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quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Arnaldo Godoy relê o discurso de posse na ABL de Pontes de Miranda (Conjur)

EMBARGOS CULTURAIS

Discurso de posse de Pontes de Miranda na Academia Brasileira de Letras

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Conjur, 28/07/2024

O jurista alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979) deixou-nos portentosa obra. Eu levaria uma vida para lê-la. E mais do que dez vidas para escrevê-la, isto é, se conseguisse. Eu não tenho competência para tanto. Nem mesmo em dez vidas, que é um número cabalístico para o Tiradentes, creio que conseguiria. Quem não se lembra? Tiradentes, marca certa tradição, teria afirmado que dez vidas tivesse, dez vidas daria, pelo ideal pelo qual morria. Para as pessoas comuns, precisamos mais do que dez vidas para escrevermos uma obra tão vasta e profunda.

Pontes de Miranda era um polímata (no sentido que Peter Burke dá ao termo, isto é, interessava-se por todos os campos do saber). Foi empossado na Academia Brasileira de Letras, em 8 de março de 1979. Tinha 87 anos. Nos embargos culturais dessa semana comento o discurso de posse de Pontes de Miranda na ABL. É uma contribuição aos trabalhos de Fábio Coutinho, que estuda a presença dos juristas no “Petit Trianon”. Pontes de Miranda ocupou a Cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves.

Um estudo biográfico de Pontes de Miranda (e o grande especialista no assunto hoje é o jovem advogado e pesquisador Ednardo Benevides) revela que o jurista nunca se candidatou a cargos ou funções, embora tenha sido desembargador no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. No entanto, e quando se falava de cultura desinteressada a coisa muda, candidatou-se à ABL, mais de uma vez. Foi preterido em duas ocasiões. A escolha ocorreu na terceira tentativa. É o que lemos no discurso:

Nunca, em toda a minha vida, me candidatei a qualquer cargo ou função, aqui ou no estrangeiro. Os que exerci no Poder Judiciário e no Ministério das Relações Exteriores, de que sou aposentado, me foram excepcionalmente destinados, sem concurso e sem pedido meu. Nas próprias Academias de que faço parte, ou fui um dos fundadores, ou incluído apenas mediante consulta que me fizeram. (…). Estou a dizer-vos isso, eminentes acadêmicos, para frisar que só me candidatei, em toda a vida, a esta Academia. Nela fui preterido, uma vez, há mais de meio século, quando era jovem, e recentemente, de novo estimulado por alguns amigos, voltei a concorrer e, pela segunda vez perdi. Quando ia atingir os 87 anos, candidatei-me, espontaneamente, pela terceira vez, e fui eleito. (…)”

Pontes de Miranda enfatizou a missão histórica e intelectual da ABL

Reafirmou compromissos com valores fundamentais, a exemplo da democracia, da liberdade e da igualdade. Tenho comigo um livro de Pontes de Miranda, publicado em 1933, com o sugestivo título de “Os Novos Direitos do Homem”. O autor discutia a crise do Estado, o problema das autocracias (Hitler ascendia na Alemanha), uma certa incapacidade de a democracia representativa fixar uma ordem que reputava necessária, a relação da liberdade com a lei. Discutia nesse precioso livro a confusão do lógico com o justo, que reputava como um vício recorrente nos juristas.

Seguindo o padrão de discurso do acadêmico que toma posse, Pontes de Miranda elogiou o patrono da cadeira que passaria a ocupar. Homenageou Castro Alves. Fez uma referência ao poema “A Cachoeira de Paulo Afonso”. O poema narra a história de Maria e Lucas. Lucas buscava vingança contra o senhor dos escravos, mas descobre que este é seu irmão. Maria e Lucas acabam se suicidando na cachoeira. Pontes de Miranda reputava Castro Alves como uma das maiores inteligências do Brasil. E perguntava o que mais ele poderia ter feito se tivesse vivido mais tempo.

Pontes de Miranda também reverenciou aos demais ocupantes da Cadeira 7: Costa Magalhães, Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Afonso Pena Júnior e o próprio Hermes de Lima, a quem se referiu da forma que copio em seguida:

Nascido em 1902, Hermes Lima estudou profundamente e ingressou na Faculdade de Direito em 1920 (…) Em 1924, antes de completar os 23 anos, Hermes Lima foi eleito deputado da Assembleia Legislativa da Bahia. (…) No ano de 1925, já em São Paulo, candidatou-se à Cátedra de Direito Constitucional, com duas brilhantes teses, Princípios Constitucionais e Direito da Revolução. (…) Vindo para o Rio de Janeiro disputou, em 1933, a cátedra de Introdução à Ciência do Direito, com a tese “Material para um Conceito de Direito”. O brilho das aulas e a maneira de ajustar-se aos estudantes e de ajustá-los à sua missão levaram-no a criar admiradores e adversários. (…) Com o motim de 1935, injustamente foi preso. (…) Quero apenas acrescentar que este foi o homem, o intelectual, que os ilustres acadêmicos conheceram, e o homem, o intelectual, o amigo, que conheci. (…)”

Na parte final do discurso Pontes de Miranda revela e comprova cultura enciclopédica aludindo às várias academias, de todos os tempos. Lembrou inicialmente a Academia da História Portuguesa, criada em 1720 e a Academia de Ciências de Lisboa, de 1779. Chamou a memória que no século III vários acadêmicos se reuniam no Museu de Alexandria. Mencionou os acadêmicos de Granada e de Córdoba.

Fez referências à Academia de Nápoles (1433); à Academia Platônica (fundada em 1474 por Lorenzo de Médici); à Academia Científica, de 1603, de que foi membro Galileu; à Real Academia de Ciências, de 1757; à Academia Francesa, de 1635; à Real Academia de Ciências fundada na Alemanha, em 1700, planejada por Leibniz; à Academia Imperial de Ciência de São Petersburgo, Rússia, que Catarina I instalou em 1725.

Lembrou que os norte-americanos fundaram a Sociedade Filosófica de Filadélfia, em 1727, a Academia de Artes e Ciências de Boston, em 1780, entre outras. Fechou esse ponto fazendo referências à experiência brasileira:

No Brasil, houve e há, felizmente, muitas Academias. A Academia Brasileira da Bahia foi criada em 1724, dita dos Esquecidos, e a do Rio de Janeiro, a dos Felizes, em 1736, bem como a dos Seletos, em 1751. Em 1791, teve o Rio de Janeiro a Academia Científica; em 1786, a Sociedade Literária. Em 1896, criou-se a Academia Brasileira de Letras em que nos achamos. Todos nós, seres humanos, somos mortais; a Academia, não. O que se deve aos patronos das Cadeiras, aos fundadores e aos sucessores, inclusive aos atuais ocupantes, bem mostra o que o Brasil fez pela Academia.

O discurso é simples, curto, objetivo, preciso. Pontes de Miranda encerrou registrando que ali estava para uma convivência intelectual e afetuosa, bem como agradecia os presentes pela atenção para com a sessão de posse. Um discurso marcado pelo afeto e pela adesão incondicional à cultura e ao pensamento, exatamente como foi a vida desse jurista incomparável.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Discurso de posse de Miguel Reale na ABL - Arnaldo Godoy

Direito e literatura: o discurso de posse de Miguel Reale na ABL

Miguel Reale (1910-2006) tomou posse na Academia Brasileira de Letras em 21 de maio de 1975. Foi recebido por Cândido Mota Filho, reminiscente da Semana de 22 e que foi ministro do Supremo Tribunal Federal. Ocupou a cadeira nº 14, naquele ensejo ocupada por Reale, e hoje ocupada por Celso Lafer. Reale, Mota e Láfer formam uma linha de juristas literatos com visão universal dos problemas da existência. São originariamente vinculados a São Paulo, na política, no magistério e na vida cultural.

O patrono da cadeira é Franklyn Távora (1842-1888), autor do “Cabeleira” e destacado membro da “Escola do Recife”, vinculada a Tobias Barreto (1839-1889). Não se pode esquecer que Reale influenciou o jurista italiano Mário Lozano, que estudou Tobias (e sua biblioteca), tema que explorei na biografia intelectual que redigi sobre o jurista sergipano.

Desconcertante

O discurso de Reale chama a atenção pelo conjunto de coincidências então evocadas. O fundador da cadeira foi Clóvis Beviláqua, também jurista e personagem central do Código Civil de 1916, como Reale o fora em relação ao Código Civil de 2002. Reale não pode tratar dessa coincidência, por óbvio, porque o novo Código era apenas um projeto que se arrastava ao longo dos anos. Reale e Beviláqua também compartilhavam ascendência italiana.

Ao se referir a Beviláqua, Reale citou a impressão que Pedro Calmon tinha sobre os méritos do jurista cearense, escritor de “clareza solar” e de “simplicidade sem plebeísmo”. Reale lembrou também a impressão de Beviláqua segundo a qual “o estudo do direito não é uma simples volúpia da mente; é antes a religião austera e grave do justo”

. caso e causalidade dão o pano de fundo desse desconcertante discurso, que se pode intitular de “O Círculo Hermético”. Os eventos humanos interagem em um contexto de forças, que refletem também leis naturais, ao mesmo tempo em que revelam padrões de previsibilidade. Esses últimos, no escopo da previsibilidade, substancializam as leis de causalidade. O acaso, não menos importante, é o nicho do imprevisível e do incontrolável. O impacto sob nossas vidas, no entanto, é tanto do acaso quanto da causalidade.

Destinos cruzados

A sucessão dos ocupantes da cadeira 14 ilustraria essa relação entre acaso e causalidade. Reale sucedia Fernando Azevedo, também conectado com a Universidade de São Paulo. Reale referiu-se a Fernando Azevedo como um “conciliador de antinomias”, afinado com a reconstituição histórica dos nossos ciclos culturais. O sucessor de Reale, Celso Láfer, a par de jurista, e vinculado à Universidade de São Paulo, realça ainda mais esse traço de aproximação.

A ilustração das relações entre acaso e causalidade justificariam um conceito de “círculo hermético”; isto é, o círculo é fechado, pautado por padrões previsíveis. Por outro lado, esse fechamento não é absoluto, porque sobre todos nós impera também a força indomável do acaso. Reale parece intrigado com o imprevisível: um dos volumes de sua autobiografia denomina-se “Destinos Cruzados” (outro é “A Balança e a Espada”).

Acaso e causalidade seriam os dois lados de uma ordem (em forma de propósito) que a superficialidade de nossa compreensão das coisas talvez não consiga alcançar. Nesse sentido, do ponto de vista filosófico (e Reale é um filósofo) o discurso possa ser compreendido como uma problematização da teoria do conhecimento.

Ao mesmo tempo, Reale enfrenta um problema historiográfico: há causalidades imanentes que fixam os acontecimentos históricos, em relação aos quais não contemplamos nenhum domínio: somos filhos de nosso tempo. Nossas opções registram a nossa compreensão das épocas em que foram tomadas. Há um presenteísmo do qual não conseguimos nos livrar.

Não que acaso e causalidade revelassem uma suspeita tensão entre razão e imaginação. E se haveria alguma crise entre o pensamento lógico e rigoroso e o pensamento fantasioso, há um conjunto de asserções verificáveis que apontam para uma tentativa de compreensão entre os desacertos entre intelecto e alma.

Amálgama

Como jurista, Reale preocupa-se com a justiça. Como filósofo e como esteta Reale ocupa-se com a beleza. Como literato, Reale busca a clareza. Essas grandezas se completam, e penso (agora a ideia é minha) que o amálgama pode se dar na literatura.

A reflexão que Reale fez em relação à intersecção entre Direito e Filosofia, a partir de sua experiência pessoal aponta para uma conexão instrumentalizada pelo culto às humanidades (de que foi um ferrenho defensor, inclusive como educador) e, ao mesmo tempo, pela interdependência desses campos do conhecimento.

Reale registrou que não sabia se era recebido na Academia como jurista ou como filósofo, mas tinha certeza de que em seus escritos constatava-se uma “ardente devoção aos valores estéticos e literários”. Segundo Reale:

 Como será possível bem servir às Ciências Humanas sem procurar conciliar o rigor dos conceitos com a beleza da forma? Como não reconhecer que uma lei bela já é meio caminho andado para a realização da Justiça, e que uma frase clara reflete a transparência mesma de uma ideia conscientemente amadurecida? Sem ser necessário reduzir a Ciência à linguagem, nas pegadas de Wittgenstein e dos neo-positivistas contemporâneos, é inegável que o pensamento autêntico já é um esboço de ação, e que a verdade guarda em si mesma, na raiz de sua revelação, a força de seu enunciado”.

O discurso termina com uma reflexão sobre a noite. Segundo o orador, o fim da sessão principia o declínio do arco daquela noite, que os tornava iguais no culto da amizade e da beleza; isto é, “a noite é sempre fonte de igualdade e comunhão, enquanto que a luz solar distingue, individualiza, fustiga (…) noite que é generosidade e participação, noite do orvalho que sobe da terra, mas parece sobre ela descer com o seu manto de ternura”.

Miguel Reale, jurista de profissão, filósofo por vocação e esteta por convicção, passava a reger a cadeira 14 da ABL. Um símbolo da aproximação entre o direito e a literatura, relação enfatizada por Fábio Coutinho em sua obra tantas vezes aqui referida. A leitura das memórias de Reale complementa as reflexões aqui lançadas, e marcadas por profundo sentimento de respeito para com o jurista filósofo aqui estudado.

12 de maio de 2024, 8h00

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular do mestrado e doutorado do UniCeub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Délhi, Berkeley, Frankfurt, Málaga).

domingo, 1 de janeiro de 2023

Discurso de posse do presidente Lula para o seu terceiro mandato, 1/01/2023

 Discurso de posse do presidente Lula para o seu terceiro mandato, 1/01/2023

Boa tarde, povo brasileiro!

Minha gratidão a vocês, que enfrentaram a violência política antes, durante e depois da campanha eleitoral. Que ocuparam as redes sociais, e que tomaram as ruas, debaixo de sol e chuva, nem que fosse para conquistar um único e precioso voto.

Que tiveram a coragem de vestir a nossa camisa e, ao mesmo tempo, agitar a bandeira do Brasil – quando uma minoria violenta e antidemocrática tentava censurar nossas cores e se apropriar do verde- amarelo, que pertence a todo o povo brasileiro.

A vocês, que vieram de todos os cantos deste país – de perto ou de muito longe, de avião, de ônibus, de carro ou na boleia de caminhão. De moto, bicicleta e até mesmo a pé, numa verdadeira caravana da esperança, para esta festa da democracia.

Mas quero me dirigir também aos que optaram por outros candidatos. Vou governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim.

Vou governar para todas e todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância.

A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia. É hora de reatarmos os laços com amigos e familiares, rompidos pelo discurso de ódio e pela disseminação de tantas mentiras.

O povo brasileiro rejeita a violência de uma pequena minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático.

Chega de ódio, fake news, armas e bombas. Nosso povo quer paz para trabalhar, estudar, cuidar da família e ser feliz.

A disputa eleitoral acabou. Repito o que disse no meu pronunciamento após a vitória em 30 de outubro, sobre a necessidade de unir o nosso país.

“Não existem dois brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação.”

Somos todos brasileiros e brasileiras, e compartilhamos uma mesma virtude: nós não desistimos nunca.

Ainda que nos arranquem todas as flores, uma por uma, pétala por pétala, nós sabemos que é sempre tempo de replantio, e que a primavera há de chegar. E a primavera chegou.

Hoje, a alegria toma posse do Brasil, de braços dados com a esperança.

Minhas queridas amigas e meus amigos.

Recentemente, reli o discurso da minha primeira posse na Presidência, em 2003. E o que li tornou ainda mais evidente o quanto o Brasil andou para trás.

Naquele 1º de janeiro de 2003, aqui nesta mesma praça, eu e meu querido vice José Alencar assumimos o compromisso de recuperar a dignidade e a autoestima do povo brasileiro – e recuperamos. De investir para melhorar as condições de vida de quem mais necessita – e investimos. De cuidar com muito carinho da saúde e da educação – e cuidamos.

Mas o principal compromisso que assumimos em 2003 foi o de lutar contra a desigualdade e a extrema pobreza, e garantir a cada pessoa deste país o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar todo santo dia – e nós cumprimos esse compromisso: acabamos com a fome e a miséria, e reduzimos fortemente a desigualdade.

Infelizmente hoje, 20 anos depois, voltamos a um passado que julgávamos enterrado. Muito do que fizemos foi desfeito de forma irresponsável e criminosa.

A desigualdade e a extrema pobreza voltaram a crescer. A fome está de volta – e não por força do destino, não por obra da natureza, nem por vontade divina.

A volta da fome é um crime, o mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro.

A fome é filha da desigualdade, que é mãe dos grandes males que atrasam o desenvolvimento do Brasil. A desigualdade apequena este nosso país de dimensões continentais, ao dividi-lo em partes que não se reconhecem.

De um lado, uma pequena parcela da população que tudo tem. Do outro lado, uma multidão a quem tudo falta, e uma classe média que vem empobrecendo ano após ano.

Juntos, somos fortes. Divididos, seremos sempre o país do futuro que nunca chega, e que vive em dívida permanente com o seu povo.

Se queremos construir hoje o nosso futuro, se queremos viver num país plenamente desenvolvido para todos e todas, não pode haver lugar para tanta desigualdade.

O Brasil é grande, mas a real grandeza de um país reside na felicidade de seu povo. E ninguém é feliz de fato em meio a tanta desigualdade.

Minhas amigas e meus amigos,

Quando digo “governar”, eu quero dizer “cuidar”. Mais do que governar, vou cuidar com muito carinho deste país e do povo brasileiro.

Nestes últimos anos, o Brasil voltou a ser um dos países mais desiguais do mundo. Há muito tempo não víamos tamanho abandono e desalento nas ruas.

Mães garimpando lixo, em busca do alimento para seus filhos.

Famílias inteiras dormindo ao relento, enfrentando o frio, a chuva e o medo.

Crianças vendendo bala ou pedindo esmola, quando deveriam estar na escola, vivendo plenamente a infância a que têm direito.

Trabalhadoras e trabalhadores desempregados exibindo, nos semáforos, cartazes de papelão com a frase que nos envergonha a todos: “Por favor, me ajuda”.

Fila na porta dos açougues, em busca de ossos para aliviar a fome. E, ao mesmo tempo, filas de espera para a compra de automóveis importados e jatinhos particulares.

Tamanho abismo social é um obstáculo à construção de uma sociedade verdadeiramente justa e democrática, e de uma economia próspera e moderna.

Por isso, eu e meu vice Geraldo Alckmin assumimos hoje, diante de vocês e de todo o povo brasileiro, o compromisso de combater dia e noite todas as formas de desigualdade.

Desigualdade de renda, de gênero e de raça. Desigualdade no mercado de trabalho, na representação política, nas carreiras do Estado. Desigualdade no acesso a saúde, educação e demais serviços públicos.

Desigualdade entre a criança que frequenta a melhor escola particular, e a criança que engraxa sapato na rodoviária, sem escola e sem futuro. Entre a criança feliz com o brinquedo que acabou de ganhar de presente, e a criança que chora de fome na noite de Natal.

Desigualdade entre quem joga comida fora, e quem só se alimenta das sobras.

É inadmissível que os 5% mais ricos deste país detenham a mesma fatia de renda que os demais 95%.

Que seis bilionários brasileiros tenham uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país.

Que um trabalhador ou trabalhadora que ganha um salário mínimo mensal leve 19 anos para receber o equivalente ao que um super rico recebe em um único mês.

E não adianta subir o vidro do automóvel de luxo, para não ver nossos irmãos que se amontoam debaixo dos viadutos, carentes de tudo – a realidade salta aos olhos em cada esquina.

Minhas amigas e meus amigos.

É inaceitável que continuemos a conviver com o preconceito, a discriminação e o racismo. Somos um povo de muitas cores, e todas devem ter os mesmos direitos e oportunidades.

Ninguém será cidadão ou cidadã de segunda classe, ninguém terá mais ou menos amparo do Estado, ninguém será obrigado a enfrentar mais ou menos obstáculos apenas pela cor de sua pele.

Por isso estamos recriando o Ministério da Igualdade Racial, para enterrar a trágica herança do nosso passado escravista.

Os povos indígenas precisam ter suas terras demarcadas e livres das ameaças das atividades econômicas ilegais e predatórias. Precisam ter sua cultura preservada, sua dignidade respeitada e sua sustentabilidade garantida.

Eles não são obstáculos ao desenvolvimento – são guardiões de nossos rios e florestas, e parte fundamental da nossa grandeza enquanto nação. Por isso estamos criando o Ministério dos Povos Indígenas, para combater 500 anos de desigualdade.

Não podemos continuar a conviver com a odiosa opressão imposta às mulheres, submetidas diariamente à violência nas ruas e dentro de suas próprias casas.

É inadmissível que continuem a receber salários inferiores ao dos homens, quando no exercício de uma mesma função. Elas precisam conquistar cada vez mais espaço nas instâncias decisórias deste país – na política, na economia, em todas as áreas estratégicas.

As mulheres devem ser o que elas quiserem ser, devem estar onde quiserem estar. Por isso, estamos trazendo de volta o Ministério das Mulheres.

Foi para combater a desigualdade e suas sequelas que nós vencemos a eleição. E esta será a grande marca do nosso governo.

Dessa luta fundamental surgirá um país transformado. Um país grande, próspero, forte e justo. Um país de todos, por todos e para todos. Um país generoso e solidário, que não deixará ninguém para trás.

Minhas queridas companheiras e meus queridos companheiros.

Reassumo o compromisso de cuidar de todos os brasileiros e brasileiras, sobretudo daqueles que mais necessitam. De acabar outra vez com a fome neste país. De tirar o pobre da fila do osso para colocá-lo novamente no Orçamento.

Temos um imenso legado, ainda vivo na memória de cada brasileiro e cada brasileira, beneficiário ou não das políticas públicas que fizeram uma revolução neste país.

Mas não nos interessa viver do passado. Por isso, longe de qualquer saudosismo, nosso legado será sempre o espelho do futuro que vamos construir para este país.

Em nossos governos, o Brasil conciliou crescimento econômico recorde com a maior inclusão social da história. E se tornou a sexta maior economia do mundo, ao mesmo tempo em que 36 milhões de brasileiras e brasileiros saíram da extrema pobreza.

Geramos mais de 20 milhões de empregos com carteira assinada e todos os direitos assegurados. Reajustamos o salário mínimo sempre acima de inflação.

Batemos recorde de investimentos em educação – da creche à universidade –, para fazer do Brasil um exportador também de inteligência e conhecimento, e não apenas de commodities e matéria-prima.

Nós mais que dobramos o número de estudantes no ensino superior, e abrimos as portas das universidades para a juventude pobre deste país. Jovens brancos, negros e indígenas, para quem o diploma universitário era um sonho inalcançável, tornaram-se doutores.

Combatemos um dos grandes focos de desigualdade – o acesso à saúde. Porque o direito à vida não pode ser refém da quantidade de dinheiro que se tem no banco.

Fizermos o Farmácia Popular, que forneceu medicamentos a quem mais precisava, e o Mais Médicos, que levou atendimento a cerca de 60 milhões de brasileiros e brasileiras, nas periferias das grandes cidades e nos pontos mais remotos do Brasil.

Criamos o Brasil Sorridente, para cuidar da saúde bucal de todos os brasileiros e brasileiras.

Fortalecemos o nosso Sistema Único de Saúde. E quero aproveitar para fazer um agradecimento especial aos profissionais do SUS, pela grandiosidade do trabalho durante a pandemia. Enfrentaram bravamente, ao mesmo tempo, um vírus letal e um governo irresponsável e desumano.

Nos nossos governos, investimos na agricultura familiar e nos pequenos e médios agricultores, responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa. E fizemos isso sem descuidar do agronegócio, que obteve investimentos e safras recordes, ano após ano.

Tomamos medidas concretas para conter as mudanças climáticas, e reduzimos o desmatamento da Amazônia em mais de 80%.

O Brasil consolidou-se como referência mundial no combate à desigualdade e à fome, e passou a ser internacionalmente respeitado, pela sua política externa ativa e altiva

Fomos capazes de realizar tudo isso cuidando com total responsabilidade das finanças do país. Nunca fomos irresponsáveis com o dinheiro público.

Fizemos superávit fiscal todos os anos, eliminamos a dívida externa, acumulamos reservas de cerca de 370 bilhões de dólares e reduzimos a dívida interna a quase metade do que era anteriormente.

Nos nossos governos, nunca houve nem haverá gastança alguma. Sempre investimos, e voltaremos a investir, em nosso bem mais precioso: o povo brasileiro.

Infelizmente, muito do que construímos em 13 anos foi destruído em menos da metade desse tempo. Primeiro, pelo golpe de 2016 contra a presidenta Dilma. E na sequência, pelos quatro anos de um governo de destruição nacional cujo legado a História jamais perdoará:

700 mil brasileiros e brasileiras mortos pela Covid.

125 milhões sofrendo algum grau de insegurança alimentar, de moderada a muito grave.

33 milhões passando fome.

Estes são apenas alguns números. Que na verdade não são apenas números, estatísticas, indicadores – são pessoas. Homens, mulheres e crianças, vítimas de um desgoverno afinal derrotado pelo povo, no histórico 30 de outubro de 2022.

Os Grupos Técnicos do Gabinete de Transição, que por dois meses mergulharam nas entranhas do governo anterior, trouxeram a público a real dimensão da tragédia.

O que o povo brasileiro sofreu nestes últimos anos foi a lenta e progressiva construção de um genocídio.

Quero citar, a título de exemplo, um pequeno trecho das 100 páginas desse verdadeiro relatório do caos produzido pelo Gabinete de Transição. Diz o relatório:

“O Brasil bateu recordes de feminicídios, as políticas de igualdade racial sofreram severos retrocessos, produziu-se um desmonte das políticas de juventude, e os direitos indígenas nunca foram tão ultrajados na história recente do país.

Os livros didáticos que deverão ser usados no ano letivo de 2023 ainda não começaram a ser editados; faltam remédios no Farmácia Popular; não há estoques de vacinas para o enfrentamento das novas variantes da COVID-19.

Faltam recursos para a compra de merenda escolar; as universidades corriam o risco de não concluir o ano letivo; não existem recursos para a Defesa Civil e a prevenção de acidentes e desastres. Quem está pagando a conta deste apagão é o povo brasileiro.”

Meus amigos e minhas amigas.

Nesses últimos anos, vivemos, sem dúvida, um dos piores períodos da nossa história. Uma era de sombras, de incertezas e de muito sofrimento. Mas esse pesadelo chegou ao fim, pelo voto soberano, na eleição mais importante desde a redemocratização do país.

Uma eleição que demonstrou o compromisso do povo brasileiro com a democracia e suas instituições.

Essa extraordinária vitória da democracia nos obriga a olhar para a frente e a esquecer nossas diferenças, que são muito menores que aquilo que nos une para sempre: o amor pelo Brasil e a fé inquebrantável em nosso povo.

Agora, é hora de reacendermos a chama da esperança, da solidariedade e do amor ao próximo.

Agora é hora de voltar a cuidar do Brasil e do povo brasileiro. Gerar empregos, reajustar o salário mínimo acima da inflação, baratear o preço dos alimentos.

Criar ainda mais vagas nas universidades, investir fortemente na saúde, na educação, na ciência e na cultura.

Retomar as obras de infraestrutura e do Minha Casa Minha Vida, abandonadas pelo descaso do governo que se foi.

É hora de trazer investimentos e reindustrializar o Brasil. Combater outra vez as mudanças climáticas e acabar de uma vez por todas com a devastação de nossos biomas, sobretudo a Amazônia.

Romper com o isolamento internacional e voltar a se relacionar com todos os países do mundo.

Não é hora para ressentimentos estéreis. Agora é hora de o Brasil olhar para a frente e voltar a sorrir.

Vamos virar essa página e escrever, em conjunto, um novo e decisivo capítulo da nossa história.

Nosso desafio comum é o da criação de um país justo, inclusivo, sustentável, criativo, democrático e soberano, para todos os brasileiros e brasileiras.

Fiz questão de dizer ao longo de toda a campanha: o Brasil tem jeito. E volto a dizer com toda convicção, mesmo diante do quadro de destruição revelado pelo Gabinete de Transição: o Brasil tem jeito. Depende de nós, de todos nós.

Em meus quatro anos de mandato, vamos trabalhar todos os dias para o Brasil vencer o atraso de mais de 350 anos de escravidão. Para recuperar o tempo e as oportunidades perdidas nesses últimos anos. Para reconquistar seu lugar de destaque no mundo. E para que cada brasileiro e cada brasileira tenha o direito de voltar a sonhar, e as oportunidades para realizar aquilo que sonha.

Precisamos, todos juntos, reconstruir e transformar o Brasil.
Mas só reconstruiremos e transformaremos de fato este país se lutarmos com todas as forças contra tudo aquilo que o torna tão desigual.

Essa tarefa não pode ser de apenas um presidente ou mesmo de um governo. É urgente e necessária a formação de uma frente ampla contra a desigualdade, que envolva a sociedade como um todo:

trabalhadores, empresários, artistas, intelectuais, governadores, prefeitos, deputados, senadores, sindicatos, movimentos sociais, associações de classe, servidores públicos, profissionais liberais, líderes religiosos, cidadãos e cidadãs comuns.

É tempo de união e reconstrução.

Por isso, faço este chamamento a todos os brasileiros e brasileiras que desejam um Brasil mais justo, solidário e democrático: juntem-se a nós num grande mutirão contra a desigualdade.

Quero terminar pedindo a cada um e a cada uma de vocês: que a alegria de hoje seja a matéria-prima da luta de amanhã e de todos os dias que virão. Que a esperança de hoje fermente o pão que há de ser repartido entre todos.

E que estejamos sempre prontos a reagir, em paz e em ordem, a quaisquer ataques de extremistas que queiram sabotar e destruir a nossa democracia.

Na luta pelo bem do Brasil, usaremos as armas que nossos adversários mais temem: a verdade, que se sobrepôs à mentira; a esperança, que venceu o medo; e o amor, que derrotou o ódio.

Viva o Brasil. E viva o povo brasileiro.”

domingo, 21 de agosto de 2022

Oliveira Lima, por José Paulo Cavalcanti Filho (discurso de posse na ABL)

 Oliveira Lima

Oliveira Lima. Por José Paulo Cavalcanti Filho

…Na lápide, não consta um nome. Apenas seu epitáfio, que ele próprio escreveu, Hic jacet amicus librorum (Aqui jaz um amigo dos livros)….

O quixote liberal da república : Revista Pesquisa Fapesp

Nasceu no Recife (25/12/1867). Filho mais novo de mãe pernambucana, Maria Benedita de Oliveira Lima, e um comerciante da Cidade Invicta (Porto), Luís de Oliveira Lima – que, muito antes (1834), havia migrado para Pernambuco. Em 1873, requerendo cuidados médicos, o pai mudou-se para perto da família paterna, então em Lisboa. A criança tinha seis anos, apenas. Ocuparam casa na rua da Glória, número 23; bem pertinho, no número 4, iria mais tarde morar o poeta Fernando Pessoa. Mas não perderam contato com Pernambuco. Que tudo, naquela moradia, tinha nosso rosto. As duas irmãs, casadas com pernambucanos. O pai, apesar de luso, rebatia sempre qualquer comentário desairoso ao país que já considerava seu. Brasileiras, também, as criadas que viviam na casa, as lembranças recorrentes de outros tempos, a saudade que vinha com imagens do passado, o jeito de receber. E mesmo a comida tinha o gosto de nossa terra. Temperada com farinha e goma de mandioca, mais doces, queijos do sertão, pimentas de cheiro e malagueta. Pena só que, apesar de glutão, jamais tenha aprendido a cozinhar, sendo incapaz de preparar as mais simples receitas.

A partir de 1881, começou a trabalhar no Correio do Brazil. Um jornalzinho por ele fundado, em Portugal, no qual publicava documentos inéditos da nossa história – como três cartas do primeiro donatário da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira. Em 1885, passou a colaborar com o Jornal do Recife; a Revista de Portugal, de Eça de Queiroz; e o Repórter, de Oliveira Martins, onde escrevia textos a favor da abolição da escravatura. Depois do Decret de L’Abolition de L’Esclavage de France (1848) e da abolição da escravatura em Portugal, com Lei de 25/02/1869 (e seu termo definitivo em 1878), só o Brasil, no mundo, ainda mantinha essa política. A última escrava portuguesa morreu, na década de 1930, com 120 anos; mas, nesse tempo, vagava Oliveira Lima por céus imprecisos e distantes. Seja como for, a seus olhos de jovem, era tempo de ocorrer algo assim por aqui. A campanha abolicionista o levou, por essa época, a se aproximar de Joaquim Nabuco. André Heráclito (Oliveira Lima, historiador) explica “O cunhado de Oliveira Lima, diplomata Araújo Beltrão, à época em Portugal, havia feito gestões para que a Câmara dos Deputados lusitana recebesse Nabuco, então o grande nome do abolicionismo no Brasil; e, nesta ocasião, os dois grandes historiadores e diplomatas se conheceram pessoalmente e começaram a se corresponder”. Em 14/10/1884 foi inscrito no curso superior de Letras, de Lisboa, onde acabou sendo o aluno predileto de Oliveira Martins. Estudou, ainda, com Teófilo Braga (primeiro presidente de Portugal, já na República), que não pertencia aos quadros da faculdade. E, quatro anos depois, obteve o grau de doutor em Filosofia e Letras. De volta ao Recife, em 1890, casou com Flora Cavalcanti de Albuquerque – uma descendente da aristocracia da zona canavieira de Pernambuco.

Com o apoio do Barão de Lucena (pernambucano, como ele), ministro todo poderoso de Deodoro, e pelas mãos de Quintino Bocaiúva (então ministro das Relações Exteriores), seguiu o exemplo do cunhado e entrou na carreira diplomática. Representou nosso país em numerosos países, pela ordem Portugal (segundo secretário), Alemanha, Estados Unidos (primeiro secretário), Inglaterra e Japão – onde permaneceu, até 1903, após o que voltou ao Rio. Ainda iria à Venezuela (ministro plenipotenciário) e, em seguida, ao seu derradeiro posto, na Bélgica, após o que se aposentou.

Oliveira Lima elogiava D. João VI, “a quem o Brasil deve sua organização autônoma, suas melhores fundações de cultura e até seus devaneios de grandeza”. E não por acaso D. João VI no Brasil, pelos cuidados com fontes e detalhes que marcaram seu estilo, logo foi reconhecido, por todos, como um livro de qualidade superior. Impressionou-lhe também o fato de que o Brasil, sobretudo graças ao imperador D. Pedro II, foi o único país a gozar, por décadas, de paz interna, em um continente conturbado como o da América do Sul. Primeiro foi republicano, durante a Monarquia; mas logo se tornou monarquista, após a Proclamação da República, por divergir dos rumos que tomara o Movimento de 1889. E uma de suas marcas era a determinação, por vezes exagerada, com que defendia certas posições – mesmo aquelas que não correspondiam à média da opinião pública. Assim se deu, por exemplo, quando criticou a política de expansão territorial do país – como a anexação do Acre, feita por mãos do Barão do Rio Branco.

 Entre os que decididamente não gostavam dele, as razões não são claras, talvez apenas por conta do temperamento belicoso de Oliveira Lima, estava Emílio de Menezes. Por exemplo, quando à tarde saía para passear, braços dados com a mulher Flora, Emílio ficava repetindo “ali vão a flora e a fauna da literatura brasileira”. E dedicado a ele ainda escreveu soneto, O plenipotenciário da facúndia, da eloquência pois, que começa por verso pouco respeitoso criticando sua gordura, “De carne mole e pele bobalhona”, e finda com esse terceto lastimável: “Eis, em resumo, essa figura estranha:/ Tem mil léguas quadradas de vaidade/ Por milímetro cúbico de banha”. De outro lado, entre seus mais leais admiradores, estava Gilberto Freyre, para quem seria um “Dom Quixote gordo”. Imagem na linha do que evoca o poeta português António Gedeão (Impressão digital) “Inútil seguir sozinhos/ Querer ser depois ou antes/ Cada qual com seus caminhos/ Onde Sancho vê moinhos/ Dom Quixote vê gigantes./ Vê moinhos?, são moinhos/ Vê gigantes?, são gigantes”. Assim era Oliveira Lima, seguindo sozinho e sempre sonhando em derrotar seus gigantes.

E nem será dele, talvez, a tão conhecida frase, que lhe é atribuída, “Na geografia dos defeitos, Recife é capital da inveja e da maledicência”. A frase como assim redigida, não. Mas o conteúdo, com certeza sim. Tania Elias Magno da Silva (Josué de Castro, para uma poética da fome) sugere “Um grande historiador brasileiro e pernambucano, Oliveira Lima, afirmou certa vez que se um dia se fizesse a geografia dos sentimentos humanos, o Recife era a capital da inveja”. Mário Hélio (O Brasil de Gilberto Freyre) a acompanha “Seria a cidade já nessa época a capital da inveja, na conhecida boutade atribuída a Oliveira Lima”. E o próprio Oliveira Lima completa “O vício capital de Pernambuco é a inveja, queixa-se Freyre num corajoso artigo ao qual seu amigo José Lins do Rego, apoiando-se na denúncia, acrescenta uma ressalva: mais do que inveja, o que há no Recife é estupidez e maledicência” (Diário de Pernambuco, 13/7/1924).

Oliveira Lima fazia curiosas afirmações. Como esta, de que “os heróis raramente são ricos. A fortuna, de ordinário, traz consigo a tentação de gozar a vida com mais tranquilidade”. Antecipando-se a Rubem Alves (Ostra feliz não faz pérola), para quem “pessoas felizes não sentem necessidade de criar”. Não seu caso, claro; que Oliveira Lima era decididamente, à sua maneira embora, um homem feliz. E soube dar valor às mulheres, num tempo em que isso ainda era raro. Comentando a admissão de Edwiges de Sá Pereira na Academia Pernambucana de Letras – segunda mulher, no Brasil, a conseguir fazer parte de uma Academia –, ressaltou que “nas nações mais adiantadas as mulheres já votavam e legislavam”. E, ainda, “quando as mulheres dispuserem algum dia da maioria parlamentar e do governo, a organização política será muito mais dotada de justiça social… e a legislação poderá, então, merecer a designação humana” (George Cabral, em Discurso de Posse na APL). Aposentado, tentou morar na Inglaterra, onde tinha casa alugada. Mas, por conta da pública admiração que demonstrava pela Alemanha, e dado ter defendido com ardor que o Brasil ficasse neutro na Primeira Guerra, foi por lá considerado persona non grata, o que não permitiu pudesse realizar tal desejo.

Acabou indo para os Estados Unidos, onde viveu seu resto de vida. Foi professor visitante em Harvard. E conseguiu formar uma biblioteca monumental, com quase 60 mil livros. Alguns raros como o de Barlaeus, Histórias dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil – primeiro livro a descrever, em latim, a província de Pernambuco. Além, continuando, mais de 600 quadros, numerosas colunas de recortes de jornais e um dos três bustos do Dom Pedro I, esculpido por Marc Ferrez (tio do fotógrafo homônimo), o único em bronze. Essa biblioteca foi doada, por ele, à Universidade Católica da América (Washington), onde presentemente se encontra. E, a partir de 1921, exerceu ali o cargo de Primeiro Bibliotecário, que ocupou até a morte.

Cadeira 11 da Academia Pernambucana de Letras (em 1901), foi fundador da Academia Brasileira de Letras (1897). Morreu em Washington (24/03/1928), onde está enterrado no cemitério Mont Olivet.  Na lápide, não consta um nome. Apenas seu epitáfio, que ele próprio escreveu, Hic jacet amicus librorum(Aqui jaz um amigo dos livros).

P.S. Trecho do Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras (10/06/2022).