folhas soltas manuscritas e datiloscritas, com anotações pessoais de Pontes, nas quais ele cita, entre outros gênios, Spinoza e Einstein. 

 

(II) Do jurisconsulto alagoano, é possível alguém tenha ouvido falar no título »Methodo de analyse socio-psychologica«. Há pequenas transcrições e referências suas em outras obras, dizendo-se-lhe rodada pelo famoso editor carioca Pimenta de Mello, no ano de 1925. Ou, no máximo, um resumo de conferência pronunciada em maio de 28, estampada por jornais brasileiros. 

 

Desconheço quem lhe consultara cópia sequer. Verdadeiro enigma, chegou-se a afirmar, até, do Kremlin um exemplar seu desaparecera. 

 

Ora, todo autor costuma criar em derredor de si uma aura de ficção. Suave mitomania. Ouso, por aí, suspeitar: o livro jamais fora impresso. Prove-se: numa entrevista a San Tiago Dantas (1911-64), inserida na revista »Novidades literárias« (1930), o nosso conterrâneo participa: »Pretendo publicar durante o ano próximo trabalhos em conclusão. [...] o ›Método de Análise Sócio-psicológico‹ [sic], ›Sociologia Estética‹ e ›Espaciologia Social‹, já prontos há três anos, só em 1932 aparecerão«.         

 

»Methodo« se irmana a »Systema de sciencia positiva do direito« (1922), »Introducção á politica scientifica« (1924) e »Introducção á sociologia geral« (1926). Esta tetralogia apresenta um dos conceitos-chave do »corpus pontemirandianum«: os processos sociais de adaptação, mecanismos de controle de nossas condutas a fim de que consigamos coexistir junto a nossos semelhantes e administrar os bens do viver. São eles: religião, ciência, economia, direito, política, arte e moral. Todavia (consoante veremos), apenas o direito é uma convenção impositiva. 

 

Curiosidade congruente: dos maiores sociólogos da história das ideias, diplomado em direito, Niklas Luhmann (1927-98) principiou também a elaborar (a contar do final dos anos 60) um escrito a cada sistema social e concebeu o jurídico um subsistema de engrenagens autônomas, a se comunicar com os demais subsistemas. Por isso denominei Pontes de Miranda »o nosso Luhmann«, pelas ambição e sincronicidade das teorias, malgrado de períodos e línguas distintos. 

  

Tanto um quanto outro dialogam com as vertentes dos positivismos —pensadores tal qual Auguste Comte (1798-1857). Este influi em Pontes, inclusive, na intitulação de seus produtos capitais do intelecto: »Système de politique positive« (1851-4). 

 

Outra sugestão. Pontes de Miranda beberia no estilo do sociólogo francês por quem nutria, de sorte confessa, bastante admiração: Émile Durkheim (1858-1917), o discípulo-mor comtiano. Da apreciação de »Les Règles de la méthode sociologique« (1895) sente-se a dívida literária. 

 

(III) Dês os tempos de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Recife (1907-11) Pontes de Miranda alimentava o vago afã de um teorema. Embora desde muito moço aspirasse a estudar ciências exatas em Oxford, o legado pontemirandiano não se prende ao universo da matemática em sentido estrito, contudo derivado, a partir duma metodologia de saber lógico como instrumento dedutivo-analítico para as suas categorias — dentre elas, o »quantum« despótico, os círculos sociais, os espaços socialmente entendidos. 

 

Longe de haver uma ruptura epistemológica entre o jovem intelectual dos anos 1910 aos 1950 e o maduro investigador das ciências sociais aplicadas daí em diante, além dos citados trabalhos, de »O problema fundamental do conhecimento« (1937) ao seu predileto »Tratado das ações« (1970-8) assevera-se a colaboração do logicista através das noções nodais de »jecto« em filosofia científica e da classificação quinária em processualismo. 

 

Emendo uma subtese exemplificadora: quem se der ao labor da leitura dos tomos 7 ao 9 do »Tratadão« nas suas seis dezenas de blocos, de maneira a cotejá-las com publicações anteriores, concluirá por uma autocoletânea da trilogia »Tratado de direito de família« (1947; por sua vez, surgida unitária em 17). Particularidade idêntica haveremos de flagrar em outros microssistemas dos direitos civil, comercial e do trabalho — afluentes de elaborações publicizadas entre as décadas de dez a trinta do século passado. 

 

Pois bem: a coluna vertebral do »Tratado de direito privado« é o fato jurídico, o qual se fundamenta ao longo da Parte Geral e se materializa através da categoria da incidência (da norma jurídica). 

 

Conforme o próprio nome carrega consigo, a norma recai sobre um conjunto de fatos (suporte fático) relevantes à concepção do fato em específico juridicizado. A inferência, plena de logicidade, é, por conseguinte, a varinha mágica transformadora do que há na realidade dos fatos gerais da existência em especialmente jurídicos. Mais: é a razão de ser da obrigatoriedade do direito. Ela se acha não no senso da aplicação concreta do comando da letra, mas na obediência sem a necessária consequência sancionadora da proposta kelseniana. (Teria sido esta a justificação por que o Mestre dedicará suas melhores energias criadoras ao campo cível?). 

 

Penso, destarte, haver nascido o conceito aos poucos, notadamente após o contato com a bibliografia de Edmund Husserl (1859-1938). Não é à toa que »O problema fundamental do conhecimento« antes se designara »Investigações epistemológicas« — uma leve imitação da fenomenologia das »Investigações lógicas« (1900-1901). 

 

Pontes de Miranda propõe uma ideia chamada »jecto« — uma construção mental que abstrai o sujeito e o objeto dos fenômenos e os equaciona em uma constante. Ao mesmo tempo, entretanto, esta fusão (sub)jecto + (ob)jecto se concretiza no mundo real quando um indivíduo segue as regras morais e jurídicas da comunidade não por receios de punição do pecado, ônus pecuniário, pena punidora ou temor ao ridículo — o oposto: seu cumprimento se guia por uma motivação psicológica e coletiva. 

 

(IV) 1933. Pontes de Miranda começa a proferir uma série de palestras a trabalhadores, sobretudo do Rio de Janeiro. Interessantíssimo o noticiário da época. É então que saem do forno três dos cinco livrinhos anunciados da coleção »Os 5 direitos do homem«: subsistência, trabalho e educação. Esses »novos direitos« são hoje os sociais, econômicos e culturais da segunda dimensão dos direitos fundamentais. Constitui evidente pioneirismo doutrinário dotado de contemporaneidade, a atestar um precursor do social-liberalismo e do neoconstitucionalismo, respectivamente pelo equilíbrio mercado x Estado, regras frias x princípios compassivos, norteados pela autorrealização da pessoa humana e a universalização da efetividade de garantias.    

 

E será justo o livrão »Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos« (1945) — portanto, antecedente à Declaração Universal de 48 e debaixo ainda da ditadura estado-novista de um contraditório Vargas —, quem selará a sua progressista visão sociopolítica (diria: de alcance da quarta geração de direitos humanos). 

 

É de se imaginar, ao término, qual haveria de ser o lugar científico a ocupar Pontes de Miranda com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em outubro de 88 — oito anos e dez meses em seguida ao seu misterioso falecimento. Comentador das cartas magnas de 34, 37, 46 e 67, presumo alinhar-se-ia aos hermeneutas moderados (ou aos teóricos impuros do direito à Voegelin), sem a perda dos parâmetros formais acautelatórios ao julgador-intérprete, embasado na racionalidade fundamentadora das decisões judiciais. 

 

[*] VASCONCELOS FILHO, Marcos. Pontes de Miranda: uma recordação e três teses nos seus 130 anos. »Tribuna do Sertão«, Palmeira dos Índios, ano XXV, n. 1.221, segunda-feira, 25 abr. 2022, Opinião, Cantoneira: página de crítica e de história, p. 09.