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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Mensagem do embaixador Ricupero, no Dia do Diplomata

Mensagem recebida do embaixador Rubens Ricupero, a propósito de minha entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, segundo este registro: 


3642. “‘Fazer diplomacia pelo Twitter é errado’, diz embaixador”, Brasília, 20 abril 2020, 10 p. Entrevista gravada com o jornalista José Fucs, do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em versão reduzida no jornal impresso (link: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fazer-diplomacia-pelo-twitter-e-errado-diz-embaixador,70003275120); divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/diplomacia-por-tweets-entrevista.html); versão resumida publicada no jornal impresso divulgada no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/fazer-diplomacia-e-expor-divergencias.html). Relação de Publicados n. 1344.


" Caro Paulo Roberto,
Excelente sua entrevista ao Estadão: a mais completa e detalhada que li até agora sobre a calamidade que nos assalta no ministério. Nada mais apropriado do que sair no dia do Diplomata. 
Dizer a verdade é mais apropriado que celebrar num momento de degradação como o que vivemos. 

Como disse Giacomo Leopardi
“Se queremos algum dia despertar e retomar o espírito de nação (basta substituir “nação” por Itamaraty), nossa primeira atitude deve ser não a soberba nem a estima das coisas presentes, mas a vergonha”. 

Agradeço a Você por haver me mencionado na entrevista.

Lendo o relato das perseguições que sofreu, refletindo sobre sua obra gigantesca e de alta qualidade, não somente para nossa diplomacia, mas para a cultura brasileira, não pude deixar de pensar mais uma vez nas palavras do Padre Antônio Vieira que se aplicam com justiça à sua aventura humana. Você certamente as conhece, mas não faz mal repeti-las.
São do Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma, no qual declara na sua forma incomparável: 

“Se servistes à pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma... Se servi, se pelejei, se trabalhei, fiz o que devia ao rei, fiz o que devia à pátria, fiz o que me devia a mim mesmo: e quem se desempenhou de tamanhas dívidas, não há de esperar outra paga... Os reis podem dar títulos, rendas, estados; mas ânimo, valor, fortaleza, constância, desprezo da vida, e as outras virtudes de que se compõe a verdadeira honra, não podem. Se Deus vos fez estas mercês, fazei pouco caso das outras, que nenhuma vale o que custa (...pois...) 
O maior prêmio das ações heroicas é fazê-las”. 

Não se pode dizer melhor. 
Abraço muito afetuoso do seu admirador e amigo,
                                                     Rubens [Ricupero] "

Depois que eu pedi autorização para transcrever a mensagem acima, e a obtive, ainda recebi a seguinte mensagem: 

Querido Paulo,
Ficarei orgulhoso se Você divulgar minha opinião, que corresponde apenas à objetividade do que Você é, do que tem feito e de sua força de caráter. Abraço forte,
                                             Rubens

Finalmente, permito-me referir a esta matéria que publiquei no mesmo dia no Estado da Arte, do mesmo jornal O Estado de S. Paulo

3637. “A diplomacia brasileira na corda bamba, sem qualquer equilíbrio”, Brasília, 16 abril 2020, 17 p. Junção dos trabalhos 3633 e 3636, retomando temas da política externa brasileira, para o suplemento Estado da Arte, do Estadão; enviado para Eduardo Wolf e Gilberto Morbach. Publicado no Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (20/04/2020; link: https://estadodaarte.estadao.com.br/diplomacia-brasileira-corda-bamba/).


domingo, 19 de abril de 2020

Cem anos da posse do Barão do Rio Branco (1902) como chanceler - Paulo Roberto de Almeida (2002)

Dando continuidade à publicação de meus textos sobre o Barão do Rio Branco, transcrevo um pequeno artigo que fiz em 2002, como reflexão a partir de artigo do embaixador Rubens Ricupero, publicado pouco antes, e que transcrevo ao final desta postagem.
Paulo Roberto de Almeida

Reflexões a propósito do centenário do Barão
(ou das dificuldades de ver no plano interno as razões de nossos problemas)

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 2 setembro 2002

Em artigo publicado na Folha de São Paulo do dia 1º de setembro [in fine], o Embaixador Rubens Ricupero traça brilhante retrospecto da ação competente do Barão do Rio Branco à frente da chancelaria brasileira, do final de 1902 ao início de 1912. Está ali plenamente justificada a opção preferencial do Barão por uma estreita aliança com os Estados Unidos, em face do agressivo imperialismo europeu, então em seu auge expansionista. Os desafios se colocavam mais no plano global do que no regional, uma vez que neste o Barão soube negociar todas as pendências fronteiriças com pleno conhecimento de causa.
Na arena internacional, porém, como escreve Ricupero, “os desafios globais tinham natureza diferente e pertenciam a outra esfera, a das relações com as grandes potências, perante as quais estávamos inferiorizados por um diferencial de poder tamanho que éramos obrigados a inventar um jogo defensivo mais sutil e indireto.” Daí a tentativa do Barão, em grande medida frustrada, de multilateralizar a doutrina Monroe, em torná-la um instrumento de defesa coletiva do continente em face da agressividade européia, o que não foi logrado justamente porque os EUA estavam então adotando os mesmos métodos “civilizadores” dos europeus. 
Em todo caso, a estratégia política do Barão – de construir uma estreita aliança com os EUA – foi por Ricupero considerada como apropriada em seu contexto, sendo consagrada como norma da política externa brasileira nas fases subsequentes do período republicano: “As fórmulas do barão deram certo, convertendo-se por longos anos em paradigma incontornável da política externa brasileira.” Ricupero, no entanto, coloca a questão de saber se essa estratégia poderia ser adequada igualmente para nossa própria época, daí o sentido do seu título interrogativo: “O que faria o Barão?”. 
Diz Ricupero que, atualmente, “talvez pela primeira vez em um século, defrontamo-nos com dilemas tão desafiadores como os de 1902. Eles apresentam semelhanças de ordem geral com os do passado já que de novo temos de nos definir diante de alteração radical na estrutura mundial de poder e em relação a uma fase muito mais intensa de globalização.” A diferença, contudo, é que o império ameaçador tornou-se aquele mesmo com o qual pretendíamos nos aliar um século atrás: “Desta vez, no entanto, não é o sistema multipolar a incorporar novo ator principal como os EUA, mas são estes últimos que engolem o multipolarismo para concentrar quase todo o poder. O problema é saber se esse poder será exercido unilateralmente ou se sera possível, em alguma medida, colocá-lo a serviço de ordem internacional consentida, tolerante, generosa e justa e que papel poderia ter a diplomacia brasileira nesse esforço.”
Ricupero não traz respostas à questão de como conviver com esse novo desafio, nem especulando sobre o que faria o Barão, hoje, nem sobre o que ele mesmo propõe como estratégia defensiva ou ofensiva do Brasil nesse novo contexto. Sua conclusão soa quase como uma dúvida existencial do Brasil na presente conjuntura, na qual defensores e adversários do projeto da Alca se dividem em igual número por todo o espectro político e econômico nacional. Pergunta ele, à guisa de conclusão: “Será viável construir um tipo de inserção internacional que compatibilize uma Alca mais equilibrada e equânime com as oportunidades abertas pelo multilateralismo comercial em relação à Europa, à Ásia, a todas as regiões e países, essência da genuína globalização?”
Minha presente reflexão, longe de pretender contestar a brilhante argumentação de Ricupero, vai no sentido de colocar uma interrogação mais profunda, vinculada à própria orientação da política externa ou, o que me parece ainda mais fundamental, ao problema da determinação das origens dos nossos problemas de inserção internacional e das raízes desses mesmos problemas.
Observando o debate sobre a Alca e as demais negociações em que estamos engajados, sobre as alternativas de políticas comercial, industrial e diplomática que deveríamos implementar na próxima fase da consolidação econômica e democrática a partir de 2003, não posso deixar de registrar como os diferentes interlocutores sociais e políticos que intervêm nesse debate tendem a atribuir a fatores externos as principais fontes de desafios para o Brasil. De certa forma, os motivos de nossos desequilíbrios são dados, ora pelos tão vilipendiados capitais voláteis, ora pelo protecionismo europeu ou americano, qunado não pelo unilateralismo e prepotência dos países mais ricos, como no suposto projeto de “anexação colonial”, agora representado pela Alca.
Frente a esses desafios, o Brasil sempre tendeu a adotar uma postura defensiva e retraída, como na luta contra a prepotência inglesa do século 19, que pretendia acabar com o tráfico negreiro, na resistência envergonhada contra as pressões de uma das mais velhas ONGs do mundo, a Anti-Slavery Society, à época engajada em ver acelerada a abolição da escravidão no Brasil, reclamando oficialmente contra a propaganda contrária que se fazia na Europa, no início do período republicano, à ida de emigrantes para o Brasil – como se eles não fossem tratados praticamente como substitutos dos escravos nas plantações de café –, bem como contra, já então, os esforços dos EUA de constituir, no plano hemisférico, uma “customs union”, tal como proposta na primeira conferência americana de Washington, em 1889-1890, virtual antecessora do atual projeto da Alca. 
Nos anos 40 e 50 do século passado, por outro lado, quando toda a sociedade se mobilizava na tarefa da industrialização nacional, pretendíamos ter capitais estrangeiros para tal, mas de preferência sem o apêndice incômodo dos capitalistas estrangeiros, isto é, gostaríamos que os países ricos financiassem nosso esforço industrializador mediante adequada transferência de capitais mas preservando totalmente o controle sobre vetores e mecanismos desse processo. Tratava-se, como no século 19, de aceitar as benesses do mundo externo sem incorporar suas obrigações, em termos de educação das massas, de promoção de direitos sociais ou, mais prosaicamente, das obrigações e contrapartidas decorrentes de um mundo verdadeiramente interdependente. 
Em todos esses episódios e processos, o que chama a atenção é a dificuldade dos setores dominantes no Brasil em ver a origem dos problemas no próprio Brasil, em nossas esclerosadas estruturas sociais, em nosso deficiente aparelhamento produtivo, em nossa incapacidade em reconhecer que a ineficiência geral do sistema econômico deriva, essencialmente, da baixa qualificação geral do nosso povo, o que deriva, obviamente, dos níveis ínfimos de educação formal da maioria da população. Passa-se a imagem de que com um ambiente externo mais favorável – menos protecionismo, mais financiamento internacional, maior estabilidade de preços nos mercados mundiais, mais cooperação ao desenvolvimento sob a forma de transferência de tecnologia, maiores possibilidades externas, enfim, revertendo em maiores oportunidades internas – poderíamos impulsionar de forma decisiva e célere nosso processo de desenvolvimento econômico e social. 
Tenho um certo grau de respeito por essa visão “técnica” dos nossos principais problemas, inclusive pela forma competente como sabemos (e sempre soubemos) mobilizar, mediante uma diplomacia que demonstra uma certa competência técnica, essas “possibilidades externas” para convertê-las em oportunidades nacionais. Não posso, porém, deixar de receber com um certo sorriso de desconfiança essas tentativas nossas de transferir para outra esfera a origem de nossos problemas seculares de desenvolvimento, sempre postergando para depois a solução de questões cruciais que, elas sim, estão na raiz de nosso vergonhoso atraso social. Como explicar de outra forma o fato, em si bastante auspicioso, de que tenhamos conseguido conformar a décima mais importante economia do planeta – depois de termos sido durante décadas os primeiros fornecedores de vários produtos primários, verdadeiros monopolistas de algumas commoditiesbastante transacionadas nos mercados mundiais – e continuarmos, por outro lado, a ostentar uma das mais indecentes estruturas de repartição social da renda que se conhece nesse mesmo planeta? Como conciliar, de um lado, a pujança de nossa indústria – nacional e multinacional – e a tremenda competitividade de nossa agricultura com, de outro lado, níveis tão iníquos de educação e saúde para milhões de nossos compatriotas?
Não sei se esses fatos perturbam meus colegas diplomatas e, de forma geral, nossos líderes políticos, mas a mim isso causa um imenso desconforto, não apenas nas reuniões e conferências internacionais a que assisto por dever de ofício, mas como simples cidadão brasileiro, como pessoa humana pertencente a uma coletividade. Não posso, assim, deixar de reagir com um certo ceticismo – embora sadio, pois o pessimismo absoluto não constrói nada de permanente – a esses belos discursos em prol da soberania nacional e do desenvolvimento, de manutenção do tratamento preferencial e mais favorável para países em desenvolvimento, de aumento na cooperação internacional e do estabelecimento de regras especiais no comércio mundial para lidar com os “problemas específicos dos países em desenvolvimento”. Sou, sim, profundamente cético, para não dizer que sou virtualmente contrário, em relação às possibilidades criadoras dessa pretensa “importação de desenvolvimento”, talvez por acreditar, como já afirmava o saudoso Barbosa Lima Sobrinho, que “capital se faz em casa”, e que ele se faz, basicamente, mediante a formação de recursos humanos. 
Por isso gostaria de terminar estas reflexões repetindo a mesma fórmula de que utilizei-me em palestra efetuada no Instituto Rio Branco, em 2 de abril de 2002, por ocasião do lançamento de meu livro Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo-Brasília: Senac-Funag, 2001). Se eu não corresse o risco de parecer demagógico, à pergunta de saber para quê, enfim, deveria servir nossa diplomacia, tida como excelente, eu responderia, simplesmente, que ela deveria servir para colocar crianças na escola, algo que continua a ser o nosso grande problema (e drama) nacional. Se admitirmos que já conseguimos colocar a maior parte dessas crianças na escola e que o problema não é mais este (mas ele ainda é, certamente, o do desempenho escolar), então eu diria que a diplomacia deveria servir, antes de mais nada, para melhorarmos a qualidade de nosso sistema educacional, que continua a ser extremamente deficiente. De resto, de que adianta ter uma diplomacia avançada, mas um povo sem condições de competir na arena da economia mundial?
Estas são, finalmente, as raízes de nosso medo diante da Alca e diante de outros tantos desafios do cenário internacional: não temos confiança em nós mesmo, pois que somos um povo fragilizado pela ausência, quase dois séculos depois de o País ter-se tornado independente e da existência de um Estado constituído, de uma verdadeira Nação, que ainda resta a construir em seu tecido social e em sua formação cultural. Como diplomata ou como cidadão, essa anomia estrutural me traz bastante desconforto, ao passo que os desafios apontados por Ricupero no cenário internacional nada mais são senão meros embates de interesses setoriais que saberemos conduzir da melhor forma possível.
Mas eu me sentirei frustrado se, ao cabo desses processos negociadores e tendo sabido defender ao melhor possível os chamados “interesses nacionais” – com Alca ou sem Alca, não importa muito aqui –, eu olhar novamente para dentro e constatar que, finalmente, o cenário interno no Brasil mudou muito pouco, a despeito de um ou outra “vitória diplomática” no plano externo. 
Alternativamente, eu me sentirei sinceramente recompensado se, ao examinar novamente o itinerário da nossa diplomacia no início do século XXI – quando, por exemplo, completarmos dois séculos de exercício diplomático contínuo a partir do território nacional, em 2008 – puder constatar que essa diplomacia não precisará mais servir, ainda que hipoteticamente, para colocar crianças na escola. Se tivermos logrado vencer a batalha interna da formação do povo e da qualificação educacional da população eu me sentirei recompensado, como diplomata e como cidadão.
Até lá, temos muito trabalho pela frente, e não apenas no plano da diplomacia econômica e comercial, ainda que este esforço continuado fosse apenas para manter e justificar nossa fama de excelentes. Na verdade, não me importa muito saber o que faria o Barão em face desse tipo de desafio, pois não o considero o mais importante que temos. De fato, não creio que necessitemos de um novo Barão – seja ele quem for: um diplomata genial ou toda uma categoria profissional tida por excelente – e sim de uma consciência clara de que nossos principais problemas não são de ordem externa e sim, todos, de natureza interna. Mãos à obra, portanto, pois tenho a impressão de que a história não absolverá nossa geração diplomática, se daqui até lá não contribuirmos com todas as nossas forças para colocarmos o País real em compasso com a suposta excelência de sua diplomacia.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 938: 2 de setembro de 2002.

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(artigo original de Rubens Ricupero)

O QUE FARIA O BARÃO?

Cem anos atrás, a política externa brasileira enfrentava dois formidáveis desafios que voltam a nos pôr à prova sob roupagem diferente. O primeiro era como lidar com uma súbita transformação da estrutura mundial de poder que nos afetava diretamente. O segundo era inserir o país num sistema internacional profundamente alterado por um processo de globalização sem precedentes. 
Nesta semana, em Brasília, deu-se início às comemorações do centenário da longa gestão do barão do Rio Branco como ministro das Relações Exteriores, a partir de 1º de dezembro de 1902, nove anos e pouco da mais brilhante e criativa estratégia externa desenvolvida pelo Brasil. Não eram só as questões globais que nos pressionavam então. Os problemas fronteiriços eram prementes e alguns, como o do Acre, explosivos e inadiáveis. Tratava-se, porém, no fundo, de questões típicas do século 19, a serem resolvidas com métodos daquele século, corretamente aplicados, o que se fez com incomparável competência. Estavam também inseridas no eixo das relações com nações das quais não nos separavam grandes diferenças de poder, ou, quando estas existiam, tendiam a favorecer-nos (casos da Bolívia e do Peru no Acre). 
Já os desafios globais tinham natureza diferente e pertenciam a outra esfera, a das relações com as grandes potências, perante as quais estávamos inferiorizados por um diferencial de poder tamanho que éramos obrigados a inventar um jogo defensivo mais sutil e indireto. De um lado, pesavam sobre nós as ameaças do imperialismo europeu no apogeu de sua arrogância e agressividade. A ilha da Trindade tinha sido ocupada pelos ingleses anos antes, tivéramos choques armados e sangrentos com os franceses em Calçoene, no Amapá, e haveríamos de provar no futuro a prepotência teutônica no perigoso incidente do Panther. Do outro lado, a emergência dos Estados Unidos como potência global era um verdadeiro terremoto na estrutura de poder tradicionalmente dominada pela Europa e não podia ser ignorada, pois ocorria no espaço continental a que pertencíamos. A estratégia de Rio Branco consistirá essencialmente em fazer uso do segundo fenômeno para neutralizar os perigos decorrentes do primeiro, mediante a "aliança não-escrita" ou opção preferencial por Washington. 
Explorando, no jargão marxista, as "rivalidades intra-imperialistas", o barão apoiou a Doutrina Monroe e o pan-americanismo patrocinados pelos EUA. É verdade que o poder americano se expressava às vezes de modo truculento -na política do "Big Stick" de Teddy Roosevelt, por exemplo. Ela se exercia, contudo, longe de nossas fronteiras, contra Cuba, contra o Panamá, contra a América Central, contra o Caribe, não no Amapá ou em Roraima. O que pragmaticamente interessava a Paranhos era obter o apoio ou a simpatia americanos nas questões fronteiriças contra os europeus e os latino-americanos e colaboração e ajuda na projeção do Brasil no continente ou no mundo. Quando isso não era possível, não hesitava em tomar partido contra os EUA, como fez nas instruções a Rui Barbosa em Haia. Seu objetivo era tornar a Doutrina Monroe uma política de defesa coletiva das Américas, e não mais um instrumento unilateral dos americanos, o que não conseguiu devido às resistências encontradas na Conferência Interamericana de Buenos Aires de 1909. 
Ao mesmo tempo que assim lidava magistralmente com o poder mundial em mutação, Rio Branco percebeu que a fase da globalização vitoriana modificava em prejuízo do Brasil o sistema de poder na América do Sul. Na nova etapa da divisão internacional de trabalho que veio então à luz, os mais favorecidos foram a Argentina e, em menor grau, o Uruguai, exportadores de produtos temperados (carnes, trigo, cereais, lãs), em forte demanda na Europa urbanizada pela Revolução Industrial. Fornecedora de produtos tropicais de sobremesa (açúcar, café, cacau) desde o início da colônia, a economia brasileira beneficiou-se menos em matéria de investimentos e financiamentos ingleses, de expansão das exportações e até do afluxo de imigrantes em termos relativos à população. A rápida prosperidade da Argentina e sua modernização em decorrência da plena integração da economia ao sistemaeuropeu não poderiam deixar de acarretar um reforço do poderio militar e estratégico platino em época de aguda rivalidade com o Brasil. 
Aqui também o caminho encontrado pelo barão para contra-arrestar essa tendência foi acentuar a inserção brasileira no sistema econômico cujo centro era não a Europa, mas os EUA. A realidade objetiva justificava a escolha, pois nesse período o mercado americano absorvia cerca de 36% das exportações brasileiras (contra 25% a 18% hoje), era o principal importador do nosso café (mais de 50%), da borracha e do cacau, os investimentos ianques concentravam-se na indústria de transformação, no automóvel, no novo, em contraste com os britânicos, que preferiam as ferrovias e os serviços públicos (como hoje fazem os capitais espanhóis e portugueses). 
As fórmulas do barão deram certo, convertendo-se por longos anos em paradigma incontornável da política externa brasileira. Agora, talvez pela primeira vez em um século, defrontamo-nos com dilemas tão desafiadores como os de 1902. Eles apresentam semelhanças de ordem geral com os do passado já que de novo temos de nos definir diante de alteração radical na estrutura mundial de poder e em relação a uma fase muito mais intensa de globalização.
Desta vez, no entanto, não é o sistema multipolar a incorporar novo ator principal como os EUA, mas são estes últimos que engolem o multipolarismo para concentrar quase todo o poder. O problema é saber se esse poder será exercido unilateralmente ou se sera possível, em alguma medida, colocá-lo a serviço de ordem internacional consentida, tolerante, generosa e justa e que papel poderia ter a diplomacia brasileira nesse esforço. O mesmo dilema nos desafia no caso da atual fase da globalização, que marginalizou a Argentina, deixou o Brasil em posição precariamente intermediária, mas inconfortável, e privilegiou o México por meio de sua incorporação ao espaço econômico da América do Norte. Será viável construir um tipo de inserção internacional que compatibilize uma Alca mais equilibrada e equânime com as oportunidades abertas pelo multilateralismo comercial em relação à Europa, à Ásia, a todas as regiões e países, essência da genuína globalização? 

(Rubens Ricupero é embaixador)
(Folha de São Paulo, 01/09/02)

Dia 20 de abril, dia do Diplomata, nascimento do Barão do Rio Branco - Paulo Roberto de Almeida (1996)

Tendo em vista a pandemia do Codiv-19, em 2020, não será comemorado neste dia 20 de abril, data do nascimento de José Maria da Silva Paranhos Jr. – futuro Barão do Rio Branco e chanceler do Brasil (1902-1912) – o tradicional Dia do Diplomata, ocasião na qual são agraciados "brasileiros ilustres" com a Ordem do Rio Branco, e tem lugar a formatura da turma deste ano do Instituto Rio Branco, ou seja, os novos diplomatas.
Estou coletando minhas obras sobre o Barão, o que informarei em próxima postagem, e já posto meu primeiro trabalho especificamente sobre nosso patrono, redigida em 1996.
Paulo Roberto de Almeida


O legado do Barão:
Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida *

O Barão do Rio Branco é, incontestavelmente, um dos founding Fathers da moderna diplomacia nacional, ou talvez mesmo a única personagem histórica brasileira capaz de verdadeiramente representar, no terreno da política externa, o que poderíamos chamar de — parafraseando a imagem que Euclides da Cunha empregou para caracterizar D. Pedro II em Contrastes e Confrontos — um “epítome vivo do Brasil”. Em sua donairosa figura talhada num estilo belle époque, ele condensa, presumivelmente, o que as tradições nacionais em política internacional produziram de melhor na longa história institucional do Itamaraty. Coincidentemente, sua permanência física no primeiro Palácio que leva esse nome no Rio de Janeiro — excetuando-se a curta gestão inicial do Chanceler Olinto de Magalhães (1899-1901), que no entanto nele não residiu — confunde-se com o próprio surgimento do Itamaraty enquanto cenário da diplomacia brasileira, que foi ali forjada ao longo de sete décadas de regime republicano.

O Homem e o Mito

Figura solitária no panteão quase deserto dos 174 anos de diplomacia nacional — onde sobressaem-se, é verdade, algumas outras fortes personalidades, vindas entretanto do mundo político, como Oswaldo Aranha, Raul Fernandes, João Neves da Fontoura, Afonso Arinos de Mello Franco ou San Tiago Dantas —, o Barão é, simultaneamente, uma figura emblemática e o marco fundador de uma política externa posta manifesta e exclusivamente a serviço dos interesses nacionais. Tendo primeiro construído, segundo suas próprias palavras, “o mapa do Brasil”, ele pôde dedicar-se depois à difícil tarefa de consolidar a união e a amizade dos povos sul-americanos. Pragmático, antes de mais nada, no sentido de não ater-se a princípios rígidos de atuação diplomática — privilegiando a arbitragem ou a negociação direta, segundo o que melhor conviesse no momento em causa —, mas profundo conhecedor do direito internacional e da história e geografia brasileiras, o Barão permanece praticamente solitário nessa condição de demiurgo de nossa política externa, descontando-se, eventualmente, as míticas figuras ancestrais, mas eminentemente simbólicas, de Alexandre de Gusmão e do “Patriarca da Independência”, Bonifácio de Andrada. 
A reverência para com ele, na Casa, é de praxe, como bem sabem os poucos iconoclastas localizados (e provavelmente isolados pelos demais colegas): não se fala do Barão como de um “simples” chanceler. Ele sempre foi bem mais do que isso: rara combinação de forjador da unidade territorial brasileira e de mentor de uma diplomacia imaginativa, afirmativa e supostamente clarividente — no estabelecimento da chamada “aliança não-escrita” com os Estados Unidos, por exemplo —, o “mito” do Barão há muito extrapolou o âmbito restrito do serviço exterior brasileiro e mesmo os limites geográficos do território nacional. 
Na verdade, o mito já existia antes que sua elegante figura — quase que diretamente saída, poder-se-ia dizer, de um dos romances de Eça de Queiróz —, ocupasse durante praticamente uma década inteira (e quatro presidências) o velho Palácio do Itamaraty do Rio de Janeiro: sua recepção triunfal no porto do Rio de Janeiro, chegando de um “exílio” de quase um quarto de século na Europa para ocupar o posto ministerial oferecido por Rodrigues Alves, atestou o quanto a pátria era reconhecida ao defensor vitorioso de nossas pendências lindeiras em casos de difícil comprovação de um direito “original” ao território contestado. Exemplos de sua incrível capacidade em reverter em benefício do País casos de difícil solução pelas vias “normais” de solução de controvérsias são encontrados no encaminhamento das delimitações de fronteiras com a Argentina — em relação ao qual um primeiro acordo desastradamente costurado por Quintino Bocaiúva não tinha conseguido passar pelo crivo do Congresso — e com a Bolívia, aqui envolvendo reconhecidamente cessão e compra de território estrangeiro: combinando habilmente o recurso ao uti possidetis — em áreas cuja comprovação de posse efetiva teria sido difícil a outrém que não o eminente conhecedor dos mais diminutos recônditos da ocupação colonial lusa e bandeirante — com doses variadas de argumentação diplomática e de firme persuasão, o Barão (“mero” Consul em Liverpool no primeiro caso) assegurou para o Brasil vitórias consagradoras em dois difíceis litígios. 

Carisma e diplomacia

A figura patriarcal do “velho” Barão constitui, para a diplomacia brasileira, um excelente exemplo do que, na terminologia sociológica weberiana, chamaríamos de “liderança carismática”, ou seja, uma autoridade inconteste dotada de suas próprias fontes de legitimidade intrínseca, baseada na experiência e no saber. O Itamaraty como um todo, aliás, sempre foi afirmadamente weberiano, ainda que malgré-lui: tendo começado a funcionar sob uma sociedade manifestamente “patrimonialista”, a Casa adquiriu sua aura de prestígio sob a administração decididamente “carismática” do Barão. Neste século, ela soube acompanhar o processo de modernização do Estado, passando por diversos experimentos de racionalização burocrática — de inspiração “daspiana” ou autônoma — para afirmar sua crescente profissionalização, segundo o modelo da administração “racional-legal”, por intermédio do Instituto que leva o nome do patrono da Casa, criado em 1945. 
O Itamaraty passa e repassa, constantemente, toda a tipologia do mestre de Heidelberg, combinando carisma e poder, tradição e burocracia, segundo um modelo no qual a própria burocracia diplomática apresenta-se como carismática, em face das demais corporações do Estado: cultiva-se muito, dentro e fora da Casa, o mito da excelência. Por outro lado, ele tampouco deixa de ter uma espécie de iron cage: uma personalização extremamente rebuscada das relações de poder dificulta, em última instância, a rotinização do diplomata brasileiro, isto é, a institucionalização definitiva da carreira, esse obscuro objeto do desejo da maior parte dos diplomatas. 
Em todo caso, se alguma vez praticamos no Brasil o culto a uma personalidade política qualquer, essa palma reverte integralmente ao Senhor Barão, já que o candidato alternativo — ou melhor dito, “oficial” —, Getúlio Vargas, não pode razoavelmente ter sua preeminência histórica derivada “geneticamente” de algum entusiasmo espontâneo das “grandes massas”, sendo antes o resultado de um processo largamente conduzido a partir do alto, isto é, da própria máquina do Estado, com fins claramente orientados à popularização do estadista gaúcho. 
Em contraste com a personalidade exuberante do caudilho gaúcho, o Barão foi um “retraído” político e um homem de estudo, mais afeto aos gabinetes de leitura do que aos ministeriais: ele nunca buscou a promoção auto-dirigida ou outra causa que não a da defesa silenciosa e constante dos interesses do Brasil no exterior e no trato com nossos vizinhos imediatos. Longe dele a propaganda pessoal ou a busca de cargos políticos: seu próprio estilo de vida e necessidades familiares o teriam isolado em missões burocráticas do trabalho consular ou de representação diplomática, não fosse a lembrança benevolente dos amigos e a reputação adquirida nas negociações de fronteira a tirá-lo de postos relativamente periféricos no exterior para guindá-lo às honras de um ministério ele mesmo colocado no centro das atenções nacionais e regionais.
A despeito de sua proverbial oposição ao ingresso de mulheres e de um certo arbítrio na seleção (pessoal) dos candidatos à carrière — explicáveis porém em termos de Zeitgeist —, o Barão é parte indissociável do “inconsciente coletivo” dos diplomatas brasileiros, referência incontornável da história diplomática nacional, presença obrigatória nos estudos conduzidos em sua academia profissional — que aliás leva o seu nome e acaba de comemorar os 50 anos da formação de sua primeira turma de alunos —, uma espécie de “espírito-que-anda” nos salões e corredores do Itamaraty e paradigma incontestado da “boa” política externa, ainda que segundo os padrões clássicos, e talvez algo antiquados, da prática diplomática. Na historiografia diplomática brasileira existe claramente um a.B. e um d.B, antes e depois do Barão, mesmo se o culto à personalidade não chega às raias do sagrado. Em todo caso, nenhum “rito iniciático”, nenhuma “prova de passagem” ou teste de “idade adulta”, se pode fazer, na Casa de Rio Branco, sem algum tipo de referência, remissão, citação ou alusão ao velho Barão. Tanta unanimidade poderia fazer sorrir o incauto, um outsider pouco afeto a nossas idiossincrasias diplomáticas ou algum “estranho no ninho”, mas não causa maior espécie ou surpresa aos habitués do Itamaraty: afinal de contas, o Barão é o próprio Itamaraty e a imagem do Itamaraty só se construiu, neste século, a partir da figura e da gestão dessa personagem ímpar da transição monárquico-republicana do Brasil. No dizer de um diplomata argentino da primeira metade do século: Rio Branco “era el Brasil mismo”. Em suma, Barão só tem um em toda a história brasileira: é Rio Branco, ponto final.

Memória do Barão

Para comemorar os cento e cinquenta anos de seu nascimento, a Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, sob a presidência do Embaixador Baena Soares, ex-Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores e ex-Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, organizou em 1995 uma primorosa exposição de fotografias, cujo sucesso se deveu muito ao entusiasmo da Chefe da Mapoteca do Itamaraty no Rio de Janeiro, Sra. Maria Marlene de Souza. Essa rica coleção fotográfica, exibida no Palácio Itamaraty de Brasília por ocasião das festividades do dia do diplomata (coincidentemente comemorado todo dia 20 de abril, natalício do Barão), serviu por sua vez de suporte iconográfico ao magnífico volume organizado pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araujo (igualmente autor das legendas das fotos) em torno da vida de José Maria da Silva Paranhos: Barão do Rio Branco, Uma Biografia Fotográfica,1845-1995, com texto do Embaixador Rubens Ricupero.
O livro, carinhosamente preparado e editado pelos herdeiros espirituais e institucionais do Barão, corresponde inteiramente ao que dele se anuncia no título: combina com rara felicidade texto e imagem, para oferecer uma biografia ilustrada do assim chamado patrono da diplomacia brasileira. Os marcos cronológicos indicados são inteiramente preenchidos, pois que, à preciosa reconstituição do itinerário pessoal, intelectual e profissional do Barão, nos limites cronológicos de sua existência (1845-1912), segue-se uma reflexão sobre a influência de seu pensamento e ação nas décadas posteriores (o “destino do paradigma”), um capítulo comportando uma indagação pertinente, e contemporânea (“o que faria o Barão hoje?”), finalizando com uma avaliação global da grande personagem histórica (“contrastes e confrontos”). O autor da excelente biografia comentada que acompanha (ou melhor, que sustenta soberbamente) a sucessão de fotos e caricaturas coletadas especialmente para esta edição, o Embaixador Rubens Ricupero, tinha todas as qualificações intelectuais e profissionais para retraçar com maestria a vida e a obra da “esfinge Rio Branco”, segundo ele o “último grande representante da escola de estadistas do século XIX brasileiro”. 
As “afinidades eletivas” de Ricupero com a personalidade moral e intelectual do Barão o levam, aliás, um pouco mais além da mera reconstituição biográfica, já que foi ele próprio professor de história diplomática do Brasil e de relações internacionais contemporâneas, no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília. Reconhecidamente um dos melhores idealizadores e formuladores da política externa governamental — com forte ênfase na área americana — e um de seus pensadores mais abalizados, Ricupero completou, de uma certa maneira, a obra do Barão, ao contribuir, por meio de um arcabouço jurídico de notória complexidade (Tratados da Bacia do Prata e de Cooperação Amazônica, início do processo de integração Brasil-Argentina), com os processos de aprofundamento da cooperação e interdependência entre Estados que tinham seu relacionamento baseado, até então, no mero reconhecimento mútuo das fronteiras traçadas por Rio Branco. Não fosse o arriscado e talvez o inadequado da comparação, poderíamos chamá-lo de “George Kennan brasileiro”, no sentido de ser Ricupero um diplomata sobretudo conceitual, preocupado em não apenas enquadrar sua atuação profissional num determinado contexto filosófico e moral, mas também em dar-lhe uma perspectiva histórica de mais largo alcance, ao estilo da “longa duração” cara a Fernand Braudel (não por acaso, Ricupero é igualmente o presidente do Instituto de Economia Mundial, de São Paulo, que leva o nome do grande historiador francês). 
Ninguém melhor do que Ricupero poderia, portanto, apresentar de maneira inovadora os principais lances de uma vida a serviço do Brasil, assim como os elementos mais relevantes de um pensamento diplomático feito de rupturas e continuidades, de tradição e modernidade. Ele não se contenta, entretanto, em recolher episódios pessoais ou exemplos de desempenho profissional contidos nas conhecidas biografias dedicadas ao Barão — das quais as mais conhecidas são, sem dúvida, a de Alvaro Lins e a de Luiz Viana Filho —, ou os julgamentos por vezes peremptórios glanados em obras como as de Oliveira Lima, considerado uma espécie de “anti-Rio Branco”: segundo esse autor contemporâneo do Barão, “se a sua alma tinha refolhos, a sua inteligência era toda banhada em luz”. 
Ricupero oferece, antes de mais nada, uma reflexão pessoal sobre o papel do Barão no contexto histórico da diplomacia brasileira em sua época, marcada pela transição entre uma monarquia segura de si, num mundo ainda largamente dominado por realezas e sistemas dinásticos, e um regime republicano hesitante e incerto de sua legitimidade original, desejoso de inserir-se na supostamente “solidária” família americana e buscando exemplo e emulação na grande República da América do Norte. Nesse particular, Rio Branco, um “monarquista de formação e gostos europeus”, teria feito, segundo Ricupero, uma “opção preferencial pelos Estados Unidos”, visto como o grande aliado no relacionamento com as potências predominantes do sistema mundial no começo do século (não obstante o fato de um grande amigo de Rio Branco, Eduardo Prado, ter escrito um forte líbelo “anti-imperialista”, A Ilusão Americana). Razões econômicas, ademais de geopolíticas, certamente não faltaram para justificar a escolha do “novo paradigma” de nosso relacionamento externo: desde 1870 os Estados Unidos compravam mais da metade das exportações brasileiras de café e, na virada do século, 60% da nossa borracha.

Atualidade de Rio Branco

O que cativa particularmente no texto de Ricupero, e o que nos interessa especialmente reter aqui, não é tanto o itinerário pessoal de uma vida nômade a serviço do Estado brasileiro, os lances gloriosos na confirmação (ou na própria construção) de nossas fronteiras ou, ainda, o pensamento político de um monarquista conservador típico do século XIX, mas, sobretudo, o significado de sua diplomacia original (mas ainda eivada de características oitocentistas) para os problemas de nossa época e para os desafios do momento. Deixando de lado, por dificuldades práticas e óbvios óbices políticos, a “antecipação [talvez utópica] do futuro” consubstanciada no projeto de Pacto A.B.C., esquema de não-agressão, entendimento e cooperação entre os três maiores países sul-americanos que deveria complementar, na visão do Barão, a “aliança não-escrita” com os Estados Unidos, Paranhos já vislumbrava para o País um importante papel mundial. Em artigo ao Jornal do Comércio ele dizia: 

“Desinteressando-se das rivalidades estéreis dos países sul-americanos, entretendo com esses Estados uma cordial simpatia, o Brasil entrou resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais, a que tem direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territorial e pela força de sua população”.

Muito embora território e população não sejam, hoje em dia, critérios exclusivos de afirmação internacional, a visão do mundo do Barão tem muito a ver com o encaminhamento dos principais desafios enfrentados hoje pelo Brasil. Ele tinha consciência do limitado poder de projeção externa do País e por isso mesmo, ainda que recusando o militarismo, era um “partidário ativo”, como coloca Ricupero, “da modernização das forças armadas, tendo seu nome ficado ligado ao programa de renovação da frota”. Não proclamava, contudo, a necessidade de “armamentos formidáveis” ou a “aquisição de máquinas de guerra colossais”: tratava-se, tão simplesmente, de cuidarmos “seriamente de organizar a defesa nacional, seguindo o exemplo de alguns países vizinhos”. Ele descartava as pretensões à preeminência de alguns países latino-americanos — usando palavras como “loucura das hegemonias” ou “delírio das grandezas” — e voltava a afirmar sua convicção íntima: 

“Estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do Direito e, como hoje, pela sua cordura, desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir”.

Sua intenção de conquistar para o Brasil, com a retórica e a força da argumentação de Rui Barbosa, uma cadeira permanente na Corte Internacional de Justiça — então em discussão na segunda conferência da Paz da Haia, em 1907 — logo chocou-se com a proposta “oligárquica” que defendiam as grandes potências imperiais, inclusive os Estados Unidos. O episódio, humilhante para o País na visão de Rio Branco, não é destituído de ensinamentos, como lembra Ricupero, para o debate atual em torno da reforma da Carta da ONU e da eventual assunção do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. Sem qualquer consulta prévia ou consideração diplomática, Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha relegaram o Brasil a uma terceira categoria (membros não-permanentes), ainda inferior a países europeus menos populosos. 
O Barão, tentando de diversas maneiras salvar o prestígio e a honra do Brasil, sugeriu várias fórmulas alternativas (indicação de um juiz por cada país membro, para seleção ulterior em função dos casos, como num painel do GATT; designação de representantes permanentes para cada um dos três maiores países sul-americanos, Argentina, Brasil e Chile, e um quarto, rotativo entre os demais; constituição de um tribunal com 21 membros, sendo 15 permanentes para os países com mais de dez milhões de habitantes), sem lograr contudo nenhum avanço; pior: essas mudanças de posição “nos estavam fazendo perder terreno junto aos latino-americanos e aos países europeus menores”. 
Atendendo então à tese igualitária, desde o princípio defendida por Rui, Paranhos assume uma posição de rejeição a compromissos que implicassem a existência de nações de terceira, quarta ou quinta ordem: 

“Agora que não mais podemos ocultar a nossa divergência [com as potências européias e com os Estados Unidos], cumpre-nos tomar francamente a defesa do nosso direito e do das demais nações americanas. Estamos certos de que Vossência [Rui] o há de fazer..., atraindo para o nosso país a simpatia dos povos fracos e o respeito dos fortes”. 

Assim, a despeito de uma tentativa inicial de colaboração e de entendimento com os Estados Unidos, lembra Ricupero que o “choque com a posição americana tornou-se frontal e o Brasil assumiu a liderança dos países latino-americanos e de países menores europeus na luta pela igualdade”. O Barão teve de constatar os limites da política de cooperação, a primazia da diplomacia do poder e a própria “opção preferencial” dos norte-americanos pelas grandes potências européias.

Integração hemisférica e questão social no Brasil

Na vertente econômica, de outra parte, o Brasil da virada do século era mais favorável do que os demais países latino-americanos ao projeto americano de estabelecimento de uma união aduaneira do Alasca à Terra do Fogo, a que se opunha veementemente, por sua vez, a Argentina, muito mais vinculada aos interesses comerciais e financeiros britânicos. Atualmente (e não apenas no terreno econômico), parece ter ocorrido, no dizer de Ricupero, uma “inversão de papéis”, segundo a imagem coerográfica do changez de place: a Argentina apressou-se, por exemplo, em saudar a “Iniciativa para as Américas” de George Bush e em manifestar-se candidata a ingressar no NAFTA de Bill Clinton, enquanto o Brasil mantinha a natural reserva diplomática de um global trader.
É bem verdade que a dependência da exportação primária e a questão crucial do acesso ao mercado norte-americano para nosso principal produto da pauta comercial ditavam em grande medida, um século atrás, o interesse brasileiro nesse tipo de aproximação, situação bem diferente da relativa diversificação geográfica e de oferta exportadora de hoje em dia. Armado de um pragmatismo exemplar, o Barão não hesitaria em subscrever, nesse como em outros casos, uma diplomacia adaptável às circunstâncias de cada momento, unicamente comprometida com o interesse nacional, que ele soube encarnar como poucos no decorrer da história nacional. 
Seu biógrafo e “inimigo cordial”, Oliveira Lima, sublinha que, em Rio Branco, “o interesse pessoal se confundia com o público, assim como sua personalidade mergulhava toda na nacionalidade”. Longe da pátria, na Europa, o Barão — consoante seu lema Ubique Patriae Memor, “em todo lugar lembrar-se da Pátria” — continuava ocupando-se continuamente da terra natal, lendo e anotando livros e mais livros de e sobre nossa história. Jovem pesquisador de história do Brasil, ele tinha sido eleito para o Instituto Histórico e Geográfico em 1867, aos 22 anos, nele permanecendo como sócio ativo até seu falecimento.
Seu Esquisse de l’Histoire du Brésil, destinado a integrar o volume Le Brésil en 1889, preparado para a Exposição Universal de Paris, revela muito dessas leituras cuidadosas das obras de viajantes e observadores estrangeiros, assim como das dos cronistas portugueses da era colonial. Consciente de uma das principais deficiências sociais brasileiras de então, ele dedica largas passagens desse livro ao problema da escravidão e sua abolição, consumada praticamente no momento em que o terminava de escrever. Da mesma forma como o dramático problema social brasileiro do final do século XX, o parágrafo final dessa obra de cem anos atrás soa curiosamente atual:

“Nos últimos quarenta anos, ... o Brasil fez grandes esforços... para difundir a instrução, melhorar o nível do ensino, para desenvolver a agricultura, a indústria e o comércio, tirando partido das riquezas naturais... Os resultados obtidos ... são já consideráveis. Em nenhuma parte do continente americano, salvo nos Estados Unidos e no Canadá, a marcha do progresso tem sido mais firme e mais rápida”. 

A perspectiva promissora traçada pelo Barão do Rio Branco para o Brasil monárquico de então demorou (e ainda demora) um certo tempo para ser cumprida, em grande medida devido precisamente à abolição tardia do regime da escravidão e sua preservação de fato, ainda que em forma disfarçada, nas relações sociais de produção de regiões inteiras de seu vasto hinterland, quando não no coração mesmo de zonas urbanas. A permanência de um certo ancien Régime nas estruturas sociais de dominação e de apropriação do Brasil tem algo a ver, aliás, com a visão conservadora da cidadania ostentada mesmo por personalidades de refinada educação européia como o Barão. Ainda que ele não tenha sido um positivista e muito menos um jacobino republicano, ele certamente concordaria com o princípio inspirador do regime então inaugurado: o progresso, sem dúvida, mas a ordem antes de mais nada.
Em que pese esse conservadorismo social, em matéria de política externa o Barão foi propriamente um revolucionário: sua visão funcional e pragmática do relacionamento internacional do País e seu legado inovador na prática da política externa constituem, evidentemente, meios seguros para converter a diplomacia profissional e especializada de nossos dias num instrumento eficaz de desenvolvimento econômico e social do Brasil. Para isso, e finalizando com um conceito utilizado por Ricupero, precisamos ter, como o Barão, um “grande desígnio de política exterior”, suscetível de converter-se em novo paradigma de nossa diplomacia. Agora, como nos tempos do Barão, o critério básico matem-se o mesmo: a inserção soberana do País na ordem econômica e política internacional. Quase cem anos depois de concebido por seu mentor intelectual, o modelo fornecido por Rio Branco permanece vigorosamente atual.

Nota: Os livros citados, José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco:Uma Biografia Fotográfica,1845-1995 (Brasília: FUNAG, 1995) e Esboço da História do Brasil (Brasília: FUNAG, 1992), podem ser adquiridos junto à Fundação Alexandre de Gusmão no Itamaraty de Brasília: Telefone: (061) 211-6033/34; Fax: 322-2931.
  
[Brasília, 26/04/1996; revisão: 02/05/1996]
[Relação de Trabalhos n. 526]

526. “O legado do Barão: Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira”, Brasília, 26 abril 1996, 7 p.; revisão: 02/05/96, 11 p. Apresentação e comentários ao livro José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco: Uma Biografia Fotográfica,1845-1995, Texto de Rubens Ricupero; organização, iconografia e legendas de João Hermes Pereira de Araujo (Brasília: FUNAG, 1995, 132 p.). Enviado para a revista Política Externa: não considerado; publicado na Revista Brasileira de Política Internacional  (vol. 39, n° 2, julho-dezembro 1996, p. 125-135). Relação de Publicados n° 198.


* Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas.


domingo, 15 de março de 2020

Guerra do Paraguai: 150 anos do seu término - Rubens Ricupero

A tradição diplomática brasileira de não intervenção nos assuntos  internos de outros países— interrompida agora pela canhestra diplomacia ideológica olavo-bolsonarista — começou com o final da desgraçada guerra que o Paraguai do ditador Solano Lopez deslanchou contra o Brasil, isso por intervenções nossas na política interna do Uruguai e outros problemas de fronteiras. A regra da não-intervenção foi seguida escrupulosamente na longa trajetória da diplomacia brasileira desde então – embora parcialmente desrespeitada sob o regime lulo-petista, se envolveu em diversos episódios eleitorais na região –, até que o inepto presidente atual e seu chanceler acidental deslanchassem ataques inacreditáveis ao então candidato argentino, depois eleito presidente. Poucas vezes em nossa história, tivemos exemplos tão baixos de incompetência diplomática.
Paulo Roberto de Almeida
15/03/2020

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/trauma-da-guerra-do-paraguai-iniciou-aversao-brasileira-a-conflitos.shtml

Trauma da Guerra do Paraguai iniciou aversão brasileira a conflitos

Episódio encerrado há 150 anos inspirou tradição diplomática de paz e não intervenção, diz Rubens Ricupero


Rubens RicuperoFolha de S. Paulo, 13 de março de 2020
[resumo] Último conflito armado do Brasil com países da América Latina, a Guerra do Paraguai chegava ao fim há 150 anos. Episódio ainda controverso, a batalha encerrou o período de choques na bacia da Prata, iniciou a derrocada da monarquia e inspirou uma tradição diplomática de paz e não intervenção.
No dia 1º de março, o Brasil completou 150 anos ininterruptos de paz com seus dez vizinhos. Nenhum outro país com tão vasta vizinhança ostenta essa tradição pacífica.
Em 1º de março de 1870, terminava, com a morte do ditador paraguaio Francisco Solano López, a Guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai. Em Assunção, manifestações oficiais relembraram a efeméride; no Brasil, passou em brancas nuvens.
Detalhe da pintura "A Batalha do Avaí" (1877), de Pedro Américo
Repetiu-se o que ocorrera no centenário do fim do conflito (1970). Nos cinco anos anteriores à data, os jornais guaranis recordaram dia a dia o que acontecera um século antes. O Brasil guardou silêncio, fiel à lição do barão do Rio Branco de que há vitórias que não se devem comemorar.
Somente no aniversário do fim do conflito, o ministro do Exército emitiu nota exemplar, afirmando que o Brasil tinha preferido esperar para comemorar cem anos de paz a um século de guerra. Era, e é, a melhor maneira de celebrar a maior tragédia da história sul-americana.
Passado tanto tempo, a Guerra do Paraguai continua a suscitar acusações e dúvidas que merecem esforço de elucidação. A quem cabe, por exemplo, a culpa pelo conflito?
As hostilidades começaram em 11 de novembro de 1864, quando, sem declaração de guerra, os paraguaios capturaram o vapor brasileiro que conduzia o presidente (espécie de governador) designado para Mato Grosso. Em fins de dezembro, duas colunas invadiram o território mato-grossense.
López protestara em agosto de 1864 contra a intenção brasileira de intervir na guerra civil uruguaia e advertira o Brasil das consequências de um ataque a seus aliados do Partido Blanco. Não houve, no entanto, nenhuma ameaça ou agressão direta contra o Paraguai da parte da Corte do Rio de Janeiro.
Não existia, assim, justificativa para o Paraguai invadir o Mato Grosso, em seguida o Rio Grande do Sul e ocupar Uruguaiana. Aliás, a fim de atacar o território gaúcho, López violou o território argentino, possibilitando a aliança com o Brasil que não teria ocorrido sem essa provocação.
Como se explica que um país cuja população em 1860 se estimava em cerca de 400 mil habitantes desafiasse a Argentina, com 1,7 milhão, o Brasil, com 9 milhões, e o Uruguai, com 250 mil, num total de menos de meio milhão contra 11 milhões?
A explicação emerge da comparação dos efetivos dos exércitos prontos a entrar em combate, em que o Paraguai levava vantagem de quase três contra um (77 mil homens contra 18.300 do Brasil, 6 mil da Argentina e 3.100 do Uruguai, totalizando 27.400 aliados).
Daí a estratégia de López de tentar, por meio do efeito surpresa de uma ofensiva fulminante, vitória que lhe permitisse resolver em favor de seu país as questões fronteiriças e de liberdade de navegação pendentes com o Brasil. Fracassada a guerra-relâmpago com a derrota guarani na batalha naval do Riachuelo e a capitulação das forças de ocupação de Uruguaiana (setembro de 1865), só então a luta se deslocou para o território paraguaio, invadido pelo Passo da Pátria (abril de 1866).
Reprodução de foto de Francisco Solano López
Reprodução de foto de Francisco Solano López - Ministerio de Defensa/AFP
Seguiu-se vagaroso avanço aliado até que, já sob o comando do Duque de Caxias, a guerra entrou na decisiva fase das batalhas da dezembrada (dezembro de 1868), culminando na ocupação de Assunção (1/1/1869).
Doente, Caxias retornou ao Rio, convencido de que o conflito acabara. Temendo que o perigo só cessaria com o fim de López, dom Pedro 2º resolveu continuar a luta, numa decisão controvertida, análoga à tomada pelos Aliados contra Hitler.
A guerra se prolongaria ainda por 15 meses, durante os quais se concentrou boa parte do pior em matéria de devastação, atrocidades, morte em combate de crianças e da maioria da população masculina paraguaia. Os números dessa época são incertos, mas o Paraguai pode ter perdido 250 mil vidas, mais da metade de seus habitantes.
Dos 140 mil brasileiros que participaram da guerra, morreram cerca de 50 mil, mais de um terço, aos quais se somam 18 mil dos 30 mil argentinos e 5 mil dos 5.500 uruguaios. Mais de dois terços pereceram não em combate, mas em consequência de doenças, fome, exaustão e migrações forçadas da população civil obrigada a seguir o ditador.
O esforço de guerra custou ao Brasil o equivalente a 11 anos do Orçamento anual, gerando déficit contínuo nas duas décadas seguintes. Foi o que inspirou o célebre desabafo do barão de Cotegipe: “Maldita guerra, atrasa-nos meio século”.
Iniciada quando findava a Guerra de Secessão americana, a do Paraguai se assemelha a ela na duração e ferocidade da luta, antecipando o estilo de conflito total do futuro. Guardadas as proporções, os danos em vidas e destruição foram também devastadores.
Para o Império brasileiro, ela encerra o ciclo de choques militares com os vizinhos da bacia do Prata, iniciado logo depois da Independência com a Guerra da Cisplatina (1825 a 1828) e prosseguido com as intervenções no Uruguai e na Argentina após 1850. Sequência dos atritos coloniais entre Espanha e Portugal, essa fase instável termina com a consolidação dos Estados nacionais e de suas fronteiras nas décadas finais do século 19.
Joaquim Nabuco julgou que a Guerra do Paraguai teve importância tão decisiva para os destinos dos países do Cone Sul que pode ser considerada o “divisor de águas” da história dessas nações. Ela teria marcado o “apogeu do Império, mas dela também procedem as causas principais da decadência e da queda da dinastia”.
O triunfo da monarquia representou o brilho final de uma estrela que se apagava. Por volta de 1880, a política exterior do Brasil atingira todos seus objetivos: afastara do poder seus inimigos em Assunção, Montevidéu, Buenos Aires; evitara a eventual reconstituição de uma união dos demais contra o Império; obtivera a livre navegação dos rios e as fronteiras que desejava com uruguaios e paraguaios.
Depois de 30 anos de variados conflitos, era como se a monarquia, exausta, tivesse perdido a energia para reformar-se a si própria, modernizando a estrutura social do país, debilitada pela escravidão.
Nessa mesma época, a Argentina e, em menor grau, o Uruguai logravam pôr fim à longa instabilidade da fase formativa, atraíam capitais ingleses e imigrantes europeus que as transformariam em nações mais modernas e prósperas que o Brasil.
A Guerra do Paraguai é tema histórico que se presta a controvérsias e geração de mitos a serviço de interesses ideológicos e políticos. O revisionismo argentino inventou a tese fantástica de que a causa de tudo seria a influência da Inglaterra imperialista. Entre os absurdos da fábula, omite-se que, no começo do conflito, o Brasil estava de relações rompidas com Londres desde a Questão Christie (1862 a 1865).
A tese deu origem no Brasil a panfletos como o que denunciou o suposto genocídio que teria provocado 1 milhão de vítimas num país cuja população não atingia nem a metade desse número. A pior distorção, obra tardia de partido político paraguaio, consistiu na metamorfose do tirano sanguinário que foi Solano López num estadista sacrificado no altar da pátria.
Quem desejar pisar em terreno firme nessas questões, dispõe de reconstituição primorosa da terrível tragédia, “Maldita Guerra”, de Francisco Doratioto, maior conhecedor brasileiro de história paraguaia. Livro até agora definitivo pela solidez da análise dos documentos, dele extraí dados e análises deste artigo.
A Guerra do Paraguai e as intervenções no Prata nos legaram herança amarga de perdas humanas e atraso econômico e social. Data da guerra encerrada um século e meio atrás a “questão militar”, a tendência do Exército de intervir na política, um dos fatores da queda da monarquia e fenômeno perturbador da democracia que se prolonga até nossos dias.
Os brasileiros como Rio Branco e Nabuco, que viveram na juventude as angústias da luta contra o Paraguai, adquiriram horror à guerra e às intervenções em países estrangeiros. Passaram a cultivar diplomacia avessa a julgar publicamente os demais, escrupulosa na observância do princípio de não se imiscuir na política interna dos vizinhos.
O esquecimento dessas lições de nossa história abriu caminho à volta da prática lamentável de condicionar a amizade com os vizinhos a distorções ideológicas. Não surpreende que isso tenha provocado perigosa deterioração do relacionamento com a Venezuela, a ponto de gerar tensão militar na fronteira e grave retrocesso na relação com a Argentina, nosso principal vizinho.
A República inseriu em sua Constituição a proibição da guerra de conquista. Posto à prova na crise do Acre, quando o país chegou perto do conflito, o compromisso com a paz foi mantido graças ao gênio diplomático de Rio Branco, que não se cansava de repetir que “o recurso à guerra é sempre desgraçado”. Mais tarde, nos anos 1970, o Tratado de Itaipu deu impulso ao projeto bilateral para ajudar o Paraguai no seu desenvolvimento econômico-social.
Finalmente, o ex-presidente José Sarney inaugurou com o ex-presidente argentino Raul Alfonsín processo de edificação de confiança mútua que culminaria em duas das maiores conquistas da política externa: o Mercosul e o abandono dos projetos secretos para construir a bomba atômica.
Superando dois séculos de confrontos, essas duas realizações complementares transformaram a bacia do Prata de antigo cenário de guerras em espaço de integração entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Nosso dever é não permitir que desvarios ideológicos ponham em risco a tradição de paz com os vizinhos, maior título de glória do povo brasileiro.

Rubens Ricupero, foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (Governo Itamar Franco) e embaixador em Genebra, Washington e Roma.